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Os direitos dos herdeiros do sócio falecido

Os direitos dos herdeiros do sócio falecido

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Resumo: O presente artigo tem por objeto apresentar e solucionar os diversos problemas que gravitam em torno da dissolução parcial da sociedade limitada causada pela morte de um de seus sócios. É que com o falecimento do sócio surgem diversas questões tais como: (a) A lei obriga que os herdeiros do sócio falecido ingressem no quadro social da sociedade em que o falecido era participante? Ou permitindo o contrato social o ingresso dos herdeiros na sociedade, estes, com a morte do sócio, são investidos automaticamente na qualidade de sócio? (b) Quais as consequências da entrada dos herdeiros no quadro social? (c) Caso os herdeiros não ingressem na sociedade, qual o valor do crédito que tem a receber? E durante o período necessário para se aferir o valor do crédito titularizado pelos herdeiros, quais direitos do sócio podem ser estendidos aos herdeiros? E após obtido o valor do crédito, qual o meio processual mais adequado para os herdeiros obterem a satisfação deste crédito, caso a sociedade se negue a pagá-lo?

Palavras -chave: Dissolução parcial da sociedade limitada – Herdeiros do sócio falecido - Apuração de haveres e reembolso - Contrato social como título executivo extrajudicial

Sumário: 1. Situação Jurídica do Herdeiro; 2. RESPONSABILIDADE DO HERDEIRO INGRESSANTE NO QUADRO SOCIAL; 3. A QUESTÃO DA APURAÇÃO DE HAVERES E REEMBOLSO; 4. O CONTRATO SOCIAL COMO TÍTULO EXECUTIVO EXTRAJUDICIAL.


O novel Código Civil não utiliza o termo "dissolução parcial" e sim "resolução da sociedade em relação a um sócio". Trata-se, em verdade, de duas terminologias para a mesma realidade, isto é, a rescisão do contrato social em relação a uma de suas partes.

Dentre as várias hipóteses de dissolução parcial destaca-se, neste trabalho, a morte de sócio. É que com o falecimento do sócio surgem diversas questões tais como:

(a) A lei obriga que os herdeiros do sócio falecido ingressem no quadro social da sociedade em que o falecido era participante? Ou permitindo o contrato social o ingresso dos herdeiros na sociedade, estes, com a morte do sócio, são investidos automaticamente na qualidade de sócio?

(b) Quais as consequências da entrada dos herdeiros no quadro social?

(c) Caso os herdeiros não ingressem na sociedade, qual o valor do crédito que tem a receber? E durante o período necessário para se aferir o valor do crédito titularizado pelos herdeiros, quais direitos do sócio podem ser estendidos aos herdeiros? E após obtido o valor do crédito, qual o meio processual mais adequado para os herdeiros obterem a satisfação deste crédito, caso a sociedade se negue a pagá-lo?


1. Situação Jurídica do Herdeiro do Sócio Falecido

De logo, cumpre destacar que os herdeiros do sócio falecido não podem ingressar na sociedade em substituição ao de cujus, salvo se houver no contrato social cláusula permitindo a entrada deles na sociedade, ou então se as partes, herdeiros e sócios sobreviventes, se põem de acordo quanto à substituição do sócio falecido pelos herdeiros.

Portanto, em princípio, o falecimento do sócio apenas ensejará a liquidação de suas cotas, com a apuração dos respectivos haveres em prol dos herdeiros, acarretando a dissolução parcial da sociedade.

Com efeito, o artigo 56 do Código Civil determina que "a qualidade de associado é intransmissível, se o estatuto não dispuser o contrário". E rebate-se, desde já, o argumento de que este dispositivo somente se aplica às associações, pois o §2º do artigo 44, incluído pela Lei 10.825/2003, expressamente admite que "as disposições concernentes às associações aplicam-se subsidiariamente às sociedades que são objeto do Livro II da Parte Especial deste Código".

Ademais, o artigo 1.028, caput, do mesmo Codex estabelece como regra a liquidação da cota do sócio falecido.

