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Análise crítica da atuação do Poder Judiciário em relação aos benefícios da seguridade social

Análise crítica da atuação do Poder Judiciário em relação aos benefícios da seguridade social

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Resumo: Trata-se de trabalho a respeito da atuação do Poder Judiciário em relação ao controle dos atos da Administração Pública, onde é feita uma análise crítica das decisões que extrapolam este poder de controle, bem como deixam de aplicar teses favoráveis ao INSS que, pelo Direito, seriam inquestionáveis. Aborda uma série de casos concretos onde se demonstra que a atuação judicial está se equiparando a de um administrador de assistencialismo, o que afronta uma série de princípios constitucionais e poderá gerar a ruptura do sistema previdenciário no futuro.

Abstract: It is working on the role of the judiciary in relation to the control of acts of government, which is a critical analysis of the decisions that go beyond the power of control and no longer apply theories that support the INSS, by law, would be unquestionable. It addresses a number of cases where it shows that judicial action is treated as a trustee of welfarism, which humiliated a number of constitutional principles and could lead to rupture of the pension system in the future.


1) Introdução

O presente artigo tem por objetivo levar à análise dos intérpretes do Direito uma questão que gera preocupação para quem lida com a Previdência Social. Trata-se do numeroso quantitativo de decisões do Poder Judiciário que ampliam o espectro da lei, aumentando seus limites, através de interpretações extensivas no que tange aos benefícios previstos na CRFB/88 e nas leis para seguridade social.

Essas decisões são das mais variadas instâncias do Poder Judiciário, de Juízes Federais, de Juízes Estaduais, de Turmas Recursais de Juizados Especiais Federais, de Tribunais Regionais Federais, do Supremo Tribunal Federal (STF), do Superior Tribunal de Justiça (STJ), da Turma Nacional de Uniformização (TNU), dentre outros. Em razão da grande maioria das ações da seguridade social encontrar-se no âmbito dos Juizados Especiais Federais, as principais questões deste trabalho serão verificadas em relação às decisões da TNU.

Esclareço, ainda, de início, que o presente estudo não tem por objetivo desqualificar o Poder Judiciário, que a meu ver é a instituição mais séria e uma das mais relevantes, assim como a Advocacia Geral da União, o Ministério Público e a Defensoria Pública.


2) Breves noções acerca da Seguridade Social

A seguridade social divide-se em três âmbitos distintos: Assistência Social, Saúde e Previdência Social (art. 194, da CRFB/88). Este último é o único âmbito em que se exige uma contrapartida do cidadão, ou seja, somente fazem jus aos benefícios previdenciários os cidadãos que contribuam para o RGPS, adquirindo e mantendo a qualidade de segurado ou seus dependentes. A saúde [01] é um direito de todos e dever do Estado (art. 196, da CRFB/88). E, por fim, mas não menos importante, a assistência social é um benefício concedido aos idosos e portadores de deficiência que tenham renda familiar per capita inferior a ¼ do salário-mínimo, independente de qualquer tipo de contribuição. O financiamento da seguridade social será feito por toda sociedade, de forma direta ou indireta, na forma que dispões o art. 195, da CRFB/88.

A assistência social é benefício custeado com recursos da União Federal, mas com gestão realizada pelo Instituto Nacional do Seguro Social - INSS, autarquia federal responsável pela sua concessão e pagamento ao beneficiário. Tem como fundamento legal a lei 8.742/93 e o artigos 33/36, da L. 10.741/2003 (Estatuto do Idoso)

O Regime Geral de Previdência Social (RGPS) é de responsabilidade integral do INSS, tendo caráter contributivo e filiação obrigatória, observando-se os critérios que preservem o equilíbrio financeiro e atuarial (art. 201, da CRFB/1988). Atualmente regula-se pelas leis 8.212/91 e 8.213/91, bem como pelo Dec. 3.048/99.

O art. 195, §5º, da CRFB/1988, por sua vez, deixa claro que a interpretação acerca dos benefícios concedidos pela Seguridade Social deverá ser estrita, não podendo ser extensiva: "Nenhum benefício ou serviço da seguridade social poderá ser criado, majorado ou estendido sem a correspondente fonte de custeio total".

Ocorre que este dispositivo não está sendo observado pelo Poder Judiciário, passando este a atuar como legislador positivo nessa matéria, o que é vedado pelo ordenamento jurídico, conforme será analisado a seguir.


