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Digressões sobre os direitos disponíveis, os crimes patrimoniais e a ação penal de iniciativa pública

Digressões sobre os direitos disponíveis, os crimes patrimoniais e a ação penal de iniciativa pública

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Introdução

(8º mandamento)

Vivemos em sociedade, na latência de conflitos de interesses qualificados por pretensões resistidas. Valemo-nos, necessariamente, de um arcabouço normativo que procura ordenar nossos atos e comportamentos, impondo-nos deveres e direitos, sempre com a finalidade de podermos conviver pacificamente de forma coletiva e organizada.

O Estado como fonte do nosso ordenamento tornou-se quase onipresente, traduzindo o significado da nossa diversidade social e cultural, o que é destacado pelo desenvolvimento multilateral das relações nacionais e internacionais, decorrendo uma profusão de preceitos. Por outro lado, não se torna incomum o aparecimento de normas que guardam aparente contradição, ao menos no mundo dos efeitos, embora o ordenamento jurídico constitua "um sistema porque não podem coexistir nele normas incompatíveis." [01]

A nossa organização nos impõe gradação de direitos, isto é, de normas dotadas de status diferenciados, que auxiliam os argumentos hermenêuticos, inclusive com aparato constitucional. Nessa microsociedade normativa temos que conviver com todas as espécies de comando, o que nem sempre revela uma uniformidade, exigindo-se a compreensão e a superação de inúmeros dogmas para o devido ajuste de convivência social.

Embora a Constituição Federal garanta o direito de propriedade (art. 5º, XXII), bem como a inviolabilidade da intimidade e da vida privada (art. 5º, X), a lei penal tipifica inúmeros crimes e decide, de forma discricionária, a iniciativa da ação penal, o que pode constituir, em determinadas situações em uma afronta aos direitos da própria vítima.

Essa contradição se revela especialmente quando a lei trata dos crimes contra o patrimônio, que com diversas tipificações que regulam a espécie, permite a iniciativa da ação penal de forma pública, incondicionada ou condicionada à representação, ou ainda de forma privada.

O que nos propomos agora é discorrer sobre algumas situações incoerentes, especialmente em face da natureza dos direitos disponíveis, da tipificação de delitos patrimoniais, do direito de ação penal e da natureza jurídica da sua iniciativa.


Dos Direitos Disponíveis

Numa concepção civilista, bem jurídico também pode ser conceituado como coisa material ou imaterial apropriável, útil à pessoa humana e revestida de valor econômico que pode ser objeto de uma relação jurídica. Paulo Nader sustenta uma diferenciação entre bem e coisa, sendo aquele considerado gênero, porquanto pode comportar objetos sem valor econômico, enquanto, este, espécie, uma vez que se refere somente a objetos corpóreos. [02] Welzel doutrina que "o bem jurídico é um bem vital ou individual que, devido ao seu significado social, é juridicamente protegido". [03] Nas palavras de Toledo, "é tudo que nos apresenta como útil, necessário, valioso" [04].

Por outro lado, em uma concepção pura do direito penal, lecionam Zaffaroni e Pirangeli, que "bem jurídico penalmente tutelado é a relação de disponibilidade de um indivíduo com um objeto, protegida pelo Estado, que revela seu interesse mediante a tipificação penal de condutas que o afetam [05]". Portanto, o bem jurídico que se protege "não é a propriedade, e sim o direito de dispor dos próprios direitos patrimoniais" [06]. Não havendo essa possibilidade de disposição, afeta-se a conduta como lesiva, tornando-a objeto da tutela penal.

Assim, o direito civil revela ser a coisa apropriável, útil e de valor econômico. Tal conceituação interage com o direito penal, que, contudo, vai focar na disponibilidade da coisa em relação ao seu titular para se afetar uma conduta que perturba a disposição desse bem, civilmente considerado. Essa interação é inevitável, desfazendo-se fronteiras temáticas e nos obrigando a uma compreensão geral, especialmente na localização de soluções que guardem compatibilidade com a natureza dos institutos em questão.

Todos nós somos dotados de direitos subjetivos, ou seja, da "permissão de fazer ou não fazer e de ter ou não alguma coisa sem a violação de preceito normativo" [07] ou ainda, na expressão maior de Goffredo Telles Jr., "o de defender direitos ou proteger o direito comum da existência, ou seja, a autorização de assegurar o uso do direito subjetivo, de modo que o lesado pela violação da norma está autorizado por ela a resistir contra a ilegalidade, a fazer cessar o ato ilícito, a reclamar a reparação pelo dano e a processar criminosos, impondo-lhes pena" [08].

A Constituição Federal assegura o direito de propriedade (art. 5º, XXII) e a lei civil dispõe que o proprietário tem a faculdade de usar, gozar e dispor da coisa, e o direito de reavê-la do poder de quem injustamente a possua ou a detenha (art. 1228). Tal propriedade se presume plena e exclusiva, até prova em contrário (art. 1231). No mesmo sentido, trata a lei civil da posse, que não seja violenta, clandestina ou precária (art. 1200), considerando-se possuidor todo aquele que tem de fato o exercício, pleno ou não, de alguns dos poderes inerentes à propriedade (art. 1196). Ou seja, o poder de usar, gozar e dispor da coisa.

A propriedade é um fato absoluto, erga omnes, pleno, "sendo incontestavelmente, o mais extenso e o mais completo de todos os direitos reais" [09], conferindo ao titular o "poder de decidir se deve usar a coisa, abandoná-la, aliená-la, destruí-la e, ainda, se lhe convém limitá-lo, constituindo, por desmembramento, outros direitos reais em favor de terceiros" [10].

Limitando-nos a tratar de coisas apropriáveis, úteis e de valor econômico, que podem ser de alguma forma objeto de subtração, usurpação, destruição, dentre outras condutas dos tipos elencados nos crimes contra o patrimônio, podemos concluir, com segurança, que uma característica qualificada do poder inerente à propriedade e a posse é a disposição.

