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Os princípios da legalidade, da verdade material e do inquisitório perante a atividade administrativa de lançamento tributário

Os princípios da legalidade, da verdade material e do inquisitório perante a atividade administrativa de lançamento tributário

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"Nos tornamos melhores, mais ativos e menos indolentes, se cremos que é um dever procurar o que ainda não sabemos."

Diálogo de Platão – Mênon

SUMÁRIO: 1 Introdução. 2 Lançamento tributário. 2.1 Das características do lançamento. 3 Princípio da legalidade. 3.1 Vinculação do Fisco ao princípio da legalidade. 3.2 Legalidade objetiva e imparcialidade do Fisco. 3.3 Direito potestativo da autoridade administrativa. 4 Princípio inquisitório e a verdade material. 4.1 Instrumentos de alcance da verdade material. 4.2 Dever do contribuinte de prestar informações. 5 Conclusão. 6. Referências.


1 Introdução

O lançamento tributário, como máxima expressão do Direito Administrativo Tributário e típica manifestação da atividade administrativa, obedece a princípios que regem a Administração Pública. Dentre estes, necessário perquirir qual a influência do princípio inquisitório e do contraditório, verificando-se se há, para eficácia e aperfeiçoamento dos atos administrativos produzidos, o respeito aos respectivos princípios.


2 Lançamento tributário

Antes de se identificar os princípios que regem a atividade de lançamento, necessário tecer alguns comentários sobre este instituto, a fim de melhor identificar o objeto de estudo. Nos termos do art. 142 do CTN, compete privativamente à autoridade administrativa constituir o crédito tributário pelo lançamento, assim entendido o procedimento administrativo tendente a verificar a ocorrência do fato gerador da obrigação correspondente, determinar a matéria tributável, calcular o montante do tributo devido, identificar o sujeito passivo e, sendo caso, propor a aplicação da penalidade cabível.

Embora o Código Tributário Nacional seja explícito em considerar o lançamento tributário um procedimento administrativo, a doutrina diverge sobre a natureza jurídica do instituto.

Ruy Barbosa Nogueira [01], Alfredo Augusto Becker [02], Antonio Roberto Sampaio Dória [03], Hugo de Brito Machado [04], Edvaldo Brito [05], Souto Maior Borges [06] e Marco Aurélio Greco [07] defendem a concepção do lançamento como procedimento administrativo.

Por sua vez, Geraldo Ataliba [08], Aliomar Baleeiro [09], Amílcar Falcão [10], Fábio Fanucchi [11], Luciano Amaro [12], Misabel Abreu Machado Derzi [13] e Paulo de Barros Carvalho [14] são exemplos daqueles que reconhecem que o lançamento, na verdade, é um ato jurídico [15].

Misabel Abreu Machado Derzi [16] explica, com absoluta percuciência, a natureza do instituto:

Do ponto de vista teórico, devemos fazer opção, pois ato administrativo e procedimento são fenômenos distintos. Assim como na teoria do processo civil não há de se confundir o processo com a sentença que dele resulta, também no Direito Tributário é necessário estabelecer nítida distinção entre procedimento administrativo e lançamento, eliminando-se a vaguidade e a equivocidade.

O lançamento pode ser precedido ou sucedido por um procedimento administrativo (...). Pode ocorrer que a Administração disponha de todos os elementos necessários ao lançamento e que proceda ao ato sem instauração de um prévio procedimento. Notificando o contribuinte do teor do lançamento assim efetuado, pode se dar o pagamento, com a extinção do crédito tributário, sem ocorrência de procedimento prévio ou posterior. Mas também o sujeito passivo inconformado poderá impugnar a cobrança, inaugurando um procedimento contencioso, depois de já efetivado o lançamento. Em suma, não se confunde o ato de lançamento com o caminho que percorreu, juridicamente regulado, e uma vez aperfeiçoado e apto a desencadear os efeitos que lhe são próprios, também não fica reduzido a posteriores formalidades por via das quais poderá ser alterado ou confirmado.