3) A separação das funções de Poder (art. 2º, da CRFB/1988)

O artigo 2º da nossa Carta Magna disciplina o "princípio da separação dos Poderes" [02], tendo a seguinte redação: "São Poderes da União, independentes e harmônicos entre si, o Legislativo, o Executivo e o Judiciário". Através dessa separação, cada Poder é investido de uma série de competências constitucionais determinantes, sendo vedada a utilização por outro dessas competências, a fim de lhes garantir autonomia. A função primordial do Poder Judiciário, por exemplo, é a de julgar, não de elaborar leis (função legislativa) ou administrar (função executiva).

De acordo com o sistema democrático, a fim de evitar abusos, a Constituição Federal, apesar de declarar que os Poderes são independentes e harmônicos, previu a possibilidade de intervenção de um Poder sobre o outro, como forma de controle de freios e contrapesos ("Checks and Balances"), com a utilização das funções que não lhes são determinantes.

No presente trabalho, a forma de controle que interessa é tão somente aquela exercida pelo Poder Judiciário sobre o Poder Executivo. Controle, segundo MARÇAL JUSTEN FILHO, "é um processo de redução do poder, entendida essa expressão no sentido da vontade e do interesse de um sujeito sobre outrem" [03].

O controle exercido pelo Poder Judiciário sobre à Administração Pública é um mero controle de legalidade, não cabendo ao Poder Judiciário se imiscuir na atividade de decisão de mérito do ato administrativo, por entender que uma medida seria mais adequada que outra. Mérito do ato administrativo, segundo o eminente administrativista supra mencionado:

"é núcleo de natureza decisória, produzido por uma escolha de vontade pessoal do agente estatal em virtude de uma autorização legislativa. A fiscalização poderá examinar os requisitos externos de regularidade da atuação discricionária, o que significa verificar se todos os requisitos legais procedimentais foram respeitados e se a autoridade administrativa atuou visando à realização dos direitos fundamentais, com observância dos valores democráticos.

Não se admite que o Juízo de conveniência e oportunidade, inerente à atividade administrativa, seja revisado pelo órgão de fiscalização.

(...)

O Judiciário desempenha atividade de fiscalização propriamente jurídica, na acepção de que se trata de verificar a compatibilidade dos atos administrativos com as normas jurídicas de hierarquia mais elevada (...)." [04]

MARIA SYLVIA ZANELA DI PIETRO, por sua vez, deixa claro os limites deste controle:

"O Poder Judiciário pode examinar os atos da Administração Pública, de qualquer natureza, sejam gerais ou individuais, unilaterais ou bilaterais, vinculados ou discricionários, mas sempre sob o aspecto da legalidade e, agora, pela Constituição, também sob o aspecto da moralidade (art.5º, inciso LXXIII, e 37)." [05]

Por estes ensinamentos, constata-se que o controle exercido pelo Poder Judiciário sobre a Administração Pública refere-se apenas ao controle de legalidade, devendo o magistrado se colocar na posição de servidor público e nessa posição ter o seguinte pensamento: de acordo com a lei, o benefício deveria ser concedido? Essa é a razão pela qual o processo em que não haja comprovação de requerimento administrativo deve ser extinto sem julgamento do mérito, por falta de interesse de agir, na modalidade necessidade (enunciado 77 do FONAJEF). Se não há ilegalidade, não há controle judicial a ser exercido. Não bastasse isso, quando o órgão colegiado for afastar a incidência de uma norma legal, faz-se imprescindível a reserva de plenário (art. 97, da CRFB/88), conforme determina a Súmula Vinculante de nº 11 do STF.

Ora, a Administração Pública, por força dos preceitos do caput do art. 37, da CRFB/88, se atém ao princípio da legalidade e, por força do art. 195, §5º, do mesmo diploma legal, não pode conceder, majorar ou estender benefício da seguridade social sem previsão da fonte de custeio. Ressalta-se, aqui, que a interpretação extensiva ou a analogia não podem ser utilizadas quando a lei traz um silêncio eloqüente.

Dessa forma, se o controle do Poder Judiciário é restrito ao exame de legalidade ou não do ato administrativo, não se pode admitir decisões judiciais que burlem esta forma de controle, e concedam benefícios da seguridade social quando o INSS observou a lei.

