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A imprescritibilidade das verbas trabalhistas enquanto perdurar o trabalho escravo

A imprescritibilidade das verbas trabalhistas enquanto perdurar o trabalho escravo

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RESUMO

Busca-se neste trabalho discutir os aspectos que levam a não incidência da prescrição qüinqüenal trabalhista quanto aos créditos laborais enquanto perdurar o trabalho escravo. Leva-se em consideração a posição enciclopédica do direito do trabalho, as hipóteses de impedimento, interrupção e suspensão da prescrição contidas no Código Civil, bem como o artigo 440 da CLT e sua analogia ao trabalhador escravo.

Palavras-Chave: imprescritibilidade, durante, trabalho escravo

ABSTRACT

Search in this work discuss the issues that lead to not impact the five year limitation on the labor claims continue working as slave labor. It takes into account the position encyclopedic labor law, the chances of prevention, interruption and suspension of prescription in the Civil Code and Article 440 of the CLT and its analogy to slavery.

Keywords: right. not a prescription. slave labor


INTRODUÇÃO

Seria confortante iniciar este trabalho com os dizeres de Bento de Faria (apud HUNGRIA), quando, ao comentar o artigo 149 do Código Penal Brasileiro, acerca do crime de submissão de pessoas a condições análogas à de escravo, afirma que "tenho para mim, e devo declarar, com sinceridade e independência, que esse dispositivo é de pura ornamentação, pois rarissimamente será aplicável" [01], ou como HUNGRIA, ao apontar que "o fato longe estaria de corriqueiro." [02]

Entretanto, a realidade não é tão confortante e para ela somos despertados ao nos depararmos com os números divulgados pelo Ministério do Trabalho e Emprego. Apenas entre 1995 e maio de 2006, mais de 17 mil trabalhadores foram encontrados em condições análogas à de escravo [03], e segundo a Organização Internacional do Trabalho (em estudo realizado em 2005) [04] estima-se que 25 mil trabalhadores ainda se encontravam opostos a condições análogas a de escravos (um mero eufemismo, pois se trata, de fato, do retrocesso à vivência escravagista dos séculos XVIII e XIX), situados principalmente na região amazônica dos estados do Pará e do Mato Grosso. Ressalte-se que, no mesmo estudo, apontou-se que 80% dos libertados (sem aspas) exerciam atividade de pecuária, e outros 17% agricultura.

Em, outro, estudo feito pela OIT, apontou-se que existem cerca de 12,3 milhões de trabalhadores escravos no mundo. Desses, 1,3 milhão se localizam na America Latina e Caribe, gerando um lucro estimado em $1,3 bilhão de dólares. [05]

Diante de tais cifras, não há que se falar em uma visão nitidamente "determinista" ou em subdesenvolvimento quanto ao modelo das relações trabalhistas nas regiões de fronteira agrícola, repetindo-se, para justificar a inversões de valores, o cansado discurso de que não se deve exigir do empregador rural condições que, pretensamente, nem mesmo o empregador urbano seria capaz de fornecer.

A questão posta não é, efetivamente, de mera aceitação quanto ao modelo que se aplicou e ainda se aplica, por exemplo, às relações entre patrões e empregados na exploração da borracha, tampouco se trata de um questionamento sobre a visão que reduz a relação de trabalho a um "favor" do empregador para uma parcela que implora por uma ajuda, mas, sim, de encontrar o tratamento mínimo que garanta a tais pessoas terem reconhecida sua dignidade de ser humano.

Desta forma, surgindo o Direito do Trabalho na segunda geração de direitos humanos (direito de igualdade), tem-se que hoje ele, apesar de pertencer ainda ao ramo privado da divisão de Ulpiano, guarda em si características universais e coletivas, de modo a incutir na sociedade capitalista o respeito às condições dignas de trabalho e aos deveres legais impostos.

Neste sentido, vê-se que devem existir mais formas de combate a esta prática vergonhosa que tem lugar nos mais diversos locais do país e do mundo, sendo a vertente apontada no presente trabalho (imprescritibilidade dos créditos trabalhistas enquanto perdurar a exploração de trabalho escravo) mais uma tentativa de inibir tal conduta ilícita.


