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Direito autoral.

Cultura, tecnologia e sociedade

Direito autoral. Cultura, tecnologia e sociedade

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A possibilidade de transferência dos direitos autorais patrimoniais faz surgir na relação, além do autor e da sociedade, um terceiro personagem: o intermediário, que exerce importante papel na disseminação das criações.

1. Introdução

Denominam-se direitos autorais aqueles que o autor exerce sobre suas criações. Quais criações? Aquelas que surgem do espírito, e necessariamente sejam expressas de alguma forma, qualquer que seja o meio, ou fixadas em qualquer suporte, tangível ou intangível, conhecido ou que se invente no futuro – assim prevê o artigo 7º da Lei 9.610/98, que rege o tema no Brasil, e também é conhecida como Lei dos Direitos Autorais (LDA).

Segue a lei, ainda no mesmo artigo, apresentando exemplos de obras protegidas: textos de obras literárias, artísticas ou científicas, conferências, obras dramáticas, obras coreográficas, composições musicais, obras audiovisuais, obras fotográficas, desenho, pintura, escultura, projetos de engenharia, arquitetura ou paisagismo.

Acrescenta ainda que também são protegidas pelo direito autoral as adaptações, traduções e outras transformações de obras originais, desde que constituam criação intelectual nova. A lei ainda menciona, no extenso rol exemplificativo do artigo 7º, os programas de computador, que possuem lei própria sobre o tema (Lei 9.609/98), e as coletâneas diversas que constituam criação intelectual.

Identificado o objeto da proteção dos direitos autorais, cabe a análise das razões pelas quais estes surgiram. Em primeiro lugar, e como motivo principal, pode-se apontar que a finalidade central dos direitos autorais reside na motivação dos autores para que continuem a criar. Essa motivação pode surgir de dois modos: primeiro, pela obtenção de prestígio ao autor a partir do reconhecimento sobre as suas criações; segundo, pela exploração econômica das obras criadas. Estas modalidades compõem, respectivamente, os direitos morais e os direitos patrimoniais sobre a obra.

Os direitos autorais morais representam o elo permanente entre o autor e a criação intelectual. Essa ligação é personalíssima. Os direitos morais são intransferíveis, imprescritíveis e irrenunciáveis. São eles que garantem ao autor que este tenha seu nome sempre vinculado à obra. Pode ainda opor-se a modificações prejudiciais. Também pode alterá-la quando quiser, ou retirá-la de circulação (casos em que ficam ressalvadas, quando couberem, indenizações prévias a terceiros, como prediz o §3º do artigo 24 da LDA), ou ainda mantê-la inédita.

Como o criador não vive apenas de reconhecimento, temos os direitos autorais patrimoniais, que concedem permissão exclusiva ao artista para explorar economicamente sua obra, inclusive transferindo este direito a terceiros. A exploração econômica está relacionada aos valores que podem ser obtidos em razão dos diversos usos da obra, os quais são independentes entre si, e por essa razão demandam autorizações específicas para cada fim.

A possibilidade de transferência dos direitos autorais patrimoniais faz surgir na relação, além do autor e da sociedade, um terceiro personagem: o intermediário. Este exerce importante papel na disseminação das criações intelectuais, haja vista que possui os meios necessários à difusão – em geral, remunerada – das obras, sendo responsável tanto pela reprodução quanto pela distribuição destas. Cabe ressaltar que no papel de intermediário podem estar várias pessoas ou empresas, quando lembramos as diversas formas de utilização – e exploração daí decorrente – das obras. Claro que esta estrutura traz grande complexidade às relações regidas pelo direito autoral, sendo bastante difícil o equilíbrio entre autor, intermediário e sociedade, quando estão em jogo a exploração econômica das obras e o acesso à cultura e ao conhecimento.

Veremos a seguir que este cenário se complica ainda mais no atual contexto da sociedade, marcado pela tecnologia digital e pela interconectividade.


2. Contexto Atual

Vivemos em um mundo digital interligado. Esta realidade nos afeta nas mais diversas áreas. Não poderia ser diferente no direito autoral. O impacto da tecnologia tem transformado as bases sobre as quais se sustentou o desenvolvimento dos direitos autorais, tanto os morais quanto – e especialmente – os patrimoniais. Antes da análise destas transformações, exploremos melhor dois fatores especialmente relevantes ao direito autoral, e que estão relacionados ao que se chamou no início deste parágrafo de mundo digital interligado.