Em relação à definição de princípio da legalidade, trago lição de MARIA SYLVIA ZANELLA DI PIETRO:

"Esse princípio, juntamente com o controle da Administração Pública pelo Poder Judiciário, nasceu com o Estado de Direito e constitui uma das principais garantias de respeito aos direitos individuais. Isso porque a lei, ao mesmo tempo em que os define, estabelece também os limites de atuação administrativa que tenha por objeto a restrição ao exercício de tais direitos em benefício da coletividade.

É aqui que melhor se enquadra aquela idéia de que, na relação administrativa, a vontade da Administração Pública é a que decorre da lei.

Segundo o princípio da legalidade, a Administração Pública só pode fazer o que a lei permite. (...)

Em decorrência disso, a Administração Pública não pode, por simples ato administrativo, conceder direitos de qualquer espécie, criar obrigações ou impor vedações aos administrados; para tanto, ela depende de lei." [06] (MEU GRIFO)

Complementando esse pensamento, trago lições de ODETE MEDAUAR:

"O sentido do princípio da legalidade não se exaure com o significado de habilitação legal. Este deve ser combinado com o primeiro significado, com o sentido de ser vedado à Administração editar atos ou tomar medidas contrárias às normas do ordenamento. A Administração, no desempenho de suas atividades, tem o dever de respeitar todas as normas do ordenamento." [07]

Estas decisões não apenas afrontam os dois dispositivos constitucionais acima, como também geram desigualdade na prestação da seguridade social e desequilíbrio atuarial do sistema, o que gera ao Poder Executivo e a toda sociedade uma sensação de insegurança jurídica.

A desigualdade é gerada em razão da falta de critérios objetivos para concessão do benefício. Cada juiz entende de uma forma diferente se a norma previdenciária deve ser estendida ou não. O pior é explicar ao cidadão porque que, em cidade com mais de um Juízo, o benefício assistencial de seu vizinho que, tendo as mesmas condições econômicas e o mesmo número de familiares, foi concedido por um Juízo e o seu, que teria caído em Juízo diverso, foi indeferido. Trata-se de flagrante AFRONTA AO PRINCÍPIO DA ISONOMIA – art. 5º, caput, da CRFB/88. ALEXANDRE DE MORAES aborta o assunto de maneira clarividente:

"A igualdade se configura como uma eficácia transcendente, de modo que toda situação de desigualdade persistente à entrada em vigor da norma constitucional deve ser considerada não recepcionada, se não demonstrar compatibilidade com os valores que a Constituição, como norma suprema, proclama.

(...)

Importante, igualmente, apontar a tríplice finalidade limitadora do princípio da igualdade – limitação ao legislador, ao intérprete/autoridade pública e ao particular.

(...)

O intérprete/autoridade pública não poderá aplicar as leis e atos normativos aos casos concretos de forma a criar ou aumentar desigualdades arbitrárias. Ressalte-se que, em especial, o Poder Judiciário no exercício de sua função jurisdicional de dizer o direito ao caso concreto, deverá utilizar os mecanismos constitucionais no sentido de dar uma interpretação única e igualitária às normas jurídicas." [08] (MEU GRIFO)

Em relação ao desequilíbrio atuarial do sistema de previdência social, isto ocorre em razão da atuária ser uma ciência que estuda riscos econômicos e financeiros, baseado em manipulação de dados estatísticos. Estes dados são formados com base apenas no que consta na lei e na CRFB/88, tomando por base o orçamento, o gasto com pagamento de benefícios etc. A questão é analisada de forma didática por Fábio ZAMBITE IBRAHIM:

"A atuária, ciência do seguro, irá cotejar o risco protegido e os recursos disponíveis para sua cobertura, vislumbrando sua viabilidade em diversos cenários, especialmente dentro das expectativas futuras em relação ao envelhecimento da população e às tendências da natalidade populacional.

Por meio dessas análises, é possível aos administradores do regime previdenciário a adoção de medidas eficazes, em tempo hábil, para correção de desvios, de modo a preservar a segurança e a confiabilidade do sistema e evitar a sua falência, o que iria excluir a proteção de milhões de segurados." [09]

Portanto, decisões judiciais inesperadas, que trazem interpretações extensivas, vedadas pelo ordenamento jurídico, alteram um dos coeficientes do cálculo atuarial previdenciário, causando prejuízo ao erário, tanto diretamente quanto em relação à perspectiva de seus cálculos futuros. Em razão disso, para manter o sistema previdenciário equilibrado e evitar sua ruptura, o Governo Federal não tem como aumentar de forma significativa o teto máximo dos benefícios do RGPS.