Pode-se dispor da propriedade por diversas formas e, dentre elas, pela renúncia (art. 1275, II). Ou seja, na melhor descrição de Orlando Gomes, "ato pelo qual o proprietário declara explicitamente o propósito de despojar-se do seu direito. Independe do abandono material da coisa. Para valer, não necessita de aceitação de quem quer que seja. É nimiamente um ato unilateral. Mas para produzir efeitos, mister se faz, em nosso direito, que o ato renunciativo seja transcrito no Registro de Imóveis. A renúncia da propriedade dos bens móveis não está subordinada a qualquer exigência para a sua eficácia" [11].

Assim, se constitucionalmente temos a garantia do direito de propriedade, na mesma gradação temos o direito de renunciar à propriedade, constituindo-se, também e por derivação, em uma garantia de concepção constitucional, porquanto inerente à própria natureza da disponibilidade do instituto da propriedade. O exercício do direito de ter ou não ter (direito subjetivo), desde que não viole comando normativo, não pode sofrer qualquer limitação, sendo da mesma forma absoluto, não guardando, por conseqüência, qualquer dependência de autorização ou aceitação de terceiros.


Dos Crimes contra o Patrimônio

Patrimônio, segundo Heleno Cláudio Fragoso, é "um complexo de ações jurídicas apreciáveis em dinheiro, ou que tenha valor econômico, concebidos como uma universalidade de direitos, ou seja, uma unidade abstrata distinta dos elementos que a compõe, conceito que é próprio do direito privado". [12] Em uma concepção civilista, é a "constituição econômica da pessoa natural e jurídica". [13] Pode-se, portanto, concluir que "não há crime patrimonial sem lesão de interesse economicamente apreciável". [14]

Qualquer que seja o conteúdo que se possa emprestar a noção de patrimônio, o certo é que a tutela penal à disponibilidade patrimonial é tão antiga quanto o aparecimento da propriedade privada. Assim, o furto foi previsto e incriminado "em textos antiqüíssimos do direito romano" [15], bem como o estelionato que também surgiu na clássica época romana no século II da nossa era.

Heleno Cláudio Fragoso ensina que a "longa evolução histórica permite que estes crimes tenham atingido, na doutrina do direito penal, um grau notável de acabamento". [16] Embora o direito penal se apresente como autônomo e constitutivo "nesta parte dos crimes patrimoniais o direito penal aparece nitidamente como critério sancionatório, no sentido de proporcionar a sanção penal a certos direitos estabelecidos pelo direito privado". [17]

Desde 1940, a parte especial do nosso Código Penal subdivide os crimes contra o patrimônio em sete capítulos, que deliberam sobre o furto, o roubo e a extorsão, a usurpação, o dano, a apropriação indébita, o estelionato e outras fraudes e a receptação, distribuídos em trinta e quatro tipos penais distintos, além de inúmeras circunstâncias que qualificam o delito, contribuindo para o aumento ou diminuição da pena.

Nesse universo repressivo, encontramos penas que variam o seu mínimo de 15 dias, no caso do crime de outras fraudes, previsto pelo art. 176, para o mínimo de 20 anos, quando ocorre o roubo seguido de morte, disposto na segunda parte do §3º do art. 157. Podemos encontrar também todas as três possibilidades de se iniciar uma ação penal: a incondicionada, a condicionada à representação e a privada, além das causas que se encontram inserida no Capítulo VIII que regula as disposições gerais.

Trata-se de delitos relacionados, em sua grande parte, com a criminalidade convencional, em face da relação jurídica decorrente do ser humano e a propriedade ou posse de um bem corpóreo, chamado de coisa, seja móvel ou imóvel, que pode ser objeto de subtração, usurpação, dano, apropriação, receptação e fraude. Sempre presente, portanto, o aspecto real da propriedade e da posse e a idéia de que se trata de uma coisa que se possa mensurar um valor econômico de tal monta que repercuta no patrimônio da vítima.

Assim, o Código Penal regula a ocorrências dessas condutas delituosas, expressando, no entanto, inúmeras incoerências. A mais enfática delas, dentre tantos tipos penais, e que no imaginário geral pode exemplificar todo e qualquer crime dessa natureza, é o furto. Trata-se de uma conduta tão antiga quanto o próprio direito de propriedade, de grande repercussão histórica, moral e religiosa, porquanto sua proibição já constava nos dez mandamentos ou no decálogo, conjunto de leis que segundo a Bíblia, teriam sido originalmente escritos por Deus em tábuas de pedra e entregues ao profeta Moises. Do mesmo modo, o Código de Hamurábi, uma das mais antigas legislações codificadas, já previa, inclusive, a pena de morte para o crime de furto.

O furto, que não é uma novidade comportamental, consiste em subtrair coisa alheia móvel para si ou para outrem, com o fim de se apoderar definitivamente. Assim, o núcleo do tipo penal é a subtração, o objeto material é a coisa móvel e o elemento normativo do tipo é ser a coisa alheia. Nada mais simples e direto, não envolve violência ou qualquer outro ardil que possa induzir em erro a vítima. Toda pessoa, de qualquer idade, tem uma idéia do que seja um furto, denominando-se de "ladrão" o autor do fato.

No entanto, tal conduta, em comparação com alguns outros crimes contra o patrimônio, demonstra uma reprovabilidade exacerbada e sem nenhuma explicação aparentemente jurídica. Talvez sociológica ou cultural, mas não jurídica.

Por exemplo: a pena do furto é no mínimo de um ano e no máximo de quatro de reclusão. Assim, não tem muita importância qual objeto (coisa) está sendo subtraído, com exceção de veículo automotor, que tem previsão normativa própria (art. 155, §5º), a pena mínima e máxima vai sempre variar de um a quatro anos. A forma de se cometer o crime é que pode qualificar a conduta e aumentar a pena (§1º e §4º do art. 155), ou se pequeno o valor da coisa subtraída, pode-se substituir a reclusão por detenção, diminuir a pena de um a dois terços ou aplicar somente a pena de multa.

No Código Penal de 1890 [18], havia uma sistemática interessante. O art. 330 dispunha diferentes penas para o delito de "subtrahir, para si, ou para outrem, cousa alheia móvel, contra a vontade de seu dono" de acordo com os valores fixados nos §§ 1º a 4º. Assim a pena alternava de no mínimo um mês e no máximo três anos de "prizão celular", além da pena de multa que variava em porcentagem de cinco a vinte por cento sobre o valor da coisa subtraída, o que já foi um avanço com relação à legislação anterior. No Código Penal do Império, de 1830 [19] a pena mínima do crime de "tirar cousa alheia contra a vontade de seu dono, para si ou para outro" (art. 257) era no mínimo de dois meses e no máximo de quatro anos, sem estabelecer valores. De qualquer forma, só para efeitos de comparação a pena do Código Penal de 1830 corresponde a 1/5 da pena mínima e ½ da pena máxima prevista atualmente.

