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As misérias da advocacia

As misérias da advocacia

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Notadamente a advocacia é uma das mais antigas e importantes profissões que temos conhecimento. Sua origem remonta aos primórdios da civilização humana. Podemos citar, por exemplo, o terceiro livro do Pentateuco bíblico, o livro de Levíticos. Basicamente é um livro teocrático, de caráter legislativo; possui, ainda, em seu texto, o ritual dos sacrifícios, as normas que diferenciam o puro do impuro, a lei da santidade e o calendário litúrgico entre outras normas e legislações que regulariam a religião. Indubitavelmente, essas leis precisavam ser interpretadas, e nesse ponto surgiam os intérpretes das leis. Era um ofício sacro, onde estes intérpretes diziam o verdadeiro espírito da lei ao povo Hebreu. Eram arautos de Deus, a boca de Deus para o povo Hebreu.

Com o início da sociedade moderna, contratualista (O contrato social, Jean-Jacques Rosseau), a importância desse profissional se tornou mais evidente. É lógico que uma sociedade que resolveu estabelecer o convívio social através de leis de comportamento, um de seus pilares deveria ser o profissional das leis, tanto na elaboração, quanto na interpretação e aplicação dessas.

Contextualizando para a realidade brasileira, no dia 11 de agosto de 1827, a cidade de São Paulo se transformou num importante núcleo de atividades intelectuais e políticas. Nesta data foi instituída, no Largo São Francisco, a primeira Faculdade de Direito do país. A lei que instituiu o curso, dava aos concluintes o título honroso de "doutor". A partir deste episódio surge o costume de chamar os advogados de "doutores", uma honraria dada por Dom Pedro I.

Atualmente, em nossa carta política de 1988, a única profissão a que se faz referência, é a do advogado, no seu artigo 133, verbis: "Art. 133. O advogado é indispensável à administração da justiça, sendo inviolável por seus atos e manifestações no exercício da profissão, nos limites da lei."

Esta sucinta retrospectiva tem o condão de ilustrar a importância desse profissional. Indiscutivelmente ser advogado é (ou pelo menos deveria ser) algo honroso.

Com o passar do tempo, esse glamour em volta da advocacia foi perdendo o brilho, se esmaecendo, até o ponto de encontrarmos advogados procurando emprego de garçom – sem desmerecer a nobre profissão de garçom, é claro. Aliás, encontrarmos advogados hodiernamente desempenhando outro ofício não é raro, está se tornando rotineiro.

Mas por que isso tem ocorrido com tanta frequência? Encontrarmos a resposta para esta pergunta não é nada simples, mas nos esforçaremos para respondê-la, sem, entretanto, esgotarmos o tema. É claro que cada pessoa pode chegar a suas próprias conclusões, partindo de suas experiências. De fato, o que se pretende é apenas iniciarmos uma discussão sobre um tema de extrema importância para toda a sociedade e não só para a classe dos advogados.

Não quero entrar no assunto do exame de ordem, por ser tormentoso demais, e muito controvertido. O exame da ordem poderá ser tratado em outra oportunidade.

O problema no mister da advocacia se inicia nas agruras por que passa o Poder Judiciário. O Poder Judiciário brasileiro não estava preparado para tantas demandas como temos visto hoje em dia. Com o aumento na difusão da informação, isto é, o acesso de todas as classes sociais a informações que dantes era privilégio de poucos, aumentou substancialmente a busca pelos direitos e garantias fundamentais antigamente desconhecidos. Novas Leis como, por exemplo, o código de defesa do consumidor, juntamente com a instituição dos juizados especiais, trouxeram para o judiciário, clientes que antes não teriam condições de bancar um processo, muito menos conheciam seus direitos básicos. Além disso, não podemos negar que o Brasil se desenvolveu, e a população está se familiarizando com a democracia, com o Estado de Direito.