Deste modo, os herdeiros com a sucessão passam a ter um direito de crédito contra a pessoa jurídica, representado pela participação societária deixada pelo de cujus. Assim, tanto o espólio como os herdeiros do sócio falecido não são sócios da sociedade empresária da qual este fazia parte; são apenas credores e tem direito à apuração dos haveres para pagamento. Neste sentido:

"Os herdeiros, com a sucessão, passaram a ter um direito de crédito contra a pessoa jurídica, representado pela participação societária deixada pelo de cujus J.A. Nenhum deles, porém, pode ser reputado representante legal da sociedade civil, porque uma coisa é ser titular de um direito de crédito por sucessão causa mortis, outra, e muito diferente, é a posição de sócio, que depende da vontade dos herdeiros, ou de alguns deles, de ingressar no quadro social." [01]

"O herdeiro de sócio falecido não é sócio, por si mesmo, da respectiva sociedade." [02]

"o espólio de sócio de sociedade comercial não é sócio desta, bem como seus herdeiros que dela são apenas credores e tem direito à apuração dos haveres para pagamento nos termos do contrato social." [03]

Em outras palavras, a qualidade de sócio, outrora ostentada pelo falecido, não se transfere automaticamente ao espólio ou aos herdeiros, haja vista que a própria lei determina a intransmissibilidade da qualidade sócio da sociedade limitada. Em suma, têm os herdeiros do sócio falecido a condição de condôminos [04].

Pode-se afirmar, portanto, que a regra na sociedade limitada é que a morte de sócio importa a dissolução parcial da sociedade. Esta regra é excepcionada em três hipóteses, a seguir elencadas:

(A) a primeira hipótese em que o falecimento do sócio não acarreta a dissolução parcial da sociedade é no caso do contrato social possibilitar a sucessão nas cotas, a qual, no entanto, somente ocorrerá se os herdeiros a tanto se dispuserem. De fato, é bom insistir, a posição de sócio sempre depende da vontade dos herdeiros, ou de alguns deles, de ingressar no quadro social (CF, art. 5º, XX). Não é lícito sustentar que uma vez tendo o contrato social admitindo o ingresso de herdeiros no quadro social este ingresso se dê automaticamente com a morte do sócio. "Caso o contrato social admita os herdeiros do sócio falecido como ''novos sócios'', isto não se trata de obrigação, mas de faculdade" [05].

É bom destacar que se o contrato social permitir a entrada dos herdeiros na sociedade, os sócios remanescentes não podem impedir o ingresso deles, pelo simples fato de estarem (os sócios) descumprindo uma cláusula contratual (salvo na hipótese do contrato social também abrigar cláusula possibilitando aos demais sócios vetarem, caso seja conveniente, a entrada do herdeiro).

Além disso, se os sócios num primeiro momento, ao confeccionarem o contrato social, manifestam inequívoca concordância em admitir os herdeiros na sociedade, demonstrando que o assunto já esta superado, e, em momento posterior, se irresignarem, após terem produzido, aos demais sócios e herdeiros, uma expectativa, não há dúvida que tal atuosidade configura abuso de direito. Neste ponto, merece transcrição esta passagem de Cristiano Chaves e Nelson Rosenvald [06]:

"A proibição de comportamento contraditório (nemo potest venire contra factum proprium) é modalidade de abuso de direito que surge da violação ao princípio da confiança – decorrente da função integrativa da boa-fé objetiva (CC, art. 422).

(...)

Pois bem, a vedação de comportamento contraditório obsta que alguém possa contradizer o seu próprio comportamento, após ter produzido, em outra pessoa, uma determinada expectativa. É, pois, a proibição da inesperada mudança de comportamento (vedação de incoerência), contradizendo uma conduta anterior adotada pela mesma pessoa, frustrando as expectativas de terceiros. Enfim, é a consagração de eu ninguém pode se opor a fato a que ele próprio deu causa."

(B) por outro lado, no caso do contrato social ser omisso ou impossibilitar a entrada dos herdeiros no quadro social, ainda assim podem os sucessores e sócios sobreviventes acordarem quanto ao ingresso daqueles na sociedade. De efeito, se o sucessor do sócio morto concorda em manter o investimento na empresa, e os demais sócios concordam em tê-lo como membro do quadro social, a sociedade não se dissolve, nem sequer parcialmente.