Conclui-se, portanto, que houve um relevante recrudescimento no tratamento que o Código Penal de 1940 trouxe ao crime de furto. Tratando-se de subtração de coisa móvel é indispensável a comparação com a usurpação, no delito específico de alteração de limites (art. 161). Suprimir ou deslocar tapume, marco, ou qualquer outro sinal indicativo de linha divisória, para apropriar-se, no todo ou em parte, de coisa imóvel alheia tem previsão de pena de um a seis meses de detenção. Ou seja, a subtração de coisa imóvel alheia, pela alteração de limites divisórios, é um crime cuja pena mínima corresponde a 1/12 da pena mínima do crime de subtração de coisa móvel alheia.

Com se não bastasse a desproporcionalidade da pena, a alteração de limites é uma infração penal de menor potencial ofensivo, segundo o art. 61 da Lei nº 9099/95, e o furto não. A pena daquele é de detenção e deste de reclusão. A prescrição em abstrato do crime de furto é de oito anos (art. 109, IV) e da alteração de limites de apenas dois anos (art. 109, VI).

Percebe-se, em uma escala de valores, que o Código Penal empresta maior reprovabilidade à conduta do furto do que a de alteração de limites, apesar de ambas serem uma forma de subtração/apropriação de coisa alheia. Onde estaria, no entanto a explicação para tão improvável distinção? Seria na possibilidade de recuperação da coisa? Talvez não, pois o desforço necessário é permitido também para as coisas móveis (art. 1210, §1º), desde o Código Civil anterior (art. 502). Ademais, a alteração de limites se faz em regra de forma clandestina, sem que o proprietário da coisa imóvel possa perceber o que de fato ocorreu, se não se valer de um estudo topográfico do seu terreno. Isso tem importância, à medida que essa medição pode ser inviabilizada pelo seu custo em comparação às condições econômicas do subtraído/usurpado. E, por fim, apesar de clandestina, essa posse pode ser usucapida, transformando-se em propriedade do autor do fato (art. 1238) que se beneficiou da prescrição aquisitiva.

Vista por todos os ângulos, inclusive de defesa e preservação das relações sociais, essa conduta é tão ou mais reprovável que uma simples subtração de coisa móvel. Os efeitos sociais e a possibilidade de geração de inúmeros conflitos são reais e cotidianas. O crime de esbulho possessório (art. 161, II), que se revela com a invasão, mediante violência ou grave ameaça ou concurso de mais de duas pessoas, a terreno ou edifício alheio (bem imóvel), também é reprimido com a mesma pena da alteração de limites. Sem nos atermos na profusão de problemas agrários existentes até hoje em nossa sociedade, o Código Penal decreta que a subtração simples de coisa móvel é definitivamente mais grave que a invasão a imóvel com o fim de usurpar, mesmo se cometido com violência ou grave ameaça. Contra essa patente ausência de lógica, não há argumentos.

Seria, então, a figura do sujeito ativo do delito, que no furto sempre se atem aos elementos marginalizados, sem importância social, de conotação pejorativa, e que, em regra, não são proprietários de imóveis? É possível. Apesar de existir furto de obras de artes de grande valor econômico, obviamente o imaginário social conecta a figura do ladrão a algo biltre, reles, vil. Por outro lado, para se apropriar de um bem imóvel, alterando limites, pressupõe-se que o autor do fato não é marginal, mas proprietário de terra e o mais grave, vizinho do lesionado.

Essas disposições normativas, talvez, na década de 30 pudessem fazer algum sentido, apesar do recrudescimento com a legislação anterior. Mas, no contexto atual vale uma reflexão. O nosso Código Penal tem quase 70 anos e neste particular nunca foi alterado, como se fosse incomum a apropriação de coisa imóvel alheia alterando-se os seus limites ou mesmo o esbulho possessório, com todas as implicâncias em conflitos sociais que testemunhamos diuturnamente. São fatos jurídicos, que não parecem se situar também na esfera penal, como se estivessem eqüidistante, em um mundo próprio, limitado a apenas uma repercussão de natureza civil, camuflando transgressões e enfretamentos que permanecem latentes na sociedade.

O furto também é marginalizado com relação ao crime de dano, ou seja, destruir, inutilizar ou deteriorar coisa alheia (art. 163), que na sua forma simples prevê a pena de detenção de um a seis meses, idêntica à alteração de limites. Desse modo, se alguém subtrair coisa alheia que posteriormente for encontrada e restituída ao proprietário, configurando, no entanto, a consumação do crime de furto, será apenado com reclusão de um a quatro anos. Se, no entanto, em vez da subtração, o agente resolver destruir o mesmo objeto, que nunca mais terá utilidade para o seu dono, que perderá, assim, a possibilidade de usar, gozar ou dispor do seu bem (ofensa real ao direito de propriedade constitucionalmente assegurado), a pena mínima é será de 1/12 e a máxima de 1/8 da pena do crime de furto.

É interessante, também, destacar que o objeto material do crime de dano tanto pode ser a propriedade móvel como imóvel, diferentemente do furto. Além do mais se o dano for cometido com violência à pessoa ou grave ameaça; com emprego de substância inflamável ou explosiva; contra o patrimônio público, de concessionária de serviço público ou sociedade de economia mista, ou, ainda, por motivo egoístico com prejuízo considerável para a vítima (art. 163, parágrafo único), a pena mínima continua sendo somente a metade (seis meses) do crime de furto simples ou ¼ da pena mínima do furto qualificado (art. 155, §4º). Trata-se de uma desproporção igualmente inexplicável

No Código Penal de 1890, a pena do crime de dano (art. 329 - destruir, ou damnificar, cousa alheia, de qualquer valor, móvel, immovel, ou semovente) era de um a três meses mais a pena de multa que variava de cinco a vinte por cento sobre o valor do dano, o que era absolutamente proporcional às penas do furto à época. Já em 1830, a pena para "destruir ou damnificar cousa alheia de qualquer valor" era de apenas 10 a 40 dias de prisão (art. 266), além da multa mantida pelo Código de 1890. No entanto, há uma disposição curiosa prevendo que "se a destruição, ou damnificação neste caso fôr feita para se apropriar o delinqüente do terreno alheio"(art. 267, segunda parte), a pena será a mesma do furto (mínimo de dois meses e máximo de quatro anos). A história, assim, nos ensina que a nossa sociedade no século XIX convivia, ao menos sob o ponto de vista da ciência penal, com critérios mais proporcionais e menos incoerentes quando normatizava as condutas relativas aos crimes patrimoniais.

