Este texto foi publicado no Jus no endereço https://jus.com.br/artigos/13043
Para ver outras publicações como esta, acesse https://jus.com.br

A concepção de responsabilidade civil e a tutela dos direitos extrapatrimoniais.

Algumas indagações e considerações

A concepção de responsabilidade civil e a tutela dos direitos extrapatrimoniais. Algumas indagações e considerações

Publicado em . Elaborado em .

SUMÁRIO: I. Introdução. II. A limitação da concepção clássica de responsabilidade civil e sua construção histórica. III. A inexistência de um conceito de responsabilidade civil. IV. A definição de ato ilícito e suas consequências práticas. V. A situação dos direitos extrapatrimoniais. VI. Para construir uma nova responsabilidade civil. VII. Considerações em remate. VIII. Referências bibliográficas.


I. Introdução

A situação em que se encontra a responsabilidade civil nos dias atuais é fruto do entendimento das formas de tutela a que ela se propõe a atender. A perquirição da abrangência, da gênese e das suas novas fronteiras se impõe como um objeto de estudo gratificante e desafiador.

O assunto é da mais fina estirpe do Direito mundial. Para tanto, é importante vermos a opinião de verdadeiros clássicos, como Aguiar Dias, Ovídio Baptista, e de novas e felizes vozes, como Gustavo Tepedino e Eros Roberto Grau, além de outros. Contudo, sem a todo tempo esquecer opiniões que formaram e formam o pensamento nacional, como Caio Mario. Como se depreende dos autores citados, o assunto extrapola os títulos cotidianos do Direito Civil.

O espaço milimetrado do presente texto é apenas em seu aspecto físico (as linhas contadas). Contudo, o conteúdo é vasto, não por dotes da autoria, mas pela grandeza do tema. Espera-se, com o apontamento das questões aqui esboçadas, que o artigo supere a limitação fria do papel e seja útil para ajudar ao leitor formular indagações – nosso objeto de trabalho e propulsor do desenvolvimento da ciência.


II. A limitação da concepção clássica de responsabilidade civil e sua construção histórica

A noção manualista de responsabilidade civil é sinônima de tutela ressarcitória (prover o equivalente pecuniário daquilo que fora lesado) e de tutela reintegratória (restituir em espécie igual ao objeto da lesão, retornando-se ao estado anterior). Contudo, ambas as tutelas baseiam-se somente em dano. O cerne dessa limitação está delineado na evolução da responsabilidade civil. Na verdade, desde o inicio, a sociedade sempre encontrou soluções, satisfatórias ou não, para os seus problemas. Nos primórdios da civilização a vingança privada era a solução comum ante as agressões alheias. A proporção era esquecida em favor do mais forte. Outra solução foi a inserção da proporcionalidade sob a regra jurídica do Talião (ungindo uma certa proporcionalidade na resposta à agressão sofrida). Mais adiante se insere a composição como prestação da poena e obrigatório perdão do ofendido. De logo, a aceitação da composição foi voluntária, à critério do ofendido; mais adiante, tornou-se obrigatória, fixada pela autoridade. A intervenção da autoridade foi gradativa à evolução da lesão dentro do sistema jurídico. A autoridade punia os ataques a ela mesma. Depois, entendeu-se socialmente relevante o ataque ao particular, desde que perturbasse à ordem pública [01].

Pois bem. Até o momento em que não podíamos diferenciar categorias de lesão, não se havia como falar em diferenciação entre responsabilidade civil e penal. A pena era a forma de reparação comum a todas as ofensas.

Como resultado da intervenção da autoridade estatal na reparação do dano, a lesão é a diferenciada em duas categorias: lesão dos delitos públicos (relacionada à ordem pública) e lesão dos delitos privados (relacionada aos indivíduos). Mais adiante, com a lei aquília, há uma superação do delito privado. A consequência imediata dessa evolução é a tomada definitiva pelo Estado do poder de punir e a instituição do direito subjetivo da ação de indenizar.

