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A Súmula Vinculante nº 14 e o abuso de autoridade

A Súmula Vinculante nº 14 e o abuso de autoridade

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A defesa não quer o panegírico da culpa, ou do culpado. Sua função consiste em ser, ao lado do acusado, inocente ou criminoso, a voz dos seus direitos legais." (Rui, Obras Completas, vol. XXXVIII, t. II, p. 10)

O nosso processo penal, de 1941, de origem ditatorial-fascista, sempre protegeu a idéia de que segredo e Justiça eram corolários de um processo mais eficiente, subelencando as garantias processuais.

O CPP exige, hodierna e anacronicamente, o "sigilo necessário à elucidação do fato ou exigido pelo interesse da sociedade" (art. 20, CPP) - inclusive contra o imputado - em conceito de todo similar ao "deutsche Volksgeist" nazista, ápice do niilismo moral [01].

A doutrina ainda define o inquérito como mera peça informativa de natureza administrativa, sigilosa e inquisitiva. Isso sem levar em consideração que, até bem pouco tempo atrás, vivíamos sob as agruras de uma política repressora cheia de "segredos" e desmandos para o imputado, concebido como mero "objeto".

Não se pode passar ao alvedrio do outrora desprestigiado Estatuto da Advocacia (Lei n° 8.906/94). Há 15 anos tenta assegurar, aos advogados, o acesso aos autos de flagrante e de inquérito (art. 7º, inciso XIV) [02], exceto quando há "segredo de justiça" (§1º., 1), exceção essa estabelecida ao largo de qualquer probidade administrativa.

A jurisprudência, titubeante, apoiada na mais fina doutrina de "manuais" e em precedentes de escol [03], só começou mesmo a ter luzes [04] sobre a discussão no HC 82534-8-PR, STF, Min. Sepúlveda Pertence, isso nos idos de 2004...

Todavia, apesar da Constituição, apesar da Lei, apesar do Supremo, a prática da advocacia criminal, não raras vezes, se depara, ainda, com o total desconhecimento por parte de autoridades do art. 5º. LV, CF ao não interpretarem extensivamente o inquérito policial como "processo administrativo" [05] ou os imputados como "acusados em geral" [06]:

LV - aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em geral são assegurados o contraditório e ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes;

A interpretação mais usual é restringir o art. 5º., LV, CF até que se poste amorfo no art. 20 do CPP...

Procurando efetivar a prerrogativa profissional de acesso aos autos, elementar ao exercício da defesa de qualquer cidadão, o Conselho Federal da OAB (Ordem dos Advogados do Brasil), em setembro do ano passado, propôs, e foi aprovada, no dia 02 de fevereiro de 2009, a tão aguardada súmula vinculante n° 14 do Supremo Tribunal Federal, do teor seguinte:

"É direito do defensor, no interesse do representado, ter acesso amplo aos elementos de prova que, já documentados em procedimento investigatório realizado por órgão com competência de polícia judiciária, digam respeito ao exercício do direito de defesa."

Uma evolução notável para a cidadania num alargado direito à informação (Nemo inauditus damnari potest) [07], apesar de dois votos contrários: dos ministros Joaquim Barbosa e Ellen Gracie.

É claro que não se pode falar em contraditório pleno no inquérito porque não há relação processual e nem é processo. Também não há direito absoluto dos advogados de acesso aos inquéritos e às atividades policiais. Há restrições como, por exemplo, o acesso prévio às diligências. Desse modo, o inquérito continua correndo em segredo, mas parcial, nunca total. De modo que, se os autos são do interesse do cliente do advogado e há provas já documentadas, a autoridade não pode mais alegar sigilo do inquérito ao advogado, absolutamente. E diga mais, as diligências não precisam nem estar disponíveis nos autos, tal como fez o art. 8° da lei de interceptações telefônicas ( Lei n° 9.296/96), basta estarem documentadas.

Essa súmula tem a declarada intenção de paralisar as violações dos direitos constitucionais dos cidadãos, por parte de pessoas que detêm certa parcela de autoridade. No mesmo sentido já pensavam Milton Campos e Bilac Pinto intelectuais da lei 4.898/65 (a lei de abuso de autoridade), onde em seu art. 3º., alínea "j" passou, em 1979, a dispor ser crime de abuso de autoridade qualquer ato atentatório:

"j) aos direitos e garantias legais assegurados ao exercício profissional. (Incluído pela Lei nº 6.657,de 05/06/79)"

Que encontra ressonância constitucional no art. 5º., XIII, CF:

"XIII - é livre o exercício de qualquer trabalho, ofício ou profissão, atendidas as qualificações profissionais que a lei estabelecer;"

De se ver que a alínea "j" se trata de norma penal em branco, a configuração do abuso de autoridade contra os advogados depende, pois de seu estatuto, no caso a lei 8.906/94. Esse estatuto, no seu art. 7º dispõe os direitos do advogado, dentre os quais se destacam:

"XIV - examinar em qualquer repartição policial, mesmo sem procuração, autos de flagrante e de inquérito, findos ou em andamento, ainda que conclusos à autoridade, podendo copiar peças e tomar apontamentos;

XV - ter vista dos processos judiciais ou administrativos de qualquer natureza, em cartório ou na repartição competente, ou retirá-los pelos prazos legais;

§ 1º Não se aplica o disposto nos incisos XV e XVI:

1) aos processos sob regime de segredo de justiça;"

A obstrução ao direito de defesa, mesmo sob a alcunha do kafkiano "segredo de justiça", em tese, pode configurar o delito previsto na alínea "j" do artigo 3º da Lei 4.898/65, o qual estatui constituir crime de abuso de autoridade qualquer atentado aos direitos e garantias legais assegurados ao exercício profissional. Sem sombra de dúvidas, o acesso aos autos cerceia o exercício profissional do advogado e esse exercício, jamais, se submete a nenhum tipo de segredo, do que se depreende da súmula vinculante no. 14.

