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A crise do Supremo Tribunal Federal.

A repercussão geral e o regime de processamento de recursos idênticos como medidas de solução

A crise do Supremo Tribunal Federal. A repercussão geral e o regime de processamento de recursos idênticos como medidas de solução

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1. A CRISE DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL

Uma das questões mais debatidas atualmente na comunidade jurídica é a chamada crise do Supremo Tribunal Federal, suas origens e formas de combatê-la. A aludida situação caótica consiste no grande aumento anual, em projeção exponencial no tempo, do número de recursos extraordinários que chegam ao Pretório Excelso para seu conhecimento e julgamento.

Uma das principais consequências deste fenômeno é a queda de produtividade do Supremo, pois este deve emitir análise da constitucionalidade dos acórdãos proferidos pelos Tribunais inferiores em tempo recorde, de modo a evitar o acúmulo de questões pendentes. Todavia, a hodierna situação do Pretório Excelso é de um número maior de processos sendo distribuídos do que os julgados.

Segundo extrai-se do sítio eletrônico do STF (1), as estatísticas demonstram que ao todo foram protocolados 100.781 processos em 2008, dentre os quais 37.783 são agravos de instrumento no recurso extraordinário e 21.531 são recursos extraordinários. Da totalidade de AI, 73.915 foram julgados e dos RE, 45.136 foram apreciados.

Destes dados verifica-se que 88,7% dos processos julgados pelo Supremo Tribunal Federal são de competência recursal. Contudo, as estatísticas do STF não demonstram os números acumulados de um ano para o outro.

Análise perfunctória destes dados demonstra que a cada ano que passa mais processos de natureza recursal são distribuídos ao Supremo, crescendo a uma taxa média de 80%. Tais números assim demonstrados são deveras assustadores, mas, por outro lado, indicam aumento da credibilidade no Poder Judiciário, além de demonstrar que está sendo implementado o projeto político democrático da vigente Constituição Federal, em que instituições de defesa judicial, tais como Defensoria Pública e associações têm permitido o efetivo e amplo acesso à Justiça à população carente.

Registre-se que esse aumento vertiginoso de RE e AI distribuídos no Supremo Tribunal Federal também pode indicar possibilidade de juizes e tribunais não estarem laborando de forma plena, observando os preceitos constitucionais em suas decisões e acórdãos ou mesmo não dispensando grandes atenções à fundamentação de seus decisórios, o que resta por causar inconformismo da parte e gera para esta o direito de recorrer às vias excepcionais.

Ainda, possivelmente o aumento de recursos interpostos perante o STF pode demonstrar o despreparo de advogados durante a instrução processual, utilizando-se do Pretório Excelso como "terceiro grau", o que é vedado por nosso sistema jurídico.

Em poucas linhas já foram suscitadas questões de ordem estrutural e institucional do Poder Judiciário que podem ser a causa da "crise do Supremo". Todavia, o brasileiro, por razões culturais, crê que seus problemas se resolvem por "lei", mas isto não passa de mero tratamento de sintomas.

A lógica do constituinte derivado ao promulgar a Emenda Constitucional n.º 45/2004 provavelmente partiu da seguinte premissa: se o Pretório Excelso está atabalhoado com uma infinidade de processos, a solução mais cabível é a de dificultar a distribuição de recursos extraordinários através da repercussão geral e do regime de processamento de RE idênticos, possibilitando o desafogo de seus trabalhos e melhorando sua atuação enquanto Corte Constitucional.

Contudo, essa lógica, a nosso ver, possibilitará a médio e longo prazo o empobrecimento da ciência jurídica, uma vez que reduzirá a produção jurisprudencial no STF, além de permitir que algumas decisões inconstitucionais existam, se não oferecerem real possibilidade de gerar efeitos fora dos autos.

Antes, contudo, de criticar os institutos aqui mencionados, faz-se necessário apresentar as seguintes noções introdutórias como forma de lastrear a discussão aqui pretendida. Em um primeiro momento serão estudados aspectos históricos e práticos da crise do Supremo Tribunal Federal, para após estudar o recurso extraordinário em si, a repercussão geral, o regime de julgamento de recursos repetidos, para, enfim, retornar às criticas e apresentar as conclusões.

1.1 Raízes históricas da crise: gênese e evolução do Pretório Excelso e do recurso extraordinário

Na comunidade científica do Direito é unanimidade o pensamento no sentido de atribuir ao Supremo Tribunal Federal importância fundamental para a manutenção da higidez na norma constitucional, defendendo seus princípios e pressupostos democráticos. Todavia, como demonstra Lêda Boechat Rodrigues (2), as raízes históricas do Pretório Excelso remontam o fim do período o Imperial, mais precisamente julho de 1889.

Naquele ano o então Imperador do Brasil, D. Pedro II, encaminhou missão jurídica a Washington, composta por Lafayette Rodrigues Pereira e Salvador de Mendonça, com ordens expressas de estudar com cuidado a formação da Corte Suprema dos Estados Unidos da América, pois o Imperador entendia que o segredo do bom funcionamento da norma constitucional daquele país devia-se às funções da Corte Suprema.

O objetivo era, ao retornar, realizar-se conferência de juristas do Império para estudarem a criação de um tribunal que se assemelhasse à Corte Suprema dos EUA como substituto do Poder Moderador, confiando-se a este tribunal a guarda da Constituição Imperial e o controle de decisões que a afrontassem. Todavia, este projeto modernizador do então Poder Judiciário sucumbiu junto com o próprio Império em 15 de novembro de 1889, quando a República foi proclamada.

Assim como em outros países da América Latina, a República Brasileira fora criada com supedâneo nos moldes institucionais dos Estados Unidos da América, tanto ideológicos quanto práticos. Dentre outras medidas adotadas, foi criado o Supremo Tribunal Federal através do Decreto n.º 510 de 22 de junho de 1890, ato este que representou espécie de anteprojeto da Constituição de 1891.

Tal e qual a Corte Suprema Norte-americana, ao Supremo Tribunal Federal foi incumbida, dentre outras, a função de julgar as demandas existentes (i) entre os entes da federação; (ii) entre União e Estados; (iii) e entre os entes federados e Estados estrangeiros. Em grau recursal, (i) julgar os recursos interpostos em face de decisões dos juizes federais; (ii) contra sentenças dos Tribunais estaduais em última instância quando houvesse violação de tratados e leis federais; (iii) contra decisões que houvesse questão relativa à validade de leis ou atos dos governos estaduais em face da Constituição Federal ou das leis federais. O recurso cabível contra os presentes casos era, até então inominado, mas é a raiz histórica do recurso extraordinário.

Após, foi promulgado o Decreto n.º 848 de 11 de outubro de 1890 com o objetivo de organizar a Justiça Federal. Este ato restou por estabelecer as bases orgânicas do recém nascido Supremo Tribunal Federal, ordenando sua competência recursal. Sua importância reside no fato de ter sido o primeiro diploma normativo a utilizar a expressão "recurso extraordinário" para referir-se às hipóteses recursais anteriormente previstas no Decreto n.º 510/1890.

Em sua gênese, o recurso extraordinário apresentou hipóteses de cabimento taxativas e minimamente descritas, como forma de caracterizar sua natureza excepcional e, de certa forma, cercear possível celeuma processual, uma vez que o Supremo Tribunal Federal já nasceu abarrotado de competências e atribuições judicantes.

Com a promulgação da Constituição de 1891, foi chancelada, através de seu artigo 55 e seguintes, a criação do STF como Corte Suprema e o recurso extraordinário como meio de se garantir a higidez das normas constitucional e federal.

Neste ponto importante frisar que o recurso extraordinário foi inspirado no writ of error introduzido no Direito Norte-americano através do Judiciary Act de 1789. Todavia, em razão de sua importância e extensão, a experiência norte-americana será tratada de forma específica em momento oportuno.

Logo após a criação e a regulamentação do recurso extraordinário, os advogados brasileiros passaram a ver nesta uma ferramenta de revisão ordinária de julgados, desviando o Supremo Tribunal Federal de seus primordiais objetivos. A Corte Suprema Brasileira passou a ser uma espécie de "terceira instância".

A Carta de 1934 inovou no sistema jurídico brasileiro ao introduzir o controle de constitucionalidade, aumentando mais ainda as funções e competências judicantes do Supremo Tribunal Federal, que passou também a fiscalizar a observância dos preceitos constitucionais pelas leis federais.

Verifica-se, neste ponto, que a massa processual do Supremo estava deveras inflacionada, em função de um acúmulo enorme de atribuições. O crescimento das demandas judiciais com baixas modificações do número de causas julgadas representa baixa velocidade da atuação judicante do Pretório Excelso, que, por seu turno, é suficiente para desacreditar esta instituição.

Em razão da urgência e da necessidade de uma medida efetiva, a outorgada Constituição de 1969, diploma institucional da ditadura militar, cria a "arguição de relevância de questão federal" como pressuposto de admissibilidade de recurso extraordinário e barreira impeditiva de inúmeros e excessivos recursos que eram interpostos perante o Supremo Tribunal Federal.

