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Juntos na aventura: a amizade e os contratos de "joint venture".

Partindo da obra "A Amizade", de Francesco Alberoni, chegando ao filme "Thelma e Louise", de Ridley Scott

Juntos na aventura: a amizade e os contratos de "joint venture". Partindo da obra "A Amizade", de Francesco Alberoni, chegando ao filme "Thelma e Louise", de Ridley Scott

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O amor nasce de um súbito, a amizade em filigranas. O amor morre de cansaço, a amizade de um tiro. A forma como se nasce um, morre-se o outro. No entanto, ambos são espécies do amor, do amor mais alto, daquele que move as estrelas e faz cintilar os astros, bases fundantes da rotação e da transladação da vida. Romeu e Julieta, Marx e Engels, quais deles estão anelados pelo amor maior? Medição impossível. No entanto, algo é certo: de todas as espécies de amor, a mais ética é a amizade. E por ser a mais ética, não suporta traições, não sustenta mentiras. O verdadeiro amigo é aquele que nunca precisou pedir desculpas... A menos que tenha agido por engano. No amor trai-se, mente-se e perdoa-se, não sem dor. Na amizade essa dor é o sintoma de seu fim inexorável. O amor é arrebatamento, revelação iluminada das cataratas, a amizade é um lago tranqüilo, de águas calmas. E a água das cataratas, após a fúria de sua queda, aconchega-se em um lago para continuar a ser água, para perenizar-se, sob pena de perder-se, evaporar-se: "o amor para durar, tem de ser também confiança, também estima. Isto é, deve adquirir algumas das propriedades da amizade" (ALBERONI, 1994). No amor, o outro é aquele através do qual experimentarei um grande prazer, através do qual chegarei à plenitude dos sentidos. Na amizade o outro é um fim em si mesmo, se terei algo através dele, isso será apenas contingencial, não a razão de caminharmos juntos... Essas são apenas algumas das conclusões a que chegamos ao lermos e deliciarmo-nos com a bela obra do sociólogo italiano Francesco Alberoni A Amizade. E apesar desse grande autor sustentar que as relações de amizade não se estabelecem no âmbito do utilitarismo liberal próprio do sistema capitalista, será através de seus fundamentos (acerca da amizade) que iremos analisar os contratos empresariais de joint venture.

O jurista Sérgio Le Pera (apud BASSO, 1998) assim conceitua a joint venture: "qualquer acordo empresarial para a realização de um projeto específico, independentemente da forma jurídica adotada". Maristela Basso (1998) assegura que "a característica essencial da joint venture é a realização de um projeto comum, empreendimento (aventura específica) cuja duração pode ser curta ou longa". Nota-se estar esse tipo contratual na seara dos contratos atípicos na ordem jurídica civil pátria. A liberalidade in casu se expressa de maneira plena e acentuada, formalmente livre, assim como a autonomia da vontade das partes. Como sói ocorre nas relações de amizade: existe-se integralmente sem o amigo, tem-se uma personalidade e uma vida constituída, mas ao reconhecermo-lo "amigos não se fazem, se reconhecem" (Vinícius de Moraes) como um parceiro que pouco a pouco vai nos dando as mãos para nos ajudar a tomar algo que está além de nós dois, desenha-se a amizade, a joint venture. Diversamente do amor-paixão, não se diz que não se vive sem o amigo, ou que se precisa do amigo para ser-se o que se é. O amigo é aquele que nos mostra um espelho no qual vemos a nossa imagem mais essencial, o nosso eu sem simulacros e nos diz: "vai!". Ou então: "você é você, eu sou eu e, por isso, vamos!". No contrato de joint venture, as empresas co-ventures existem independentemente uma da outra, desenvolvem as suas atividades próprias, mas reconhecem uma na outra a possibilidade de ampliação, de consecução de novas conquistas. Essa escolha é meticulosa, atravessa provas cada vez mais difíceis. As assimetrias, muitas vezes, podem estar presentes, não importa, tudo é superável desde que prevaleça a lealdade. Nada é à primeira vista, a paisagem onde vai sendo selada a união,vai-se pincelando na medida em que se dão as identificações e as solidariedades. Consolidada a venture, ao indagar-se a uma das empresas porque escolhera aquela e não outra, a tentativa de resposta será insuficiente, inconclusiva, já que outras empresas poderiam apresentar as mesmas características que a eleita. Talvez a resposta final para o porquê da celebração de uma determinada joint venture seja a mesma dada pelo escritor francês Montaigne para a razão de sua forte amizade com o, então, já falecido La Boétie, resposta dada após uma década de reflexão: "Porque era ele, porque era eu". Mesmo que existam especificidades de cada empresa e, mesmo, desigualdades entre as mesmas, a joint venture procura integralizar essas lacunas, essas assimetrias, com contrapesos. Assim como na amizade, as co-ventures precisam estar em condições semelhantes e compatíveis. No primeiro caso, se não o fora, poderia ser um outro tipo de relação e, mesmo de amor, como aquela que envolve pais e filhos, o beneficiado e o seu benfeitor, os amantes, mas não amizade. Platão na sua obra "O Banquete" sustenta que a amizade é a maior expressão do amor, por ocorrer entre iguais ou semelhantes. A joint venture estará fadada ao fracasso diante de uma assimetria estrutural e incontornável. Fatalmente não prosperará, pois nas palavras de Basso (1998) "as partes, independentemente do volume de recursos aportados, dividem igualitariamente entre si as responsabilidades pela condução do projeto comum".