Seguindo os ensinamentos de Zaffaroni e Pirangeli, se a tutela penal se alinha à relação de disponibilidade de um indivíduo com um objeto, como explicar a baixa reprovabilidade do dano com relação ao furto, se nunca mais vai ser utilizado o objeto danificado, além do fato que pode ser cometido inclusive com violência? O sujeito ativo do delito pode ser, da mesma forma que o furto, qualquer pessoa, salvo o proprietário. Poderia, inclusive, ser o elemento marginalizado, despossuído de bens, que acima relatamos. Seria, então, o desapego do autor do fato às coisas materiais, a possibilidade de não se utilizar do produto da sua subtração? Provavelmente não, uma vez que o que vier a ser feito com o objeto, no crime de furto, é exaurimento, não guardando nenhuma repercussão jurídico-penal. A subtração por si, aqui, segue o seu rumo de gravidade, sem nenhuma outra razoável explicação.

No direito comparado, só para ficarmos aqui no Mercosul, o Código Penal uruguaio [20] que é contemporâneo (1933) de nosso Código de 1940, prevê para o crime de furto (hurto – art. 340) a pena de três meses a seis anos; para o crime de usurpação (usurpación – art. 354), que engloba tanto a alteração de limite, quanto o esbulho, uma pena de três meses a três anos; e, por fim, o crime de dano (daños – art. 358) na sua forma simples é punido somente pela pena de multa.

O Código Penal argentino [21], elaborado 44 e 51 anos respectivamente depois do brasileiro e do uruguaio (1984) impõe ao furto (hurto – art. 162) a pena de um mês a dois anos, muito aquém dos outros dois códigos penais. No entanto, para o dano, na sua modalidade simples (daños – art. 183), os argentinos imputam uma pena de quinze dias a um ano, ao contrário dos uruguaios, que optaram pela multa, mas proporcional ao Brasil, cuja pena é de um a seis meses. No entanto, se tratando da usurpação, englobando aí a alteração de limites e o esbulho, enquanto a opção de nosso legislador foi de apenas um a seis meses de detenção, os uruguaios, como acima assinalado, definiram a pena de três meses a três anos e os argentinos de seis meses a três anos (usurpación – art. 181). Ou seja, com relação à lesão a bem imóvel as penas são sempre maiores no Uruguai e na Argentina que no direito brasileiro.

Trata-se de uma diferença considerável, porquanto naturalmente existe um sentimento de reprovabilidade mais acentuado na usurpação, não encontrado aqui no Brasil, que optou por reprimir com maior veemência a subtração simples de coisa móvel. Como não era dessa forma valorado nos códigos penais do império e da república no século XIX, é possível concluir que o crime de furto ingressa no imaginário brasileiro na década de 30, de uma forma exacerbada, com grande conteúdo de reprovação, mas que infelizmente não soubemos superar nestes quase 70 anos de vigência do Código Penal. Não seria crível acreditar que esse tempo não poderia produzir significativas mudanças nesse cenário. Mas, por uma constatação histórica, nada fizemos nos últimos 70 anos e contra isso não há, também, nenhum argumento.

Afinal, é possível sorver cada palavra pregada por Cesare Beccaria [22], desde o século XVIII, incomodado com a demora na reação do Estado a problemas que com nitidez são identificados, e que até hoje depende de uma postura mais ativa da sociedade no sentido de enfrentamento dessas graves questões. Nada do que foi escrito por Beccaria, é resultado de uma mera coincidência:

Um roubo cometido sem violência só deveria ser punido com uma pena pecuniária. É justo que quem rouba o bem de outrem, seja despojado do seu.

Mas, se o roubo é ordinariamente o crime da miséria e do desespero, se esse delito só é cometido por essa classe de homens infortunados, a quem o direito de propriedade (direito terrível e talvez desnecessário) só deixou a existência como único bem, as penas pecuniárias contribuirão simplesmente para multiplicar os roubos, aumentando o número de indigentes, arrancando o pão a uma família inocente, para dá-lo a um rico talvez criminoso.

(...)

O roubo com violência e o roubo de astúcia são delitos absolutamente diferentes; e a sã política deve admitir, ainda mais do que as matemáticas, o axioma certo de que entre dois objetos heterogêneos, há uma distância infinita.

Essas coisas foram ditas, mas é sempre útil repetir verdades que jamais se puseram em práticas. Os corpos políticos conservam por muito tempo o movimento recebido; é, porém, moroso, imprimir-lhe um novo movimento.


Da Iniciativa da Ação Penal

Vivemos, sem dúvidas, em uma sociedade de risco, decorrente da nossa opção por um modelo econômico surgido na Revolução Industrial, "que organiza produção de bens por meio de um sistema de livre concorrência mercadológica" [23]. No entanto, pontua Pierpaolo Cruz Bottini, "a presença do risco como fator nuclear da ordem econômica e social, e suas características de alto potencial lesivo, dificuldade de medição, e de reflexividade (efeito bumerangue) acarretam à sociedade uma sensação de insegurança coletiva, intensificada pela ação de meios de comunicação de massa e pela desintegração de pautas de confiança e de expectativa no agir. As estruturas que fundamentam o modelo social atual, e que garantem a sua sobrevivência e reprodução, são responsáveis pelo desenvolvimento do risco. O fator indispensável para a manutenção da estrutura social – o risco – coincide com o seu próprio fator de desequilíbrio". [24]

Além de pertencermos a uma sociedade insegura, capitalista e baseada na livre concorrência, decorrendo, naturalmente, diversos efeitos no campo patrimonial, o Estado proíbe a auto defesa, assumindo o monopólio da distribuição da justiça. Portanto, "qualquer lesão ou ameaça a direito deve ser levada ao conhecimento do Estado-juiz" [25] e com isso surge o direito subjetivo de agir, acionando o Estado para que solucione conflitos de interesses resistidos. Nasce assim o direito de ação, "para que se reclame ao Estado uma providência jurisdicional cabível" [26], seja de que natureza for. O fundamento jurídico constitucional do direito de ação está expresso no art. 5º, XXXV, que determina que "a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário, lesão ou ameaça ao direito".