Portanto, o lançamento é ato administrativo cujo efeito jurídico é dotar o direito de crédito, que lhe preexiste, de exigibilidade, ou confirmá-lo, extinguindo-o na hipótese de homologação tácita ou expressa do pagamento (...).

Podemos dizer que o lançamento é ato jurídico administrativo vinculado e obrigatório, de individualização e concreção da norma tributária ao caso concreto (ato aplicativo), desencadeando efeitos confirmatórios-extintivos (no caso de homologação do pagamento) ou conferindo exigibilidade ao direito de crédito que lhe é preexistente para fixar-lhe os termos e possibilitar a formação do título executivo.

A respeito do tema, oportunas são também as lições do Professor Paulo de Barros Carvalho:

Em suma, caracterizar o lançamento como um procedimento, consoante a expressão do artigo 142 do Código Tributário Nacional, é operar com grande imprecisão. Se o procedimento se consubstancia numa série de atos que se conjugam, objetivamente, formando um todo unitário para a consecução de um fim determinado, salta aos olhos que, ou escolhemos o ato final da série, resultado do procedimento, para identificar a existência da entidade, ou haveremos de reconhecê-lo, assim que instalado o procedimento, com a celebração dos primeiros atos. Parece óbvio que não basta existir procedimento, para que haja lançamento. Ainda mais, pode haver lançamento sem qualquer procedimento que o anteceda, porque aquele nada mais é que um ato jurídico administrativo, com peculiaridades que cuidaremos, a breve trecho (...).

Lançamento é ato jurídico administrativo e não procedimento, como expressamente consigna o artigo 142 do Código Tributário Nacional. Consiste, muitas vezes, no resultado de um procedimento, mas com ele não se confunde. O procedimento não é da essência do lançamento, podendo consubstanciar ato isolado, independente de qualquer outro.

Percebe-se, pois, que embora o Código Tributário Nacional defina o lançamento como procedimento administrativo, em verdade, trata-se de um ato jurídico de natureza administrativa com o objetivo de surtir efeitos jurídico-tributários.

Não se trata de procedimento, porquanto não há atos jurídicos prévios ou atos jurídicos condicionais, do qual resultaria um ato final, conforme brilhantes lições do Professor Aurélio Pitanga Seixas Filho [17]. Trata-se, em verdade, de um ato jurídico declaratório com efeito preclusivo. Ato administrativo declaratório que serve para dar certeza e exigibilidade, sendo obrigatório e vinculado, utilizado para apuração dos fatos relevantes para determinação do crédito tributário, identificação do sujeito passivo e o cálculo de seu montante.

2.1 Das características do lançamento

O lançamento dá certeza jurídica e liqüida a obrigação tributária, pois fixa o critério jurídico, tornando-o imutável. Serve para apuração dos fatos relevantes para determinação do crédito tributário, identificação do sujeito passivo e o cálculo do seu montante.

A atividade administrativa de lançamento, na forma do parágrafo único do art. 142 do CTN, é vinculada e obrigatória. Isto significa que a autoridade fiscal, tomando conhecimento do fato gerador da obrigação tributária principal, ou do descumprimento de uma obrigação acessória, tem o dever de proceder ao lançamento tributário.

Como bem observa Hugo de Brito Machado, o Estado, como sujeito ativo da obrigação tributária, tem um direito ao tributo, expresso no direito potestativo de criar o crédito tributário, fazendo o lançamento. A posição do Estado não se confunde com a posição da autoridade administrativa. O Estado tem um direito, a autoridade tem um dever.

Deve-se observar que este dever decorre da lei e da aplicação do princípio da legalidade, a fim de se satisfazer o interesse público.


3 Princípio da legalidade

Este princípio, juntamente com o de controle da Administração pelo Poder Judiciário, nasceu com o Estado de Direito e constitui uma das principais garantias de respeito aos direitos individuais. Isto porque a lei, ao mesmo tempo em que os define, estabelece também os limites da atuação administrativa que tenha por objeto a restrição ao exercício de tais direitos em benefício da coletividade [18].