O então sistema constitucional delegava, através de seu artigo 119, § 1º, ao Regimento Interno do STF a competência para determinar quais os casos de relevância de questão federal que autorizariam a admissibilidade do recurso extraordinário.

Desta forma, iniciou-se um vergonhoso processo de restrições de acesso à justiça através de imposições de barreiras às partes e seus advogados, quais sejam (3): (i) RISTF de 1970 determinou os casos de restrição ao cabimento do RE, mas previu como válvula de escape as "alegações de ofensa ao Texto Constitucional" e o "dissídio à jurisprudência dominante do Pretório Excelso"; (ii) a Emenda Regimental n.º 3/75 do RISTF ampliou o rol de restrições e introduziu o requisito a relevância de questão federal como pressuposto de cabimento do recurso extraordinário; (iii) a Emenda Constitucional n.º 7/77 consagrou no texto constitucional a necessidade da arguição da relevância da questão federal debatida no recurso extraordinário como pressuposto de sua admissibilidade; (iv) o novo Regimento Interno do STF, publicado em 1980, aumentou a restrição ao cabimento do recurso extraordinário; (v) a Emenda Regimental n.º 2/85 alterou o regime de cabimento do RE através da enumeração taxativa desses casos.

Verifica-se pelo histórico normativo declinado supra que a primeira tentativa de solucionar o acúmulo de processos a serem julgados pela Corte Suprema Brasileira objetivou obstaculizar o acesso do cidadão ao Judiciário, impondo-lhe barreiras procedimentais, o que implica a redução da massa de trabalho do Supremo Tribunal Federal.

A vigente Constituição Federal, promulgada em 1988, buscou a ruptura conceitual do paradigma institucional brasileiro como forma de demarcar em nível normativo o fim da ditadura militar. Assim, não previu a arguição de relevância de questão federal como pressuposto de admissibilidade do recurso extraordinário. Para solucionar o acúmulo de trabalho da Corte Suprema Brasileira, criou o Superior Tribunal de Justiça como tribunal superior competente para conhecer, processar e julgar as causas que versem sobre violação à legislação infraconstitucional, conforme artigo 105 na Lei Maior.

Com essa cisão de competências, o Texto Constitucional conferiu ao Supremo Tribunal Federal a competência exclusiva para julgar as questões constitucionais, tornando-se de fato uma Corte Constitucional nos moldes da USA Supreme Court.

Apesar da criação do STJ, o STF continuou abarrotado de recursos (4), reflexo da abertura democrática e da facilitação do acesso ao Poder Judiciário, medidas estas empreendidas e possibilitadas graças à vigente Constituição Federal. Nesta esteira, com o crescente número de demandas judiciais e a manutenção da estrutura do corpo julgador dos Tribunais, o número de causas julgadas é inversamente proporcional aos recursos apresentados perante ambos os tribunais superiores.

O presente quadro, somado a uma série de escândalos políticos e criminais nas três esferas do Poder somente intensifica a descrença da sociedade brasileira em um Estado que seja de fato capaz de cumprir seus objetivos e fins públicos. Visando criar procedimentos e expedientes de democratização e aceleração do julgamento das causas, foi empreendida a reforma parcial do Judiciário através da Emenda Constitucional n.º 45/04, que, dentre outras medidas, introduziu o §3º no artigo 102 da Constituição Federal, criando a repercussão geral como pressuposto de admissibilidade do recurso extraordinário, cujos aspectos serão analisados ao longo deste artigo.

Com este estudo do histórico do Supremo Tribunal Federal, abrangendo sua gênese e evolução, facilmente se percebe que, assim como outras instituições brasileiras, o Pretório Excelso não conseguiu adaptar seus procedimentos internos à realidade no mesmo passo veloz da dinâmica social. Assim, há claros períodos históricos em que o acúmulo de trabalho é o grande problema desta Corte Suprema.

Observa-se, ainda, que o Supremo Tribunal é a primeira Corte Suprema do Brasil, e, como tal, exerceu todas as competências cabíveis a este tipo de órgão de cúpula, o que contribuiu para esse acúmulo de demanda laborativa, além de uma cultura jurídica de atribuir a este a competência de solução de todos os casos.

Estas questões críticas, contudo, conheceram uma série de tentativas de soluções, que, a despeito de seus objetivos, somente observaram os sintomas, mas não se preocuparam com as razões da endemia. O que se pretende com a realização deste estudo é justamente conhecer as atuais tentativas, avaliar suas razões e resultados.

1.2 A experiência norte-americana

O Supremo Tribunal Federal e o recurso extraordinário são institutos inspirados no sistema jurídico norte-americano, a Supreme Court e o writ of error, respectivamente. Este último, de inspiração anglo-saxônica, foi criado na Inglaterra e transmitido para suas colônias, cuja função era a revisão de julgados por error in procedendo ou error in judicando.

Nos Estados Unidos, após a declaração de sua independência política e econômica em relação à Inglaterra, foi elaborada e promulgada sua Constituição que, salvo algumas reformas, seu texto ainda vigora naquele país. De orientação manifestamente principiológica, dedicou apenas o artigo III para organização de seu Poder Judiciário Federal. Criou a Suprema Corte (United States Supreme Court) como órgão de cúpula, fixando apenas sua competência originária, a chamada trial court. A competência recursal (appelate jurisdiction) ficou a cargo do Congresso Nacional, bem como a atribuição de fixar o número de juizes da Corte Suprema e de criar os tribunais inferiores.

Até 1891 a Suprema Corte dos EUA funcionava apenas como tribunal de revisão, sendo bastante folgada sua demanda (caseload). Essa situação, contudo, não se manteve assim por muito tempo, pois a industrialização dos Estados Unidos causou o aumento considerável de demandas judiciais e, consequentemente, o número de mandatory appeals (apelações obrigatoriamente revistas pela Supreme Court).

Diante disto, em 1891 foi promovida reforma da Lei Orgânica do Judiciário Federal Norte-americano (1789 Judiciary Act) através da Evarts Act. Foram criados os tribunais regionais federais (U. S. Courts of Appeal) com competência recursal de segunda instância, retirando esta responsabilidade da Suprema Corte. Interessante observar que esse mesmo Act criou um instituto denominado petition for writ of certiorary cujo objetivo era levar aos Tribunais as appeals que não eram de conhecimento obrigatório.

Com estas medidas a caseload da Corte Suprema diminuiu possibilitando a esta o efetivo cumprimento de suas funções jurisdicionais de cúpula. Todavia, esta situação persistiu até a Primeira Guerra Mundial, quando a demanda no órgão Supremo voltou a crescer demasiadamente. Iniciou-se verdadeira discussão sobre a possibilidade e a necessidade de se determinar legalmente meios de obstaculizar a interposição de mandatory appeals.

Somente em 1925 o Congresso norte-americano cedeu ao lobby do Judiciário e alterou o Judiciary Act através do Judge’s Bill. Este diploma legal atribuiu à Suprema Corte poder discricionário para julgar as causas em conformidade a seu regimento interno. Assim, o número das mandatory appeals caiu, mas ocasionou o crescimento das petitions for writ of certiorary como sucedâneo recursal das apelações obstaculizadas.

No writ of certiorary a parte deve demonstrar a existência de causa ou controvérsia julgada por tribunal estadual ou federal cujo resultado apresente interesse para todo o país, como forma a uniformizar a jurisprudência e possibilitar que a Suprema Corte julgue novamente a causa e a interprete conforme a Constituição. Essa medida acaba por filtrar as demandas judiciais a serem apreciadas por este tribunal de cúpula, restringindo sua atuação somente em casos relevantes, ou seja, que apresentem uma federal question.

Mais uma vez o movimento normativo pela redução da caseload da Supreme Court foi impedido pelo desenvolvimento social e substancial evolução do pensamento político da população, principalmente na década de 1960 com o movimento pela defesa dos direitos civis e na década de 1970 com questionamentos relativos à aposentadoria e à seguridade social.

Em 1988 o Congresso Norte-Americano modificou mais uma vez o Judiciary Act cujos efeitos foram, na prática, a extinção das mandatory appeals. Assim, o sistema jurídico dos EUA reconhece desde então o recurso à Suprema Corte como um direito da parte, inexistindo causas que são de recorribilidade de ofício e conhecimento obrigatório. E o único meio de impugnar a constitucionalidade de decisões que julgaram causas nas instâncias inferiores é a petition for writ of certiorary, onde deve-se demonstrar a relevância da questão federal.

O julgamento do recurso writ of certiorary, em razão de suas peculiaridades, é discricionário, ou seja, a Suprema Corte dos Estados Unidos pode escolher o tipo de causa a ser julgada, conforme os critérios objetivos de seu Regimento Interno. Além disso, a causa só é julgada após decisão de pelo menos 4 dos 9 juizes deste órgão reconhecendo a existência da federal question, relevante para todo o país, sendo esta uma análise subjetiva.