"Se estão todos de acordo em manter os vínculos sociais, não há razão para a apuração dos haveres, nem mesmo se prevista esta no contrato social. É um despropósito exigir a dissolução parcial da sociedade se o sucessor e os sobreviventes podem, ato contínuo, restabelecer os mesmos vínculos societários. A cláusula de disciplina das consequências da morte de sócio só tem serventia quando as partes – sucessor e sobreviventes – não se põem de acordo." [07]

(C) por fim, a terceira hipótese ocorre quando os sócios remanescentes, mediante acordo com os herdeiros, adquirem as cotas do sócio falecido, evitando, inclusive, a redução do capital social, consequência da dissolução parcial (CC, art. 1.031, §1º). Também é possível que a própria sociedade adquira as cotas [08], conforme determina o enunciado n.º 391 das IV Jornadas de Direito Civil promovidas pelo Centro de Estudos da Justiça Federal:

"391 — Arts. 1.031, 1.057 e 1.058: A sociedade limitada pode adquirir suas próprias quotas, observadas as condições estabelecidas na Lei das Sociedades por Ações.

Note-se que a sucessão nas cotas é bem diferente da sucessão nas ações de uma sociedade anônimas. Isto ocorre porque as cotas não se objetivam como as ações que são bens em si mesmas e funcionam como valores mobiliários, com capacidade de circulação autônoma. Neste ponto, vale transcrever os dizeres de José Edwaldo Tavares Borba [09]:

"(...) A cotas correspondem a uma posição de direitos (direitos pessoais de caráter patrimonial) perante a sociedade, enquanto a ação, ela própria, é objeto de direito, de tal forma que dela decorrem os direitos de seu titular em relação à sociedade.

Quem transfere cotas aliena uma posição social (um direito) a que as cotas correspondem. Quem transfere ações aliena um valor mobiliário que é a ação, ela própria."

De fato, a relação que se estabelece entre o acionista e a ação é de direito real (trata-se de direito de propriedade), ao passo que a relação entre o cotista e a cota é de direito contratual. "O vínculo entre os sócios da limitada é contratual porque sua constituição e dissolução total seguem regras informadas pelo direito dos contratos" [10].

Por isso, quem transfere ações não cede direitos, como ocorre em uma cessão de cotas, mas sim as próprias ações, dessas emergindo os direitos de acionista [11]. Enfim, a transferência de ações não envolve uma cessão de direitos, mas sim a alienação de um bem, qual seja, a ação.

A par disso, considerando que as ações constituem títulos valores, ou seja, constituem o próprio bem objeto da sucessão, a sucessão se fará nas próprias ações da sociedade anônima, ao contrário do que ocorre na sucessão das cotas de uma sociedade limitada, vez que a cota não é um bem em si mesmo e sim uma posição contratual.

Em consequência, a vontade do herdeiro do sócio de sociedade limitada é relevante para determinar o seu ingresso no quadro societário, haja vista que não pode ser compelido a participar do quadro social (CF, art. 5º, XX).

Daí resta saber se nas sociedades limitadas regidas supletivamente pela lei das sociedades anônimas (Lei 6.404/76) aplica-se a regra sucessória das ações.

O Prof. Fábio Ulhoa [12] entende que nas sociedades limitadas regidas supletivamente pela lei do anonimato não se aplica as regras de dissolução parcial previstas na lei civil, sendo que a morte dos sócios nunca importa diretamente a dissolução parcial, devendo os sucessores nela ingressar. Se uma das partes (sucessores ou sócios sobreviventes) não querem a apuração dos haveres, a outra tem de se conformar com a transferência das cotas do falecido aos sucessores. Assim é porque a lei acionária, norma de regência supletiva, não prevê o reembolso das ações em favor dos sucessores do acionista falecido, não se aplicando, portanto, o art. 1.028 do Código Civil, que se abriga no capítulo relativo às sociedades simples.

Data maxima venia, entendemos que mesmo nas sociedades limitadas regidas supletivamente pela lei do anonimato, deve-se sim aplicar o artigo 1.028, pois o fato da sociedade limitada estar regida pela lei das anônimas não transforma a cota social em um bem em si mesmo, como é o caso da ações. Em outras palavras, a regência supletiva pela lei do anonimato não tem o dom de alterar a natureza jurídica da cota social. Ademais, seria uma forma de compelir os herdeiros a ingressarem na sociedade contra sua vontade, ao arrepio do artigo 5º, inciso XX, da Constituição, cláusula pétrea na qual proclama que ninguém é obrigado a se associar.