O primeiro fator diz respeito à tecnologia digital. Vários tipos de obras foram transformados em seqüências de zeros e uns – digitalizadas. Estas criações, quando traduzidas por computador ou outro equipamento eletrônico, tornam-se compreensíveis às pessoas. Deste modo, filmes, livros, músicas, fotografias e outras obras se tornaram digitais, quer porque tenham sido submetidas a processos de digitalização, quer porque assim tenham sido criadas (por exemplo, músicas produzidas no computador e fotos em máquinas digitais).

Dentre outras vantagens do processo de digitalização, uma merece destaque para nossos estudos: a reprodução da obra digital. A seqüência de zeros e uns que forma uma obra digital pode ser facilmente reproduzida. Mais ainda, a um baixo custo, haja vista que em geral basta um computador – e os programas adequados – para gerar "clones" de um documento digital. "Clones" é a palavra certa: a reprodução digital da chamada obra original (se esta também for digital) é uma cópia exata, não ocorrendo, como em processos de reprodução mais antigos, degradação da qualidade. Temos então cópias fáceis de serem obtidas, geralmente a um baixo custo, e de qualidade igual a do original.

Ainda tratando das obras digitais, deve ser enfatizada a facilidade de transporte/transmissão de uma obra digital. Esta pode migrar de um CD ou DVD para o disco rígido do computador sem que haja qualquer mudança no documento. Essa independência entre a obra e o suporte é característica especialmente relevante dentro do próximo conceito do mundo digital interligado a ser explorado, como veremos a seguir.

O segundo ponto a ser considerado é aquele relacionado à interconexão que permeia o mundo digital: a Internet. A rede mundial de computadores permite que as obras digitais sejam transmitidas a vários computadores a ela ligados em questão de instantes. A expressão "vizinhos de janela" [01] representa bem essa situação: cada um, de sua janela (o monitor de computador), pode interagir com seus vizinhos (quaisquer outros pessoas conectadas à Internet), por exemplo, enviando e recebendo obras digitais, como músicas, vídeos e fotos.

Esta característica de interconectividade do mundo digital possibilita um ambiente de interatividade e colaboração, e em tempos mais recentes levaram à expansão do significado das obras criadas em conjunto. O exemplo sempre lembrado é o da Wikipedia: autores quase anônimos trabalham em um ambiente onde a obra se desenvolve pela contribuição, onde o trabalho de um tem por base o que outra passou elaborou, ocorrendo ainda a verificação, por terceiros, dos textos produzidos.

Entre os pontos mais importantes ao direito autoral trazidos pela rede mundial de computadores, cabe evidenciar a possibilidade dada ao autor de ter acesso imediato ao público da sua obra. De sua "janela" ele pode distribuir seus trabalhos a outros que estão conectados, ou ainda estes podem buscar as obras, acessando os sites em que estas estejam disponíveis (por meio de um computador, um celular ou uma TV digital, ligados à Internet). Reduziu-se de forma significativa, portanto, a necessidade do intermediário, que outrora aparecia como ente quase obrigatório nos mercados.

Destaque-se que não se está tratando da extinção do intermediário, afinal não são todos os autores que querem expender tempo ou esforço (ainda que sejam mínimos) na distribuição de sua obra, e preferem que terceiros cuidem desta etapa. Há também um grande espaço para os suportes físicos, que não foram substituídos integralmente pelas obras digitais (ex. livros, ainda que os e-books venham ganhando mercado). O que fica claro nesse ambiente digital interligado é que estamos em um cenário em que os meios de distribuição não são de acesso exclusivo a grandes empresas, mas sim, a valores cada vez menores, a todos aqueles que estão conectados à rede mundial de computadores.

A título de exemplo, podemos citar alguns sites com milhares de acessos diários na Internet, como o Youtube, em que os usuários colocam vídeos que produziram, o MySpace, rede social cuja maior característica é a disponibilização de músicas criadas pelos usuários cadastrados, o Flickr, site repositório de fotos, ou o Project Gutenberg, que hospeda livros eletrônicos gratuitos.

É neste cenário, marcado pela tecnologia digital e pela conectividade da Internet, que atualmente se assentam as discussões sobre direitos autorais. Mesmo as obras físicas são afetadas por este contexto, haja vista que podem ser feitas reproduções digitais destas, como fotos ou filmagens distribuídas amplamente pela Web.