Como será demonstrado, essa dinâmica processual apenas tem aplicação pacífica em países como os Estados Unidos que adotam o regime federalista em sua essência, em que cada unidade da federação é de fato autônoma e competente para assegurar a higidez da Constituição. Logo, aplicar o modelo norte-americano no Brasil sem observar algumas adaptações é capaz de causar prejuízos na ordem jurídica.

1.3 A Emenda Constitucional n.º 454/04 e os meios de superação da crise do STF

Conhecida como Reforma do Judiciário, a Emenda Constitucional n.º 45 de 08 de dezembro de 2004 trouxe grandes alterações na estrutura judiciária com o fim de agilizar o julgamento das causas, uma vez que esta demora gera insegurança jurídica e descrédito das instituições.

Por óbvio, a EC 45 não permaneceu insensível ao acúmulo de demandas do Supremo Tribunal Federal. Com vias de solucionar a dita crise do Supremo, incluiu o parágrafo 3º no inciso III do artigo 102 do Texto Constitucional, onde impôs-se à parte recorrente, em sede de recurso extraordinário, o dever de comprovar a repercussão geral, ou seja, a transcendência da questão constitucional suscitada capaz de gerar efeitos fora dos autos passa a ser pressuposto de admissibilidade deste recurso excepcional.

A repercussão geral por seu turno fora regulamentada pela Lei 11.418 de 11 de novembro de 2006 em que foram apresentadas as regras procedimentais desta e criado outro regime jurídico com vias a reduzir as causas recursais apresentadas ao STF: o processamento de RE idênticos.

Em função do pouco tempo de norma, estas questões são ainda objeto de discussões e dissídios, muito embora a tendência da jurisprudência e da doutrina seja a boa receptividade ao instituto da repercussão geral e ao regime de processamento de recursos extraordinários idênticos.

Todavia, exclusivamente para os advogados ambas inovações não apresentam esse caráter revolucionário e solucionador da crise do Supremo Tribunal Federal, mas significam justamente obstáculos à sua militância em prol da defesa de interesses de seus clientes, de forma imediata, e da renovação do pensamento jurisprudencial, de forma mediata.

Muito embora este subscritor seja advogado militante, tentaremos desenvolver nosso trabalho de forma imparcial e científica, analisando a fundo os institutos para alcançar soluções para tais questionamentos que, a nosso ver, são de suma importância.


2. REPERCUSSÃO GERAL

O recurso extraordinário possui, dentre outros, a repercussão geral como pressuposto de admissibilidade, sendo ônus da parte recorrente fazer sua demonstração.

Como se verificou, o instituto da repercussão geral não existia no texto constitucional, sendo incluído pela Emenda Constitucional n.º 45/2004, o que ocasionou várias implicações no processo civil brasileiro, as quais serão debatidas ao longo deste trabalho.

Entretanto, antes de discutir tais questões, faz-se necessário conhecer melhor o instituto da repercussão geral, observar seus aspectos técnicos e processuais, para, ao final, realizar o debate crítico a que se destina o presente trabalho.

2.1 Aspectos Gerais da Repercussão Geral

A repercussão geral é um pressuposto de admissibilidade específico do recurso extraordinário, cujo objetivo é demonstrar ao Supremo Tribunal Federal que a questão recorrida apresenta transcendência, ou seja, seus efeitos ultrapassam os limites subjetivos dos autos e são capazes de criar, modificar, restringir ou extinguir direitos de outras pessoas que não sejam somente as partes litigantes.

Desta forma, ao Supremo Tribunal Federal somente são submetidas demandas que são relevantes dentro de um ponto de vista político-jurídico, ou seja, apenas debates cuja complexidade e importância demandam a atuação da Corte Suprema para interpretar a norma constitucional e aplicá-la corretamente ao caso concreto.

O instituto em estudo fora acrescido ao sistema jurídico brasileiro através da Emenda Constitucional n.º 45/2004 que incluiu o §3º no artigo 102 da Constituição Federal. A referida norma, todavia, delegou à lei federal a incumbência de regulamentar a repercussão geral.

O debate central que este artigo propõe é justamente sobre a atual regulamentação da repercussão geral e seus efeitos no processo civil bem como para o sistema jurídico brasileiro. Antes de adentrar em tais discussões, faz-se necessário tecer alguns comentários e conhecer alguns aspectos deste instituto, como forma de subsidiar a tese defendida.

2.1.1 Regulamentação legal do instituto da repercussão geral

Conforme observa-se do artigo 102, §3º da Constituição Federal, o Texto Magno incumbe à lei federal regulamentar e dar conteúdo normativo à cláusula geral "repercussão geral".

Destarte, foi publicada a Lei Federal 11.418 de 19/12/2006 que incluiu os artigos 543-A e 543-B no Código de Processo Civil, regulamentando respectivamente a repercussão geral, seus procedimentos de verificação e julgamento e o regime de processamento de recursos extraordinários idênticos:

"Art. 543-A. O Supremo Tribunal Federal, em decisão irrecorrível, não conhecerá do recurso extraordinário, quando a questão constitucional nele versada não oferecer repercussão geral, nos termos deste artigo.

§1º - Para efeito da repercussão geral, será considerada a existência, ou não, de questões relevantes do ponto de vista econômico, político, social ou jurídico, que ultrapassem os interesses subjetivos da causa.

§2º - O recorrente deverá demonstrar, em preliminar do recurso, para apreciação exclusiva do Supremo Tribunal Federal, a existência da repercussão geral.

§3º - Haverá repercussão geral sempre que o recurso impugnar decisão contrária a súmula ou jurisprudência dominante do Tribunal.

§4º - Se a Turma decidir pela existência da repercussão geral por, no mínimo, 4 (quatro) votos, ficará dispensada a remessa do recurso ao Plenário.

§5º - Negada a existência da repercussão geral, a decisão valerá para todos os recursos sobre matéria idêntica, que serão indeferidos liminarmente, salvo revisão da tese, tudo nos termos do Regimento Interno do Supremo Tribunal Federal.

§6º - O Relator poderá admitir, na análise da repercussão geral, a manifestação de terceiros, subscrita por procurador habilitado, nos termos do Regimento Interno do Supremo Tribunal Federal.

§7º - A Súmula da decisão sobre a repercussão geral constará de ata, que será publicada no Diário Oficial e valerá como acórdão".

O artigo 543-B do CPC regulamenta o regime de processamento de recursos extraordinários idênticos, o qual será tratado em item específico, razão pela qual será transcrito somente em momento oportuno. Agora nos ateremos somente ao estudo da repercussão geral.

2.1.2 Definição de matérias que oferecem repercussão geral

Diversamente do regime constitucional de 1969, a definição das questões que oferecem repercussão geral passou a caber à lei federal, notadamente à mencionada Lei 11.418/06.

O conceito de repercussão geral é bastante amplo, permitindo uma série de definições e interpretações. Neste sentido, a observância deste instituto há de ser determinada em face dos princípios constitucionais que afetam diretamente a sociedade como um todo, como vida, liberdade, saúde e patrimônio. Por sua vez, estes princípios também possuem baixa concretude jurídica, dificultando a sistematização deste pressuposto de admissibilidade do RE.

Em tentativa de delimitação conceitual, o artigo 543-A, §1º da Lei Processual Civil prevê que a caracterização da repercussão geral há de observar a existência ou não de questões relevantes do ponto de vista econômico, político, social ou jurídico que ultrapassem os limites subjetivos da causa.

Diante da imprecisão do conceito de repercussão geral e da natureza de cláusulas abertas dos princípios constitucionais, não é possível apresentar, a priori, um conceito objetivo do que seja uma questão que ofereça repercussão geral, pois sempre dependerá do caso concreto.

Isso porque a definição de "questão relevante" é também bastante ampla e por isso de difícil delimitação, relegando à jurisprudência o preenchimento destas lacunas. Segundo Arruda Alvim (5) a relevância da questão constitucional observa-se em

"decisão sobre assunto constitucional impactante, sobre tema constitucional muito controvertido, em relação a decisão que contrarie decisão do STF; que diga respeito à vida, à liberdade, à federação, à invocação do princípio da proporcionalidade (em relação à aplicação do texto constitucional) etc.; ou, ainda, outros valores conectados a Texto Constitucional que alberguem debaixo da repercussão geral".

Desta forma, questões constitucionais que não apresentem qualquer relevância à sociedade como um todo, não ensejam a interposição de recurso extraordinário, uma vez que, as causas decididas hão de repercutir em toda a comunidade, extrapolando-se os limites subjetivos dos autos. Contudo, retorna-se à questão anterior: o que é questão relevante? Quem define o que é relevante? Essas são algumas das discussões centrais que este artigo propõe.