O complexo normativo existente na sociedade estabelece limites à nossa conduta e aos infringirmos os seus preceitos nos sujeitamos às sanções previstas, que poderão ser de natureza civil, administrativa ou penal. Tourinho Filho [27] ministra que "se a infração penal ofende gravemente a ordem ético-jurídica e sendo o dever precípuo do Estado defendê-la, permanece claro que o direito de punir lhe pertence como uma das expressões mais características da sua soberania. Ao impor a todos quantos se encontrem no seu território a observância de normas penais, surge para o Estado o direito de punir em potencial, um direito de punir em abstrato. E a esse direito corresponde o dever de todos de absterem-se de realizar a conduta prevista em lei como infração penal".

O direito de agir (subjetivo) para exigir que o Estado aplique o direito (objetivo), diante de uma transgressão aos limites impostos por uma norma comportamental, só é possível com o exercício do devido processo legal (garantia constitucional), consubstanciando-se, ao final, no direito estatal de punir. Mirabete assegura que "sendo o crime um fato que lesa direitos do indivíduo e da sociedade, cabe ao Estado reprimi-lo com o exercício do jus puniendi. O direito subjetivo de punir, que é mais o dever de punir, não é ilimitado, vinculando-se o Estado ao direito objetivo, tanto na imputação, circunscrita aos fatos típicos, como nas penas a serem aplicadas. Além disso, para exercitar o direito de punir é necessário que haja processo e julgamento, já que não pode o Estado impor, arbitrariamente, a sanção". [28]

A legitimidade ativa ad causam para o exercício da ação penal, segundo o nosso ordenamento, é possível em três circunstâncias: a iniciativa pública incondicionada; a pública condicionada e a privada. A regra estabelece que a ação penal seja sempre pública de iniciativa pública, ou seja, incondicionada ou condicionada à representação, salvo quando a lei a declara privativa do ofendido (art. 100). A ação pública é promovida pelo Ministério Público, dependendo, quando a lei o exige, de representação do ofendido (art. 100, §1º).

Portanto, para toda conduta que transgride o ordenamento penal a ação será sempre de iniciativa pública incondicionada, salvo quando a lei exigir a representação do ofendido ou requisição do Ministro da Justiça. Mais excepcional, ainda, é a possibilidade, que também tem que vir expressa, de se iniciar privadamente uma ação penal. É exatamente nesse ponto que enfrentamos outras grandes incoerências, que há muito tempo já deveriam estar superadas.

Nos crimes patrimoniais, por exemplo, existe a possibilidade de se iniciar uma ação penal de todas as três formas permitidas. Tomando o direcionamento da regra do artigo 100 do Código Penal ou do artigo 24 do Código de Processo Penal, ou seja, pela exceção, se inicia uma ação penal condicionada à representação apenas nos crimes de furto de coisa comum (§2º do art. 156) e outras fraudes (parágrafo único do art. 176). Já a iniciativa por ação penal privada é permitida expressamente nos crimes de alterações de limites, usurpação de águas e esbulho possessório, quando não forem cometidos com violência (§3º do art. 161); dano simples, dano qualificado cometido por motivo egoístico ou com prejuízo considerável para a vítima e a introdução ou abandono de animais em propriedade particular (art. 167); e, por fim, fraude à execução (parágrafo único do art. 179). Nos demais, para todos os crimes, a iniciativa é sempre pública incondicionada.

Há de se indagar qual foi o critério que o legislador elegeu para considerar que um crime contra o patrimônio possa ter a iniciativa da ação penal incondicionada, condicionada à representação ou privada. Se a primeira hipótese é a regra, o que importa na diferenciação das demais? Quais são os argumentos que embasaram essa determinação?

Certamente podemos, desde logo, afastar os casos de crimes complexos, onde se protege dois ou mais bens jurídicos, como, por exemplo, nos casos de roubo (art. 157), extorsão (art. 158) e extorsão mediante seqüestro (art. 159), em que o objeto jurídico além do patrimônio (propriedade e posse), alcança a "integridade física, a vida, a saúde e a liberdade individual". [29] Por óbvio, que nestes casos não se protege unicamente o patrimônio, há direitos indisponíveis lesionados. Nada mais natural, portanto, que o Estado assuma sozinho o ônus de iniciar uma ação penal. Os elementos que informam a culpabilidade no próprio tipo justificam tal iniciativa.

O mesmo não se pode assegurar certeza com relação aos demais tipos dos crimes patrimoniais. Assim, na apropriação indébita acidental de coisa alheia havida por erro, caso fortuito ou força da natureza, crime previsto no art. 169, caput, cuja pena é de detenção de apenas um mês a um ano, a iniciativa da ação penal é publica incondicionada. Ora, o sujeito passivo do delito é o particular que teve o seu bem apropriado por erro, caso fortuito ou coisa da natureza e o legislador, assim, não quis saber se há ou não interesse do proprietário ou possuidor em retomar o seu bem, ou a que ponto isso de fato representa uma lesão ao seu patrimônio. Como se trata de iniciativa de ofício, mesmo que não haja nenhuma manifestação do proprietário, se um terceiro noticiar as autoridades, a ação penal pode ser iniciada com todas as suas conseqüências. Trata-se de uma intervenção arbitrária e antiquada.

Tal fato, a iniciativa incondicionada da ação para o delito de apropriação acidental de coisa alheia, se torna mais evidente, quando o legislador comina, como contraponto, para o dano qualificado por motivo egoístico ou para aquele dano que causou prejuízo considerável à vítima (art. 163, IV) a possibilidade de se proceder mediante ação penal privada. Ora, aqui o prejuízo é considerável, de grande monta, ou o crime foi cometido por motivo egoístico, mas mesmo assim o legislador optou, sem qualquer critério, pela ação penal de iniciativa privada. O elemento subjetivo do tipo que no dano é de destruir, inutilizar, enquanto que no crime do artigo 169 é de apropriar-se de coisa alheia que veio ao seu poder, não justifica, por si, essa diferenciação.