Da posição enciclopédica do Direito do Trabalho

Celeuma longe de se findar existe entre os doutrinadores juslaboralistas acerca do ramo jurídico em que se enquadra o Direito do Trabalho. SÜSSEKIND, ao retratar o tema, brinca com as discordâncias para retratar que não há consenso algum sobre a tese, afirmando que:

As normas de direito público prevalecem nos sistemas jurídicos atinentes ao Direito do Trabalho; mas nele existem, também, regras de direito privado, algumas meramente dispositivas, outras de ordem pública. Por outro lado, não se pode negar que, nos preceitos que compõem, como fontes autônomas de direito, esse ramo da ciência jurídica, ocorre evidente fusão do interesse coletivo com o individual. Daí as dificuldades para fixar sua posição, seja como direito público, privado, social (tertium genus) ou misto, seja como um todo unitário contendo, não obstante, normas de direito público e de direito privado. [06]

Assim, não é objeto deste trabalho fixar todas as correntes doutrinárias que abonam tese de direito privado, público, etc., sobre a posição do ramo laboral de Direito. Importante fixar que, em que pese de fato existirem normas de direito público regulando o Direito trabalhista, não se pode negar que seu surgimento deu-se com a locação de mão-de-obra, ainda no império romano. Desenvolveu-se para o sistema de servidão (servo da gleba) no período medieval do ocidente, sendo relação intrínseca entre servo e senhor (surgindo ai já uma subordinação subjetiva), passando a receber mais atenção do Estado (até pelo fato do quase desaparecimento deste entre os séculos VII ao XIV) somente no período pós-revolução industrial, século XVIII, apenas aparecendo em texto Constitucional no século XX, com a Constituição mexicana de 1917.

Por fim, não há que se negar, que o fato de haver intervenção do estado nas relações privadas dar-se para que se possa cumprir exigências mínimas de proteção a direitos e a estado de coisas, e tal intervenção (através [07]de normas de direito público) tem-se tanto no Direito do Trabalho como no Direito Civil, verbia gratia, quando se ostenta que as partes não podem transigir sobre os prazos prescricionais ou sobre regras formais acerca do matrimônio.

Neste sentido, orienta BELMONTE, juiz do Trabalho da 1ª região, em sua obra Instituições Civis no Direito do Trabalho:

O interesse público contido em tais normas é apenas de preservação dessas instituições, no sentido de que os particulares não podem afastá-las, mas o Estado não figura nessas relações, a não ser como interventor. Fosse titular de direitos, caso do direito à percepção de tributos, falar-se-ia em direito publico, o que não ocorre. Quando o Estado participa de relação típica trabalhista, não é na qualidade de pessoa investida de poder de império, mas sim como se particular fosse... quando o Estado participa da relação de trabalho subordinado figurando como estado mesmo, aí a relação aplicável não é a trabalhista (celetista) e sim a estatutária ou de Direito Administrativo, hipótese em que se tratará de Direito publico. Além do mais, a relação típica trabalhista é contratual, tendo as partes, ainda que em tese, o poder de discussão das condições aplicáveis (ressalvando o conteúdo mínimo legal, como também ocorre, por exemplo, na legislação do inquilinato, sem que isso a transforme em relação de Direito Publico. [08]

Desta forma, é entendimento da doutrina majoritária (com pequena folga) que o Direito do Trabalho pertence (ainda) ao ramo privado do Direito, sendo, assim, totalmente imbricado ao Direito Civil em uma série de institutos essenciais a sua existência, tal como o próprio contrato de emprego, elemento-chave da existência deste ramo jurídico, que busca seus requisitos de validade no diploma civil.