Como efeito da prática da interpretação da lei aquília, ampliou-se o conceito de dano. O que, de início, pela casuística e literalidade da lei aquília, era a simples identificação do dano com a ação da pessoa ofensora. Contudo, a atividade que era corpore corpori datum (exigência de contato material entre o autor do dano e a coisa por ele atingida), passou a abranger outras relações damnum non corpore datum, extrapolando a noção de dano diretamente causado pelo ofensor, ou melhor, pelo responsável. Acontece que aqui não havia ainda uma noção abstrata de ato ilícito [02]. Havia no Direito romano uma alusão a determinados atos, especificamente nominados, e que respondiam sobre o nome jurídico de delitos civis, dando origem à nomenclatura de responsabilidade ex delicto. Essa se atrelava umbilicalmente à tipicidade dos atos, deixando insuficientemente tutelados certos interesses. A superação da atividade corpore corpori datum, significou, inicialmente, a aceitação da figura do quase ex delicto, sendo forma de equiparação do prejuízo sofrido pelo indivíduo ao proveniente do delito – quase ex malefitio teneri videtur (conforme Pereira, 2000, p. 417). Com isso partiu-se para uma longa jornada em prol da reparação, adotando-se noções auxiliares como assistência, previdência e garantia, fugindo-se da tipicidade dos delitos romanos. E essa foi a linha aprofundada pelo direito francês.

Contudo, a decorrência dessa evolução foi a unificação das categorias de lesão. O direito posterior à lei aquília instituiu o ilícito como fonte da obrigação de reparar. Ao lado do delito e do contrato, juntou-se a lei, elevando-se à enésima potência as hipóteses de reparação. No entanto, isso forçou uma unidade do tratamento para todas as categorias de obrigação.

O conceito clássico de responsabilidade civil é fundado em seus requisitos, quais sejam: (a) conduta antijurídica – sinônimo de contrariedade ao direito; (b) existência de dano – no sentido estrito de resultar do ato ofensor em uma lesão ao bem jurídico tutelado; (c) nexo de causalidade – o estabelecimento de uma relação causal entre a conduta do agente e a existência do dano.

Qualquer que seja o conceito pautado nos requisitos acima enumerados abandonar-se-ão outras formas de tutelas que não sejam a ressarcitória e a reintegratória. Ocorre que nem todas as formas de tutelas dirigem-se diretamente ao dano, tal como nem todas as formas de responsabilidade questionam o elemento subjetivo.

Para entendermos a amplitude dessa afirmação, devemos, de início, questionar a existência de um conceito de responsabilidade civil.


III. A inexistência de um conceito de responsabilidade civil

É exatamente esse o momento propício para questionar a abrangência do conceito manualista de responsabilidade civil. De logo, deve ficar claro que é bastante questionado se falar em um conceito de responsabilidade civil.

Ao adentrar a uma reflexão teórica do que seja um conceito formam-se alguns elementos de discussão indispensáveis.

Como forma de delinear a discussão apresenta-se de grande importância o pensamento de Eros Roberto Grau, sintetizando um matiz doutrinário de inspiração européia sobre o que é conceito e noção. Para este estudioso, ao afirmar que não existem conceitos indeterminados, nasce a problemática do que é conceito. A indeterminação apontada em relação a eles não é dos conceitos (idéias universais), mas em relação às expressões (termos). Todo conceito é suma de idéias que, para ser conceito, tem de ser, no mínimo, determinada; o mínimo que se exige de um conceito é que seja determinado. Se o conceito não for, em si, uma suma determinada de idéias, não chega a ser conceito (Grau, 2002, p. 210).

A importância desse estudo é, quanto à gênese do equívoco da doutrina que aceita o conceito indeterminado, a confusão entre conceito e noção. Pois, segundo o autor:

Deveras, a questão da indeterminação dos conceitos resolve-se na historicidade das noções – lá, onde a doutrina brasileira erroneamente pensa que há conceito indeterminado, há, na verdade, noção. E a noção jurídica deve ser definida como ‘idéia que se desenvolve a si mesma por contradições e superações sucessivas e que é, pois, homogênea ao desenvolvimento das coisas’ [Sartre]. (Grau, 2002, p. 211)

A questão é que o conceito [03] é ahistórico e atemporal, enquanto o fattispecie ou conceitos tipológicos, é, por si, histórico e temporal, por que acompanha simultaneamente o desenvolvimento das coisas. Como síntese, os conceitos jurídicos são (i) meramente formais (abstratos e dissociados da realidade histórica), (ii) regulae juris (sintetizam o conteúdo de um conjunto de normas jurídicas – não padecem de qualquer indeterminação) e (iii) os tipológicos ou fattispecie (não são verdadeiramente conceitos, mas noções, pois sua construção está em movimento).