Enquanto o princípio da supremacia do interesse público sobre o interesse privado é da essência de qualquer Estado, de qualquer sociedade juridicamente organizada com fins políticos, o princípio da legalidade é específico do Estado de Direito. O princípio da legalidade impõe a completa submissão do Estado à lei. É baseado nesta idéia que se pode afirmar: na relação administrativa, a vontade da Administração Pública é a que decorre da lei.

Segundo o princípio da legalidade, a Administração Pública só pode fazer o que a lei permite. Enquanto os particulares são livres para agir desde que não exista vedação legal ao comportamento desejado, o administrador não pode agir ao seu livre-arbítrio, somente nos estritos limites estabelecidos em lei.

No âmbito das relações entre particulares, o princípio aplicável é o da autonomia da vontade, que lhes permite fazer tudo o que a lei não proíbe. Essa idéia já veio expressa no artigo 4º da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, de 1789:

a liberdade consiste em fazer tudo aquilo que não prejudica a outrem; assim, o exercício dos direitos naturais de cada homem não tem outros limites que os que asseguram aos membros da sociedade o gozo desses mesmos direitos. Esses limites somente podem ser estabelecidos em lei.

No direito positivo brasileiro, o princípio da legalidade veio expresso no artigo 37 da Carta Magna, consubstanciando-se um dos princípios basilares da Administração Pública. Não obstante, a Constituição Federal tratou de estampá-lo também no artigo 5º, inciso II, dentro do rol de direitos e garantias fundamentais.

O que se percebe, pois, é que a legalidade é aplicável tanto à Administração Pública quanto aos particulares, porém com ênfases diversas. Nas relações entre particulares, o princípio da legalidade é aplicado em sentido negativo: pode-se fazer tudo, desde que não se ultrapasse ou viole os limites e vedações legais. Já na relação administrativa, a legalidade é aplicada em sentido positivo: a Administração, para agir, depende da lei. Se não houver norma autorizando a conduta da Administração, o ato não pode ser praticado.

A atividade fiscal é considerada uma relação administrativa, regida, pois, pelos princípios que norteiam a Administração Pública. Alessi bem resume este assunto, ao afirmar que a função administrativa se subordina à legislativa não apenas porque a lei pode estabelecer proibições e vedações à Administração, mas também porque esta só pode fazer aquilo que a lei antecipadamente autoriza [19].

3.1 Vinculação do Fisco ao princípio da legalidade

Como a Administração nada pode fazer senão o que a lei determina, a autoridade fiscal só age de acordo com a lei. Por força do princípio da legalidade, a autoridade fiscal tem a função de aplicar a legislação tributária, exigindo o seu fiel cumprimento pelos contribuintes e terceiros (art. 142, parágrafo único, CTN). Como limite da atuação da autoridade administrativa, a autoridade deve agir de acordo com os critérios legais que lhe foram impostos. Assim, para correta aplicação da lei tributária, a autoridade administrativa só atua nos limites fixados pela lei.

Segundo a lição do Professor Aurélio Pitanga Seixas Filho, "a relação tributária deverá ser sempre uma relação jurídica, em que o sujeito ativo, órgão da administração fiscal, agirá em cumprimento de seu dever funcional de aplicador da lei tributária, e o sujeito passivo, contribuinte ou responsável, deverá ser compelido a cumprir a lei tributária" [20].

Continua o renomado Professor: "(...) o relacionamento entre a autoridade administrativa e as pessoas em geral é regido pelos deveres impostos pelo ordenamento jurídico. Assim o Fisco, órgão da administração fiscal, tem o dever de cumprir a sua função, delimitada na norma tributária, de exigir o seu fiel cumprimento por parte do contribuinte, do terceiro responsável e daqueles a quem a norma incumbe de fazer alguma coisa. Portanto, a relação tributária, seja qual for a sua causa (ocorrência do fato gerador, descumprimento de uma norma tributária ou um direito de petição), obedecerá, sempre, às normas que regulam a administração pública" [21].