Há, entretanto, uma espécie de questão atacada em recurso extraordinário que possui presunção absoluta de repercussão geral: decisões contrárias à súmula ou à jurisprudência dominante do Supremo Tribunal Federal, conforme artigo 543-A, §3º do CPC. Frise-se que por "jurisprudência dominante" entende-se aquela que resulta de posição pacífica, ou seja, não há acórdãos divergentes ou a discussão já foi assentada no Pretório Excelso.

A norma em comento demonstra a preocupação do legislador infraconstitucional em reconhecer a força vinculativa das decisões proferidas pelo Supremo Tribunal Federal em sua incumbência de guardião da higidez da norma constitucional. Observe-se, todavia, que o artigo 543-A, §3º do CPC não limita à súmula vinculante, mas estende esta presunção de repercussão geral a todos os casos em que se demonstre o posicionamento pacificado na Corte Suprema, sumulado ou não.

Cumpre registrar que decisões em última ou única instância que estão de acordo com a jurisprudência dominante do STF podem oferecer repercussão geral, devendo o decorrente demonstrar a ocorrência deste pressuposto no caso concreto. Sendo convincentes suas legações, o Supremo poderá inclusive alterar seu posicionamento.

2.2 Sistematização de critérios para aferição da repercussão geral

A norma constitucional, conforme já explicitado anteriormente, determinou que a lei federal deveria regulamentar o instituto da repercussão geral. Embora o texto normativo não seja explícito, nos parece que o poder constituinte derivado tinha expectativas que fossem estabelecidos critérios objetivos que aferissem o que seria uma questão relevante. Contudo, esta não é a realidade.

Observa-se que os estudos empreendidos neste artigo demonstram que o artigo 543-A, §1º inserido pela Lei 11.418/06 no Código de Processo Civil, por seu turno, estabeleceu que relevantes seriam as questões relacionadas a aspectos econômicos, políticos, sociais ou jurídicos.

Muito embora o legislador infraconstitucional tenha debruçado-se sobre a tentativa de reconhecer minimamente alguns critérios objetivos de aferição da repercussão geral, ousamos aqui entender que este instituto será observado todas as vezes que a causa demonstrar a possibilidade de repercutir em esfera que ultrapasse os limites dos autos.

Assim, poderá, inclusive, o Ministro Relator do STF, no momento do juízo de admissibilidade do recurso extraordinário, reconhecer que este pressuposto fora observado no caso concreto sempre que haja um mínimo de subsídio fático e/ou jurídico que caracterize a demanda como relevante para a sociedade brasileira.

Exemplo disto é o caso de uma questão de direito de consumidor que, apesar de envolver discussão sobre bens ou serviços de baixo valor econômico, é relevante para a sociedade como um todo à medida que o desrespeito por parte do fornecedor é observado em inúmeros casos ou faça parte de uma cultura de mercado dissonante do sistema de defesa do consumidor. Assim, caberá ao Supremo exercer sua atribuição de órgão guardião dos princípios constitucionais e, através do recurso extraordinário, solucionar o caso em favor dos consumidores do Brasil, apesar de nos autos constar controvérsia envolvendo objeto com preço módico se for individualmente observado.

A tentativa de se estabelecer, portanto, critérios objetivos de sistematizar os critérios de aferição da repercussão fora conferida indiretamente à jurisprudência, que deverá preencher a lacuna conceitual dos conceitos vagos previstos no artigo 543-A, §1º do CPC.

Alguns doutrinadores (6), todavia, realizaram tentativas de estabelecer esses critérios, os encontram-se transcritos a seguir:

"i) repercussão geral jurídica: a definição da noção de um instituto básico de nosso direito, ‘de molde a que aquela decisão, se subsistisse, pudesse significar perigoso e relevante precedente’; ii) repercussão geral política: quando ‘de uma causa pudesse emergir decisão capaz de influenciar relações com Estados estrangeiros ou organismos internacionais’; iii) repercussão geral social: quando se discutissem problemas relacionados ‘à escola, à moradia ou mesmo à legitimidade do MP para propositura de certas ações’; iv) repercussão geral econômica: quando se discutissem, por exemplo, o sistema financeiro da habitação ou a privatização de serviços públicos essenciais". (grifos no original)

Complementando a sistematização acima transcrita e proposta, Vitor Nunes Leal (7) enumerou hipóteses em que se observaria o critério de relevância das questões submetidas ao Supremo Tribunal Federal, seguindo o modelo norte-americano. Seriam relevantes:

"a) as questões constitucionais;

b) as questões de natureza legal:

1 – versando sobre atribuições de autoridades de nível elevado, ou que lidam com interesses de amplas coletividades;

2 – referentes à definição de um instituto tributário, que interesse a centenas de milhares de pessoas;

3 – relativas à interpretação de uma lei que abranja extensa categoria de funcionários públicos;

4 – que versarem sobre uma norma legal que, aplicada de um ou de outro lado, pode afetar fundamente todo um ramo da produção ou comércio;

5 – versando sobre dissídio jurisprudencial em torno de uma lei de aplicação freqüente (sic), deixando, contudo, de Ter relevo esta questão, se a interpretação razoável da lei for contrariada apenas por uma ou outra decisão isolada, que não chegue a configurar uma corrente jurisprudencial".

Quaisquer critérios ou listas enumerativas que venham a ser adotados, tanto o advogado quanto os órgãos julgadores do Supremo deverão ter em mente que relevante é toda e qualquer causa que apresente ofensa ao interesse público ou a alguma garantia fundamental. Quanto a este caso, teceremos nossas considerações e críticas em momento oportuno.

2.3 Repercussão geral x arguição de relevância

A repercussão geral teve suas bases ideológicas no instituto da arguição de relevância prevista no regime Constitucional de 1969. Muito embora ambos institutos guardem similitude ideológica, estes não se confundem, conforme será apresentado neste item.

Enquanto o sistema de 1969 relegava ao Supremo Tribunal Federal a discricionariedade de estabelecer através de seu Regimento Interno as causas que entendessem relevantes, o atual regime estabelece critérios de aferição da relevância da causa debatida.

Decorrência lógica desta primeira constatação é que o atual sistema condiciona a Turma julgadora do STF a decidir se há ou não repercussão geral no caso concreto, enquanto o antigo regime listava em abstrato as causas que entendia relevante, sem possibilidade de alterações por via jurisprudencial deste rol taxativo do RISTF.

Na arguição de relevância o julgamento era secreto e imotivado, sendo que o hodierno regime da repercussão geral é diametralmente oposto, permitindo, ainda, a intervenção de amicus curiae no julgamento do juízo de admissibilidade do recurso extraordinário.

Apesar destas considerações, Luiz Manoel Gomes Junior (8) defende que a repercussão geral representa o retorno da arguição de relevância, sem, contudo demonstrar os fundamentos de sua posição, apenas fazendo referência à ressurreição de uma ideologia antiga da necessidade se filtrar as causas submetidas através de recurso extraordinário ao STF.

Entretanto, por ser a repercussão geral este filtro, tal e qual um dia foi a arguição de relevância, aquela em nada se assemelha a esta, não sendo aplicável a argumentação do respeitável Professor, conforme nossa humilde opinião.

2.4 Aspectos Processuais da Repercussão Geral

A repercussão geral é um dos pressupostos de admissibilidade do recurso extraordinário e, assim como os outros, é analisada previamente ao mérito recursal. Esse juízo, todavia, é um pouco diferente, pois mobiliza alguns procedimentos, os quais serão verificados.

2.4.1 Procedimentos preliminares

As alegações fáticas e jurídicas que demonstrem a ocorrência da repercussão geral deverão ser descritas pela parte recorrente em preliminares, segundo o disposto no artigo 543-A, §2º do Código de Processo Civil.

Esse destaque topográfico da repercussão geral na petição que interpõe o recurso extraordinário é importante para facilitar a visualização prévia deste pressuposto pelo órgão julgador do Supremo Tribunal Federal.

Nos casos previstos no artigo 543-A, §3º da Lei Processual Civil, ou seja, em que há presunção absoluta de repercussão geral, ainda assim não dispensa o destaque da matéria na petição do recurso extraordinário pelas razões acima apresentadas.

Se porventura não houver o aludido destaque, mas a repercussão geral for demonstrada em algum momento das alegações recursais, não poderá o Supremo Tribunal Federal, alegando o artigo 543-A, §2º do Código de Processo Civil, eximir-se de julgar a questão, pois o atual sistema jurídico brasileiro preconiza que o conteúdo é mais importante que a forma. Todavia, é interesse da parte que seu recurso seja conhecido e julgado procedente, sendo, portanto, seu ônus buscar ao máximo criar meios efetivos de se obter o resultado positivo.

3.2.2 Fase interna

Uma vez distribuído o recurso extraordinário para alguma Turma do Supremo Tribunal Federal, que é composta por cinco Ministros, esta fará um juízo preliminar de admissibilidade, analisando primeiramente a observância dos outros pressupostos e, após, a existência ou não da repercussão geral, segundo artigo 323 do RISTF.