Disso, a melhor definição para a qualificação da responsabilidade civil não seria em forma de conceito, mas em forma de noção. A responsabilidade civil é uma idéia que se desenvolve ao longo do tempo por meio de contradições, condensadas sobre a forma de problemas, que se impõem aos seus operadores, forçando a busca de uma superação gradativa de óbices, lacunas e espaços de não-abrangência. A responsabilidade civil de hoje não é a de amanhã, nem muito menos a de ontem. A abrangência da noção de responsabilidade civil é temporal e histórica e calcada na superação de problemas de ordem estrutural do desenvolvimento da ciência jurídica. E, daí, começa o questionamento sobre a edificação de uma noção de responsabilidade civil que abarque todas as formas de tutelas garantidas pelo direito material.

Como revela Aguiar Dias, ao tratar da insuficiência das formas de tutela processual dos direitos materiais,

Este fato revela mais uma vez a pobreza de técnica em face da pujança da evolução da sociedade, exigindo a readaptação das normas jurídicas às situações novas. Filosoficamente, não é possível conceber responsabilidade sem culpa. A obrigação civil decorrente de responsabilidade civil, se, sacrificados à tirania das palavras, quisermos guardar a significação rigorosa do termo, só pode ser entendida como consequência da conjugação destes elementos: imputabilidade mais capacidade. (Dias, 1995, p .12)

Podemos, após constatar a insuficiência das formas de tutela em relação a direitos que extrapolem o simples ressarcimento ou reintegração, esboçar uma divisão entre tutelas repressivas e preventivas do ilícito. Aqui se inicia o ponto que justificou a responsabilidade objetiva como desvinculação do dever de reparar à idéia de culpa. E na mesma linha de evolução, veio a consolidação da responsabilidade civil pela simples existência do ilícito, como desvinculação da idéia de dano, seja patrimonial ou extrapatrimonial. Da mesma forma que inexiste na responsabilidade objetiva a necessidade de questionar culpa, inexiste na responsabilidade civil preventiva a necessidade de questionar dano.

Sendo assim, agora, o ponto central da discussão passa a ser a noção de ilícito, juntamente com a sua implicação sobre as categorias do dano.


IV. A definição de ato ilícito e suas consequências práticas

Primeiramente, ao contrário do Código Civil anterior, o atual cuida da conceituação de ato ilícito. O art. (artigo) 186, que revalida o antigo 159, tem o cuidado de conceituar ato ilícito como sendo aquele que violar direito e causar dano a outrem, ainda que exclusivamente moral. Da mesma forma, vem o art. 187, quando anuncia como ilícito o exercício de um direito que manifestadamente exceder os limites expostos pelo seu fim econômico ou social, pela boa-fé ou pelos bons costumes. Ainda no mesmo sentido, vem o art. 188, ao conceituar de forma inversa os atos ilícitos, excetuando os atos praticados em legítima defesa ou no exercício irregular de um direito reconhecido; a deterioração ou destruição de coisa alheia, ou a lesão a pessoa, a fim de remover perigo eminente.

Da conceituação legal podemos tirar várias consequências, a começar: (a) o ato ilícito é contrário ao direito, pois tem como efeito a sua violação; (b) é ato ilícito o abuso do direito, tendo como parâmetros os limites do fim econômico ou social, a boa-fé e os bons costumes. A primeira observação deve ser bastante esmiuçada a ponto de verificarmos, de início, a imprecisão da vinculação de violação de direito a dano a outrem, ao contrário da dicção do antigo art. 159. É bem real a desvinculação do ato ilícito do dano, pois, existe dano sem ilícito e ilícito sem dano.

Quais as consequências práticas dessa observação? A primeira é que entender o ilícito como vinculado ao dano conduz à estaca zero toda a fundamentação da tutela preventiva. Essa se baseia no conceito de ilícito como contrário ao direito, não se preocupando com o dano para ser efetivada. É claro que se pode pensar em tutela preventiva com a mensuração do dano. Contudo, é a mesma gravidade de se pensar a questão da aplicação da responsabilidade objetiva com culpa, pois não é necessário questioná-la.