Apesar de muitas das joint ventures serem de natureza contratual, as denominadas non corporate joint ventures, geralmente destinadas a um projeto temporário de curto ou médio prazo, as corporate joint ventures, as joint ventures que fazem gerar uma pessoa jurídica separada das co-ventures, são freqüentes nas aventuras de longo prazo, de intenção permanente entre as empresas. São exemplos dessas últimas a empresa Airbus que constrói componentes, faz a montagem e comercializa aviões, a Ásia Pacific Breweries Ltd., joint venture que a fabricante holandesa de cerveja Heineken tem com a companhia australiana Fraser and Neave e a AT&T Multimídia Brasil, empresa criada por uma joint venture feita entre a AT & T e SID TELECON [01]. Diante desse fenômeno, o nobre leitor, poderá inferir que aqui estaria descaracterizada a analogia que se procura fazer entre esse tipo contratual e a amizade, por ocorrer a mistura entre as empresas, gerando-se uma nova, mesmo que mantendo-se a existência das pessoas jurídicas originárias... Mas o que dizer dos Irmãos Grimm, de Marx e Engels, dos Irmãos Cohen? São amigos que a história de suas vidas nos mostra que se uniram para uma determinada atividade e que, de tão unidos, chegaram a confundirem-se e a, fenomenologicamente, formarem uma só entidade, uma só empresa. Afinal qual o nome de cada um dos escritores de contos infantis, dos irmãos Grimm? Os nomes de Marx e Engels estão tão fundidos que ao lê-los parece-nos que estamos diante da palavra "Coca-Cola", mutatis mutandis, um como símbolo da ideologia socialista, outro como objeto ícone do capitalismo. Quem são os diretores de filmes de cinema, os irmãos Cohen, que estão por detrás de vasta filmografia, quem faz ou deixa de fazer o quê na consecução da obra cinematográfica? O exemplo mais emblemático do que seria uma "corporate joint venture" na órbita das amizades talvez seja o do escritor de tramas policiais, Ellery Queen. Ellery Queen nada mais, nada menos é, do que o heterônimo criado pelos dois primos Daniel Nathan e Maniord Lepofsky para a autoria das suas obras literárias escritas em comum... Durante anos e anos, os seus fiéis leitores acreditaram que os livros fossem escritos por um só autor e, até hoje, muitos continuam confusos... Inevitável registrar-se esse caso como uma amizade nos moldes semelhantes a uma corporate joint venture muito bem sucedida. Uma outra interseção entre as relações de amizade e os contratos de joint venture é que ambos apenas frutificam quando as partes que as integram já foram lançadas à roda dinâmica da vida. Os amigos se encontram enquanto estão em movimento, com planos, projetos, sonhos, mesmo que em idade tenra, mas já são seres individualizados. O mesmo se dá com as joint ventures, essas associações não ocorrem entre empresas que ainda estão para nascer, ou entre uma já estabelecida e outra ainda não constituída. São empresas que já trilham seus próprios caminhos, estão em efusão e decidem, entre si, seguir parte desse caminho, longo ou curto, permanente ou temporário, de mãos dadas. Frisar, uma vez mais, a imprescindibilidade do equilíbrio entre as partes em uma joint venture, não é excessivo. Mesmo ao se tratar de uma joint venture onde apenas uma delas aporta capital, ainda assim, não carecerão de responsabilidades proporcionais. É o caso de uma joint venture onde uma empresa entra com o capital e a outra com o Know-how, com a tecnologia. Na amizade, os amigos podem contribuir um com o outro de forma distinta, mas sempre se contribuem, não há um que sempre dá e outro que, a todo tempo, recebe. O sociólogo Francesco Alberoni está convencido de que a amizade não tem como aflorar nas relações capitalistas, nas relações utilitaristas. Concordamos com esse que é um dos maiores intelectuais de nossa época. A joint venture, definitivamente, não é uma relação de amizade, apesar de coincidirem bastante em sua dinâmica, em seus elementos. Mas, se considerarmos o utilitarismo não na acepção de uso de pessoas, assim como não aplicarmos integralmente essa corrente filosófica criada pelo inglês Jeremy Bentham no século XIX, mesmo naquilo que ela tem de, a princípio, estrutural: a acepção de que o bom é aquilo que nos é útil e os cálculos de custo e benefício; se nos restringirmos a apenas alguns aspectos do utilitarismo talvez, aí possamos encontrar alguns elementos comuns com a amizade. Lembremo-nos ser o utilitarismo o pensamento através do qual o bom é tudo aquilo que traz prazer e o mau, tudo o que traz sofrimento e dor. Ora, o amigo tem horror a fazer o mal ao seu amigo, se tal ocorre, como ora já foi dito, terá sido, ou um lamentável engano, ou a amizade estará fadada ao descanso eterno. Os parentes se maltratam e continuam juntos, os amantes se maltratam e continuam juntos, os amigos não se maltratam, porque se assim o fizerem significa que não são amigos, talvez nunca o tenham sido. Daí sustentarmos que a amizade é possível dentro da acepção utilitarista liberal filosófica, parcialmente, pois a amizade é utilitária na medida em que apenas aceita a prática do bem e do que faz bem. Na joint venture esse bem consubstancia-se na boa-fé, quer seja em uma equity joint venture, onde as partes associam capitais, quer seja em uma non equity joint venture, onde não há contribuição de capitais. Se as partes fizerem-se mal, terminada, irrecuperavelmente, estará a joint venture.