Cabe ao Fisco, órgão competente para administração fazendária, a função de arrecadar os tributos que a legislação tenha instituído; para tanto, desempenha seu mister, orientando os contribuintes como proceder corretamente no cumprimento de seus deveres legais tributários, bem como praticando todos os atos necessários para cumprimento dos deveres legais [22].

A atuação administrativa do Fisco não se limita à investigação da ocorrência do fato gerador, bem como ao descumprimento da legislação tributária. Sua ação é impulsionada pelos deveres legais a cumprir, ou seja, aplicar a lei de ofício. Sua atividade, ou melhor, sua competência para atuação está fixada em lei; obedece, pois, ao princípio da legalidade. Verifica-se, assim, que a Administração Pública não detém faculdade ou discricionariedade na atividade de lançamento. Ao contrário, possui dever jurídico imposto por lei.

Como a atuação do Fisco obedece a princípios vinculados à Administração, a autoridade fiscal, como todos os demais administradores públicos, não pode agir, senão nos estritos limites fixados em lei. É a aplicação estrita do princípio da legalidade.

3.2 Legalidade objetiva e imparcialidade do Fisco

A função fiscal, em decorrência de ser atribuição fixada em lei, é marcada pela imparcialidade ou neutralidade da atuação. A autoridade fiscal, no cumprimento de sua função, deve agir como aplicador da lei. Não há qualquer faculdade ou discricionariedade, nem há espaço para o exercício de qualquer interesse próprio ou particular no desempenho da atividade fiscal. A obediência ao princípio da legalidade visa, em verdade, atender ao interesse público.

Neste sentido, segue a posição do mestre Aurélio Pitanga Seixas Filho:

A atuação do órgão fiscal na cobrança dos tributos a seu encargo, portanto, não envolve qualquer interesse próprio das autoridades fiscais, nem é o exercício de um direito subjetivo do órgão fiscal, que, também, não é a parte credora de uma relação jurídica.

A função administrativa tributária que deve ser exercida pela autoridade fiscal exige a obediência ao princípio da legalidade objetiva, em que o tributo será tornado líqüido e certo e exigido dentro da mais estrita legalidade, agindo o Fisco com integral imparcialidade.

Augusto Fantozzi [23], na mesma linha de raciocínio, ressalva ao contribuinte o direito de pagar o tributo em seu valor mínimo permitido pela lei e a contrapartida do Fisco de obter o máximo rendimento na cobrança do tributo com uma atuação permitida pelo sistema fixado pela norma tributária.

Assim, o referido autor italiano demonstra a evolução do direito administrativo no reconhecimento do caráter imparcial do exercício da função administrativa, contrariamente à postura tradicional que qualificava a administração fiscal como parte credora do tributo:

In questo campo, l’evoluzione subita dal diritto amministrativo quanto al riconoscimento del carattere imparziale della P.A. a determinato, a nostro avviso, la caduta delle impostazioni tradizionali che ravvisavano nell’ammistrazione finanziaria l’esclusiva qualità di parte creditrice del tributo. Se si riconosce infatti che anche la funzione tributaria risponde a dettami di imparzialità indirizzati all’attuazione di um particolare sistema tributario ritenuto dal legislatore conforme al fabbisogno finanziario dello Stato nel momento considerato, deve ammettersi, accanto all’interesse del contribuente al massimo d’imposta ed a quello dell’ufficio al massimo gettito fiscale, l’esistenza di um terza sfera d’interesse costituita da quello dell’amministrazione all’integrale attuazione del sistema fissato dalle norme tributarie.

Ainda a respeito do tema, Alberto Xavier observa que, embora o Fisco, enquanto credor de tributos, é parte na relação jurídica tributária, salienta que, estando ele rigorosamente subordinado a um princípio de legalidade, não pode legitimamente pretender uma prestação tributária diversa da prevista em lei. Em resumo, compara, o referido autor, a posição do Fisco com a do Ministério Público, em que, embora seja parte, vela pelo cumprimento e aplicação da lei.