4) Análises de casos concretos

Quando verificamos os tipos de decisões que vem sendo proferidas em casos concretos, podemos ter certeza de que o controle exercido pelo Poder Judiciário em relação à Administração Pública extrapola a sua função, passando a atuação judicial a ser exercida, de forma inconstitucional, na posição de legislador positivo, ferindo todos os dispositivos já mencionados, principalmente o princípio da legalidade (art. 37, caput, da CRFB/88) e o princípio da vedação à extensão de benefício previdenciário sem que haja prévia dotação orçamentária (art. 195, §5º, da CRFB/88).

Na maioria das vezes o órgão julgador afasta a referida norma sem afetar a matéria a plenário, ofendendo assim o princípio da reserva de plenário (art. 97 da CRFB/88) e a Súmula Vinculante n. 10, emitida pelo STF.

Isso ocorre em diversos casos, como nos seguintes, que não chegam nem perto de serem exaustivos:

- Quando concedem pensão por morte, com prova documental precária, dando um valor muito grande à prova testemunhal, mesmo quando contraditória, o que afronta a norma que exige ao menos três documentos contemporâneos ao óbito que comprovem a dependência econômica (art. 22, §3º, do Dec. 3.048/99).

- Quando ultrapassa norma prevista no art. 70 do Dec. 3.048/99, que limita a conversão de tempo de atividade especial em comum apenas até a data de 28 de maio de 1995;

- Quando ultrapassa a norma prevista no art. 15, §2º, da L. 8.213/91, a fim de permitir a comprovação do desemprego por qualquer meio ou, em alguns casos, nem sequer exigir tais provas (Enunciado 25 da Súmula da TNU);

- Quando permite a contagem de tempo pelo trabalhador rural com menos de 14 anos, contrariando norma constitucional que veda o trabalho dos menores de 16 anos, salvo na condição de aprendiz, a partir dos 14 anos (Enunciado 5 da Súmula da TNU). Vale ressaltar que não existe direito adquirido a regramento jurídico anterior à norma elaborada pelo Poder Constituinte derivado, até mesmo porque as normas que forem materialmente contrárias à Constituição não são recepcionadas, são consideradas nulas;

- Quando estende o conceito de incapacidade para concessão de Benefício de Prestação Continuada – LOAS para menores de 16 anos e nos casos em que se equiparam à invalidez exigida para aposentadoria por invalidez (Enunciado 29 da Súmula da TNU). Ora, o BPC-LOAS, em redação dada pelo art. 20, §2º, da L. 8.213/91, seria devido para aqueles que tenham incapacidade para a vida independente e para o trabalho. Se o menor de 16 anos não pode trabalhar, não faria jus ao referido benefício. Em relação à incapacidade, esta não deveria se equiparar àquela necessária para concessão da aposentadoria por invalidez, isso porque para este benefício exige-se apenas a incapacidade total e permanente PARA O TRABALHO, enquanto para concessão de BPC-LOAS exige-se a incapacidade não apenas para o trabalho, como também para a VIDA INDEPENDENTE;

- Quando passa a entender que, mesmo que o trabalhador utilize de Equipamento de Proteção Individual (EPI) eficaz, o período de tempo de contribuição deve ser contado como se fosse de atividade especial (Enunciado 9 da Súmula da TNU). É preciso ter em mente que o tempo exercido em atividade especial é aquele considerado com exposição permanente e habitual aos agentes nocivos previstos nos regulamentos da Previdência Social, pois isso poderia causar prejuízos à saúde e/ou integridade física do segurado. Contudo, a partir do momento em que o trabalhador é obrigado pela empresa a utilizar EPI e este é eficiente e eficaz cessa a exposição ao agente nocivo, eis que o segurado está devidamente protegido, não havendo mais qualquer risco à sua saúde e/ou integridade física (art. 57, §4º, da L. 8.213/91);