Da prescrição no Direito Civil e trabalhista

O tempo sempre foi fato gerador de intrigas e superstições nas sociedades de todas as eras. Vivemos os períodos dos calendários lunares (que tiveram ampla existência no mundo anglo-saxão), dos calendários solares (já identificado na cultura mesopotâmica) e, para fugir de delongas, tivemos a tentativa de instituição de um novo calendário durante a Revolução Francesa do século XVIII que, por exemplo, criava os meses do nivoso (21/12 a 19/01), pluvioso (20/01 a 18/02) e do ventoso (19/02 a 20/03), tamanha era a ambição de fazer firmar a nova cultura. [09]

Desta forma, o direito não podia ficar alheio a evento natural de tamanha importância. Assim, ainda no Direito Romano e no Medieval, a prescrição era vista como um fenômeno que afetava a ação em si, e não diretamente o direito material. [10]

O direito alemão e o suíço buscaram seguir tal direcionamento, considerando a prescrição como fato extintivo da pretensão, nada tendo que ver ao direito material.

O direito brasileiro também discutiu a celeuma da força da prescrição. Ao passo em que se foi buscando padronizar o instituto prescricional, doutrina e legislação se uniram no percalço de que a prescrição, no direito brasileiro, extingue a pretensão de se demandar, e não o direito material, que continua incólume. Assim, tem-se a redação do artigo 189 do Código Civil de 2002:

Art. 189. Violado o direito, nasce para o titular a pretensão, a qual se extingue, pela prescrição, nos prazos a que aludem os arts. 205 e 206

No sentido do conceito adotado, vê-se que há um tempo para que o titular do direito aviltado possa ir à "justiça" em busca da reparação de seu dano. E o diploma civil brasileiro estabelece, em seus artigos 206 e 208, uma série de prazos prescricionais, como que alertando para aquele, que o Poder estatal não estará a sua disposição ad infinitum.

Ora, tais prazos foram fixados tendo-se em mente que o titular do direito estará livre, para dentro deste período decidir, discricionariamente, se quer ou não a sua devida reparação. Diz-se, que estará livre física e psiquicamente.

Afirma-se isto, pois o mesmo diploma civil estabelece, nos artigos 197 usque 199, os casos em que não corre o prazo prescricional, todos eles relacionados ou por obstáculos psíquicos (como o poder/afeto entre pai e filho, entre cônjuges, ou mesmo para os incapazes do artigo 3º do CC) ou por obstáculos físicos (os ausentes em serviço público, os que se acharem servindo às Forças Armadas e, dentro do dito artigo 3º, os que por causa transitória não puderem exprimir seu direito).

Visto o panorama do conceito civil da prescrição (como integrante do Direito privado) tem-se também que no direito trabalhista existe prazo prescricional para se requerer, em juízo, os direitos resultantes da relação laboral.

O texto original da Consolidação das Leis Trabalhista, em seu artigo 11 estabelece que:

Art. 11 O direito de ação quanto a créditos resultantes das relações de trabalho prescreve:

I - em cinco anos para o trabalhador urbano, até o limite de dois anos após a extinção do contrato;

II - em dois anos, após a extinção do contrato de trabalho, para o trabalhador rural

Ao tempo em que se tinha a discriminação entre os créditos resultantes das relações urbanas e rurais, a nova ordem constitucional, por meio do constituinte derivado (Emenda Constitucional 28/00) deixou claro que não mais há razão para que se diferencie figuras iguais perante o direito. Assim, o artigo 7º, inciso XXIX dispõe que "ação, quanto a créditos resultantes das relações de trabalho, com prazo prescricional de cinco anos para os trabalhadores urbanos e rurais, até o limite de dois anos após a extinção do contrato de trabalho;"

Desta forma, é constitucional o entendimento/mandamento de que os créditos resultantes das relações de trabalho, derivem elas de trabalho urbano ou rural, prescrevem em 5 (cinco) anos.

O que se tem, de diferenciação, dentro do instituto da prescrição entre o Direito Civil e o Direito do Trabalho é apenas o prazo prescricional, que no caso laboralista vem estipulado na Constituição e é um prazo total, não existindo prazos diferenciados para se requerer, v. g., férias, salários, etc.

Em sendo omissa a Constituição de 88 e a CLT, acerca do tema, aplica-se, analogicamente, e de maneira tranquila as causas de suspensão, interrupção e impedimento dos prazos prescricionais ditados no Código Civil para as relações de trabalho. É desta forma que determina a própria CLT em seu artigo 8º, quando reza que "as autoridades administrativas e a Justiça do Trabalho, na falta de disposições legais ou contratuais, decidirão, conforme o caso, pela jurisprudência, por analogia, [...]".