Diante desta situação, como fica a questão do equilíbrio entre a exploração econômica das obras protegidas e o direito de acesso ao conhecimento e à cultura? Podemos falar que uma peça importante nesta relação – sobretudo quando tratamos apenas do cenário brasileiro – é justamente a nossa lei de direitos autorais. O autor quer explorar economicamente sua obra, mas também tem o interesse de que esta seja amplamente difundida, o que permitiria maior reconhecimento. O intermediário quer explorar ao máximo aquela modalidade de uso que adquiriu do autor da obra, ainda que isso implique em restringir o acesso àquele bem. A sociedade tem interesse que o conhecimento e a cultura produzida na obra não tenham seu acesso absurdamente cerceado por razões econômicas – ainda que reconheça a importância que a exploração comercial tem para que se continuem produzindo novas obras.

Nossa lei de direitos autorais está preparada para esse cenário? Vejamos a seguir porque nossa norma ao invés de contribuir para o equilíbrio entre os interesses apresentado anteriormente tem na verdade contribuído para manter distantes de uma solução as questões trazidas pelo mundo digital interligado.


3. Lei 9.610/98 – Lei de Direitos Autorais (LDA)

Antes de iniciarmos a análise de alguns dispositivos da Lei 9.610/98, cabe destacar que o diploma legal em questão traz importantes preceitos de proteção aos direitos autorais. No que tange aos direitos morais, por exemplo, há relevantes avanços no sentido da proteção do vínculo entre o autor e sua criação, o que representa relevante passo no sentido da preservação da memória cultural. Ressalte-se que mesmo nesta parte – e em diversas outras – há imprecisões técnicas que acabam por complicar a aplicação da Lei, mas não serão alvos deste exame. Dito isto, assinalamos que o presente trabalho abordará uma breve análise de alguns pontos da Lei 9.610/98 que estão relacionadas à exploração dos direitos patrimoniais e que afetam diretamente a busca pelo equilíbrio, no cenário do mundo digital interligado, das relações entre as partes envolvidas citadas anteriormente, a saber: autor, intermediário e sociedade.

Assim, podemos começar dizendo que a Lei 9.610/98 está entre as mais restritivas do mundo quanto à possibilidade de uso das obras intelectuais protegidas pelo direito autoral. Ainda que a primeira vista essa proteção pareça resguardar os direitos do autor, veremos que na verdade, em diversas situações, este – o autor – acaba prejudicado. Também prejudicada fica a sociedade, ao levarmos em conta o acesso à cultura e ao conhecimento. Vejamos o caput do artigo 29 da citada norma:

"Art. 29. Depende de autorização prévia e expressa do autor a utilização da obra, por quaisquer modalidades, tais como:" (grifou-se)

Trata este artigo do ponto central relacionado à exploração da obra, determinando a obrigação para aquele que queira fazer qualquer uso de obra de obter autorização prévia e expressa do autor. Interessante notar que o legislador trouxe no caput do dispositivo a expressão "quaisquer modalidades" de utilização, buscando a mais ampla aplicação da norma neste quesito, apresentando então rol meramente exemplificativo ("... tais como:"), conforme veremos adiante.

Tomemos então os incisos I a IX do artigo 29 da LDA:

"I - a reprodução parcial ou integral;

II - a edição;

III - a adaptação, o arranjo musical e quaisquer outras transformações;

IV - a tradução para qualquer idioma;

V - a inclusão em fonograma ou produção audiovisual;

VI - a distribuição, quando não intrínseca ao contrato firmado pelo autor com terceiros para uso ou exploração da obra;

VII - a distribuição para oferta de obras ou produções mediante cabo, fibra ótica, satélite, ondas ou qualquer outro sistema que permita ao usuário realizar a seleção da obra ou produção para percebê-la em um tempo e lugar previamente determinados por quem formula a demanda, e nos casos em que o acesso às obras ou produções se faça por qualquer sistema que importe em pagamento pelo usuário;