- Quando permite a aplicação da Tabela de Santa Catarina para revisão de benefícios previdenciários pela ORTN/OTN (Enunciado 38 da Súmula da TNU). Nesses casos, a revisão refere-se a benefícios concedidos, em regra, há mais de 20 anos e, como se sabe, o INSS tem a obrigação de guarda dos processos administrativos por determinado período de tempo, em regra de 5 anos. Ora, aqui, não apresentando o autor a relação dos salários de contribuição que foram utilizados no cálculo da Renda Mensal Inicial (RMI) de seu benefício, a ação judicial deveria ser julgada improcedente, eis que, pelo art. 333, I, do Código de Processo Civil, o ônus da prova dos fatos constitutivos de seu direito cabe, exclusivamente, ao autor. Não é possível aceitar a utilização de um índice, criado com base em coincidências, SEM PREVISÃO LEGAL, a fim de garantir uma revisão de benefício que, muitas das vezes, seria de valor inferior ao que foi concedido judicialmente, causando prejuízo ao erário público;

- E, o mais absurdo de todos os casos, quando aplica de forma extensiva o art. 34, parágrafo único da L. 10.741/2003 (Estatuto do Idoso). Pelo art. 34, parágrafo único, da L. 10.741/2003 (Estatuto do Idoso), o benefício de prestação continuada – LOAS – concedido a outro idoso que seja membro da família, será excluído do computo da renda per capita para concessão de benefício da mesma espécie, pelo requerente idoso. O controle do Poder Judiciário sobre o ato do INSS nesse caso acaba não sendo de legalidade, mas sim de ilegalidade. Tratam-se de benefícios distintos, advindo de recursos diversos (o benefício assistencial tem recursos advindo do erário da União Federal e não paga gratificação natalina; o benefício previdenciário advêm de erário do INSS e paga gratificação natalina). Como já foi dito, o Controle do Poder Judiciário sobre a Administração Pública deve ser apenas de legalidade. Diante disso surge a seguinte indagação: se o magistrado fosse funcionário do INSS e tivesse que indeferir ou deferir o benefício, nessa hipótese, observando-se o princípio da legalidade, o que ele faria? Certamente a resposta seria pelo indeferimento. O servidor público tem que obedecer ao que está na lei e esta não estendeu a hipótese do art. 34, parágrafo único, da L. 10.741/2003 (Estatuto do Idoso), para todo e qualquer benefício previdenciário de valor equivalente a um salário mínimo. Trata-se de hipótese que sequer poderia haver interpretação extensiva, eis que não houve omissão do legislador, mas sim silêncio eloqüente.


5) Teses novas favoráveis ao INSS e pouco acolhidas

Outro fator de desequilíbrio do sistema atuarial decorre de decisões judiciais que não acolhem teses que são favoráveis ao INSS.

Como exemplo disso, trago à baila, a tese da decadência da revisão de benefícios previdenciários concedidos antes de 28 de junho de 1997, em ações ajuizadas posteriormente a 28 de junho de 2007, sob a alegação infundada de que a decadência não poderia retroagir para prejudicar benefícios concedidos antes de sua criação legal. Ocorre que, nesse caso, não estamos falando de aplicação retroativa da lei que criou o prazo decadencial, mas sim de aplicação imediata da norma jurídica, conforme ensinamentos de Paul Roubier [10]. Entendimento correto sobre a matéria foi sumulado pela Turma Recursal dos Juizados Especiais Federais do Estado do Rio de Janeiro, através do enunciado nº 63 [11], cuja redação é a seguinte:

"Em 01.08.2007 operou-se a decadência das ações que visem à revisão de ato concessório de benefício previdenciário instituído anteriormente a 28.06.1997, data da edição da MP 1.523-9, que deu nova redação ao art. 103 da L. 8.213/91." [12]

O Rio de Janeiro é, por enquanto, o único estado em que esta tese teve uma excelente receptividade. Preferindo o Poder Judiciário de outros estados continuarem a proferir decisões que representam uma sangria de dinheiro público, criando benefícios em que para o segurado não existiria prazo decadencial de revisão, mas para a Administração Pública sim. Ora, como é possível explicar que a Administração pode ser compelida a observar um prazo decadencial, contado a partir da vigência da lei de sua criação, e o segurado não, podendo optar por rever seu benefício a qualquer tempo?

Outra questão que merece análise mais aprofundada diz respeito à aplicação das teorias do venire contra factum proprium e da supressio em favor da Administração Pública. Tratam-se de instituto de Direito Privado que pode ser facilmente aplicado ao Direito Público, eis que referem-se a dois comportamentos de uma mesma pessoa para com outrem, com base no princípio da boa-fé objetiva, que vedam o comportamento contraditório.