Assim, na condição de parte imparcial, o Fisco não exprime um interesse em conflito ou contraposto ao do particular, contribuinte. Há, em verdade, no procedimento tributário, um fim de aplicação objetiva da lei, ou seja, um fim de justiça. Nele não se desenrola necessariamente um litígio, antes uma atividade disciplinada de colaboração para a descoberta da verdade material.

3.3 Direito potestativo da autoridade administrativa

Já se salientou anteriormente que o Estado, como sujeito ativo da obrigação tributária, tem um direito potestativo ao tributo, que se aperfeiçoa por meio do lançamento.

Segundo Chiovenda, os direitos subjetivos se dividem em duas grandes categorias: a primeira compreende aqueles direitos que têm por finalidade um bem da vida a conseguir-se mediante uma prestação, positiva ou negativa, de outrem, isto é, do sujeito passivo. Recebem eles a denominação de direitos de prestação, e como exemplos poderíamos citar todos aqueles que compõem as duas numerosas classes dos direitos reais e pessoais. Nessas duas classes há sempre um sujeito passivo obrigado a uma prestação, seja positiva (dar ou fazer), como nos direitos de crédito, seja negativa (abster-se), como nos direitos de propriedade. A segunda grande categoria é a dos denominados direitos potestativos, e compreende aqueles poderes que a lei confere a determinadas pessoas de influírem, com uma declaração de vontade, sobre situações jurídicas e outras, sem o concurso da vontade destas.

Desenvolvendo a conceituação dos direitos potestativos, afirma Chiovenda:

Esses poderes (que não se devem confundir com as simples manifestações de capacidade jurídica, como a faculdade de testar, de contratar e semelhantes, a que não corresponde nenhuma sujeição alheia), se exercitam e atuam mediante simples declaração de vontade, mas, em alguns casos, com a necessária intervenção do juiz. Têm todas de comum tender à produção de um efeito jurídico a favor de um sujeito e a cargo de outro, o qual nada deve fazer, mas nem por isso pode esquivar-se àquele efeito, permanecendo sujeito à sua produção. A sujeição é um estado jurídico que dispensa o concurso da vontade do sujeito, ou qualquer atitude dele. São poderes puramente ideais, criados e concebidos pela lei...; e, pois, que se apresentam como um bem, não há que excluí-los de entre os direitos, como realmente não os exclui o senso comum e o uso jurídico. É mera petição de princípio afirmar que não se pode imaginar um direito a que não corresponda uma obrigação.

Von Tuhr, por sua vez, conceitua os direitos potestativos nos seguintes termos:

Em princípio, quando se trata de modificar os limites entre duas esferas jurídicas, é necessário o acordo dos sujeitos interessados. A possibilidade que têm A e B de modificar suas relações jurídicas recíprocas não pode, evidentemente, conceber-se como um direito, pois não pressupõe mais que a capacidade geral de produzir efeitos jurídicos. Sem embargo, distinta é a situação quando "A" ou "B" têm a faculdade de realizar a modificação em virtude de uma só vontade. Tais faculdades são inumeráveis e ilimitadamente diversas, porém sempre se fundamentam em certos pressupostos exatamente determinados. Neste caso cabe falar de direitos; são os potestativos [24].

O Fisco, na prática de lançamento, possui o poder de influenciar, com uma declaração de vontade, sobre situações jurídicas de outras pessoas, sem o concurso da vontade destas. Há no caso nítida manifestação de um direito potestativo de praticar o lançamento.

A potestade ou dever-poder, que a autoridade fiscal tem de exigir das pessoas o cumprimento dos seus deveres tributários, é uma função atribuída pela lei, em estrita obediência ao princípio da legalidade. Estando este poder fundamentado na lei, bem como sendo possível sua atuação independente da vontade alheia. Verifica-se que o ordenamento jurídico permite o exercício da atividade de lançamento por dever de ofício, em caráter imperativo.

Este dever-poder não permite a atuação administrativa com a mesma autonomia e liberdade com que os particulares exercitam seus direitos. A Administração exerce função administrativa, que é o dever de satisfazer dadas finalidades em prol do interesse de outrem. Visa a Administração, em última análise, atender o interesse público. A autoridade maneja, assim, deveres-poderes, no interesse alheio, buscando satisfazer o interesse público.