VIII - a utilização, direta ou indireta, da obra literária, artística ou científica, mediante:

a) representação, recitação ou declamação;

b) execução musical;

c) emprego de alto-falante ou de sistemas análogos;

d) radiodifusão sonora ou televisiva;

e) captação de transmissão de radiodifusão em locais de freqüência coletiva;

f) sonorização ambiental;

g) a exibição audiovisual, cinematográfica ou por processo assemelhado;

h) emprego de satélites artificiais;

i) emprego de sistemas óticos, fios telefônicos ou não, cabos de qualquer tipo e meios de comunicação similares que venham a ser adotados;

j) exposição de obras de artes plásticas e figurativas;

IX - a inclusão em base de dados, o armazenamento em computador, a microfilmagem e as demais formas de arquivamento do gênero;" (grifou-se)

Da leitura destes incisos um ponto se destaca: apesar de ser uma lista exemplificativa, parece ter havido a preocupação de praticamente se exaurir qualquer forma de utilização de uma obra (o que se confirmará adiante, na análise do inciso X). Percebe-se a abundância de termos que expandem os conceitos, como "quaisquer outras transformações", "para qualquer idioma", "processo assemelhado", "que venham a ser adotados" e "demais formas de arquivamento do gênero".

A norma parece gritar "antes de usar a obra, de qualquer forma e por qualquer meio, você precisa de uma autorização prévia e expressa do autor". Destaque-se que muitas vezes não é ao autor que o pedido de autorização deve ser feito, mas sim ao intermediário que adquiriu os direitos sobre o uso pretendido da obra (em especial no caso de transmissão total e definitiva, que deve ter estipulação contratual escrita, como reza o inciso II do artigo 42 da LDA).

Leiamos agora o disposto no inciso X, ainda do artigo 29 da LDA:

"X - quaisquer outras modalidades de utilização existentes ou que venham a ser inventadas."

Ora, não bastasse o caput do artigo 29 apontar que necessita de autorização prévia e expressa do autor "a utilização da obra, por quaisquer modalidades", ainda achou-se por bem acabar com qualquer sombra de dúvida que pairasse – havia como? – repetindo que a instrução valia para qualquer outro uso não apresentado no rol exemplificativo, e mesmo para aquelas que ainda fossem ser inventadas.

Para entendermos a restritividade da LDA – é claro que a leitura atenta do artigo 29 já mostra o espírito restringente da norma – é fundamental que façamos a leitura atenta dos artigos 46, 47 e 48 [02]. São os que tratam das limitações aos direitos do autor, e permitiriam excepcionar a necessidade de autorização tão manifesta e pleonasticamente disposta no artigo 29 e incisos.

Cabe ressaltar que o rol apresentado no artigo 46, que nos diz que usos não constituem ofensa aos direitos autorais, e por isso prescindiriam de autorização prévia e expressa do detentor dos direitos autorais patrimoniais, é taxativo, ou seja, tomando por fundamento simplesmente a atual lei de Direitos Autorais não existiriam outras hipóteses a excepcionar a regra do artigo 29.

Após as considerações e dispositivos apresentados, façamos uma análise de algumas situações fáticas que demonstram como a LDA trata de questões que acabam ferindo não só interesses do próprio autor, mas também da sociedade:

a)Cópias de segurança: uma biblioteca pública possui um livro raro, indisponível no mercado, e que ainda não está em domínio público. Porém, a obra continua sendo do interesse de uma gama bastante grande de pessoas. O livro encontra-se em estado crítico, e o empréstimo é desaconselhável, sob pena de perda definitiva da obra. Vanádio, funcionário daquela instituição, sugere que seja feita uma única cópia da obra para empréstimo, acrescentando que a original seja transferida para um cofre climatizado, sem acesso público. Pode ser feita, como Vanádio sugeriu, uma única cópia da obra para fins de empréstimo, observando que o original ficará indisponível ao público? Não, a LDA não traz autorização legal para a reprodução necessitada.

b)Apresentação de vídeo em sala de aula: Nióbio, professor de escola pública, entende que um determinado documentário seria de grande importância na construção do conhecimento de seus alunos. Ele possui uma cópia em videocassete do documentário. Porém, o diretor da obra já faleceu, e a empresa produtora faliu a mais de vinte anos. Ele sequer consegue identificar a quem pedir autorização prévia e expressa para apresentar a obra para seus alunos. Por estas razões, Nióbio poderia apresentar o vídeo na sala de aula? Não, a LDA não traz autorização legal para a apresentação pleiteada sem a autorização prévia e expressa.