O venire contra factum proprium refere-se a situação em que uma determinada pessoa, durante determinado lapso temporal, comporta-se de tal maneira que a outra pessoa cria uma legítima expectativa de que seu comportamento não se alterará, quebrando a boa-fé objetiva. São, portanto, quatro os seus elementos: comportamento, geração de expectativa, investimento na expectativa gerada e comportamento contraditório.

A supressio, por sua vez, consiste "em limitação ao exercício de direito subjetivo que paralisa a pretensão em razão do princípio da boa-fé objetiva. Para sua configuração, exige-se (I) decurso de prazo sem exercício do direito com indícios objetivos de que o direito não mais será exercido e (II) desequilíbrio, pela ação do tempo, entre o benefício do credor e o prejuízo do devedor. Lição de Menezes Cordeiro" (TJRS, Apelação Cível Nº 70001911684, Segunda Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Maria Isabel de Azevedo Souza, Julgado em 04/12/2000).

Exemplificando, trago um caso concreto onde atuei. O segurado, em 1998, requereu e teve concedido benefício de auxílio-doença por um mês, com Data de Cessação de Benefício (DCB) previamente fixada na Carta de Concessão, tendo este cessado em novembro de 1998. No final de 2007, o segurado, agora autor, ajuiza ação pretendendo o restabelecimento do referido benefício, cessado há quase 10 anos atrás, alegando que o INSS agiu de forma ilegal ao cessá-lo sem que o mesmo tivesse readquirido condições de trabalho. A defesa do INSS em Juízo, nesse tipo de ação, acaba por ser prejudicada eis que, em se tratando de concessão muito antiga, por vezes a Autarquia Previdenciária não encontra o processo administrativo de concessão, até mesmo porque o seu dever de guarda desses processos, em regra, é de 5 anos. Assim, não é possível verificar se o autor pleiteou ou não o restabelecimento do benefício ou não. Ora, será que nesse caso é justo que o INSS seja obrigado a pagar todo o período em que o segurado esteve sem receber benefício, mesmo sabendo que o grande culpado é o próprio autor, que demorou quase 10 anos para ajuizar uma ação judicial, sem nem mesmo ter requerido novamente o benefício? A solução para este caso está na aplicação das teorias do venire contra factum proprium e supressio, teorias que já são bem aceitas em nossa jurisprudência pátria [13], eis que o INSS tinha a legítima expectativa de não esperar que uma pessoa que ficou anos sem receber o benefício de auxílio-doença e somente havia recebido prestação eqivalente a um mês de benefício, venha agora a pleitear quase 10 anos de benefício.


6) Conclusão

Conforme se verificou no presente trabalho, as decisões do Poder Judiciário, por vezes (e muitas vezes), extrapolam o seu poder de Controle sobre a Administração Pública, afrontando a diversos princípios constitucionais, como o princípio da independência e harmonias entre os poderes, o princípio atuarial do sistema da Seguridade Social, o princípio da legalidade, o princípio da vedação à estensão de benefícios da seguridade social sem prévia dotação orçamentária, princípio da reserva de plenário, dentre outros.

Assume, assim, as funções similares a de um administrador assistencial, concedendo benefícios e permitindo revisões que, por nosso ordenamento jurídico, não seriam admitidos. Frise-se que o Poder Judiciário não apenas está estendendo, de forma exacerbada, as normas da seguridade social, como tem deixado de aplicar teses, com fundamentos incontestáveis, que são favoráveis à Administração Pública, como a da decadência do direito à revisão de benefício previdenciário, do venire contra factum proprium e da supressio.

Isso faz com que haja um prejuízo incalculável ao erário público, gerando prejuízo ao cálculo atuarial de todo o sistema de Seguridade Social e causando insegurança jurídica à Administração no que tange às ações de política pública. O assistencialismo que está sendo feito pelo Poder Judiciário agora, nas ações referentes aos benefícios da seguridade social, irá gerar prejuízos para as futuras gerações de segurados, inclusive com a possibilidade de ruptura econômica da Previdência Social, gerando sua "quebra", sua "falência".

Portanto, faz-se necessária uma reflexão aos operadores do Direito que atuam nessa área, a fim de questionar qual o país que esperamos no futuro.


BIBLIOGRAFIA

DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito Administrativo. 17ª Ed. São Paulo: Editora Atlas, 2004.