Vê-se, então, que a prescrição no Direito do Trabalho, é regulada, em seu prazo, pela Constituição Federal e em suas causas de suspensão, interrupção e impedimento pelo Código Civil, em genuína auto-integração da norma.


Das causas interruptivas e suspensivas da prescrição

Ao listar as causas que impedem, interrompem e suspendem a prescrição, o legislador não as separou sob títulos expressos, ficando a cargo da doutrina e da jurisprudência acordarem, pelos motivos fáticos, quais seriam umas e outras. [11]

Assim, tem-se que entre as causas expressas no artigo 197 do Código Civil, todas são típicas de causas impeditivas. In verbis:

Art. 197. Não corre a prescrição:

I - entre os cônjuges, na constância da sociedade conjugal;

II - entre ascendentes e descendentes, durante o poder familiar;

III - entre tutelados ou curatelados e seus tutores ou curadores, durante a tutela ou curatela.

Isso se dá pelo fato de que em todos os casos nela encapados, não puderam, seus titulares, iniciar a persecução de seu direito, por motivos diversos. Deste modo, ficou a posteriori, a eventual busca pelo direito.

No caso do artigo 198 do mesmo digesto, tem-se que apenas na hipótese do inciso I é que se tem causa impeditiva da prescrição. Nos demais casos, entende-se que existia a possibilidade pela vontade própria do demandante de ingressar em juízo, apenas sobrevindo uma dificuldade absoluta depois do início do exercício do serviço militar no estrangeiro ou quando ausente em serviços públicos ao Estado.

Assim, diz o citado artigo 198 do CC-2002:

Art. 198. Também não corre a prescrição:

I - contra os incapazes de que trata o art. 3º;

II - contra os ausentes do País em serviço público da União, dos Estados ou dos Municípios;

III - contra os que se acharem servindo nas Forças Armadas, em tempo de guerra.

Ao remeter o leitor ao artigo 3º do Código Civil, o legislador traz os casos de incapacidade absoluta, somente podendo o incapaz atuar perante um representante.

O artigo 3º do Digesto Civil tem a seguinte composição:

Art. 3º São absolutamente incapazes de exercer pessoalmente os atos da vida civil:

I - os menores de dezesseis anos;

II - os que, por enfermidade ou deficiência mental, não tiverem o necessário discernimento para a prática desses atos;

III - os que, mesmo por causa transitória, não puderem exprimir sua vontade.

Traduzindo a leitura do supra artigo ao mundo juslaboralista, tem-se que ao menor de 16 anos e maior de 14 é permitido o trabalho na condição de aprendiz, e ao maior de 16 e menor de 18 anos, é lhe conferido o direito de assinar recibos e documentos do contrato de trabalho, somente sendo necessária a sua assistência quando do rompimento do vinculo laboral, para assinatura do recibo de quitação de créditos trabalhistas. [12] [13]

Assim, fazendo afirmar a autonomia perante o mundo jurídico do ramo laboral, tem-se que dentro do direito do Trabalho, a menoridade não é como da forma civil, passando a ser absolutamente proibido o trabalho somente aos menores de 14 anos.

Ocorre que, tais disposições trabalhistas existem para resguardar o menor perante uma possível incursão no mundo do trabalho antes de alcançada a maioridade, movida, tal contratação e aceitação, pelos mais diversos motivos sociais e econômicos. É neste intuito de proteção que, mesmo em sendo proibido, mas não ilícito, o trabalho do menor, contra este não corre nenhum prazo prescricional. A mens legis, demonstra que um menor de 18 anos não tem a capacidade plena de se dar por satisfeito com o mero recebimento de alguns direitos trabalhistas, que se traduzem apenas, na maioria das vezes, em uma quantia ínfima de dinheiro, devendo ser resguardado para um momento posterior a análise daquilo que lhe foi deferido quando do rompimento do vínculo laboral.

Assim rezam os artigos 439 e 440 da CLT:

Art. 439. É lícito ao menor firmar recibo pelo pagamento dos salários. Tratando-se, porém, de rescisão do contrato de trabalho, é vedado ao menor de dezoito anos dar, sem assistência dos seus responsáveis legais, quitação ao empregador pelo recebimento da indenização que lhe for devida.