Para elucidar a importância da desvinculação da ilicitude e do dano, basta-nos ponderar os problemas que nos trouxe a unificação das categorias da responsabilidade civil em um só módulo constituído por ilícito, culpa e dano.

A concepção clássica de responsabilidade civil estrutura-se sobre o requisito do dano. Contudo, o dano é próprio de apenas duas das situações referentes à responsabilidade civil – tutela ressarcitória e reintegratória. O termo responsabilidade civil não se esgota em sua atribuição de tutelar situações de direito material relacionadas com as tutelas ditas ressarcitória e reintegratória. Existe, além do dogma do dano, a responsabilidade civil pelo simples ilícito. Se fosse diferente, ficariam completamente descobertas várias situações onde não houvesse dano, pelo menos imediato, a ponto de configurar plausível a adoção de medidas de efetividade por parte do Estado-Juiz.

É certa em nosso sistema constitucional a existência de direitos elevados a tão alto grau de proteção (apelidados juridicamente de direitos invioláveis) que obrigam aos mecanismos de responsabilização alcançarem situações de afronta sem considerar o elemento material denominado de dano. É o caso dos direitos da personalidade, constitucional e infraconstitucionalmente considerados como invioláveis. Denominar um direito ou interesse de inviolável é conferir-lhe um atributo de proteção no mais alto nível de eficácia. Tal eficácia não pode ser medida do ponto de vista somente reparador, mas, principalmente, pela potencialidade de garantir a força do dispositivo constitucional de atribuir-lhe intocabilidade, inviolabilidade. Talvez a palavra que melhor se adeque ao jogo conceitual estabelecido entre dano e inviolabilidade do direito seja integralidade. Manter um direito em estado integral é não retirar dele nenhuma parte, pois, no caso de um direito inviolável, retirar significa torná-lo substancialmente imprestável. Não se recompõe a substância do direito da personalidade. São raríssimos os casos em que se pode falar em uma tutela em espécie dos direitos extrapatrimoniais [04], limitando-se a poucas situações de dano já efetivado.

Não é à toa que o art. 927 fala da obrigação de reparar, e no mesmo sentido enunciam vários outros artigos do Código. Contudo, quando quer se referir à tutela preventiva enunciada no art. 21 providências para impedir ou fazer cessar ato contrário a esta norma.

A instituição da lei como fonte obrigacional ao lado do contrato trouxe repercussões profundas na conceituação da responsabilidade civil. A maior de todas as consequências é certamente a mistura das categorias de ilícito com os delitos contratuais como fonte da obrigação de reparar o dano. Junte-se a isso a sublimação medieval da reparação de danos como vala-comum da responsabilização civil.

Outro elemento que deve ser observado em relação ao conceito de ato ilícito é o subjetivo (culpa e dolo). O próprio art. 186, caso fosse entendido de forma descontextualizada, decorreria na aplicação uníssona da responsabilidade civil sobre a modalidade subjetiva. Tal leitura comportaria um equívoco. Da mesma forma da evolução da responsabilidade civil objetiva, a trajetória do ato ilícito não exige a coexistência de culpa. A dimensão de imputabilidade do agente pode ser desconsiderada para a conceituação do ilícito. Imputabilidade no sentido de atribuir o resultado antijurídico à consciência do agente é contrária à noção de ilícito como violação ao direito. A falta de imputabilidade não constitui forma de descaracterizar o ilícito, mas, em alguns casos, é elemento desconstituinte do dever de reparar. Pode haver ilícito sem culpa. O nosso C. C. dá exemplo da responsabilidade sem culpa ao dispor sobre a obrigação de reparar daquele que agiu em estado de necessidade. É o exemplo clássico de quem encontra o muro com o pára-choque de seu carro ao livrar-se de atropelar uma criança que corre para o meio da rua de repente.


V. A situação dos direitos extrapatrimoniais

A primeira constatação ao falar-se em direitos não-patrimoniais é que não é seguro limitá-los. Desde o início do esforço da vida em comum, o homem tem demonstrado o seu fascínio pela taxionomia das coisas. Dividir, classificar, reduzir a formas é próprio daqueles que esperaram prever o futuro em fórmulas. Não foi diferente com o direito. A divisão clássica entre direitos públicos e privados é bem sintomática dessa patologia. Nesse sentido temos hoje a classificação em direitos difusos, coletivos estritos e individuais homogêneos, superando qualquer adoção do critério binário dos direitos. Temos ainda a divisão em direitos patrimoniais, separados em direitos reais e em direitos obrigacionais, e, de outro lado, os direitos ditos extrapatrimoniais, subdivididos em direitos da personalidade, da família e corporativos. Ou, ainda, os direitos ditos mistos, por serem de ambos os campos, como insistem em chamar os direitos sucessórios.