No mesmo sentido podemos argumentar com relação ao furto (art. 155), cuja iniciativa é incondicionada, comparando-se com a conduta de fraudar a execução, alienando, desviando, destruindo ou danificando bens, ou simulando dívidas – crime de fraude à execução (art. 179), de iniciativa meramente privada. Qual seria de fato a conduta mais grave, mais reprovável? Por que qualificar a simples subtração em detrimento da fraude processual, que sabemos ter muito mais poder ofensivo, e que comporta não só lesão ao particular como também ao interesse público, em razão de ofensa à própria administração da Justiça? Procurando encontrar a lógica, estabelecer uma diferenciação conceitual, nos deparamos com uma inusitada ausência de explicação.

Ademais, estamos argumentando sobre bens de origem patrimonial, derivados da propriedade e da posse, direito absoluto, garantido constitucionalmente. Não é razoável que qualquer ação penal, nos casos dos crimes contra o patrimônio, salvo os crimes complexos, se inicie de forma incondicionada, sem a manifestação explícita do titular do bem que se procura tutelar. No fundo, quando estabelecemos uma linha de aproximação de todos os tipos penais previstos para os crimes contra o patrimônio, encontramos um mesmo resultado: a perda patrimonial seja ela ocorrida pela subtração, usurpação, destruição ou inutilização, apropriação e alienação ou desvio de um bem móvel ou imóvel. Trata-se, no fim, de perda patrimonial, nada mais, o que nos remete ao caráter sancionatório do direito penal, no tocante aos delitos patrimoniais, destacado por Heleno Fragoso.

Ao se estabelecer formas de se iniciar uma ação penal diferenciada, para a proteção do mesmo bem jurídico (patrimônio), deveria haver uma forma mais racional adotada pelo legislador e não tão discricionária e sem conteúdo. Os exemplos se sucedem: o crime de outras fraudes (art. 176) consiste em "tomar refeições em restaurante, alojar-se em hotel ou utilizar-se de meio de transporte sem dispor de recurso para o pagamento". Para tanto, tem a previsão de uma pena de detenção de quinze dias a dois meses. Trata-se, obviamente, de um crime patrimonial, que pode ocorrer diante de diversas situações. Nada melhor do que o legislador transferir ao titular do patrimônio lesado pela ausência do pagamento da refeição, da diária ou da passagem a decisão de acionar ou não o Estado através de uma representação, para que esse possa postular a pena correspondente ao delito praticado. A decisão será sempre do titular do direito lesionado.

Neste delito, em particular, o legislador andou muito bem, adotando a representação (parágrafo único do artigo 176), o que só faz ressaltar a incoerência com relação aos demais. Por que tantos critérios se estamos, de fato, trabalhando sempre com a mesma natureza de resultados na conduta lesiva?

Diversos doutrinadores oferecem uma razoável explicação para a ocorrência das três formas possíveis de se iniciar uma ação penal. Disseca-se o instituto, mas não a razão de ter sido elegida essa ou aquela iniciativa nos crimes patrimoniais. Assim, "por considerar os efeitos mais gravosos aos interesses individuais, o Estado atribui ao ofendido o direito de avaliar a oportunidade e a conveniência de promover a ação penal". [30] Segundo Cezar Roberto Bitencourt, "na ação penal pública condicionada há uma relação complexa de interesses, do ofendido e do Estado. De um lado, o direito legítimo do ofendido de manter o crime ignorado; de outro o interesse público do Estado em puni-lo: assim não se move sem a representação do ofendido, mas iniciada a ação pública pela denúncia, prossegue até o final sob o comando do Ministério Público". [31] Talvez esse seja o ponto de equilíbrio que necessitamos ao tratarmos dos delitos patrimoniais.

Eugenio Pacelli [32] contribui, nesse sentido, ao assegurar que de fato a persecução penal evidencia sempre o interesse público, mas "há casos em que outra ordem de interesses, igualmente relevantes, devem ser tutelados pelo ordenamento processual. Trata-se de proteção da vítima de determinados crimes contra os deletérios efeitos que, eventualmente, podem vir causados pela divulgação pública do fato. Por isso, em razão do que a doutrina convencionou chamar de strepitus iudicii (escândalo provocado pelo ajuizamento da ação penal), reserva-se a ela o juízo de oportunidade e conveniência da instauração da ação penal, com objetivo de evitar a produção de novos danos em seu patrimônio – moral, social, psicológico, etc. – diante de possível repercussão negativa trazida pelo conhecimento generalizado do fato criminoso".

Tourinho Filho defende que "às vezes, o Estado, embora considerando o interesse da repressão, leva em conta outros interesses, ou outras situações. Às vezes, o delito cometido afeta tão profundamente a esfera íntima e secreta de um indivíduo, que o Estado, em face da gravidade, faz respeitar a vontade da vítima ou de quem legalmente a represente, evitando, assim, que a intimidade ferida pela infração o seja novamente pelo strepitus fori (v. Sebastian Soler, Derecho, cit., v.2, p. 500). Nesses casos, adverte o insigne Frank, surge um conflito de interesse entre a necessidade da repressão e o respeito à intimidade pessoal. O Estado prefere, então, deixar ao arbítrio do ofendido a apreciação dos interesses familiares, íntimos e sociais que podem estar em jogo. Concede-lhe o Estado o direito de julgar da conveniência ou inconveniência da propositura da ação". [33]

O Código Penal, em uma tentativa de abrandar as conseqüências de se generalizar a iniciativa da ação pública incondicionada nos crimes patrimoniais, prevê escusas absolutórias, isentando de pena quem os cometer em prejuízo do cônjuge, na constância da sociedade conjugal, do ascendente ou do descendente. No mesmo sentido, condicionou o Estado o seu poder repressivo, exigindo a representação da vítima do delito patrimonial, somente quando for cônjuge judicialmente separado, irmão, tio ou sobrinho, com que o autor do fato habite. As duas possibilidades são, no entanto, dependente de o delito não ter sido cometido com violência ou grave ameaça (crimes complexos), ou se a vítima tiver sessenta anos ou mais (art. 183).