4 Princípio inquisitório e a verdade material

O princípio da legalidade limita a atuação da atividade administrativa. Por decorrência dele, a autoridade fiscal deve buscar aplicar a lei corretamente. Como o dever jurídico tributário surge com a ocorrência do fato da vida real previsto ou descrito em lei (ocorrência do fato imponível descrito na hipótese de incidência), a comprovação da realidade fática que gerou a obrigação tributária é de suma importância para obediência do princípio da legalidade. Observa-se, assim, que a atividade administrativa, por força e em obediência ao princípio da legalidade, deve buscar alcançar a verdade material.

Sendo do conhecimento do Fisco os fatos praticados pelo contribuinte, o princípio da legalidade objetiva exige que o valor do tributo seja liqüidado de acordo com a realidade e autenticidade desses fatos.

A autoridade fiscal, impulsionada pelo dever de aplicar corretamente a lei de ofício, tem de apurar o valor do tributo de acordo com os verdadeiros fatos praticados pelo contribuinte, investigando-os sem qualquer interesse no resultado final, já que o princípio da legalidade objetiva exige do Fisco uma atuação oficial e imparcial para obtenção da verdade dos fatos [25].

A autoridade fiscal, no exercício de sua competência legal de exigir o pagamento do tributo, tem de agir, por impulso próprio (de ofício), para conferir se a declaração fornecida pelo contribuinte é verdadeira, ou para obter, caso as informações não estejam conforme a realidade dos fatos, por omissão própria ou imprópria, como falsidade material ou ideológica, ou até mesmo, por simples erro ou equívoco, a verdadeira conduta sujeita à tributação com o uso dos deveres-poderes colocados à sua disposição (do Fisco) pelo legislador tributário [26].

Esta atividade é marcantemente inquisitória, em busca da verdade material. No procedimento de investigação para a descoberta da verdade material, a autoridade fiscal busca, por meios instrutórios vastíssimos, formar sua convicção, que não está limitada à existência de regras legais norteadoras dos meios de prova.

É, pois, com fundamento no princípio da legalidade, que a atividade de lançamento busca alcançar a verdade material, utilizando-se do princípio inquisitório.

Segundo Alberto Xavier [27], o procedimento fiscal para efetivar o lançamento tributário é marcadamente inquisitório em razão de caber à autoridade fiscal dirigir a investigação dos fatos tributários, com obediência ao princípio da verdade material, afetando, desta forma, os meios de obtenção das provas necessárias para o pagamento do tributo.

4.1 Instrumentos de alcance da verdade material

A autoridade administrativa, na busca da verdade material, não está sujeita a formalismos rígidos ou a obediência a formas sacramentais. Diante da atuação da autoridade administrativa, não vigora o princípio da verdade formal, em que as formas dos atos, prazos, distribuição de ônus de prova e a sistematização dos procedimentos são rigorosamente previstos e obedecidos. Em busca da verdade dos fatos, afasta-se os formalismos em prol da busca da verdade material e correta aplicação do princípio da legalidade.

Isto evidencia que não é pertinente na atividade de lançamento o problema da repartição do ônus da prova, porquanto a autoridade fiscal possui livre convicção para formação da verdade material.

A liberdade investigatória na busca da verdade dos fatos mais próxima da realidade (verdade material), sem que rígidas formalidades condicionem o seu convencimento, não significa que no procedimento administrativo fiscal não se tenha de coletar os meios de prova que sedimentaram a livre convicção do titular do órgão fiscal.

Se o ato administrativo é resultante de um livre convencimento da autoridade, firmado unilateralmente, o cidadão ou contribuinte sujeito às conseqüências jurídicas desse ato tem o direito de questionar a sua conformidade com a lei de regência, motivo pelo qual não se pode prescindir da apropriada comprovação dos dados apurados pela autoridade competente.