A História está cheia de exemplos de perseguições e injustiças sob o manto cego da vindita. Em nome da Justiça, já se mataram inimigos particulares. Sem o acesso aos autos, não há defesa; sem defesa, não há Justiça; sem Justiça, não há Estado Democrático de Direito.

Por evidente, se compreende que o segredo a que alinha o § 1° do art. 7°, do Estatuto da Advocacia, já citado, possa constituir-se em prática arbitrária ou ilegal frente a súmula vinculante n. 14 que não impôs condições ou limitações ao livre exercício do profissional do direito. O sigilo, jamais, repita-se, se sobrepujará ao direito do advogado de ter acesso aos autos, mesmo porque pautado por princípio constitucional.

A idéia de segurança no Estado Democrático de Direito não exclui a liberdade individual, senão complementa-a (Canotilho). A proibição por segredo, dessa forma, é simbólica porque visa fundar um conflito só existente na vencida ideologia da defesa social e que tem por conseqüência última o esvaziamento do sistema processual em favor do autoritarismo estatal. No Estado de Direito, democrático, não é possível contrapor dois pilares: a busca da Justiça e a defesa do indivíduo. Colocar o processo penal nesse patamar é desvincular a finalidade do Estado dos direitos fundamentais e isso é conceitualmente paradoxal (John Rawls).

Desta maneira, a proibição ou vedação por ato verbal ou escrito da retirada de autos por parte da autoridade judiciária ou administrativa constitui gravame indevido e abusivo passível de correção via mandado de segurança. Desrespeitado o princípio, tratar-se-á de cerceamento profissional e configurado estará o abuso de autoridade.

Do complexo de direitos do indiciado é corolário primeiro e prerrogativa universal de ter, o advogado, acesso aos autos respectivos. A tal direito não se exclui o inquérito ou o processo que corre em sigilo. O preceito legal é irrestrito resolvendo-se, em favor da defesa, eventual conflito com os interesses do sigilo das investigações.

Magistratura, Ministério Público ou qualquer autoridade precisa de prerrogativas ou garantias para exercer o múnus desenvolvendo com eficiência suas atividades.

O exercício da advocacia também está assegurado por garantias, sem as quais não sobreviveria.

Deste modo, configurado está o direito líquido e certo que têm os advogados de terem acesso e copiarem os autos quantas vezes forem necessárias: segredo e Justiça só andaram de mãos dadas sob o jugo inquisitorial, o vitupério do "Führerprinzip" ou o manto cego do abuso de poder.


Notas

  1. Como se observa, a discussão prova o acerto de Hannah Arendt quando afirma que a democracia liberal não afasta por completo os vestígios de uma ideologia de terror que torna o homem supérfluo (Origens do Totalitarismo,  RJ: Companhia das Letras, 1989).
  2. Ver O sigilo no inquérito policial e o exame dos autos por advogado, Revista da OAB, n. 66, janeiro-junho, 1998, Luiz Flávio Borges D''urso.
  3. RT 780/730; 811/553.
  4. Raríssimas exceções. Justiça seja feita, por exemplo, ao Des. Prado de Toledo: RSE no. 184.211-3, TJSP, em 1995.
  5. Em 1971, o Jurista Pontes de Miranda (Comentários à Constituição de 1967 – com a Emenda n. 1, de 1969, 2ª. Ed., SP: RT, 1971, t. V, p. 257-258) já afastava "qualquer possibilidade de expedientes inquisitoriais, com características de opressão e consequentes parcialidades ou arbitrariedades. Seja judicial, seja judicialiforme, ou perante o juiz, ou perante a polícia, ou perante as autoridades administrativas, a instrução criminal tem de ser, por força da Constituição, contraditória."
  6. Lauria e Tucci. Devido Processo Legal e Tutela Jurisdicional,SP:RT, 1993, p. 25; Lopes Júnior, Aury. Direito Processual Penal, RJ: Lumen Juris, 2008, p. 303.
  7. A tendência garantística não é só entre nós. O jurista argentino Julio Maier, presidente do Tribunal Superior de Justiça de Buenos Aires, no seu La censura Del juicio penal, Doctrina penal, Buenos Aires, 1984, p. 237, expõe que o "derecho de defensa debe ejercerse plenamente durante todo el desarrollo del proceso penal, dividido en tres fases: a) la instrucción o procedimiento preliminar, b) el procedimiento intermedio y c) el juicio plenario o procedimiento principal. Es decir que ´la garantía constitucional alcanza al sumario de prevención policial, a la instrucción preparatoria, a la información fiscal previa a la citación directa y al juicio plenario´."

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Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

BELO, Warley. A Súmula Vinculante nº 14 e o abuso de autoridade. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 14, n. 2126, 27 abr. 2009. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/12703. Acesso em: 28 mar. 2024.