Contudo, há de se argumentar o porquê dessa enumeração aleatória. Por exemplo, por que o tio ou o sobrinho que com eles esteja o autor do fato habitando? E o primo muito próximo, um filho de criação, um namorado, o vizinho de muitos anos, o cunhado, um empregado doméstico, um amigo, ou o próprio tio ou o sobrinho que more em outra casa, além de tantas outras pessoas que comumente preenchem os laços afetivos da maioria da população? Para isso não existe solução, ou se reconhece que a necessidade de se generalizar o condicionamento da iniciativa da ação penal ou vamos continuar fraudando as estatísticas e deixando de comunicar as autoridades delitos de iniciativa incondicionada, porque totalmente em desacordo com os interesses da intimidade familiar e/ou dos relacionamentos sociais mais caros e próximos. O núcleo familiar e o de relações pessoais são complexos e muitas vezes se confundem. Por que passivamente estamos aceitando essa intervenção do Estado, sem que nada até hoje seja feito?

A intimidade e a vida privada, levantadas por Tourinho Filho, têm proteção constitucional (art. 5º, X), e, como se não bastasse, dispõe a Convenção Americana de Direitos Humanos que "ninguém pode ser objeto de ingerências arbitrárias ou abusivas em sua vida privada, em sua família" (art. 11.2).

Assim, diante de um furto (ação penal incondicionada), cometido por um filho de um vizinho, podemos nos deparar com a seguinte situação: se o furto ocorreu em uma residência cujas famílias mantém laços sócio-afetivos, esse sentimento que os unem e podem revelar a compreensão circunstancial do fato criminoso não pode ser desrespeitado pelo Estado, como se estranho fossem. Há aqui, que se prestigiar a manifestação de inconveniência de quem foi lesionado pela conduta delituosa, evitando-se o inicio de uma ação penal de forma incondicionada.

Ao contrário, se para outra determinada família, sem laço afetivo-social com o infrator, a conduta causar repulsa e não for circunstancialmente compreendida, teremos um excelente instrumento para compormos os interesses divergentes em todos os espectros, fazendo a devida comunicação oficial da ocorrência do fato delituoso por meio da representação. Se, permanecermos aceitando essa intervenção estatal sem nenhum critério, estaremos tratando situações de fato não idênticas com a mesma solução jurídica de intervenção, permitindo a possibilidade de ocorrer conflitos entre famílias que poderiam resolver o problema por outra abordagem, inclusive com muito mais possibilidade de êxito.

Ademais, para fugir a essa imposição abusiva simplesmente as vítimas deixam de comunicar a ocorrência de qualquer delito de ação incondicionada, especialmente os de natureza patrimonial. Seria mais simples e justo, apenas transferir para o titular do bem jurídico lesionado, a manifestação de vontade sobre a questão penal, como ocorre naturalmente nas esfera cível.

Pode-se, ainda, argumentar, que se de fato as vítimas motivadas por sentimentos pessoais deixam de comunicar a ocorrência de um crime de ação pública incondicionada, nada impede que terceiros o façam, como que um traço comportamental importado do nosso passado recente (da Constituição de 1824 até a Constituição de 1946, inclusive), em que se podia propor a chamada ação penal popular, quando qualquer um do povo, mesmo que não tenha sido lesionado pela conduta delituosa, poderia propor uma ação penal nos casos específicos, que era "relacionada diretamente com o interesse público e indiretamente com o interesse individual" [34]. Merece relevar o fato de que o nosso Código Penal foi concebido ainda nesse ambiente intervencionista.

Existem, também, outros argumentos, defendidos por Eugenio Pacelli, que precisam ser registrados. Além de uma questão pragmática, "se o ofendido não dispuser confirmar em juízo a ação dificilmente chegará a um bom termo" [35], trata-se da própria constatação da lesividade [36] efetivada pelo proprietário ou possuidor do bem, que justificariam a manifestação do ofendido. Se para esse a lesão não tem relevância, porque haveria para a sociedade, de modo a justificar uma ação pública incondicionada, por exemplo, no crime de furto (art. 155) ou de apropriação de coisa achada (art. 169, II)?

Analisando esses aspectos sobre o pondo de vista do direito material, Zaffaroni e Pirangeli ensinam que o "acordo é uma forma de aquiescência que configura uma causa de atipicidade, mas que deve ser cuidadosamente diferenciada do consentimento, que só pode ser um limite a alguma causa de justificação. O acordo é precisamente o exercício da disponibilidade que o bem jurídico implica, de modo que, por maior que seja a aparência de tipicidade que tenha a conduta, jamais o tipo pode proibir uma conduta para qual o titular do bem jurídico tenha prestado a sua conformidade".

Assim, se processualmente é fundamental a manifestação de vontade da vítima que teve o seu direito disponível lesionando, como condição de procedibilidade para a ação penal, materialmente, nos casos dos crimes patrimoniais em especial, não se pode prescindir dessa manifestação para se caracterizar ou não a aquiescência do prejudicado, com relação à possibilidade de dispor do bem jurídico em questão.

Nos crimes patrimoniais, de acordo com a sistemática adotada por nosso Código Penal, ainda na vigência da Constituição de 1937, o exercício da ação penal incondicionada, salvo nos crimes complexos, distribuída de forma aleatória e sem critérios, fere frontalmente o direito constitucional à intimidade e a vida privada do ofendido, consubstanciando-se em um desrespeito a vítima, tutelada como se fosse sempre hipossuficiente, inclusive para demonstrar o seu inconformismo com determinadas condutas. Esse exercício arbitrário fere, ainda, o direito de propriedade, que se revela substancialmente na sua disponibilidade, no ato unilateral de sua renúncia.


Conclusão

A constatação da lesividade da conduta, a conveniência e a oportunidade decorrentes dos efeitos moral, social e psicológico do evento, são situações que demonstram a necessidade urgente de revisão dos nossos parâmetros normativos para evoluirmos e condicionarmos as ações penais patrimoniais nos crimes que não foram cometidos com violência ou grave ameaça. Do mesmo modo, um realinhamento mais consentâneo na imposição penal, resgatando a proporcionalidade no tratamento dos delitos desta natureza.