Art. 440. Contra os menores de dezoito anos não corre nenhum prazo de prescrição.

Deste modo, infere-se que o próprio diploma trabalhista, em única análise dos fenômenos de extratemporaneidade da prescrição, regula que enquanto for o trabalhador menor, não corre a prescrição.

Em se tratando do inciso II, ressalte-se que pode haver a contratação de indivíduos com necessidades especiais. Mormente quando se tem em tela os mais diversos programas de inclusão de crianças e jovens deficientes, sendo estes agora alunos em grande escala das mais diversas escolas regulares de todo o país.

Da mesma forma em que se quer a promoção da inclusão social por meio da educação sem fronteiras, busca-se também, pelo Direito do Trabalho (em face da característica socializante deste ramo jurídico) a inclusão por meio da possibilidade de contratação do jovem deficiente para o exercício de atividades compatíveis com o seu desenvolvimento psíquico-motor.

Assim, nada impede que um empregador realize um contrato de trabalho com um portador de Síndrome de Down para que este cidadão execute serviços de expediente (tirar Xerox, digitar textos, preparar processos etc.) sendo mesmo recomendável que assim ocorra, posto o bom serviço social que disto irá advir, trazendo benefícios à empresa (melhor imagem perante os consumidores) e perante a própria comunidade de pessoas deficientes com dificuldade de se sentir firme frente ao mundo do trabalho. Ressalte-se que as limitações no campo da contratação trabalhista, serão as mesmas experimentadas no inciso anterior, sendo possível o empregado assinar recibos mensais e demais documentos de praxe do contrato de trabalho, sendo assistido quando na assinatura dos documentos de quitação e de terminação do contrato laboral.

Em relação ao inciso III, maiores desventuras irão ser feitas.

A tradicional doutrina positivista civil traz, ao retratar os casos em que por alguma causa transitória o indivíduo não puder buscar o direito, exemplos marcados como "arteriosclerose, excessiva pressão arterial, paralisia, embriaguez não habitual, uso eventual e excessivo de entorpecentes ou de substâncias alucinógenas, hipnose ou outras causas semelhantes, mesmo não permanentes.". [14]

Ocorre que o legislador, ao transcrever a hipótese de impedimento do transcurso do lapso prescricional, não alinhavou apenas casos de impossibilidade decorrentes de males de saúde, mas simplesmente adotou uma cláusula genérica: "os que mesmo por causa transitória,não puderem exprimir sua vontade." Não cabe, assim, ao intérprete restringir quando a lei não o fez.

Tais casos dizem respeito a todas as situações em que a pessoa encontra-se impossibilitada de exprimir sua vontade, de ir em busca da reparação do direito rasgado. Não se diz de causas corriqueiras que ocorrem intermitentemente, tampouco à surdez. Diz, assim, de todas as causas que por algum motivo torne o titular do direito absolutamente incapacitado de ir em busca do que é seu.

Neste sentir, explicita Moreira Alves que

só estão incluídas nesse caso de incapacidade absoluta, embora temporária, as hipóteses que acarretam a impossibilidade de exprimir a vontade, à semelhança do que dispõe o art. 31 do Código das Obrigações da Polônia [15]

Assim, observa-se que não é necessário se fazer valer de técnicas interpretativas quanto ao alargamento do resultado (interpretação extensiva) para se obter tal leitura do artigo 3 (três), inciso III do Código Civil, pois mesmo a interpretação literal traz a idéia de que qualquer causa que acarrete na privação absoluta da manifestação da vontade do titular do direito, será interpretada como sendo a causa concorrente no fenômeno impeditivo da prescrição, estando assim impedido de iniciar-se o curso prescricional, somente iniciando sua contagem quando o individuo atacado puder plenamente exprimir suas vontades e, a partir deste momento, conta-se o prazo para o aviltado ir ou não à busca da reparação devida.


Da incidência da causa impeditiva da prescrição enquanto perdurar o trabalho escravo.