2. RESPONSABILIDADE DO HERDEIRO INGRESSANTE NO QUADRO SOCIAL

No caso do herdeiro ingressar no quadro social, em substituição ao sócio falecido, a ele se imputa todos os direitos e deveres do status de sócio.

Incide, no caso, a regra contida no artigo 1.025 do Código Civil: "O sócio, admitido em sociedade já constituída, não se exime das dívidas sociais anteriores à admissão".

Como destaca o Prof. Diego Richard Ronconi [13], "não ingressa os herdeiros somente no ativo da empresa (bens e direitos), anterior e posterior ao seu ingresso, mas também no passivo da empresa, ou seja, nas suas dívidas e demais obrigações, anteriores e posteriores". E adverte: "Deve-se, por isso, antes de se optar pelo ingresso dos herdeiros na qualidade de sócio, conhecer a situação da empresa, a fim de que os herdeiros não sejam surpreendidos por dívidas que haviam sido contraídas pela empresa antes de sua admissão".

Portanto, é aconselhado ao herdeiro que deseja participar do quadro societário a realização de um procedimento de "due diligence", isto é, uma auditoria a fim de identificar riscos, passivos e quantificar, quando possível, potenciais responsabilidades. No mais das vezes, tais riscos e passivos são oriundos de processos judiciais, em especial no âmbito tributário e trabalhista.

Uma vez realizada a "due diligence", o herdeiro poderá avaliar a conveniência de seu ingresso como sócio na sociedade.

Noutra dimensão, o artigo 1.032 desenha a responsabilidade do herdeiro que não ingressa na sociedade. Tal dispositivo determina que a morte do sócio não exime seus herdeiros da responsabilidade pelas obrigações sociais anteriores, até dois anos após averbada a resolução da sociedade. Mas é bom lembrar que o herdeiro não responde por encargos superiores às forças da herança (CC, art. 1.792).


3. A QUESTÃO DA APURAÇÃO DE HAVERES E REEMBOLSO

O art. 1.031 do Código Civil determina que "nos casos em que a sociedade se resolver em relação a um sócio, o valor da sua quota, considerada pelo montante efetivamente realizado, liquidar-se-á, salvo disposição contratual em contrário, com base na situação patrimonial da sociedade, à data da resolução, verificada em balanço especialmente levantado".

O crédito que faz jus o herdeiro do sócio falecido denomina-se reembolso e seu valor corresponde ao valor patrimonial da participação societária (cota), se o contrato não estipular outro critério.

Pois bem, para se chegar ao valor deste crédito (reembolso) se faz necessário passar por um procedimento denominado apuração de haveres. A apuração de haveres simula a liquidação da sociedade (dissolução total), para definir o valor do reembolso. Elucidativos são os dizeres do Prof. Fábio Ulhoa [14],

"A apuração de haveres, em outras palavras, é a simulação da dissolução total da sociedade. Por meio de levantamento contábil, que reavalia, a valor de mercado, os bens corpóreos e incorpóreos do patrimônio social, e da consideração do passivo da sociedade, projeta-se quanto seria o acervo remanescente caso a sociedade limitada fosse, naquele momento, dissolvida. Definido o patrimônio líquido da limitada, na data da dissolução parcial, o reembolso será a parcela deste, proporcional à quota do capital social do sócio desligado ou falecido. Se, por exemplo, o retirante tinha 20% do capital da limitada, e apurou-se o patrimônio líquido de R$ 300.000,00, o seu crédito, em reembolso da quota, será de R$ 60.000,00."

Portanto, na data da dissolução, deve ser realizado um balanço específico (balanço especialmente levantado, nos dizeres da lei) para se aferir o valor do crédito titularizado pelo herdeiro. Este balanço (denominado pela jurisprudência de balanco de determinação) utiliza como base de cálculo o valor patrimonial real, isto é, leva em conta a reavaliação dos ativos e a conferência dos lançamentos. Noutras palavras, este balanço não se fundamenta no valor de aquisição dos bens do patrimônio da sociedade, mas sim no valor que estes bens poderiam alcançar, caso fossem postos à venda no mercado.