c)Cópia de músicas: Tântalo possui uma coleção de discos de vinil, adquirida de forma legal na década de oitenta. Conta com mais de 500 discos, todos comprados nas lojas de discos daquela época. Porém, o toca-discos que ele tinha quebrou, sem possibilidade de conserto. Tântalo não encontra no mercado toca-discos para ouvir suas obras. Porém, ele ganhou um MP3 Player de presente de natal, e ficou sabendo que suas mais de 5000 mil músicas caberiam no citado aparelho, se convertidas para MP3, tarefa para a qual se propôs prontamente o filho de Tântalo. Este disse ao filho que aceitava desde que, ao final do processo, os discos de vinil fossem incinerados, pois as músicas que ele havia comprado foram guardadas em outro meio. Poderá Tântalo ter sua coleção de músicas migradas dos discos para o MP3 Player, haja vista que os primeiros serão destruídos? Não, a LDA não traz autorização legal para a reprodução das músicas na nova mídia, mesmo que a anterior seja destruída.

d)Ler em voz alta: Dúbnio faz uma viagem ao exterior e compra um aparelho eBook, que permite a leitura de livros eletrônicos. Descobre uma loja na Internet que vende livros eletrônicos no formato do eBook, e compra diversas obras para aproveitar o período de férias que ainda passará em casa. Porém, Dúbnio sofre de um acidente de carro e tem um descolamento de retina, que o impede de ler os livros que acabou de comprar. Porém, para reduzir a tristeza de Dúbnio, ele lembra que o equipamento faz a leitura em voz alta – digital – dos livros que estão armazenados. Poderá Dúbnio fazer uso desse recurso? Não, a LDA não traz autorização legal para a reprodução em voz alta do livro pelo equipamento.

Cumpre ressaltar que as situações apresentadas talvez pudessem ser realizadas tendo por base a elaboração de sustentações jurídicas baseadas em interpretações a análises sistêmicas do ordenamento jurídico, porém: a) poucos gozam da prerrogativa de se servirem de profissionais da área do direito para a construção de teses jurídicas elaboradas relacionadas ao tema (por exemplo, a biblioteca de escola de pública, que muitas vezes enfrenta dificuldades até para conseguir merenda escolar aos alunos); e b) sempre haverá grau de incerteza razoável, que muitas vezes levará o interessado a adotar uma postura conservadora em detrimento de uma ação que observasse o interesse da sociedade e muitas vezes do próprio autor.

Percebe-se, diante do que foi abordado nesta parte do trabalho, que nossa lei de Direitos Autorais carece de sensíveis transformações para que venha a atender demandas importantes relacionadas ao acesso ao conhecimento e à cultura, bem como aos interesses dos próprios autores das obras protegidas.

Na próxima parte serão apresentadas algumas abordagens dos direitos autorais que apontam, mais que tendências, caminhos sobre os quais se desenvolverão os novos institutos que darão suporte aos direitos autorais.


4. Licenças Públicas

As licenças públicas representam um importante passo para o equilíbrio que foi tratado ao final da parte 2 deste trabalho. Não resolvem os problemas relacionados aos dispositivos da LDA analisados anteriormente, mas apresentam uma forma de contornar algumas limitações impostas por aquela norma jurídica. Ademais, o modelo de licenças públicas, como veremos, representa uma forma de tratamento dos direitos autorais convergente com o cenário do mundo digital interligado.

Podemos entender as licenças públicas como contratos atípicos [03], previstos nos termos do artigo 425 [04] do Código Civil, ou seja, contratos cuja forma não está determinada na lei. Cabe destacar que as licenças públicas, ainda que não tenha a forma definida pelo ordenamento jurídico, observa estritamente os preceitos legais. Desta forma, um autor, ao permitir previamente que as pessoas copiem e redistribuam uma determinada obra, desde que atendam a determinadas condições, o faz na exata medida permitida pela lei de direitos autorais, concedendo prévia e expressamente a autorização de que trata o artigo 29 daquela lei.