Após análise, pelo Relator, da demonstração ou não da repercussão geral, submeterá a questão aos outros ministros através de meio eletrônico. Estes terão um prazo de 20 (vinte) dias para emitir seu posicionamento, consoante o disposto no artigo 323, §1º do Regimento Interno do Supremo.

Segundo o artigo 543-A, §4º da Lei de Ritos, se pelo menos quatro Ministros entenderem que o instituto em comento se observa no caso em análise, dá-se então continuidade ao juízo de admissibilidade e do próprio mérito do recurso extraordinário.

Contudo, uma vez negada a existência da repercussão geral ou afirmada por três ou menos Ministros da Turma, os autos são remetidos ao Pleno do Supremo para análise, o que ousamos chamar de fase externa.

Anote-se, por fim, que nos casos previsto no artigo 543-A, §3º do Código de Processo Civil, ou seja, da presunção absoluta de repercussão geral, não será necessária essa fase interna, remetendo-se prontamente os autos ao julgamento do mérito do recurso extraordinário.

3.2.3 Fase externa

Não sendo reconhecida a relevância do caso em análise, os autos serão remetidos ao Pleno do Supremo para julgamento desta questão preliminar. Observe-se que, conforme norma constitucional contida no artigo 102, §3º, acrescido pela EC 45, somente dois terços de sua composição do Pretório Excelso, ou seja, oito de seus onze Ministros podem negar a existência desse pressuposto de admissibilidade do recurso extraordinário.

O que o Texto Maior consignou é que a repercussão geral é presumidamente observada, cabendo a dois terços do Tribunal Pleno do Pretório Excelso negar sua existência.

Se o Pleno do STF entender observada a repercussão geral ou se esta for negada por sete ou menos Ministros, este requisito será dado por preenchido e os autos do recurso extraordinário serão remetidos à Turma para seu julgamento, que prosseguirá normalmente.

Negada a repercussão geral, esta decisão será publicada no Diário Oficial como acórdão (artigo 543-A, §7º do CPC) e será tido por paradigma para casos idênticos, que serão indeferidos liminarmente, salvo revisão da tese (idem, §5º). O aludido julgamento por amostragem será melhor observado e criticado em momento oportuno.

Como a questão da observância da repercussão geral envolve interesses que transcendem os dos autos, dada a possibilidade de indeferimento liminar de recurso extraordinário que versem sobre casos idênticos, o artigo 543-A, §6º do CPC prevê possibilidade de terceiros habilitarem-se no julgamento do caso como amicus curiae.

Por fim, custa anotar que se o acórdão que afirmar ou negar a existência de repercussão geral estiver eivado de omissões, obscuridades ou contradições, poderá ser atacado por embargos de declaração, na forma do artigo 535 do CPC. Contudo, o mérito deste decisum é irrecorrível, segundo o artigo 326 do RISTF, com supedâneo no artigo 3º da Lei 11.418/06.


3. REGIME DE PROCESSAMENTO DE RECURSOS EXTRAORDINÁRIOS IDÊNTICOS

Ao regulamentar o instituto da repercussão geral inserido no §3º do artigo 102 da Constituição Federal através da EC n.º 45/04, a Lei 11.418/06 criou o artigo 543-B no Código de Processo Civil, regulamentando o regime de processamento de recursos extraordinários idênticos pelo STF.

A onda renovatória do processo brasileiro trazida pela tão decantada em prosa e verso "reforma do Judiciário" previu a criação de uma série de medidas que efetivassem os princípios da celeridade e economicidade processuais, e o novel "duração razoável do processo", instituído pela EC 45.

3.1 Constitucionalidade do regime de processamento de recursos extraordinários idênticos

Neste rol das medidas criadas pela Emenda Constitucional n.º 45/04 inclui-se a repercussão geral, tratada nos itens anteriores. Deste instituto deriva o regime de processamento de recursos extraordinários idênticos.

Muito embora essas normas procedimentais não estejam previstas no §3º do artigo 102 da Constituição Federal, não se pode dizer que o mesmo é inconstitucional, segundo depreende-se das razões a apresentadas nas seguintes linhas.

A norma constitucional tem caráter amplo e geral, destinada a criar os institutos, conferindo à legislação infraconstitucional o poder de regulamentá-los. Assim, regras procedimentais, como esta em estudo prevista no artigo 543-B do CPC, não seriam previstas na Lei Maior.

De outro lado, o diploma normativo que instituiu o regime de processamento de recursos extraordinários idênticos é uma lei federal, notadamente a Lei 11.418/2006, guardando perfeita consonância ao disposto no artigo 22, I da Constituição Federal (9).

Além do artigo 543-B do Código de Processo Civil guardar o caráter da constitucionalidade formal, esta é ainda materialmente constitucional à medida que esta conexão por afinidade (10) entre os recursos extraordinários idênticos se insere dentro do novo quadro jusfilosófico do processo após a edição da Emenda Constitucional n.º 45/2004, notadamente a garanti da duração razoável do processo.

Uma vez que o regime processual previsto no artigo 543-B da Lei Processual Civil é um meio idôneo para tornar célere o julgamento de recursos extraordinários, guardando pertinência aos objetivos da reforma do Judiciário, outra não pode ser a conclusão senão de sua constitucionalidade, desde que se observe, por óbvio, o contraditório, a ampla defesa e o devido processo legal.

3.2 Regime de processamento de recursos idênticos

Conforme já referido alhures, o regime de processamento de recursos extraordinários idênticos está previsto no artigo 543-B do Código de Processo Civil, norma esta criada pela Lei 11.418/06, a qual pedimos vênia para transcrever:

"Art. 543-B. Quando houver multiplicidade de recursos com fundamento em idêntica controvérsia, a análise da repercussão geral será processada nos termos do Regimento Interno do Supremo Tribunal Federal, observado o disposto neste artigo.

§1º Caberá ao Tribunal de origem selecionar um ou mais recursos representativos da controvérsia e encaminhá-los ao Supremo Tribunal Federal, sobrestando os demais até o pronunciamento definitivo da Corte.

§2º Negada a existência de repercussão geral, os recursos sobrestados considerar-se-ão automaticamente não admitidos.

§3º Julgado o mérito do recurso extraordinário, os recursos sobrestados serão apreciados pelos Tribunais, Turmas de Uniformização ou Turmas Recursais, que poderão declará-los prejudicados ou retratar-se.

§4º Mantida a decisão e admitido o recurso, poderá o Supremo Tribunal Federal, nos termos do Regimento Interno, cassar ou reformar, liminarmente, o acórdão contrário à orientação firmada.

§5º O Regimento Interno do Supremo Tribunal Federal disporá sobre as atribuições dos Ministros, das Turmas e de outros órgãos, na análise da repercussão geral." (grifou-se)

Todos os recursos extraordinários que versarem sobre matéria idêntica guardam entre si uma conexão por afinidade. Todavia, ao invés de reunirem-se os autos e proceder-se ao julgamento simultâneo dos mesmos, a Lei 11.418/06 criou um regime especial de processamento.

Segundo o disposto no §1º do artigo 543-B, o Tribunal de origem selecionará um ou mais recursos extraordinários representativos da demanda e os encaminhará ao Supremo Tribunal Federal, ao invés de remeter todos os autos. Os processos mantidos no Juízo a quo permanecerão sobrestados até o julgamento dos anteriores.

Importante ressaltar que o Tribunal de origem deve remeter ao Supremo recursos que apresentem maiores possibilidades de serem conhecidos, uma vez que aqueles serão leading cases para todas as demandas posteriores, sendo patente o interesse público.

Uma vez distribuídos, o Pretório Excelso procederá à análise da existência ou não da repercussão geral, conforme procedimentos previstos no artigo 543-A da Lei Processual Civil largamente debatida no capítulo anterior deste trabalho.

Se porventura a Corte Suprema negar a existência da repercussão geral dos leading cases, todos os recursos sobrestados no Tribunal de origem serão inadmitidos com fundamento na decisão matriz do Supremo. E esse também será o destino de futuros recursos extraordinários idênticos.

Ultrapassado juízo de admissibilidade em sede de Supremo Tribunal Federal, após julgamento do mérito do recurso extraordinário, os Tribunais Inferiores serão notificados da decisão e poderão declarar os recursos extraordinários sobrestados prejudicados ou retratarem-se de suas decisões.

Importante observar-se que os §§3º e 4º do artigo 543-B demonstram que não há obrigação de os órgãos jurisdicionais de segunda instância aplicarem a orientação do acórdão de mérito julgado pelo STF nos leading cases, salvo no caso de ser expedida súmula vinculante.

Logo, se a Turma, Câmara ou Turma Recursal é livre para manter seu acórdão, ato no qual o Presidente do Tribunal remeterá os autos ao Supremo Tribunal Federal para que este aprecie o caso.