Uma vez conhecido o montante do patrimônio líquido, fácil será encontrar o valor de cada cota, que é o quociente da divisão do patrimônio líquido pelo número de cotas em que se divide o capital social. O valor de cada cota multiplicado pelo número de cotas do ex-sócio indicará o montante de seus haveres [15].

Por outro lado, o art. 1.031 possibilita que o contrato social adote outro método para a apuração de haveres. Assim, pode o contrato social, por exemplo, estabelecer que a apuração de haveres se faça com base no valor nominal da cota (aquele que resulta da divisão do valor do capital social pelo número de cotas). Todavia, entendemos que o método de apuração eleito pelo contrato não pode acarretar num valor de reembolso bem abaixo daquele que resultaria caso se adotasse a regra geral (balanço de determinação). Neste sentido:

"(...) A apuração dos haveres deve ser realizada com base em seus valores reais, ainda que haja disposição contratual em contrário, quando esta previsão traduzir enriquecimento injusto da sociedade e, por via indireta, de seus sócios" [16]

O § 2º do art. 1.031 determina que o pagamento do reembolso deve ser feito em dinheiro no prazo de noventa dias seguintes ao evento que deu ensejo à dissolução parcial (in casu, a morte do sócio), salvo acordo ou estipulação contratual em contrário impondo prazo inferior, superior ou o parcelamento do valor do reembolso.

O Prof. Fábio Ulhoa entende que se, antes do pagamento, a situação patrimonial da sociedade sofrer oscilação que a impeça de atender ao crédito do antigo sócio, os que nela permaneceram respondem subsidiariamente pelo valor a pagar. Isto porque,

"uma vez desfeito o vínculo societário, o sócio em relação ao qual a sociedade foi dissolvida (ou o sucessor do sócio morto) não pode beneficiar-se dos sucessos posteriores, nem ser prejudicado pelos insucessos. Em contrapartida, os sócios que permanecem são beneficiados pelos progressos da sociedade seguintes à dissolução parcial, e devem garantir o reembolso ao antigo parceiro, na situação inversa. São obrigações implícitas do contrato de formação de sociedade empresária."

Observa, ainda, o Prof. Fábio Ulhoa que no Brasil a lei não cuida da situação do sócio, ou do sucessor do sócio morto, durante a apuração dos haveres, e geralmente não há previsão contratual disciplinado esta matéria. Sem dúvida, a avaliação do patrimônio líquido pode demandar tempo considerável, ainda que esteja todos de acordo quanto aos critérios de avaliação - o que se dirá então quando houver litígio!

Então daí surge a questão: durante esse prazo o sucessor do sócio morto tem quais direitos perante a sociedade (participação nos lucros, pro labore, intervir nas decisões sociais etc.)? Na Inglaterra, por exemplo, os membros desligados da sociedade podem optar, enquanto se processa a avaliação de sua participação societária, entre continuar recebendo sua parte dos lucros sociais, ou a juros, à alíquota de 5% ao ano, sobre a parte do patrimônio social correspondente à sua cota [17].

Há um acórdão no sentido de que no curso da apuração de haveres, em juízo, é reconhecido ao inventariante o direito de fiscalização:

"No curso da apuração de haveres, em juízo, da parte da sociedade dissolvida pertencente ao sócio morto, é reconhecido ao inventariante o direito de fiscalizar os negócios sociais. Esse direito, no entanto, não compreende o de interferir na administração da sociedade, mas somente o de verificação, física e contábil, dos valores do ativo." [18]

Com efeito, o direito de fiscalizar conferido ao inventariante tem por objetivo evitar a dilapidação do patrimônio social, inviabilizando, por consequência, o recebimento dos valores a que os herdeiros têm direito. Por outro lado, é certo que este direito não pode investir o inventariante na administração da sociedade, pois não é próprio do direito de fiscalizar a intervenção na administração. "A fiscalização da gestão da empresa, pelo acionista [inventariante], não pode interferir no regular desenvolvimento desta" [19].