A opção por um modelo que prestigie mais a vontade do ofendido, mesclando-o com as providências públicas, no condicionamento da iniciativa da ação penal, favorece, inclusive, um meio termo entre a ação penal incondicionada e a enorme discricionariedade (e seus reflexos no cotidiano não muitas vezes transparente) ocorrente na ação penal de iniciativa privada. Transferir ao particular, aleatoriamente, o ônus da iniciativa e a administração de uma ação penal nos crime patrimoniais, favorece, em grande parte das vezes, ao autor da conduta delituosa, em face do não interesse do lesionado em ter que suportar as conseqüências de se propor e manter também uma ação penal.

Insistir na propositura de ações penais incondicionadas para delitos patrimoniais, salvo os crimes complexos, fere frontalmente a ordem constitucional hoje estabelecida, não sendo necessária a edição de norma específica para regular a espécie. Vivemos dias diferentes da década de 30, por mais que se torne evidente com o passar dos anos que vivemos em uma sociedade de risco. No entanto, essa sociedade tem relações mais complexas e que precisam ser atualizadas normativamente de forma geral ou abstrata ou, se alternativamente, pela norma do caso concreto gerada por decisão judicial, para evitarmos esse descompasso e essa profusão antiquada de incoerência e desrespeito, sempre em desfavor do cidadão.

Mas, enquanto isso é sempre bom lembrar Eduardo Couture [37], ensinando-nos sobre a interpretação das leis processuais:

O intérprete é um intermediário entre o texto e a realidade.

Interpretar a lei não é interpretar o Direito. O Direito é o todo do objeto a ser interpretado; a lei é, apenas, uma parte.

A interpretação histórica do tempo da sanção deve, então, ser substituída pela interpretação progressiva, isto é, por um método de interpretação que projete, através da história do futuro, o conteúdo da lei.


Notas

  1. Noberto Bobbio. Teoria do Ordenamento Jurídico. São Paulo: Polis, 1989.
  2. Paulo Nader. Curso de Direito Civil. Volume 1. Parte Geral. 2ª edição. 2004. Editora Forense, p. 295
  3. Apud, Francisco de Assis Toledo. Princípios Básicos do Direito Penal. 4ª edição. Editora Saraiva, p. 16
  4. Francisco de Assis Toledo. Princípios Básicos do Direito Penal. 4ª edição. Editora Saraiva, p. 15
  5. Eugênio Raúl Zaffaroni e José Henrique Pirangeli. Manual de Direito Penal Brasileiro. Volume I. Parte Geral. 7ª edição. 2008. Editora Revista dos Tribunais, p. 399
  6. Eugênio Raúl Zaffaroni e José Henrique Pirangeli. Idem.
  7. Maria Helena Diniz. Dicionário Jurídico. Volume 2. 1998. Editora Saraiva, p. 183
  8. Goffredo Telles Jr. Apud Maria Helena Diniz. Dicionário Jurídico. Volume 2. 1998. Editora Saraiva, p. 183
  9. Washington de Barros Monteiro, apud, Roberto J. Pugliese. Direito das Coisas. Livraria e Editora Universitária de Direito. 2005, p. 265.
  10. Orlando Gomes. Direitos Reais. 9ª edição. 1985. Editora Forense, p. 86.
  11. Orlando Gomes Idem, p. 177
  12. Conferência proferida, em meados de 1984, na Fundação Casa de Rui Barbosa, e publicada postumamente, sem revisão do autor, na Revista Forense n.° 300, out./dez. 1987 e encontrado no sitio eletrônico: http://www.fragoso.com.br/cgi-bin/heleno_artigos/arquivo40.pdf
  13. Paulo Nader. Curso de Direito Civil. Volume 1. Parte Geral. 2ª edição. 2004. Editora Forense, p. 296
  14. Heleno Cláudio Fragoso. Idem.
  15. Heleno Cláudio Fragoso. Idem.
  16. Heleno Cláudio Fragoso. Idem.
  17. Heleno Cláudio Fragoso. Idem.
  18. Decreto nº 847, de 11/10/1890.
  19. Lei de 16 de dezembro de 1830.
  20. Ley 9155, de 04/12/1933
  21. Ley 11179/84
  22. Dos Delitos e da Pena. Edição eletrônica. Editora Ridendo Castigat Moraes. Sitio eletrônico www.jahr.org.
  23. Pierpaolo Cruz Bottini. Crimes de Perigo Abstrato e Princípio da Precaução na Sociedade de Risco. Editora Revista dos Tribunais. 2007, p. 33.
  24. Pierpaolo Cruz Bottini. Idem, p. 47.
  25. Paulo Rangel. Direito Processual Penal. 16ª edição. 2009. Editora Lumen Juris, p. 212.
  26. Paulo Rangel. Idem.
  27. Fernando da Costa Tourinho Filho. Processo Penal. 1º volume. 13ª edição. 1992. Editora Saraiva, p. 256.
  28. Júlio Fabbrini Mirabete. Processo Penal. 4ª edição. 1995. Editora Atlas, p. 105/106.
  29. Damásio E. de Jesus. Código Penal Anotado. 19 edição. 2009. Editora Saraiva, p. 583.
  30. Cezar Roberto Bitencourt. Tratado de Direito Penal. Parte Geral. 14ª edição. 2009. Editora Saraiva, p. 755/756
  31. Cezar Roberto Bitencourt. Idem, p. 756
  32. Eugênio Pacelli de Oliveira. Curso de Processo Penal. 11ª edição. 2009. Editora Lumen Juris, p. 121.
  33. Tourinho Filho. Idem, p. 282/283
  34. Luiz Vicente Cernicchiaro e Paulo José da Costa Jr. Direito Penal na Constituição. 2ª edição. 1991. Editora Revista dos Tribunais, p. 153.
  35. Eugênio Pacelli de Oliveira. Idem, p. 120
  36. Eugênio Pacelli de Oliveira. Idem, p. 122
  37. Interpretação das Leis Processuais. 1993. Editora Forense.

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Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

REIS, Fernando Antônio Calmon. Digressões sobre os direitos disponíveis, os crimes patrimoniais e a ação penal de iniciativa pública. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 14, n. 2312, 30 out. 2009. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/13767. Acesso em: 25 abr. 2024.