Por fim, urge ressaltar que, embora o artigo 543-B do Código de Processo Civil não preveja, é possível a admissão de amicus curiae no Supremo Tribunal Federal para auxiliar no juízo de admissibilidade dos leading cases, demonstrando-se a existência ou não da repercussão geral, conforme artigo 543-A, §6º do CPC. Todavia, não há previsão dessa intervenção de terceiros ainda em sede de Tribunal Inferior.

Conclui-se, portanto, que o regime de processamento de recursos extraordinários idênticos foi criado para otimizar os procedimentos de julgamento desta espécie recursal, sendo mais uma medida para aliviar a demanda submetida ao Supremo Tribunal Federal.


4. CRÍTICAS AO INSTITUTO DA REPERCUSSÃO GERAL

Após a exposição aqui empreendida, dispomos de um arsenal de informações, para tecer as seguintes considerações e críticas sobre a repercussão geral e o regime de processamento de recursos idênticos.

4.1 Incipiente dificuldade de se romper com a estrutura individualista do Código de Processo Civil

Ao longo da História, principalmente nessas duas décadas desde a promulgação da Constituição de 1988, vê-se verdadeira evolução do Brasil em todos seus aspectos, jurídicos, sociais, econômicos, políticos, etc. Evoluiu-se de um Estado de welfare state a um Estado com características sócio-democráticas, ora liberal, ora interventor na esfera particular.

O Código de Processo Civil tem forte orientação liberal, pois o processo, embora seja uma instituição pública e de interesse geral, somente tem efeitos, ao menos em tese, na esfera das partes e apenas alcança as questões trazidas por estas, independentemente da verdade real, extra-autos, como se observa, por exemplo, do disposto nos artigos 2º e 6º, ambos da Lei Processual Civil.

"Artigo 2º. Nenhum juiz prestará a tutela jurisdicional senão quando a parte ou o interessado a requerer, nos casos e formas legais".

"Artigo 6º. Ninguém poderá pleitear, em nome próprio, direito alheio, salvo quando autorizado por lei".

Apesar desse caráter individualista do processo, no sistema jurídico brasileiro vigora, desde a publicação da Consolidação das Leis Trabalhistas, a ideia de um Direito Coletivo do Trabalho, exercido ostensivamente pelos sindicatos. Não se pode olvidar, por óbvio, que a regulamentação da ação civil pública se dá através da Lei 7.347, a qual fora publicada no ano de 1985, bem como que o Código de Defesa do Consumidor regulamenta, desde 1990, uma ideia de processo coletivo.

Ou seja, a coletivização do processo é bastante recente, e apesar da evolução do pensamento jurídico em progressão geométrica, é ainda difícil de se conceber a ideia de um Direito Processual Coletivo, ou seja, os efeitos do processo transcendendo a esfera dos interesses individuais e atingindo a uma parcela da sociedade enquanto coletividade.

Assim, apesar de toda a evolução da teoria processual brasileira e estrangeira, ainda temos dificuldades em se conceber um processo coletivo de caráter ordinário, em que apenas duas partes litigantes podem decidir os rumos dos direitos de toda a sociedade sem a observância de meios que garantam a participação de toda a coletividade.

4.2 Reflexos históricos da estrutura administrativa Imperial Brasileira na conceituação de "causas relevantes". Segurança jurídica

Neste trabalho observou-se incansavelmente que a Emenda Constitucional n.º 45/04 é conhecida como reforma do Judiciário e possibilitou, dentre outras medidas, a introdução do requisito da repercussão geral a ser observado quando da interposição de recurso extraordinário. Verificam-se, aqui, matizes desta incipiente ideia de um Direito Processual Coletivo, quando se exige que a matéria discutida neste recurso excepcional ultrapasse os limites subjetivos individuais dos autos e atinja à coletividade.

Muito embora possua um caráter de ruptura com o sistema individualista-liberal do processo civil, e seja louvado por parte da doutrina, a exemplo de Alexandre Freitas Câmara (11), cabem aqui as presentes críticas ao instituto da repercussão geral.

Primeiramente, as raízes históricas da organização político-territorial do Brasil impedem a aplicação de um instituto de forte cunho federalista, qual seja, a repercussão geral, quando a República Federativa do Brasil adota um federalismo um tanto dissociado de sua concepção original.

Isso porque a estrutura imperial entendia o território brasileiro como uma unidade política, adotando-se uma filosofia provincial. A República, por seu turno, apenas atribuiu às províncias o nome de Estado, quando, em verdade, em nada são autônomos e soberanos como propõe o federalismo.

Debruçando-se sobre o artigo 22 da vigente norma constitucional, observa-se que a União detém o poder soberano de regulamentar as questões mais importantes sob o prisma da "segurança nacional" e "interesse da nação". Aos Estados cabem somente as questões regionais e residuais, sendo sua autonomia limitada aos poderes da União. Exemplo crítico desta constatação é o disposto no caput do artigo 25 da CRFB:

"Artigo 25. Os Estados organizam-se e regem-se pelas Constituições e leis que adotarem, observados os princípios desta Constituição".

Ainda, a já transcrita norma constitucional expressa no artigo 102, III, "b", "c" e "d" aduz que é cabível o recurso extraordinário para controlar a constitucionalidade de lei estadual que não esteja de acordo com a Constituição Federal ou mesmo com lei federal. Ou seja, a conclusão que se pode alcançar é que a norma do Estado é subsidiária e desprovida de total autonomia, atendendo-se a um "federalismo placebo", mas que mantém a orientação provincial dos tempos de Império.

O que propomos na presente discussão é ter em mente que os reflexos históricos da estrutura administrativa do Império Brasileiro impedem que seja traduzido para nosso sistema jurídico o writ of certiorary sem que sejam observadas as raízes ideológicas da organização política do Brasil.

Nos EUA vigora a verdadeira estrutura federalista, pois todos os Estados-membros são autônomos para legislar, por exemplo, sobre direito penal, processual, eleitoral, etc., inexistindo, a exemplo do Brasil, uma Constituição Federal que mais ou menos esgota todas as previsões da vida jurídica do país.

A Constituição norte-americana, por sua vez, prevê somente as questões federais, ou seja, aquelas que importem a coesão do ente União e os poderes a ela conferidos como representante daqueles cinquenta Estados Federados em questões internacionais, dos quais se destacam os procedimentos de eleição do Presidente dos Estados Unidos da América, impostos federais, obrigações recíprocas dos Estados, organização da Supreme Court e liberdades individuais.

Diante desta realidade completamente inversa, pode-se falar que há questões federais que são relevantes e oferecem repercussão geral e outras não, pois os Estados detém soberania a ponto de solver internamente todas as questões judiciais sem demandar a interferência da Supreme Court. Esta realmente funciona como órgão político que detém a higidez da norma constitucional federal, que só é alcançada após a infringência a toda norma local.

Já no caso do Brasil, salvo melhor juízo, todas as questões constitucionais são relevantes, pois a Constituição Federal é o único diploma normativo de cunho ideológico e organizador da sociedade, e qualquer ferida ao que nela estiver disposto, desde que demonstrado nos autos, oferece transcendência dos limites subjetivos do processo. Exigir como pressuposto de admissibilidade que o mérito do recurso extraordinário seja "relevante" e transcenda os limites da demanda soa de forma, no mínimo, juridicamente estranha.

O pressuposto da repercussão geral para interposição e admissão do recurso extraordinário possibilita, em análise final, que haja no mundo jurídico, decisões em última ou única instância que afrontem a norma constitucional, mas que não serão conhecidas e posteriormente corrigidas pelo STF se a questão não for relevante e não repercutir entre setores da sociedade.

Logo, mesmo que o acórdão recorrido tenha violado norma constitucional, se seus efeitos não repercutirem em esfera que vá além das partes do processo, não se justifica a interposição de recurso extraordinário por não ser esta questão relevante do ponto de vista do espectro de pessoas e relações jurídicas afetadas pelo decisum.

Se a relevância da questão não representar interesse coletivo, mas apenas individual, o decisum que afrontou a norma constitucional manter-se-á e gerará todos os efeitos decorrentes da execução. Contudo, qualquer decisão judicial que subverta o disposto na Constituição Federal deveria ser passível de reforma, simplesmente pelo fato de ser inconstitucional.

Portanto, a mera possibilidade de decisão judicial subverter o texto da Lex Magna e criar situação de insegurança em todas as relações jurídicas repercute negativamente, salvo melhor juízo, na sociedade como um todo, ensejando sua reforma através do recurso extraordinário.

4.3 Grande número de recursos extraordinários e algumas propostas para solução do problema

Independentemente de quaisquer bases jusfilosóficas que os juristas utilizem para defender a aplicabilidade da repercussão geral, todos concordam que o referido instituto foi introduzido no sistema jurídico brasileiro justamente para coibir o grande número de recursos extraordinários apresentados diariamente ao Supremo Tribunal Federal.

