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Sobre a averbação do sobrenome do padrasto ou madrasta.

Lei nº 11.924/2009

Sobre a averbação do sobrenome do padrasto ou madrasta. Lei nº 11.924/2009

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No recente dia 17 de abril passado, entrou em vigor, sem grande alarde pela imprensa, a Lei nº 11.924, resultante da aprovação do Projeto de Lei nº 206/2007, de autoria do falecido Deputado Federal Clodovil Hernandes.

O texto aprovado importou em acréscimo de novo parágrafo ao artigo 57 da Lei nº 6.015, de 31 de dezembro de 1.973 – Lei de Registros Públicos, cujo teor é o seguinte:

§8º. O enteado ou a enteada, havendo motivo ponderável e na forma dos §§ 2º e 7º deste artigo, poderá requerer ao juiz competente que, no registro de nascimento, seja averbado o nome de família de seu padrasto ou de sua madrasta, desde que haja expressa concordância destes, sem prejuízo de seus apelidos de família.

A alteração aprovada, consolidando entendimento que já vinha sendo adotado pelos Tribunais pátrios (cf., por exemplo, RESP nº 220.059/São Paulo, rel. Min. Ruy Rosado de Aguiar, j. 22.11.2000), tem a sutileza de suscitar a contraposição entre dois relevantes princípios – o da imutabilidade do nome e o da dignidade da pessoa humana –, exigindo do exegeta e do aplicador da lei a ponderação de valores, de modo a eleger qual deverá ser sacrificado, à luz dos elementos do caso concreto.

Examinemos, isoladamente, cada um desses princípios.


ANTES, UMA PRIMEIRA CRÍTICA AO NOVO § 8º:

[posterior ao primeiro ano após o atingimento da maioridade civil, previsto no artigo 56], somente por exceção e motivadamente, após audiência do Ministério Público, será permitida por sentença do juiz a que estiver sujeito o registro, arquivando-se o mandado e publicando-se a alteração pela imprensa.

Logo, a alteração do nome (leia-se sobrenome) constitui exceção no ordenamento jurídico pátrio. Depende de determinação do Juízo da Vara de Registros Públicos, em procedimento que conta com a necessária intervenção do Ministério Público, como fiscal da lei. O procedimento não é contencioso, mas de jurisdição voluntária. Prolatada a sentença, emite o juiz ordem, instrumentalizada em mandado, o qual é arquivado pelo respectivo Cartório.

O novo §8º passa a indicar legalmente mais uma hipótese normativa de alteração do nome, excepcionando a regra da imutabilidade. E por que o faz? Não se põe em risco a segurança jurídica e pública com essa nova previsão?

Somos da opinião de que não, pelos motivos expostos no tópico seguinte.


DA CLÁUSULA "MOTIVO PONDERÁVEL" E O PRINCÍPIO DA DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA:

", porque, uma vez descortinado o seu significado, a partir dos elementos do caso sob análise, preestabelece a lei a solução adequada. Novamente invocando as palavras dos professores Nery,

"Conceitos legais indeterminados são palavras ou expressões indicadas na lei, de conteúdo e extensão altamente vagos, imprecisos e genéricos, e por isso mesmo esse conceito é abstrato e lacunoso (...) Cabe ao juiz, no momento de fazer a subsunção do fato à norma, preencher os claros e dizer se a norma atua ou não no caso concreto. Preenchido o conceito legal indeterminado (unbestimmte Gesetzbegriffe), a solução já está preestabelecida na própria norma legal, competindo ao juiz apenas aplicar a norma, sem exercer nenhuma função criadora." [04]

Aquilatando o juiz no caso concreto que procede o motivo ponderável apresentado pelo interessado, a solução é preestabelecida pela lei, a qual impõe o deferimento da alteração do sobrenome, agregando-se aos "apelidos de família" já existentes os do padrasto ou madrasta.

Para os fins do novo §8º do artigo 57 da Lei de Registros Públicos, motivos ponderáveis, no nosso compreender, são aqueles atrelados à dignidade da pessoa humana interessada na alteração do registro civil. Melhor explicando, concebemos como ponderável, razoável, suficientemente justificante para a alteração do sobrenome o motivo associado à necessidade de amparo de direitos personalíssimos do indivíduo, como o é a proteção de sua dignidade.

Não pretendemos discorrer aqui longamente sobre o instigante e multifacetário princípio da dignidade humana, que comportaria tranquilamente uma monografia. Apenas reputamos crucial a transcrição de um breve conceito, autorizado o suficiente para demonstrar que a dignidade representa sim um aspecto da personalidade do indivíduo e, pois, razão bastante para a alteração do registro civil de nascimento.