Uma das mais profundas relações de amizade fictícia mostrada nas telas dos cinemas e que pode ser claramente comparada a uma joint venture foi aquela narrada pelo filme de Ridley Scott "Thelma e Louise" de 1991. Duas mulheres bastante diferentes na construção de suas vidas, que as sentiam como medíocres e insatisfatórias, mas suficientemente semelhantes em suas essências, reclamam pelo mergulho na aventura do viver. Uma é uma dona de casa, oprimida pelo casamento com um marido machista, outra, uma garçonete solteira, oprimida pela falta de perspectivas com o seu namorado músico. Para fugirem dessas circunstâncias e encontrarem a si mesmas, embarcam juntas em uma aventura pelas estradas do meio-oeste americano. A aventura é paritária, cada uma contribui uma com a outra a seu modo, a fim de atingirem os seus propósitos: uma vida mais rica e plena. Seria algo como uma non corporate joint venture temporária, podendo vir a ser permanente conforme o andar da carruagem, ou melhor, do carro que leva as duas. No entanto um incidente vem a atrapalhar os seus planos, um evento que mostra que a opressão sob a qual pode estar uma mulher não se esgota em sua casa, mas está à sua espreita, nas ruas...Louise sofre uma tentativa de estupro, tentativa porque antes que o crime fosse consumado, Thelma mata o agressor. A partir daí, a aventura não se restringe à busca de serem livres, mas de livrarem-se de serem presas pela polícia. Assim como nos momentos de crise performados entre empresas co-ventures, tendo uma delas agido com dolo ou culpa, as nossas protagonistas se apóiam e tentam safarem-se do poder público, do poder de império do Estado. Estão tão assustadas que não conseguem enfrentar o Estado e defenderem-se, lutarem por seus direitos. Então vem o clímax do espetáculo, da aventura e da amizade. Thelma e Louise estão sofrendo uma frenética perseguição policial e estão prestes a serem capturadas, pois que se encontram encurraladas entre os carros da polícia e um abismo que se descortina às suas frentes. Não há mais para onde fugir. Ou se entregam, abrindo mão da aventura pela liberdade, ou se lançam à morte, acelerando o carro por sobre o abismo. Nesse momento, temos que nos render a Alberoni, pois cessam quaisquer coincidências ou similaridades entre a amizade e as relações negociais como a joint venture. Faz-se o hiato intransponível entre os anseios humanos perante a vida e os anseios de uma empresa perante uma associação. No último caso, a non corporate joint venture seria desfeita e cada parte componente responderia por suas responsabilidades ao não terem alcançado favoravelmente os seus intentos. Mas Thelma e Louise, mesmo que sem saída, não abrem mão de estarem juntas nessa aventura, nessa aventura que é a busca, sem concessões, pela vida. Olham-se e sem dizerem palavra, concordam que não se entregarão, mas que alçarão os seus vôos, que serão pássaros. E assim, as duas, juntas, dão-se as mãos, aceleram o carro e voam por sobre o abismo. Congela-se a imagem...

Onde o início, onde o término do tempo da vida e do tempo da morte? Qual a medida do tempo para o amor e para a amizade? Talvez o silêncio seja a melhor resposta para o incognoscível. Nele acenamos com a nossa humildade para o que é maior do que nós, para o que está além de nós. Atingiram as nossas personagens o propósito de sua aventura, de sua joint venture? Sim. Estão aconchegadas, banhadas por dividendos de sentimento e cor. A amizade faz a vida perenizar-se no que de mais forte ela tem de infinito: o seu próprio fim. Aos amigos, o que importa é estarem juntos na aventura, unidos sobre os abismos, selados, de asas abertas, sob o sol.


Nota

01 Exemplos extraídos da obra Joint Ventures Manual Prático das Associações Empresariais (BASSO, 1998).


Autor


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Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

CAMPOS, Andrea Almeida. Juntos na aventura: a amizade e os contratos de "joint venture". Partindo da obra "A Amizade", de Francesco Alberoni, chegando ao filme "Thelma e Louise", de Ridley Scott. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 14, n. 2247, 26 ago. 2009. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/13397. Acesso em: 28 mar. 2024.