O Prof. Fábio Ulhoa em comentários a um acórdão que acolheu o entendimento de que o espólio é parte ilegítima para requerer a dissolução parcial da sociedade, expõe que esse não é o melhor entendimento. E prossegue: "Com a morte de sócio, e enquanto não resolvida a questão da sucessão relativamente às quotas sociais, o espólio deve exercer todos os direitos societários titularizados pelo de cujus" [20].


4. O CONTRATO SOCIAL COMO TÍTULO EXECUTIVO EXTRAJUDICIAL

Pois bem. Se o contrato social estiver assinado pelos sócios e subscrito por duas testemunhas, e contenha cláusula prevendo o pagamento de reembolso aos sucessores do sócio falecido, restará configurado o título executivo extrajudicial, consoante a figura tipificada no artigo 585, inciso II, do Código de Ritos. Neste sentido, como luva à espécie:

"Constitui título executivo extrajudicial, ao teor do disposto no art. 585, II, do Código de Processo Civil, o contrato constitutivo da sociedade mercantil, assinado pelos sócios e subscrito por duas testemunhas, estipulando cláusula de dissolução parcial com a determinação do que será pago aos herdeiros pelos haveres que caberiam ao sócio pré-morto." [21]

A legitimação ativa dos herdeiros para promover a ação de execução somente se dá após o inventariante prestar as primeiras declarações (CPC, art. 993, III), porque este é o momento em que ocorre a perfeita delimitação dos herdeiros, ora titulares do direito creditório [22]. É certo que, neste caso, para o contrato social ganhar o status de título executivo extrajudicial ele deve estabelecer um critério de apuração de haveres cujo valor do reembolso possa ser extraído diretamente da leitura do próprio contrato (por exemplo, determinar que a apuração de haveres se faça com base no valor nominal da cota).

Vale dizer, é necessário que o juiz da execução possa, com os elementos a seu dispor e que são seguros, encontrar o valor do crédito e a medida da constrição a impor ao executado. Do contrário, a execução será nula ante a iliquidez da obrigação contida no título executivo (CPC, art. 618, inciso I).

Assim, caso o contrato social seja omisso quanto ao critério de apuração de haveres, não será possível aos herdeiros se valerem do meio executivo, haja vista a necessidade de realização de um balanço específico para se aferir o valor do reembolso, o que retira a liquidez do título executivo (CPC, arts. 586 e 993, parágrafo único, II). O mesmo vale na hipótese do contrato social utilizar qualquer outro método de apuração cujo valor não possa ser extraído diretamente do próprio contrato social.

Todavia, entendemos que após a conclusão do balanco específico para determinar o valor do reembolso (CC, art. 1.031, caput), é perfeitamente possível aos herdeiros, caso haja necessidade, se valerem da ação de execução a fim de receberem os valores a que fazem jus, pois, com a realização do balanco o título (contrato social) dota-se de liquidez.

Confirmada a liquidez do título executivo, resta verificar se a obrigação é exigível e certa (CPC, art. 586).

Ora, a exigibilidade ocorre após o transcurso do prazo (noventa dias contados da morte do sócio, salvo estipulação contratual diversa) para pagamento do reembolso e não tendo o devedor cumprindo a prestação devida. Já a certeza decorre da perfeição formal do título (contrato social que preencha os requisitos exigidos pela lei bem como seja subscrito por duas testemunhas).

De saída, se num caso concreto a simples leitura do contrato social não levar o intérprete à conclusão de que se trata de um título executivo extrajudicial, resta aos herdeiros proporem uma ação monitória para então buscarem a constituição do título executivo judicial (CPC, art. 1.102-C, §3º) [23].

A ação deve ser movida contra a sociedade e seus sócios (lembre-se que estes respondem subsidiariamente pelo valor a pagar).

No mais, "um dos herdeiros, ainda que sem a interveniência dos demais, pode ajuizar demanda visando à defesa da herança, seja o seu todo, que vai assim permanecer até a efetiva partilha, seja o quinhão que lhe couber posteriormente" [24]. Por isso, os co-herdeiros que demandam em prol da herança agem como mandatários tácitos dos demais co-herdeiros aos quais aproveita o eventual reingresso do bem na "universitas rerum", em defesa também dos direitos destes (CC, art. 1.791 c/c 1.314) [25].