Há 180 anos foi editada a Lei Áurea, que seria ultima pá de cal sobre o trabalho escravo no Império do Brasil. Ocorre que ainda hoje, conforme sobredito, tem-se mais de 25 mil trabalhadores escravos em todo o país. A Organização Internacional do Trabalho estima que para cada 1 trabalhador libertado, outros 3 continuam em cativeiro. Assim, o trabalho forçado ainda é uma chaga aberta dentro do panorama social brasileiro.

São diversas as causas de manutenção do trabalhador forçado nos redutos autocráticos dos fazendeiros escravagistas. Entre estas causas estão a ingenuidade do trabalhador, que de fato acredita ter uma dívida a ser paga com o gato que lhe deu a oportunidade de estar empregado; ameaças as suas famílias, caso saiam da terra sem pagar "o que devem"; e, por fim, a coação física, com exemplos diários de selvagerias e de tentativas de intimidação, caso ousem abandonar o serviço.

Mantido o vínculo com o suposto empregador, ficam os empregados devendo também ao gato, e quando não interessam mais aos fazendeiros, aqueles recolhem os trabalhadores em pensões (mantidas muitas vezes por outros fazendeiros) que servem de "vitrine" para que outros gatos ou supostos empregadores possam contratar seus serviços e comprar-lhes a dívida.

Neste ciclo de venda de pessoas, mantêm-se o trabalhador à mercê daquele que lhe compra os débitos, sendo assim mandado para os mais diversos lugares do país, sem liberdade de dizer se aceita ou não o serviço que lhe é imposto.

Não há diferença alguma quanto ao modelo cruel e desumano existente no período colonial.

Para retratar a situação em que vivem tais pessoas, cita-se parte do artigo publicado por Leonardo Sakamoto, membro da ONG Repórter Brasil, [16] que acompanhou a libertação de diversos trabalhadores escravos, no ano de 2001, no estado do Pará:

Muitas vezes, quando peões reclamam das condições ou querem deixar a fazenda, capatazes armados os fazem mudar de idéia. "A água parecia suco de abacaxi, de tão suja, grossa e cheia de bichos." Mateus, natural do Piauí, e seus companheiros usavam essa água para beber, lavar roupa e tomar banho. Foi contratado por um gato para fazer "roça de mata virgem" – limpar o caminho para que as motosserras pudessem derrubar a floresta e assim dar lugar ao gado – em uma fazenda na região de Marabá, Sudeste do Pará. Contou ao Grupo Móvel de Fiscalização que, no dia do acerto, não houve pagamento. Ele reclamou da água na frente dos demais e por causa disso foi agredido com uma faca.

"Se não tivesse me defendido com a mão, o golpe tinha pegado no pescoço", conta, mostrando um corte no dedo que lhe tirou a sensibilidade e o movimento. "Todo mundo viu, mas não pôde fazer nada. Macaco sem rabo não pula de um galho para outro." Mateus foi instruído pelo gerente da fazenda a não dar queixa na Justiça.

"Sempre que vejo um trabalhador cego ou mutilado pergunto quanto o patrão lhe pagou pelo dano e eles têm me respondido assim: ‘um olho perdido – R$ 60,00. Uma mão perdida – R$ 100,00’. E assim por diante. Estranho é que o corpo com partes perdidas tem preço, mas se a perda for total não vale nada", afirma um integrante da equipe de fiscalização do Ministério do Trabalho e Emprego.

Vê-se, então, que o medo de perder a vida existe, tanto enquanto dura a exploração escrava (pois estão, os trabalhadores, cercados de seguranças armados, e verdadeiros torturadores estão a postos para prevenir e punir eventuais levantes contra o sistema mantido), como após a libertação, posto que esses trabalhadores tem que literalmente sumir do mapa para que possam, senão viver, pelo menos se manterem vivos.

O importante ressaltar é que: ou os trabalhadores encontravam-se fisicamente impossibilitados de exprimir sua vontade (mantidos em cárcere por seguranças armados a mando do patrão), ou encontravam-se psiquicamente impossibilitados de ir a justiça enquanto estivessem nos feudos escravagistas, posto que ao cogitar a possibilidade de ir buscar seus direitos deparavam-se com o pensamento de terem seus familiares ou eles mesmo mortos.