Um dos mais importantes exemplos de licença pública são as licenças Creative Commons [05]. Estas surgiram de um projeto do professor de direito da Universidade de Stanford, Lawrence Lessig, tendo por base a GNU-GPL, licença livre criada para programa de computadores. Funciona nos moldes do conceito de licença pública apresentado anteriormente: são elaboradas e tornadas disponíveis licenças jurídicas nas quais o autor – ou o detentor dos direitos patrimoniais – concede previamente ao público alguns usos sobre obra protegida, sob determinadas condições. As licenças são configuráveis, de forma a apresentar as intenções do autor, tanto quanto ao tipo de uso que pode ser feito, quanto às condições que devem ser observadas por quem utilizará a obra. A licença é o instrumento utilizado para atender, no caso brasileiro, o disposto no artigo 29 da nossa lei de direitos autorais: o autor concede a autorização – prévia e expressa – para determinados usos da obra. Acrescenta, entretanto, deveres acessórios ao licenciado [06].

Deste modo, e apenas exemplificando algumas possibilidades destes tipos de licenças, poderia o autor de uma música informar que ela pode ser livremente executada, reproduzida e distribuída, desde que tais usos não tenham finalidade comercial, que o crédito ao autor seja sempre dado (na verdade, como vimos, esta cláusula seria obrigatória, pois se trata de direito moral e, portanto, irrenunciável), e que veda a criação de obras derivadas.

Qualquer uso, portanto, que implicasse em finalidade comercial (como colocar a música a venda em um site), ou a criação de uma obra derivada da original (uma versão mixada da música, por exemplo), dependeria, como prevê o artigo 29 da LDA, de autorização prévia e expressa, pois não mais encontram guarida na licença Creative Commons sob a qual a obra foi originalmente distribuída.

Outros tipos de licenças Creative Commons permitem, por exemplo, que o autor conceda o direito de utilização comercial da obra, ou ainda, que ele permita a criação de obras derivadas, desde que estas sejam distribuídas utilizando a mesma licença que concedeu tal direito.

Outro exemplo de licença pública pode ser encontrado no site Creative Archives [07], da BBC (British Broadcasting Corporation). Naquele repositório a empresa coloca a disposição do público diversos conteúdos por meio de uma licença pública, cujas condições não permitem uso comercial, mas permitem a criação de obras derivadas, desde que estas, se publicadas, o sejam pela mesma licença.

Acerca do modelo de licenças públicas cabe esclarecer que não resolvem a questão da restritividade da nossa lei, haja vista que elas não se aplicam a todas as obras, mas somente àquelas cujos autores ou detentores de direitos patrimoniais tenham o interesse em colocar seus trabalhos à disposição do público por meio de uma destas licenças. Assim, o uso de obras que não estejam nessa condição continua dependendo de autorização prévia e expressa do autor ou detentor dos direito autorais, ainda que, por diversas razões, tal exigência inviabilize utilização justas, como nos exemplos apresentados na parte 3 deste trabalho.

Por outro lado, as licenças públicas representam um passo importante no sentido de ajustar (e repensar) os direitos autorais no contexto atual da tecnologia e da sociedade, apontando – e demonstrando com casos reais, como veremos adiante – que existem formas mais atuais de exploração econômica de obras intelectuais, consentâneas com a evolução tecnológica e com o direito social de acesso à cultura e ao conhecimento.


5. Modelos de Negócio

Como já tratado neste trabalho, os direitos autorais, no caso brasileiro, podem ser divididos em dois: os direitos morais (aqueles que ligam o autor à obra) e os direitos patrimoniais (exploração econômica dos usos da obra). Neste ponto trataremos destes últimos. Os modos de exploração econômica de uma obra estão diretamente relacionados ao estado da técnica de determinados mercados. Deste modo, muitas vezes as mudanças que ocorrem nos modelos de negócio que exploram obras protegidas pelo direito autoral são decorrentes do surgimento de novas possibilidades, até então impraticáveis por razões técnicas ou mercadológicas.

Claro que estas mudanças geram resistências. Aqueles que exploram uma obra sob determinadas condições muitas vezes enxergam na mudança não oportunidades, mas sim ameaças ao cenário para o qual se preparou. A resistência é legítima, haja vista que uma empresa pode levar bastante tempo até que esteja em condições de obter retorno pelo capital e esforço expendido. Mas também é legítimo o movimento para que novos modelos se estabeleçam, aproveitando o desenvolvimento tecnológico e o contexto social, de modo que a obra possa ser mais bem usufruída, como, por exemplo, tendo condições de atingir um público maior.