Contudo, a fórmula de atrelar a classificação do direito ao conteúdo patrimonial que ele revela é falha. Qualquer direito do tipo não-patrimonial pode tornar-se patrimonial à medida que a forma de tutela seja meramente ressarcitória. Frustrada ou esquecida a forma de tutela preventiva do direito não-patrimonial, resta somente a sua transformação em patrimônio, sobre a guisa mercadificante dos danos morais.

Então, em termos terminológicos, seria mais seguro falar-se em direitos extrapatrimoniais, por, inicialmente, extrapolarem a mera relação patrimonial-mercadológica.

No entanto, se fôssemos tomar como comparação os direitos que são enunciados como patrimoniais e os extrapatrimoniais, não poderíamos concluir uma relação direta entre ambos, por que eles não se encontram no mesmo plano existencial e lógico. Os direitos patrimoniais são próprios de uma fungibilidade ou equivalência. Seja por que podem ser entregues no mesmo gênero, espécie e quantidade em que foram lesados, como no caso exemplar do dinheiro, seja por que podem ser reduzidos a um ou mais equivalentes. Ao contrário, os direitos extrapatrimoniais não são passíveis, em sua ontologia, de serem restituídos ou ressarcidos. Haveria, pois, impossibilidade de comparação.

Os direitos extrapatrimoniais são dotados intrinsecamente do atributo da absoluta imposição de sujeição. São, por isso, denominados de direitos com sujeitos passivos totais, direitos absolutos. Podem ser opostos a toda e qualquer pessoa. O direito subjetivo [05] decorrente da tutela de um direito extrapatrimonial não precisa de condição ou termo para dotá-lo de exigibilidade. Assim, a pretensão (exigibilidade) nasce ao mesmo tempo do direito subjetivo.

Do ponto de vista constitucional, devido à ação que exerce sobre as normas infraconstitucionais, a C. F. (Constituição Federal) apresenta-se como fonte primária e primerva do ordenamento civil. O Direito Civil, tendo em vista a sua ligação com o Direito Constitucional, é adequadamente denominado de Direito Civil-Constitucional.

Contudo, uma análise do Direito Civil atual não pode ser feita sem noção das bases de sua estruturação, pois, como propôs Gustavo Tepedino, ao apontar a singularidade do momento da entrada em vigor do novo Código, é necessário dizer que

A doutrina debruça-se na tarefa de construção de novos modelos interpretativos. [...] Afinal, o momento é de construção interpretativa e é preciso retirar do elemento normativo todas as suas potencialidades, compatibilizando-o, a todo custo, à Constituição da República. [...] Ao revés, parece indispensável manter-se um comportamento atento e permanentemente crítico em face do Código Civil para que, procurando conferir-lhe a máxima eficácia social, não se percam de vista os valores consagrados no ordenamento civil-constitucional. (Tepedino, 2002, p. 113)

A instituição das inovações do C. C. atual deve ser apurada como forma da ampliação das hipóteses de tutelas atípicas dentro da responsabilidade civil voltada à prevenção. A adoção das cláusulas gerais constituiu uma vantagem e a superação da discussão pontual de cada item do tema, atribuindo ao legislador a utilização de enunciados genéricos. Assim, a codificação exerce uma definição dos parâmetros hermenêuticos, não se limitando simplesmente a descrever condutas. A cláusula geral é um recurso interpretativo que tenta dar ao direito maior campo de abrangência do que teria em uma mera enumeração casuística. É uma tendência legislativa, principalmente, depois da C. F., a qual já foi referida em seu conteúdo axiológico. Dessa forma, as cláusulas gerais deverão ser aplicadas em decorrência da lógica da solidariedade constitucional e da técnica interpretativa contemporânea.