Contudo, esse grande número de recursos extraordinários podem ser corroborados por diversos fatos, dos quais destacam-se as seguintes possíveis hipóteses: (i) são efetivos os meios que garantem o amplo acesso ao Judiciário, como sindicatos, Defensoria Pública, escritórios modelos, etc.; (ii) os Tribunais Inferiores não estão laborando de forma justa e tecnicamente correta; (iii) os advogados não estão trabalhando de forma eficaz e laboriosa, reflexo da falência do sistema brasileiro de ensino níveis médio e superior.

Registre-se que as hipóteses acima levantadas não representam qualquer opinião deste subscritor, mas apenas fazem parte do intróito da discussão que propomos no início deste artigo e pretendemos ver concluída.

Independentemente das razões que levaram ao enorme crescimento do número de recursos extraordinários, a criação de mais um pressuposto de cabimento recursal não será efetiva, ainda mais quando esta possibilitar a existência de decisões judiciais que afrontam a Constituição Federal.

Consigne-se que não somos, de forma alguma, avessos à possibilidade de serem criadas medidas que visem coibir uma verdadeira e desnecessária "enxurrada" de interposições RE, atabalhoando o STF e impedindo que este cumpra de forma plena e satisfatória seu mister de Corte Constitucional Suprema. Contudo, hão de ser democráticas, razoáveis e eficazes as formas de apresentação destes recursos excepcionais, pois ao que parece, a repercussão geral é desprovida de qualquer juridicidade. Não se pode subverter o direito do cidadão acessar ao Judiciário em nome da celeridade e da economia processual.

Nesta esteira, o ideal seria que periodicamente fossem oferecidos aos advogados e magistrados cursos de reciclagem profissional, uma força conjunta dos Tribunais, AMB e OAB, de modo evitar que os órgãos julgadores profiram o menor número possível de decisões errôneas, bem como evitar que os advogados recorram de forma inútil. Esta medida é efetiva somente a médio e longo prazo. Concomitantemente, poderiam ser adotadas medidas pequenas e efetivas, tais como as apresentadas a seguir.

Uma delas seria a criação, no Código de Processo Civil, de uma multa a ser cominada à parte que interpusesse recurso manifestamente improcedente de modo temerário, bem como o envio dos nomes de advogados que se utilizem reiteradamente destas práticas à OAB para sofrerem processo ético disciplinar.

Em se observando no Supremo Tribunal Federal que o magistrado a quo proferiu decisão frontalmente inconstitucional por falta de técnica ou mesmo má fé, que cópias dos autos sejam remetidas aos órgãos correicionais para processo disciplinar.

Somente com essas duas medidas as partes e os magistrados agiriam de forma mais atenta e preocupada com os objetivos do processo, quais sejam, a efetiva solução da demanda de forma justa e a pacificação social, ao invés de tornar o processo uma forma de tortura intelectual e um litígio para a vida toda.

Como é cediço, o Estado Democrático de Direito tornou-se deveras complexo, de forma que os clássicos Poderes Legislativo e Executivo não conseguem mais cumprir seus misteres de forma ampla e efetiva.

Um movimento de renovação das instituições sociais, principalmente no que tange às funções do Poder Executivo, destaca-se a especialização de assuntos e demandas, bem como a descentralização e delegação de poderes regulatórios a órgãos administrativos, exemplo dos conselhos profissionais e agências nacionais.

Uma outra boa e efetiva medida é a do Estado fomentar o exaurimento das vias administrativas, tornando o Judiciário a última hipótese de um iter para solução de demandas. Na sede de cada empresa concessionária ou permissionária de serviços públicos poderia haver uma estrutura da respectiva agência reguladora que funcionaria como instância de conciliação de natureza obrigatória, que tentaria solucionar as questões, principalmente as de consumidor, antes do ajuizamento da ação.

Em outros casos, poderiam ser criados órgãos arbitrais ou mesmo conciliadores nas sedes de sindicatos, associações e Defensoria Pública, como forma de desafogar o Judiciário, o qual julgaria somente as questões que não lograram êxito nas instâncias administrativas.

Estas medidas viabilizam a solução das demandas de forma pacífica e célere, não ofendem os princípios e garantias processuais e permite que o Judiciário trabalhe de forma efetiva.

4.4 Novel regime de processamento de recursos idênticos e formas de melhoria

Conforme foi explicitado em momento anterior, a regulamentação do processamento da repercussão geral através da Lei 11.418/06 criou um regime de processamento de recursos extraordinários idênticos, norma esta que mais tarde inspirou o regime do recurso especial previsto na Lei 11.672/08.

Este é um aspecto da repercussão geral que, num primeiro momento, inspira insegurança, principalmente ao advogado, pois, mesmo após o dispêndio de valores com custas processuais, porte de remessa e retorno, fotocópias e impressões, não há garantias de que estas razões recursais serão apreciadas pelo STF ou STJ, conforme o caso.

Correto é afirmar que a parte não detém o direito subjetivo de ver seu recurso apreciado pelo Tribunal pelo simples fato de tê-lo interposto. Todavia, uma vez que o mesmo apresenta todos os pressupostos de existência e admissibilidade, devem ser julgados.

Explicitamos acima que há ainda uma dificuldade de se aceitar a existência de um processo coletivo para situações que não sejam aquelas defendidas por ações civis públicas, ADI, mandados de segurança coletivos, dissídios coletivos na Justiça do Trabalho entre outras ações que defendam direitos e interesses transindividuais. Um processo em que sejam discutidos litígios individuais ainda não tem o condão, salvo melhor juízo, de decidir toda a vida jurídica de um grupo similar, como propõem a EC 45 e legislação regulamentadora.

Hodiernamente, a norma vigente prevê a possibilidade de participação de um amicus curiae para auxiliar no julgamento da admissibilidade do recurso extraordinário no que tange à repercussão geral, mas não há previsão desta assistência litisconsorcial no julgamento do mérito do recurso extraordinário.

Ainda, é possível a hipótese de um advogado experiente e especializado ter desenvolvido um recurso extraordinário bem fundamentado, mas este não seja remetido ao Supremo Tribunal Federal, encaminhando-se outro não tão bem redigido quanto o primeiro, segundo o previsto no artigo 543, §1º do CPC.

Este novo sistema do recurso extraordinário seria mais democrático e eficaz se fosse possível a intervenção do amicus curiae no julgamento do mérito do recurso, uma vez que a Lei 11.418/06 não determinou critérios objetivos para os Tribunais Inferiores elegerem as petições de interposição de recurso extraordinário a serem remetidas ao Supremo Tribunal Federal.

Outra medida importante que poderia ser adotada é a realização de uma audiência pública das partes que possuem casos idênticos para que estes elejam os melhores recursos extraordinários a serem encaminhados ao Pretório Excelso, uma vez que relegar esta responsabilidade ao Judiciário importaria a violação da imparcialidade do Juiz.

Crítica importante a se fazer ao regime de processamento de recursos idênticos ao Supremo Tribunal Federal representa, a longo prazo, o engessamento do pensamento da jurisprudência desta Corte Suprema, pois não serão apresentadas novas fundamentações e teses jurídicas ao Pretório Excelso, não havendo novas discussões do caso, já que o filtro nos Tribunais Inferiores não permitirá a remessa de novos RE. Ou seja, uma vez julgada a repercussão geral, esta terá efeito vinculante, segundo dispõe o artigo 543-A, §5º da Lei Processual Civil.

Importante observar que a norma acima citada explicita os termos "salvo revisão da tese", sem, contudo, criar qualquer tipo de regulamentação para que, periodicamente, o Supremo Tribunal Federal possa reavaliar seu posicionamento, já que novos recursos extraordinários não serão levados a seu conhecimento.

Penso que essa revisão da tese deve ser proposta pela parte recorrente em seu agravo de instrumento a ser apresentado ao Pretório Excelso quando da decisão que nega o seguimento de seu recurso extraordinário. O advogado teria como principal atribuição demonstrar que (i) a causa que defende é diferente do que foi julgado nos precedentes anteriores ou (ii) a tese do STF é equivocada porque o caso é relevante e repercute.

Nessa segunda hipótese poderia compor um "incidente de renovação de tese", diante de novas razões e dados que demonstrem a relevância da questão e sua repercussão geral.

Os institutos são novos e bastante controversos, mas esperamos que a prática jurídica os adapte aos clamores sociais por um Judiciário célere, efetivo e, acima de tudo, justo.


CONCLUSÃO

Diante do exposto neste trabalho, conclui-se que a repercussão geral representa instituto que compreende um movimento de coletivização do processo, encarando o objeto litigado de forma transindividual.

Sendo um instituto novo, cuja sistematização legal data de pouco tempo, a repercussão geral ainda possibilita sua ampla discussão e críticas, como as empreendidas ao longo deste estudo.