Como exemplo pode ser citado o caso do videocassete: a Sony lançou a primeira versão comercialmente viável do equipamento, em meados da década de 70, e os estúdios de cinema a processaram, alegando que a empresa estava colocando à disposição do público uma "máquina de infringir direitos autorais". Porém, a Suprema Corte norte-americana decidiu que a tecnologia não deveria ser culpada, pois o videocassete podia ter também usos legítimos, razão pela qual a empresa não poderia ser condenada pelos usos escusos que outros viessem a fazer do equipamento. Como é do conhecimento geral, o videocassete não acabou com o mercado de filmes, nem com o cinema, mas sim criou um novo nicho que passou a ser explorado inclusive – e especialmente – pelas empresas que inicialmente queriam a condenação da tecnologia.

De forma semelhante, podemos entender que as licenças públicas associadas ao momento tecnológico que vivemos criam um cenário favorável ao desenvolvimento de novos modelos de negócios. Um músico, por exemplo, ainda não renomado, pode colocar suas músicas disponíveis a todos em um site na Internet, permitindo o livre uso de suas obras, desde que não tenha finalidade comercial. Abre-se a possibilidade para uma ampla divulgação dos seus trabalhos que, caso sejam do agrado do público, servirão para lhe trazer o prestígio necessário para, por exemplo, receber o convite para realizar shows, encontrando aí uma forma de ser remunerado pelo seu trabalho. Além disso, após já ter alcançado um público maior, uma produtora pode entrar em contato com o músico e apresentar o projeto de criação de um DVD, utilizando estúdios de alta qualidade, e esta seria uma nova forma de o autor ser remunerado pelo seu trabalho, pois o DVD com fins comerciais dependeria de autorização do autor. São inúmeros os casos de músicos e grupos musicais que têm sido contratados por gravadoras após o reconhecimento do público por meio da Internet.

O mesmo pode ser dito com relação aos livros: um autor de uma obra pode produzi-la eletronicamente, a um baixo custo, e colocá-la a disposição de todos na Internet, por meio de uma licença pública. Se a obra encontrar um público interessado, o autor obterá reconhecimento e oportunidades de auferir ganhos decorrentes da produção intelectual, por exemplo, sendo chamado para participar de encontros literários, pelos quais poderá receber. O escritor poderá ainda colocar a venda a obra em formato tradicional. Neste caso, os leitores interessados na obra têm algumas possibilidades: acessar o livro digital e lê-lo no computador; imprimir o arquivo digital (gastará com papel e tinta, e com a encadernação, se quiser melhorar as condições de preservação do material); ou então poderá comprar a obra em uma livraria – digital ou física – a um custo em geral mais baixo do que se imprimisse em casa, e com uma qualidade superior de impressão e encadernação.

Estes exemplos mostram que estamos em um contexto propício a grandes mudanças nas formas de manifestação dos direitos patrimoniais do autor, cujos alicerces foram elaborados observando a realidade do século passado, não levando em conta que o acesso facilitado às obras pode ser a melhor forma de explorá-las economicamente. É importante destacar, novamente, que os direitos autorais patrimoniais são fundamentais para o estímulo da produção cultural e científica; apenas entendemos que a exploração econômica da obra deve aproveitar condições favoráveis para que os benefícios sejam os mais amplos possíveis para os que tomam parte nessa relação, seja criando, distribuindo ou utilizando.


6. Conclusão

Os direitos autorais são fundamentais para a construção da cultura e do conhecimento. É de grande importância a existência de mecanismos que protejam os trabalhos intelectuais, tanto no que se relaciona com os aspectos morais (como no respeito atemporal ao vínculo do autor à obra), quanto no que tange aos aspectos patrimoniais, protegendo a adequada exploração econômica da obra. Da mesma forma, os intermediários que adquirem direitos de exploração de usos de obras exercem papel relevante tanto para o estímulo da criação quanto na distribuição dos materiais criados.

O que se deve ter em mente é a importância de que haja equilíbrio entre a exploração das obras protegidas pelos direitos autorais e o acesso ao conhecimento e à cultura. Ressalte-se a importância da legislação que trata do tema, que deve colaborar para a obtenção do equilíbrio citado. Nossa atual lei de direitos autorais carece de mudanças que retirem a insegurança e a incerteza em situações que determinados usos justificados das obras protegidas não ferem interesses do autor e são relevantes para a disseminação do conhecimento e para o acesso à cultura.