Assim é que, já não bastasse todo tolhimento de liberdade, de direitos, de convívio, sofrido pelos trabalhadores que se encontravam em condições escravas, têm eles ainda que lutar contra o tempo, após libertos (e quando conseguem isso com vida), posto que o prazo prescricional continuou a correr, como se a busca pelos seus direitos não tivesse tido nenhum obstáculo, e assim premia, o Direito, a má-sorte e a má-fé, em nítido louvor ao ferimento da ordem jurídica.

Neste panorama, não se pode continuar a contemplar o empregador que se utiliza da Mão-de-obra escrava, com a prescrição qüinqüenal da Justiça Trabalhista.

Ora, conforme sobredito, existe no Direito do Trabalho de fato a proibição de se contratar menores de idade. Ocorre que cuida, a ciência jurídica, de regular relações sociais não sendo, assim, uma matéria estanque, alheia aos acontecimentos econômicos. Deve ela, em verdade, estabelecer padrões para os comportamentos a serem tidos como regra para o mundo social. Assim, ao aceitar como proibido, mas existente (portanto não nulo), o contrato de trabalho com o menor, é deferido a este todas as verbas trabalhistas que lhes eram de direito, ainda que não pudesse o contratante firmar acordo de trabalho. O que não se pode é premiar quem do mau direito se vale.

Deste modo, para completar o sistema de proteção do menor, admite-se também que antes de completar a maioridade civil, não é ele portador de discernimento necessário para dar por quitado a relação laboral, nem mesmo de dar-se por satisfeito com as verbas recebidas ao final do contrato. Assim é que, de acordo com o artigo 440 da CLT [17], o prazo prescricional do qüinqüênio, para os menores, começa a correr da data em que se completa 18 anos, em nítida flexibilização das regras contidas no artigo 7, XXIX da CF bem como da sumula 308, I do Tribunal Superior do Trabalho, esta, in verbis:

TST Enunciado nº 308 - Res. 6/1992, DJ 05.11.1992 - Incorporada a Orientação Jurisprudencial nº 204 da SBDI-1 - Res. 129/2005, DJ 20, 22 e 25.04.2005


Prescrição Qüinqüenal da Ação Trabalhista

Ora, não se vê razão para não se deferir a mesma regra ao trabalhador escravo. Igualmente ao menor, o trabalhador escravo não teve a capacidade (física e/ou psíquica) de ir em busca de seu direito. Não podia ele contemplar-se com uma ação ajuizada pois estava impossibilitado de exprimir suas vontades. Geograficamente, no código civil, a sua incapacidade encontra-se no mesmo artigo da contemplada ao menor. Por fim, são também violentados, pois além de enganados (fazendo-os crer que de fato têm uma dívida) são vítimas de exploração física das mais diversas ordens, sem terem direito a licença por acidente de trabalho, férias, jornada de trabalho e demais direitos trabalhistas.

Assim, não há diferença substancial entre a situação do menor, que ainda não formou sua consciência, e daquele que não lha pode exprimir, não podendo assim ser lhes aplicado direitos totalmente diversos, em nítida desconformidade com o princípio da proteção.

Percebe-se, assim, que há uma subsunção direta, vertical, com o que diz a norma e a realidade fática desenhada. Não se trata de construção hipotética, mas de simples aplicação do que está escrito no artigo 7º inciso XXIX da Constituição Federal brasileira principalmente quando se tem presente a teoria da máxima eficácia das normas constitucionais, e a intenção de se densificar as normas relativas a direitos fundamentais.

Deste modo, não há razão para não ser reconhecida como causa impeditiva do curso do prazo prescricional o fato de encontrar-se o trabalhador em condições análogas à de escravo, impossibilitado assim de exprimir sua vontade, qual seja: buscar seus direitos perante à Justiça.

Deve assim, ser deferido o impedimento do curso prescricional enquanto perdurar o trabalho escravo, devendo este voltar a correr quando, por fim, for libertado o trabalhador, podendo assim efetivamente escolher o seu melhor direito.