A repercussão geral é pressuposto de admissibilidade do recurso extraordinário inserido no mundo jurídico através da Emenda Constitucional n.º 45/04, conhecida como "a reforma do Judiciário". Mais tarde regulamentada pela Lei 11.418/06, este instituto prevê que somente será admitido o recurso extraordinário cujo objeto transcenda os limites objetivos dos autos e repercuta na sociedade como um todo.

Desta forma, a sociedade brasileira pode estar condenada a conviver com acórdãos que afrontem a norma constitucional se seus efeitos não configurarem questões relevantes, tampouco oferecerem repercussão geral.

Uma vez que o recurso extraordinário tem por propósito garantir a autoridade da norma constitucional nas decisões dos tribunais inferiores, exigir-se a repercussão geral das questões constitucionais para sua admissibilidade representa absurdo jurídico à medida que reconhece que os direitos debatidos ao longo do processo são desprezíveis se não tiverem o condão de repercutirem na esfera coletiva.

As raízes históricas da organização político-territorial do Brasil impedem a aplicação da repercussão geral, um instituto de forte cunho federalista, quando a República Federativa do Brasil adota um federalismo dissociado de sua concepção original, pois a hodierna estrutura política do Brasil ainda reflete o ponto de vista imperial, a qual compreende como uma unidade, a administração do país, concentrando na mão de um ente central o poder de comando, vide o artigo 22 da vigente norma constitucional que atribui à União o poder soberano de regulamentar as questões mais importantes sob o prisma da "segurança nacional" e "interesse da nação".

Cabe aos Estados somente as questões regionais e residuais, sendo sua autonomia limitada aos poderes da União. Destarte, não pode ser traduzido para nosso sistema jurídico o writ of certiorary dos EUA sem que sejam observadas as raízes ideológicas da organização política do Brasil.

Nos EUA, onde funciona o verdadeiro federalismo, pode-se falar que há questões federais que são relevantes e oferecem repercussão geral e outras não, pois os Estados detêm soberania a ponto de solver internamente todas as questões judiciais sem demandar a interferência da Supreme Court. Esta realmente funciona como órgão político que detém a higidez da norma constitucional federal, que só é alcançada após a infringência a toda norma local.

Já no caso do Brasil, todas as questões constitucionais são relevantes, pois a Constituição Federal é o único diploma normativo supremo e que regulamenta toda a vida social do nosso país. Exigir como pressuposto de admissibilidade que o mérito do recurso extraordinário seja "relevante" e transcenda os limites da demanda soa de forma, no mínimo, juridicamente estranha.

Um Estado Democrático de Direito justo é aquele que consegue compor e administrar os interesses públicos e privados, sem privilegiar um em detrimento do outro. Ou seja, para que a repercussão geral possa vigorar em nosso sistema jurídico, deve sofrer algumas adaptações de forma a homenagear a democracia e a estrutura constitucional.

Uma destas adaptações, talvez a mais importante delas, é a possibilidade de ingresso do amicus curiae no juízo de admissibilidade, pois homenageia o princípio democrático entranhado na Constituição Federal, pois possibilita que toda a sociedade possa participar de um importante julgamento, de interesse geral.

Todavia, esta espécie de assistência deveria ser também viabilizada quando do julgamento do mérito do recurso extraordinário na Turma, já que o regime dos recursos idênticos permite que o tribunal inferior encaminhe apenas uma ou algumas petições de interposição deste recurso extremo, cujo acórdão servirá de decisão-quadro para todos os casos idênticos.

Seria de bom alvitre também que a lei estabelecesse regras e critérios objetivos para que o tribunal inferior encaminhasse os recursos extraordinários que apresentassem teses jurídicas com embasamento consistente, de modo a possibilitar maiores chances de êxito para todos os casos idênticos.

A eleição destas petições de interposição de recurso extraordinário deveria ainda, ser fundamentada, de forma que os contendores em casos idênticos possam controlar e fiscalizar antes as teses a serem apresentadas ao Pretório Excelso, inclusive apresentar recurso.

Com a adoção destas e outras medidas estaria garantida a juridicidade e, consequentemente, o sucesso do instituto da repercussão geral e do regime de processamento de recursos idênticos.


NOTAS

(1)http://www.stf.jus.br/portal/cms/verTexto.asp?servico=estatistica&pagina=movimentoProcessual. Acessado em: 05/04/2009.

(2) RODRIGUES, Lêda Boechat. História do Supremo Tribunal Federal. Tomo I. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1991, p. 1 apud FÉRES, Marcelo Andrade. Processo nos Tribunais Superiores: de acordo com a Emenda Constitucional n. 45/2004. São Paulo: Saraiva, 2006. p. 617.

(3) Resenha contida na obra O Supremo Tribunal Federal em Face da Nova Constituição: questões e perspectivas, Arquivos do Ministério da Justiça, Brasília, jun-set. 1989 apud MANCUSO, Rodolfo Camargo. Recurso Extraordinário e Recurso Especial. 9. ed. versão ampliada e atualizada. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2006. p. 76.

(4) Segundo o Ministro do STF Carlos Velloso, em entrevista concedida ao Conselho Federal da OAB, em 1940 os 11 Ministros do STF receberam 1.807 RE. Em 1997 esse número aumentou para 33.345 e em 1998 foi uma média de 47.319 RE distribuídos aos Ministros do STF.

(5) ALVIM, Arruda. A EC n. 45 e o instituto da repercussão geral, in WAMBIER, Luiz Rodrigues. Reforma do Judiciário: primeiras reflexões sobre a Emenda Constitucional n. 45/2004. São Paulo: RT, 2002. p.63.

(6) MEDINA, José Miguel Garcia, WAMBIER, Teresa Arruda Alvim, WAMBIER, Luiz Rodrigues. Breves comentários à nova sistemática processual civil. 3. ed. São Paulo: RT, 2005, p. 103-104 apud DIDIER JR., Fredie. op. cit. p. 336.

(7) LEAL, Vitor Nunes. Revista de Direito Processual Civil. Vol. 6. pp. 16-17 apud FABRÍCIO, Adroaldo Furtado. Meios de impugnação ao julgado civil: estudos em homenagem a José Carlos Barbosa Moreira. Rio de Janeiro: Forense, 2007. pp. 291-292.

(8) GOMES JÚNIOR, Luiz Manoel. A Arguição de Relevância: A Repercussão das Questões Constitucional e Federal. Rio de Janeiro: Forense, 2001. p.25.

(9) "Artigo 22: Compete privativamente à União legislar sobre: I – direito civil, comercial, penal, processual, eleitoral, agrário, marítimo, aeronáutico, espacial e do trabalho".

(10) Nomenclatura utilizada por DIDIER JÚNIOR, Fredie, CUNHA, Leonardo José Carneiro da. Curso de Direito Processual Civil: Meios de Impugnação às Decisão Judiciais e Processo nos Tribunais. v. 3. 7ª ed. Bahia: JusPODVIUM, 2009, p. 339.

(11) CÂMARA, Alexandre Freitas. Lições de Direito Processual Civil. v. II. 12ª edição. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2006. p. 134.


LISTA DE ABREVIAÇÕES E SIGLAS

AI – Agravo de Instrumento

ADI –Ação Declaratória de Inconstitucionalidade

AMB – Associação dos Magistrados do Brasil

art. – Artigo

CDC – Código de Defesa do Consumidor

CLT – Consolidação das Leis Trabalhistas

CPC – Código de Processo Civil

CRFB – Constituição da República Federativa do Brasil promulgada em 1988

EC – Emenda Constitucional

ED – Embargos de Declaração

EUA – Estados Unidos da América

OAB – Ordem dos Advogados do Brasil

RE – Recurso Extraordinário

REsp – Recurso Especial

RISTF – Regimento Interno do Supremo Tribunal Federal

RISTJ – Regimento Interno do Superior Tribunal de Justiça

ss. – seguintes

STF – Supremo Tribuna Federal

STJ – Superior Tribunal de Justiça

USSC – United States Supreme Court (Corte Suprema dos Estados Unidos da América)


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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__________ Lições de Direito Processual Civil. v. II. 12ª edição. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2006.

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DIDIER JÚNIOR, Fredie, CUNHA, Leonardo José Carneiro da. Curso de Direito Processual Civil: Meios de Impugnação às Decisão Judiciais e Processo nos Tribunais. v. 3. 7ª ed. Bahia: JusPODVIUM, 2009.

DINIZ, Maria Helena. Compêndio de Introdução à Ciência do Direito. 15ª ed. São Paulo: Saraiva, 2003.

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___________ Código Civil Comentado. 6ª ed., ampl. e atual. até 28 de março de 2008. São Paulo: RT, 2008.

___________ Leis Civis Comentadas: atualizado até 20 de julho de 2006. 2ª tiragem. São Paulo: RT, 2006.

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Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

MOREIRA, Marcelo Alves Henrique Pinto. A crise do Supremo Tribunal Federal. A repercussão geral e o regime de processamento de recursos idênticos como medidas de solução. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 14, n. 2180, 20 jun. 2009. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/13004. Acesso em: 26 abr. 2024.