VI. Para construir uma nova responsabilidade civil

Mesmo dentro de todas as observações expostas, grande parte dos aplicadores do direito brasileiro, principalmente parte da doutrina vassala do sistema anterior de (des)proteção dos direitos extrapatrimoniais, tenta ignorar a edição de uma conjunto normativo de tutela de situações atípicas. Ainda assim, quando aceita a proteção, circunda-se somente nos deveres negativos, deixando de lado os deveres positivos. O dever negativo é mostrado sob a forma direta da abstenção. Mas, quanto ao dever positivo, aquele que obriga implementar um fazer para obstar, parar ou não repetir o ilícito, continua a doutrina apontando para um conjunto de obstáculos teórica e legislativamente já superados.

Os direitos da personalidade tiveram o tratamento mais consolidado no Código de 2002. Isso é sentido na disposição da nova situação legislativa dos direitos da personalidade. Tais direitos, antes do Código novo, foram construídos no campo jurídico brasileiro em base das contribuições doutrinárias e na seguida evolução jurisprudencial. Foram elementos impulsionadores dessa alavancada a força de leis especiais e depois a incisiva menção de dispositivos constitucionais, principalmente os que tratam dos direitos fundamentais e a maior cláusula geral da nossa Constituição – o princípio da dignidade da pessoa humana (art. 1º, inciso III).

Em termos do Código novo, duas cláusulas gerais tratam diretemente dos direitos da personalidade, situadas nos arts. 12 e 21. O art. 12 prevê a tutela dos direitos da personalidade que tenha como objetivo a repressão da lesão. É uma situação onde já houve ou está em ameaça de haver lesão. É caso, pois de tutela de ressarcimento, própria das perdas e danos. Em relação ao art. 21 temos uma definição da tutela de prevenção do ilícito. É uma situação voltada para a prevenção, onde o dano é elemento desconsiderado de todo. A tutela volta-se para impedir o início, a continuação ou a repetição do ilícito. Aqui a tutela não pressupõe nem objetiva o ressarcimento, mas a prevenção. Não é preciso dizer que esse dispositivo não tem correlato no Código anterior.

O importante de se dizer diante dessas duas cláusulas gerais é que podemos hoje, com lastro na edificação de uma ordem jurídica nacional, falar em traços de uma teoria geral da tutela dos direitos da personalidade.

O primeiro elemento justificador de tal teoria geral é a existência de preceitos que formam um conjunto de vasos comunicantes, delineadores do corpo sustentador da tutela atípica da personalidade, principalmente em sua faceta ontológica de prevenção. A primeira fonte desta teoria é a Constituição Federal, principalmente nos os arts. 1º, III (a dignidade humana como valor fundamental da República), 3º, III (igualdade substancial) e 5º, § 2º (possibilitador do caráter aberto de todos os direitos da personalidade).

A questão que se impõe é constatar a impossibilidade de se formular uma tipificação dos direitos da personalidade ou a sua redução a um tipo-legal, exemplificado por um artigo ou conjunto de artigos, ou até mesmo de leis que tratam do tema. Como assinala magistralmente Tepedino,

Permanecem os manuais brasileiros, em sua maioria, analisando a personalidade humana do ponto de vista exclusivamente estrutural (ora como elemento subjetivo da estrutura das relações jurídicas identificadas com o conceito de capacidade jurídica, ora como elemento objetivo, ponto de referência dos direitos da personalidade) e protegendo-a em termos apenas negativos, no sentido de repelir agressões que a atingem. Reproduz-se, desse modo a técnica do direito de propriedade, delineando-se a tutela da personalidade de modo setorial e insuficiente. (Tepedino, 2002, p. 117)

A justificação de uma teoria geral dos direitos da personalidade é enfatizar o caráter integralizador do tipo de hermenêutica própria ao caso. Não se pode pensar uma forma de interpretação dos direitos da personalidade que se restrinja a uma parte, uma nuança, um ângulo do direito. Como aponta o professor Eros Roberto Grau, Não se interpreta o direito em tiras (Grau, 2002, p. 113).


VII. Considerações em remate

Como forma de arrematar essas breves considerações, podemos encerrar apontando a limitação da concepção clássica de responsabilidade civil - não mais abrangendo todas os direitos materiais concedidos pela ordem constitucional -, e sua construção histórica – como justificadora de uma cultura de tutela voltada exclusivamente para o ressarcimento ou reintegração. Depois, resta-nos aceitar como ponto elementar de qualquer consideração, a inexistência de um conceito de responsabilidade civil, sendo muito mais própria a qualificação de noção (idéia em movimento, fundada sobre contradições, que geram problemas que forçam sínteses).