"(...) a dignidade é atributo intrínseco, da essência, da pessoa humana, único ser que compreende um valor interno, superior a qualquer preço, que não admite substituição equivalente. Assim, a dignidade entranha e se confunde com a própria natureza do ser humano." [05]

Em situações tais em que a manutenção do nome original da pessoa, constante de seu registro civil de nascimento, extrapolando da sua função identificadora, passa a consubstanciar-se em elemento de desconforto ao sujeito, que, embora concebido e reconhecido por seu pai ou mãe biológicos, foi criado e se desenvolveu sob a proteção e influência de um padrasto ou madrasta, deve-se autorizar a modificação do assento de nascimento.

Imaginemos o seguinte quadro: a pessoa, abandonada por seu pai biológico ainda com tenra idade, após separação judicial e posterior divórcio dos seus genitores, é criada pelo novo cônjuge de sua mãe. Recebe do padrasto, durante toda a sua vida, assistência material, moral e educacional necessárias ao seu desenvolvimento sadio, tendo-o como verdadeiro pai (diz a sabedoria popular que pai é quem cria e não quem concebe). No entanto, ao apresentar-se formal e publicamente, tem de declinar, unicamente, o sobrenome de seu pai biológico, com quem não teve mais do que os primeiros contatos de vida e de quem não recebeu, durante toda a sua existência, nenhum suporte.

Parece-lhes razoável negar a esta pessoa, unicamente por não ter postulado a alteração de seu sobrenome no primeiro ano seguinte à sua maioridade civil (artigo 56 da Lei de Registros Públicos), o direito de acrescer ao seu o nome do "pai de criação e de coração"? Entendemos que não.

A não correspondência do signo de identificação do indivíduo com aspectos da realidade vivida provocam, não raramente, sérios danos de ordem moral ao ser humano, decorrentes de ofensa à sua dignidade. Por essa razão, o ordenamento jurídico vem, gradualmente, sofrendo modificações, amiúde operadas por influência de decisões judiciais reiteradas, como no caso do novo §8º, sob comentário.

São frequentes, por exemplo, os deferimentos judiciais de alteração de prenomes a requerimento de transexuais, em ordem a ajustar as anotações oficiais à realidade, resgatando a dignidade da pessoa humana, livre para guiar-se por suas próprias decisões. Nesse sentido: TJPR – 12ª C. Cível, Apelação Cível 0369512-5, Rel. Des. Ivan Bortoleto, v.u., j. 25.04.2004; TJRS – Apelação Cível 70013580055, Rel. Des. Claudir Fidelis Faccenda, j. 17.08.2006, DJ 25.08.2006.

Nem se diga que a averbação do nome do padrasto ou da madrasta impingiria risco ao sistema de dados públicos e, em consequência, à segurança pública do Estado.

Em primeiro lugar, porque o §8º autoriza seja acrescido o sobrenome do padrasto ou madrasta aos apelidos de família originalmente averbados no assento de nascimento. Ou seja, será o novo nome colocado ao lado dos sobrenomes lançados por ocasião do registro inaugural de nascimento, não sendo estes suprimidos.

Em segundo lugar, a remissão do §8ª ao §7º do artigo 57 tem a utilidade de evidenciar que o oficial do registro civil terá o dever de certificar no assento de nascimento a averbação da alteração, mantendo arquivada cópia do mandado judicial, providência que permite que, a partir do cruzamento de dados, cheguem as autoridades públicas rapidamente à conclusão sobre a atual e a antiga identidade do indivíduo, caso necessário para fins de responsabilização.

Concluímos, assim, que incumbe ao julgador e intérprete, na análise de cada caso, sopesar os princípios em confronto, ponderando-os para verificar qual deve prevalecer. Nem sempre se deve deferir a alteração do sobrenome, pela simples condição de padrasto ou madrasta/enteado ou enteada. É preciso haja um vínculo de afetividade tal que justifique o pleito, e não apenas uma relação efêmera e sem raízes cristalizadas pela convivência e respeito.


ANTES DE ENCERRAR, OUTRA CRÍTICA AO §8º:

  1. Exposição de Motivos do Anteprojeto do Código Civil, Miguel Reale (Diário do Congresso Nacional – Seção I, 13.06.1975).
  2. Maria Helena Diniz. Curso de Direito Civil Brasileiro, 1º Vol., Editora Saraiva, 18ª edição, 2002, p. 183 e 185.
  3. Nelson Nery Junior e Rosa Maria Andrade Nery. Código Civil Anotado e Legislação Extravagante, Ed. Revista dos Tribunais, 2ª ed., 2003, p. 160.
  4. Ob. cit., p. 141.
  5. José Afonso da Silva. Comentário Contextual à Constituição. São Paulo: Malheiros, 2006, p. 38.

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Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

DOUTOR, Maurício Pereira. Sobre a averbação do sobrenome do padrasto ou madrasta. Lei nº 11.924/2009. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 14, n. 2175, 15 jun. 2009. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/12970. Acesso em: 28 mar. 2024.