Assim, não está se afirmando que a liberdade investigatória exime o Fisco de comprovar as alegações que firmaram o seu convencimento. Os fatos devem ser comprovados. Contudo, pelas características da atividade administrativa fiscal, os meios empregados para comprovar a realidade fática não seguem regras formais. Por meio do princípio inquisitório, busca-se alcançar e comprovar a verdade material.

4.2 Dever do contribuinte de prestar informações

No processo judicial, competindo ao juiz encerrar um conflito de interesse entre duas pessoas, pelo menos, cada parte envolvida no litígio deve ter o interesse de convencer o juiz sobre a certeza de sua verdade.

Para Chiovenda, provar significa formar o convencimento do juiz sobre a existência ou inexistência dos fatos relevantes do processo. Carnelutti, a respeito do tema, afirma:

Com efeito, em linguagem corrente, provar significa demonstrar a verdade de uma proposição afirmada. Agora bem: no campo jurídico, a comprovação dos fatos controvertidos por parte do juiz pode não derivar da busca de sua verdade, e sim dos processos de fixação formal... Se a lei compreende tais processos sob o nome de prova, isto significa que o conteúdo próprio do vocábulo na linguagem jurídica se altera e se deforma. Provar, com efeito, não quer dizer a demonstração da verdade dos fatos discutidos, e sim determinar ou fixar formalmente os mesmos fatos mediante procedimentos determinados.

Conseqüentemente, num processo, as partes devem ter o interesse de provar os fatos favoráveis à sua argumentação, constituindo o ônus da prova uma mera faculdade, e não um dever jurídico, pois o seu atendimento visa a obter uma vantagem no processo, não sofrendo qualquer sanção o descumprimento do ônus ou da carga da prova, salvo a não obtenção do efeito útil desejado.

O regime jurídico da função administrativa fiscal não guarda compatibilidade com o regime jurídico da função jurisdicional, especialmente com a maneira de se demonstrar a verdade dos fatos praticados pelo contribuinte.

O dever de pagar o tributo surge no dia em que o contribuinte realiza aquela conduta descrita hipoteticamente na lei como suficiente e necessária para o surgimento da relação jurídica tributária. Este dever jurídico de pagamento do tributo deve obedecer aos ditames legais. Assim, se para a Administração há o dever de obediência ao princípio da legalidade e da verdade material, para o particular há também o dever de demonstrar a realidade dos fatos.

Conseqüentemente, não tem o contribuinte um mero ônus de provar os fatos que praticou, porém, um dever jurídico de informar à autoridade fiscal como praticou o fato jurídico tributário e todas as condições fáticas relevantes para a determinação do valor da tributação.

Ressalta-se, assim, que o contribuinte também possui o dever de contribuir para a busca da verdade material.

Caso não haja o cumprimento deste dever jurídico por parte do contribuinte, o Fisco deve se utilizar do princípio inquisitório e buscar a verdade material, perseguindo, assim, o ideal de cumprir corretamente a lei.

O dever imposto pela lei à autoridade fiscal de controlar o correto pagamento do tributo e de exigir o seu pagamento, quando for o caso, exige que a autoridade administrativa tenha um comportamento ativo, no sentido de tomar as iniciativas apropriadas para determinar o valor do tributo, sem para isto ficar dependendo da disposição de colaborar do contribuinte, já que o contribuinte não tem ônus ou interesse de provar algo, porém o dever legal de declarar e informar as condições em que ocorreu o fato gerador.


5 Conclusão

O princípio da legalidade é um dos pilares estruturais de um Estado de Direito. Por força dele, a Administração deve se submeter à vontade da lei, de forma que sua atuação está vinculada a ela.

A atividade administrativa de lançamento segue as normas e princípios que regem a Administração Pública. Em decorrência disso, deve obedecer ao princípio da legalidade.

Em busca da aplicação do princípio da legalidade, a autoridade deve praticar o ato jurídico de lançamento com base na verdade material, o que deve ser feito utilizando-se do princípio inquisitório.