No contexto atual, de um mundo digital interligado, onde o acesso à informação é facilitado pela tecnologia, os direitos autorais não devem permanecer arraigados a modelos que não aproveitam na plenitude os benefícios oferecidos pela tecnologia. É preciso que as formas de exploração de obras sejam repensadas, tendo em vista o desenvolvimento tecnológico e os interesses dos criadores, dos investidores e da sociedade.


Notas

  1. Expressão utilizada por Thomas Friedman no livro "O Mundo é Plano"
  2. Art. 46. Não constitui ofensa aos direitos autorais: I - a reprodução: a) na imprensa diária ou periódica, de notícia ou de artigo informativo, publicado em diários ou periódicos, com a menção do nome do autor, se assinados, e da publicação de onde foram transcritos; b) em diários ou periódicos, de discursos pronunciados em reuniões públicas de qualquer natureza; c) de retratos, ou de outra forma de representação da imagem, feitos sob encomenda, quando realizada pelo proprietário do objeto encomendado, não havendo a oposição da pessoa neles representada ou de seus herdeiros; d) de obras literárias, artísticas ou científicas, para uso exclusivo de deficientes visuais, sempre que a reprodução, sem fins comerciais, seja feita mediante o sistema Braille ou outro procedimento em qualquer suporte para esses destinatários; II - a reprodução, em um só exemplar de pequenos trechos, para uso privado do copista, desde que feita por este, sem intuito de lucro; III - a citação em livros, jornais, revistas ou qualquer outro meio de comunicação, de passagens de qualquer obra, para fins de estudo, crítica ou polêmica, na medida justificada para o fim a atingir, indicando-se o nome do autor e a origem da obra; IV - o apanhado de lições em estabelecimentos de ensino por aqueles a quem elas se dirigem, vedada sua publicação, integral ou parcial, sem autorização prévia e expressa de quem as ministrou; V - a utilização de obras literárias, artísticas ou científicas, fonogramas e transmissão de rádio e televisão em estabelecimentos comerciais, exclusivamente para demonstração à clientela, desde que esses estabelecimentos comercializem os suportes ou equipamentos que permitam a sua utilização; VI - a representação teatral e a execução musical, quando realizadas no recesso familiar ou, para fins exclusivamente didáticos, nos estabelecimentos de ensino, não havendo em qualquer caso intuito de lucro; VII - a utilização de obras literárias, artísticas ou científicas para produzir prova judiciária ou administrativa; VIII - a reprodução, em quaisquer obras, de pequenos trechos de obras preexistentes, de qualquer natureza, ou de obra integral, quando de artes plásticas, sempre que a reprodução em si não seja o objetivo principal da obra nova e que não prejudique a exploração normal da obra reproduzida nem cause um prejuízo injustificado aos legítimos interesses dos autores. Art. 47. São livres as paráfrases e paródias que não forem verdadeiras reproduções da obra originária nem lhe implicarem descrédito. Art. 48. As obras situadas permanentemente em logradouros públicos podem ser representadas livremente, por meio de pinturas, desenhos, fotografias e procedimentos audiovisuais.
  3. Branco Jr, Sérgio Vieira. Em Direitos Autorais na Internet e o Uso de Obras Alheias. Rio de Janeiro. 2006.
  4. "Art. 425 É lícito Às partes estipular contratos atípicos, observadas as normas gerais fixadas neste Código."
  5. http://www.creativecommons.org
  6. Branco Jr, Sérgio Vieira. Obra citada.
  7. http://www.bbc.co.uk/creativearchive/

Autor

  • Christiano Lacorte

    Advogado e analista de informática. Analista legislativo no Centro de Documentação e Informação da Câmara dos Deputados. Mestre em Direito pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Bacharel em Ciências Jurídicas pelo Instituto de Educação Superior de Brasília e bacharel em Ciências da Computação pela Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho (Unesp). Especialista em Tecnologias da Informação pela Uneb/ITEI. Cursos de extensão em Direito da Tecnologia da Informação (FGV) e Direitos Autorais (FGV). Autor de artigos sobre Direito da Informática, Direito Administrativo e Direitos Autorais.

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Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

LACORTE, Christiano. Direito autoral. Cultura, tecnologia e sociedade. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 14, n. 2182, 22 jun. 2009. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/12997. Acesso em: 26 abr. 2024.