CONCLUSÃO

Diante de tudo que foi colocado, verifica-se que o número de trabalhadores submetidos a condições análogas à de escravos supera os 25 mil, somente no Brasil. O país deu importantes avanços na luta contra o trabalho escravo, como por exemplo, ao criar o Grupo Móvel de Fiscalização do Ministério do Trabalho, bem como ao começar a ser deferidos danos morais coletivos, pelo fato de se ver ferida a coletividade quando se depara com situações que aviltam o sentimento de justiça, como no caso de torturas aos trabalhadores escravos.

É de se ressaltar também que o Direito do Trabalho ainda, segundo a maioria da doutrina, é pertencente ao ramo privado do Direito, sendo lhe assim permitido beber dos mais diversos institutos existentes no direito civil no sentido de se dar maior efetividade às normas trabalhistas.

Viu-se também que dentre esses pontos de interconexão encontra-se o fato de que tanto o Direito Civil como o Trabalhista deferem ao menor o direito de não se ver prejudicado pela prescrição, posto que esta não correrá contra os absolutamente incapazes, sendo tal norma mais temperada no direito do trabalho, visto que pode ser firmado contrato de trabalho com menor de 18 anos, porém não lhe é permitido assinar recibos de término do contrato de trabalho, nem tampouco corre contra si a prescrição qüinqüenal.

Mostrou-se que não difere o porquê da situação legal do menor perante a causa impeditiva da prescrição da condição do cidadão oposto à condição escrava, posto que nos dois casos, encontravam-se absolutamente incapazes de se fazerem representar na busca de seu direito.

Por fim, diante dos pontos de convergência, demonstrou-se que não cabe outra regra que não a de deferir ao trabalhador escravo a causa impeditiva do curso prescricional enquanto perdurar a situação de exploração em que se encontra.

Ao tempo em que se forem adotando medidas das mais diversas contra a exploração escrava em pleno ano 2009, será cada vez mais difícil encontrar no Brasil situações tão humilhantes e tão repugnantes quanto a submissão forçada de um cidadão a outro, que por força meramente econômica sobrepõe-se aos que lhe procuraram para poderem dignamente proverem seu sustento.


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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www.oitbrasil.org.br/trabalho_forcado/oit/relatorio/sumario.pdf. Acesso em: 05 maio. 09. ense: 1958. Vol. VI, p. 200


NOTAS

. Considera-se menor para os efeitos desta Consolidação o trabalhador de quatorze até dezoito anos. Disponível em (http://www.dji.com.br/decretos_leis/1943-005452-clt/clt402a410.htm) Acesso em: 05 maio. 2009.
  • xii BRASIL. Consolidação das Leis Trabalhistas. Art. 403.É proibido qualquer trabalho a menores de dezesseis anos de idade, salvo na condição de aprendiz, a partir dos quatorze anos. Parágrafo único. O trabalho do menor não poderá ser realizado em locais prejudiciais à sua formação, ao seu desenvolvimento físico, psíquico, moral e social e em horários e locais que não permitam a freqüência à escola. Disponível em (http://www.dji.com.br/decretos_leis/1943-005452-clt/clt402a410.htm) Acesso em: 05 maio. 2009
  • xiii GONÇALVES, Carlos Roberto. Direito Civil Brasileiro. São Paulo: Saraiva. 2003. Vol. I, p. 92.
  • xiv Apud, GONÇALVES, Carlos Roberto. Direito Civil Brasileiro. São Paulo: Saraiva. 2003. Vol. I, p. 92
  • xv www.oitbrasil.org.br/download/sakamoto_final.pdf. Acesso em: 05/05/2009
  • xviBRASIL. Consolidação das Leis Trabalhistas. Art. 440. Contra os menores de dezoito anos não corre nenhum prazo de prescrição, Disponível em (http://www.dji.com.br/decretos_leis/1943-005452-clt/clt402a410.htm) Acesso em: 05 maio. 2009


  • Informações sobre o texto

    Elaborado sob a orientação do professor Luis Cineas de Castro Nogueira (doutorando pela Universidade de Buenos Aires).

    Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

    MENDES, Mauro André Meneses. A imprescritibilidade das verbas trabalhistas enquanto perdurar o trabalho escravo. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 14, n. 2256, 4 set. 2009. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/13447. Acesso em: 28 mar. 2024.