Dado o expendido é de se concluir que na hipótese do contrato social configurar um título executivo extrajudicial, os herdeiros poderão, nos termos acima expostos, se valer de uma ação de execução para receberem seu crédito relativo a participação societária deixada pelo de cujus.


Notas

  1. TJSP – Ap. Cível c/Rev. n.º 83.979.4/9, data de registro 05-10-1999, 9ª Câmara de Direito Privado – Rel. Ruiter Oliva.
  2. TJMG - Agravo de Instrumento n.º 1.0024.05.693092-8/001, data do julgamento 14-08-2008, 15ª Câmara Cível – Rel. José Affonso da Costa Côrtes.
  3. TJMG - Agravo de Instrumento n.º 239.723-7, data do julgamento 04-09-1997, 7ª Câmara Cível – Rel. Juiz Lauro Bracarense.
  4. RONCONI. Diego Richard. A condição dos herdeiros no caso de falecimento de sócio de sociedade limitada. Disponível em: <http://sisnet.aduaneiras.com.br/lex/doutrinas/arquivos/caso.pdf>. Acesso em: 24 set. 2009.
  5. RONCONI, Ob. cit..
  6. FARIAS, Cristiano Chaves de; ROSENVALD, Nelson. Direito Civil: Teoria Geral, 7ª ed., Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008, p. 517-8.
  7. COELHO, Fábio Ulhoa. Curso de Direito Comercial, Vol. 2, 13.ª ed., São Paulo: Saraiva, 2009, p.480.
  8. José Edwaldo Tavares BORBA entende que sem previsão contratual sobre a aquisição das próprias cotas pela sociedade e sem supletividade da lei das sociedades anônimas, a aquisição dependerá, em face do inusitado da medida, de decisão unânime dos sócios (Direito Societário, 11.ª ed., rev., aum. e atual. Rio de Janeiro: Renovar, 2008, p. 138).
  9. BORBA. Ob. cit., p. 45.
  10. COELHO. Ob. cit., p.395.
  11. BORBA. Ob. cit., p. 227.
  12. COELHO. Ob. cit., p.480.
  13. RONCONI, Ob. cit..
  14. COELHO. Ob. cit., p.483.
  15. BORBA. Ob. cit., p. 80.
  16. TAMG, RT, 737/406 in COELHO, Fábio Ulhoa. A sociedade limitada no novo código civil, São Paulo: Saraiva, 2003, p.178.
  17. COELHO. Ob. cit., p.483.
  18. RTJ, 119/11 in COELHO, Fábio Ulhoa. A sociedade limitada no novo código civil, ob. cit., p.177.
  19. COELHO. Ob. cit., p.302.
  20. COELHO, Fábio Ulhoa. A sociedade limitada no novo código civil, ob. cit., p.177-178.
  21. TJRJ – Ap. Cível 2000.001.16957, data de julgamento 15-03-2001, 13ª Câmara Cível – Rel. Nagib Slaibi Filho.
  22. Em outras palavras, as primeiras declarações é o momento que atesta a qualidade de herdeiro, qualidade esta necessária para a titularidade do crédito consubstanciado no título executivo extrajudicial (contrato social). Trata-se de legitimidade ordinária primária, já que o herdeiro estará demandando em nome próprio, na defesa de seu próprio interesse.
  23. Neste sentido: TJSP – Ap. Cível com Revisão 4403834000, data de julgamento 03-12-2008, 5ª Câmara de Direito Privado, rel. Silvério Ribeiro.
  24. RSTJ 90/242 in NEGRÃO, Theotonio, 1917-2003; GOUVÊA, José Roberto Ferreira; BONDIOLI, Luiz Guilherme Aidar. Código de Processo Civil e Legislação processual em vigor, 41ª ed., São Paulo: Saraiva, 2009, p. 133.
  25. NEGRÃO, Ob. cit., p. 133.

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Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

FERREIRA, Paulo de Almeida. Os direitos dos herdeiros do sócio falecido. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 14, n. 2324, 11 nov. 2009. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/13834. Acesso em: 29 mar. 2024.