FILHO, MARÇAL JUSTEN. Curso de Direito Administrativo. 3ª Ed. São Paulo: Editora Saraiva, 2008.

IBRAHIM, Fábio Zambitte. Curso de Direito Previdenciário. 9ª Ed. Rio de Janeiro: Editora Impetus, 2007.

MEDAUAR, Odete. Direito Administrativo Moderno. 12ª Ed. São Paulo: Editora Revisa dos Tribunais, 2008.

MORAES, Alexandre de. Direito Constitucional. 20ª Ed. São Paulo: Editora Atlas, 2006.


Notas

  1. Para maiores detalhes sobre Direito à saúde, ver artigo de minha autoria, tendo como co-autor o advogado Marcelo Dealtry Turra. TURRA, Marcelo Dealtry; LOPES, Carlos Côrtes Vieira. Direito à saúde como direito de cidadania. Alguns aspectos práticos. Jus Navigandi, Teresina, ano 10, n. 881, 1 dez. 2005. Disponível em: <http://jus.com.br/artigos/7648>.
  2. Há doutrinadores que entendem equivocada a expressão, por entenderem que o Poder é uno, o que se divide são as funções desse poder. Utilizam para fundamentar esta posição dos ensinamentos de Montesquieu, em sua obra "O espírito das leis". A meu ver esta posição está equivocada, tendo em vista que o ordenamento pátrio tem por base a sua lei maior, a Constituição da República, promulgada pelo Poder Constituinte Originário, sendo este iniciador e desvinculado de qualquer doutrina anterior. Ora, não é a Constituição que deve se adequar à doutrina, mas sim a doutrina que deve fazer uma leitura adequada da Constituição. Trata-se do mesmo erro que incidem diversos penalistas ao afirmarem que a pessoa jurídica não pode responder por crime, querendo se utilizar de teorias trazidas do exterior que não se adéquam à Constituição Federal.
  3. FILHO, MARÇAL JUSTEN. Curso de Direito Administrativo. 3ª Ed. São Paulo: Editora Saraiva, 2008. p. 879.
  4. FILHO, MARÇAL JUSTEN. Curso de Direito Administrativo. 3ª Ed. São Paulo: Editora Saraiva, 2008. p. 894/895.
  5. DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito Administrativo. 17ª Ed. São Paulo: Editora Atlas, 2004. p. 640. Ressalto aqui meu entendimento de que o ato imoral é aquele que tem desvio de finalidade e, assim, seria de plano ilegal, por vício em um dos seus requisitos de validade, qual seja a finalidade de interesse público.
  6. DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito Administrativo. 17ª Ed. São Paulo: Editora Atlas, 2004. p. 67/68.
  7. MEDAUAR, Odete. Direito Administrativo Moderno. 12ª Ed. São Paulo: Editora Revisa dos Tribunais, 2008. p. 124
  8. MORAES, Alexandre de. Direito Constitucional. 20ª Ed. São Paulo: Editora Atlas, 2006. p.32.
  9. IBRAHIM, Fábio Zambitte. Curso de Direito Previdenciário. 9ª Ed. Rio de Janeiro: Editora Impetus, 2007. p.38.
  10. ROUBIER, Paul. Les Conflits de Lois Dans Le Temps, Paris, 1929
  11. Para maiores detalhes sobre o assunto recomendo a leitura de artigo de minha autoria, denominado "Decadência do Direito à revisão de benefício previdenciário (uma análise de Direito Intertemporal)" , publicado na Revista Direito e Política, n. 16 (IBAP); Revista de Direito do Trabalho, n. 8 (CONSULEX); Revista da EMERJ, n. 43; Revista da EMARF, n. 1, vol. 11; Revista Virtual da AGU, n. 77; Revista de Doutrina da 4ª Região, n. 24.
  12. O Superior Tribunal de Justiça tende a adotar este entendimento, reformando a jurisprudência sedimentada da corte, conforme decisões no RESP 110.526 e no RESP 110.836.
  13. No Superior Tribunal de Justiça (STJ) há diversas decisões: AI 1.130.131, AI 1.113.634, AI 1.085.209, RESP 207.509, RESP 214.680, AI 921.308.

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Informações sobre o texto

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

LOPES, Carlos Côrtes Vieira. Análise crítica da atuação do Poder Judiciário em relação aos benefícios da seguridade social. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 14, n. 2144, 15 maio 2009. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/12864. Acesso em: 28 mar. 2024.