6 Referências

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Notas

  1. NOGUEIRA, Ruy Barbosa. Teoria do lançamento tributário. São Paulo: Resenha Tributária, 1973. p. 24.
  2. BECKER, Alfredo Augusto. Teoria geral do direito tributário. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 1972. p. 318.
  3. DÓRIA, Antonio Roberto Sampaio. Da lei tributária no tempo. São Paulo: Obelisco, 1968. p. 321.
  4. MACHADO, Hugo de Brito. Curso de direito tributário. 14. ed. São Paulo: Malheiros, 1998. p. 122.
  5. BRITO, Edvaldo. Lançamento. São Paulo: RT, 1987.
  6. BORGES, José Souto Maior. Lançamento tributário. São Paulo: Malheiros, 1999.
  7. GRECO, Marco Aurélio. Do lançamento. São Paulo: Resenha Tributária, 1987. p. 154-155. (Caderno de Pesquisas Tributárias, 12).
  8. ATALIBA, Geraldo. Apontamentos de ciência das finanças: direito financeiro e tributário. São Paulo, Revista dos Tribunais, 1969. p. 277.
  9. BALEEIRO, Aliomar. Uma introdução à ciência das finanças. Rio de Janeiro: Forense, 1970. p. 208.
  10. FALCÃO, Amílcar. Fato gerador da obrigação tributária. Rio de Janeiro: Forense, 1964. p. 115.
  11. FANUCCHI, Fábio. Curso de direito tributário brasileiro. 4. ed. São Paulo: Resenha Tributária, 1976. v. 1. p. 273-274.
  12. AMARO, Luciano. Direito tributário brasileiro. 8. ed. São Paulo: Saraiva, 1997. p. 322.
  13. DERZI, Misabel Abreu Machado; NASCIMENTO, C. V. do. Comentários ao Código Tributário Nacional. Rio de Janeiro: Forense, 1997. p. 353.
  14. CARVALHO, Paulo de Barros. Curso de direito tributário. São Paulo: Saraiva, 1998. p. 253.
  15. Também neste sentido: MARTINS, Ives Gandra. Do lançamento. 1988. (Caderno de Pesquisas Tributárias, 12); MORAES, Bernardo Ribeiro de. Compêndio de direito tributário. Rio de Janeiro: Forense, 1984. p. 580; GUIMARÃES, Ylves José de Miranda. Do lançamento. Ibidem, p. 310; VELOSO, Carlos Mário da Silva. O arbitramento em matéria tributária. São Paulo: RT, 1987. p. 200; CORRÊA, Walter Barbosa. Lançamento tributário e ato administrativo nulo. São Paulo: RT, 1977. p. 33; BONILHA, Paulo C. B. Da prova no processo administrativo tributário. São Paulo: LTR, 1992. p. 31; XAVIER, Alberto. Do lançamento: teoria geral do ato do procedimento e do processo tributário. Rio de Janeiro: Forense, 1998. p. 45.
  16. Op. cit., p. 781-782.
  17. SEIXAS FILHO, Aurélio Pitanga. Princípios fundamentais do direito administrativo tributário: a função fiscal. São Paulo: Forense, 2000. p. 97 ss.
  18. DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito administrativo. 11. ed. São Paulo: Atlas, 1999. p. 67.
  19. ALESSI, Renato. Instituciones de derecho administrativo. Buenos Aires: Bosh, 1970. p. 9.
  20. SEIXAS FILHO, op. cit., p. 139-140.
  21. Ibid., p. 146.
  22. Ibid., p. 5.
  23. FANTOZZI, Augusto. La solidarietà nel diritto tributario. Torino, Utet: 1968. p. 230 e 231 apud SEIXAS, Aurélio Pitanga.
  24. VON TURH, Andreas. Tratado de las obrigaciones. Madrid: Reus, 1934. t. 2. p. 203.
  25. SEIXAS FILHO, op. cit., p. 46.
  26. Ibid, p. 45.
  27. XAVIER, op. cit., p. 125.

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FRAGA, Henrique Rocha. Os princípios da legalidade, da verdade material e do inquisitório perante a atividade administrativa de lançamento tributário. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 14, n. 2158, 29 maio 2009. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/12871. Acesso em: 28 mar. 2024.