Não podemos esquecer que a definição de ato ilícito trouxe consequências práticas indissolúveis da discussão da tutela preventiva, principalmente se tivermos como norte a situação dos direitos extrapatrimoniais e a sua respectiva tutela constitucional e infraconstitucional. Se houvesse espaço para uma conclusão, propor-se-ia que é necessário construir um uma nova responsabilidade civil, não simplesmente pela edição de um novo Código, mas pelo desnudamento de uma nova ordem jurídica que necessita se efetivar, longe da opinião doutrinária dos falsos clássicos, que desejam cristalizarem-se, e perto do espírito da efetividade e dos novos horizontes e exigências do direito material.


VIII. Referências bibliográficas

COELHO, Francisco Manuel Pereira. O problema da causa virtual na responsabilidade civil. Coimbra: Livraria Almedina, 1998.

DIAS, José de Aguiar. Da Responsabilidade Civil. Rio de Janeiro: Forense, 1995. Vol. 1.

DINIZ, Maria Helena. As lacunas no direito. 7 ed., São Paulo: Saraiva, 2002.

FRANÇA, Edílson Alves de. Responsabilidade civil objetiva: das discussões teóricas ao Código de Defesa do consumidor. Revista Jurídica In Verbis, nº 14, pág. 139-151, agosto/dezembro, 2002.

GRAU, Eros Roberto. Ensaio e discurso sobre a interpretação/aplicação do direito. São Paulo: Malheiros, 2002.

PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de Direito Civil. 19 ed., São Paulo: Forense, 2000. Vol. 1.

SILVA, Ovídio Araújo Baptista da. Curso de Processo Civil (processo de conhecimento). 5 ed., São Paulo: Revista dos Tribunais, 2000. Vol. 1.

TEPEDINO, Gustavo. Crise de fontes normativas e técnica legislativa na Parte Geral do Código Civil de 2002. In Revista Forense, vol. 364, pág. 113-123.


Notas

  1. A ação dessa concepção pode ser claramente sentida na edificação de duas Escolas da responsabilidade civil: uma francesa (instituída sobre a responsabilidade civil como fundada na ordem pública); outra belga (instituída sobre a responsabilidade civil como fundada no interesse privado, sobre o manto da vontade).
  2. Esse ponto será retomado adiante de forma mais detalhada.
  3. Na mesma linha da ahistoricidade e atemporalidade do conceito como fonte de equívoco rotineiro no estudo do Direito, aponte-se o professor Ovídio A. Baptista da Silva, principalmente em sua obra sobre a Sentença Liminar, e, também, em suas palestras, a qual se mencione o recente minicurso realizado em Natal/RN, auditório da Faculdade Natalense para o Desenvolvimento do Rio Grande do Norte (FARN), em março de 2003.
  4. A legislação italiana ordena a publicação da sentença em meios de comunicação além do oficial em alguns casos de violação de direitos extrapatrimoniais. A doutrina daquele país, por seu lado, entende nessa exigência uma forma de reparação in natura de direitos extrapatrimoniais. Aqui no Brasil há entendimentos semelhantes, embora não haja a obrigação de publicação da sentença fora da publicização normal dos julgados e de sua publicação na imprensa oficial.
  5. Em termos genéricos, o direito subjetivo é entendido como faculdade de exercer o poder que a lei concede. E, caso verificada a condição ou ocorrido o termo, surge para o titular do direito subjetivo o poder de exigir a satisfação (pretensão) da obrigação e para o sujeito passivo o dever de satisfazê-la. Acontece que nos direitos absolutos não precisa haver uma situação posterior que dote o direito subjetivo de exigibilidade, ele mesmo, desde o início, já é dotado de pretensão, e, assim, se impõe sem condição ou termo que o preceda.

Autor


Informações sobre o texto

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

MOURA, Antonio Gleydson Gadelha de. A concepção de responsabilidade civil e a tutela dos direitos extrapatrimoniais. Algumas indagações e considerações. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 14, n. 2185, 25 jun. 2009. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/13043. Acesso em: 26 abr. 2024.