Mas o problema é que o Poder Judiciário não se preparou estruturalmente para esta crescente demanda, e talvez nunca consiga equalizar este desequilíbrio entre a quantidade de demandas e pessoal para julgá-las. Por esta razão, os juizes não conseguem entregar o provimento jurisdicional em tempo hábil a todos. O resultado todos nós sabemos. Processos que duram anos e às vezes décadas. Com tudo isso, as pessoas envolvidas nesse espetáculo jurídico foram se desgastando. Os juizes pensam que o grande número de demandas é culpa dos advogados; os advogados, por sua vez, imputam ao Poder Judiciário e juizes uma meia-culpa pela demora na prestação jurisdicional. Aquilo que deveria ser uma convivência pacífica entre todos os operadores do direito, passou a ser uma relação repulsiva.

E qual é o papel do advogado nesse pano de fundo? Eis a pior notícia. O advogado virou um simples pedinte, um mendigo jurisdicional. A vida de um advogado é suplicar, pedir, implorar, desde o balcão da escrivania, até o último fôlego do processo.

O advogado tem que mendigar....

para ser atendido no balcão da escrivania...

para encontrarem o processo que sumiu...

para tornarem os autos conclusos...

para dar andamento no processo que está parado há dois anos...

para a secretaria do juiz...

para ser atendido pelo Magistrado...

E quando, por fim, é atendido pelo magistrado, é tratado com certo desdém.

Corolário: a situação fica cada vez mais trágica. O cliente não entende o motivo pelo qual o processo dele está parado há dois anos, com os autos "conclusos" na mesa do juiz sem nada acontecer. O cliente cobra celeridade do advogado; este, por sua vez, não pode cobrar celeridade da justiça por duas razões: a primeira porque o problema nem sempre é do juiz, mas sim da falta de estrutura do Poder Judiciário; em segundo lugar, porque cobrar andamento pode piorar a situação e ficar mais uns dois anos parado. Quantos advogados nunca ouviram dos serventuários da justiça a seguinte frase: "doutor, o seu processo está na pilha, no monte, se tirar do lugar ele vai voltar pro final da fila..."

Por fim, após longos anos de processo, o juiz prolata uma sentença, e, se favorável, fixa honorários de R$ 300,00. Isso mesmo, o advogado trabalhou durante anos, recebendo pressões de todos os lados, se humilhou mendigando aquilo que lhe é um direito, direito seu enquanto advogado e de seu constituinte, e depois de tudo isso, recebe míseros R$ 300,00 de honorários de sucumbência.

Acredito que muitos advogados se encaixaram em alguma situação aqui narrada. Creio que muitos, a maioria absoluta dos advogados, que lerem este ensaio se identificarão de alguma forma e concordará em algum momento com o texto. Certamente esta não é a resposta definitiva para a questão posta acima. Mas seguramente é um dos fatores da degradação dessa profissão tão maravilhosa que é a de lutar pelo direito do próximo, de defender a democracia e o Estado de Direito.

Talvez seja este apenas o início de uma ampla discussão sobre o tema, mas sem dúvida, essas situações narradas contribuíram fortemente para a situação periclitante que encontra-se a advocacia. O resultado é um grande número de profissionais do direito tendo que se virar em outro ramo de atividade; honorários cada vez mais irrisórios; processos infindáveis, não pela quantidade de recursos, mas pela demora em julgá-los; etc,.

Certamente trata-se de um tema muito tormentoso para os advogados, o que faz do assunto quase um dogma cristalizado e intocável no meio jurídico, sobre o qual muitos não se aventuram a escrever, talvez com receio de iniciar uma discussão calorosa e perigosa, ou simplesmente com medo de retaliações.

Se o respeito e a dignidade a esse profissional não forem retomados urgentemente, a sociedade poderá perder grandes profissionais que trabalham por amor e paixão na defesa dos direitos do cidadão.


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Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

MOREIRA, Antonio Ricardo. As misérias da advocacia. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 14, n. 2322, 9 nov. 2009. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/13789. Acesso em: 28 mar. 2024.