Este texto foi publicado no Jus no endereço https://jus.com.br/artigos/14105
Para ver outras publicações como esta, acesse https://jus.com.br

Redução da idade penal em face da Constituição Federal.

Apontamentos jurídicos acerca das tentativas de redução da idade para imputação criminal do menor de 18 anos

Redução da idade penal em face da Constituição Federal. Apontamentos jurídicos acerca das tentativas de redução da idade para imputação criminal do menor de 18 anos

Publicado em . Elaborado em .

RESUMO

O aumento contumaz dos índices de criminalidade em que há envolvimento de crianças e adolescentes, traz à tona a discussão acerca da redução da idade penal, que hodiernamente, em nosso ordenamento jurídico, está fixada em dezoito anos. A proposta reducionista passa necessariamente por uma alteração do texto constitucional, porquanto o art. 228 da Carta Republicana preceitua que são inimputáveis os menores de dezoito anos, sendo-lhes aplicável a legislação penal específica. Para muitos respeitados doutrinadores, a referida norma constitucional está protegida por uma cláusula de intangibilidade, portanto, não pode ser modificada sequer por Emenda à Constituição. Como existem diversas propostas de Emendas Constitucionais tramitando no Congresso Nacional que tratam do rebaixamento da idade penal, torna-se imprescindível estudarmos os contornos da temática, bem como suas conseqüências jurídicas e políticas. Tentaremos verificar, como objetivo geral, se as tentativas de redução da idade penal são constitucionais em diversas acepções. Para tanto, traçamos como objetivos específicos os seguintes: a) expor os aspectos históricos da maioridade penal, cujo desiderato é demonstrar a evolução dos direitos da criança e do adolescente; b) examinar se os direitos e garantias fundamentais previstos no artigo 5º da Constituição Federal são meramente exemplificativos, sem embargo de regramentos implícitos ou mesmo explícitos em outros dispositivos constitucionais; c) investigar se o art. 228 da Carta Magna constitui garantia individual (fundamental) da Criança e do Adolescente e, portanto, cláusula pétrea (art. 60, §4º, inciso IV). Outrossim, verificar se haveria violação ao princípio da isonomia a tentativa de tratar igualmente aqueles que, em tese, não são iguais (maiores x menores de dezoito anos); d) verificar, ademais, se, sob os aspectos da proporcionalidade e da legitimidade, seria constitucional a redução da idade penal como forma eficaz de diminuir os índices de criminalidade. Pesquisa predominantemente teórica, a aquisição dos dados efetivou-se por meio de documentação indireta, ou seja, pesquisa documental — textos legislativos — e, principalmente, bibliográfica. O presente ensaio monográfico encontra-se, assim, dividido em três capítulos: o Capítulo I, intitulado Aspectos Históricos da Maioridade Penal, traça a evolução da maioridade penal com o desiderato de contextualização do tema; o Capítulo II a matéria será delimitada e estudar-se-á A contextualização do tema sob a ótica Constitucional; enfim, o Capítulo III, intitulado Análise de legitimidade das tentativas de redução da idade penal, analisará se as propostas reducionistas são constitucionais nos aspectos da proporcionalidade e legitimidade.

Palavras-chave: Imputabilidade Penal. Direitos e Garantias Fundamentais. Limites ao Poder de Reforma Constitucional.

ABSTRACT

The increase common rates of crime where there is involvement of children and adolescents, especially those crimes that cause most social outcry, brings to light the discussion about the reduction of criminal age, which currently in our legal system, is set at eighteen years . The proposal reductionist inevitably means a change of the constitutional text, as the art. 228 of Republican Charter stipulates that minors are anpunishable of eighteen years, and they are applicable to special criminal law. For many respected sudious, that standard is protected by a constitutional clause of inviolability therefore can not be changed even by Amendment to the Constitution. As there are various proposals for Constitutional Amendments processed in the National Congress dealing with the lowering of age criminal, it is essential studying the contours of the theme, as well as its legal and political consequences. Based on the historical evolution of majority criminal until its current context, always with emphasis on the Federal Constitution of 1988, attempt to verify such as general purpose, if the attempts to reduce the criminal age are constitutional in several respects. For both, draw as specific goals the following: a) describe the historical aspects of majority criminal, whose goal is to demonstrate the evolution of the rights of children and adolescents. b) examine if the rights and guarantees provided for in article 5º of the Federal Constitution are merely illustrative, however, rules implicit or even explicit in other constitutional provisions. c) to investigate whether the art. 228 of Magna Carta is guaranteed individual (basic) of the Child and Adolescent and therefore "cláusula pétrea" (Article 60, § 4º, item IV). Also, see if there would be violation of the principle of parity the attempt to also address those who, in theory, are not equal; d) verify Moreover, if, under the aspects of proportionality and legitimacy, it would be constitutional to reduce the age criminal and effective way to reduce the rates of crime. Search predominantly theoretical, data acquisition be by means of indirect documentation, or documentary research - legislation - and, especially, literature. This test monograph is thus divided into three chapters: Chapter I, entitled Historical Aspects of Criminal Majority, traces the evolution of majority criminal with the goal of contextualization of the issue, the Chapter II the matter will be enclosed and study The background will be the theme from the perspective Constitution; finally, Chapter III, entitled Analysis of legitimacy of attempts to reduce the criminal age, consider if the proposals are reductionist in the constitutional aspects of proportionality and legitimacy.

Key-words: Criminal Punishable. Basics Writs and Garateed. Constitutional Limitation of the Power´s Reform.


INTRODUÇÃO

A crescente onda de violência que acomete a população brasileira faz emergir a sensação de que enclausurar é a melhor solução, ou seja, marginalizar ainda mais aqueles que já são socialmente marginais. A nação reclama segurança e soluções simplistas são encorajadas, até mesmo porque se estabelece um raciocínio não menos simplista: já que não se pode vencer a pobreza (fundamento da criminalidade no Brasil), também a violência não pode ser vencida. A celeuma que gira em torno da responsabilidade penal juvenil costuma ser conduzida para a proposta do rebaixamento da idade penal, como se esta fosse a solução para o sistemático problema.

A idéia de que a criança de hoje não é a mesma de anos atrás é o principal argumento utilizado por aqueles que simpatizam com a redução da idade penal. Essa conclusão simplista não considera a situação crítica pela qual passa o sistema penal hodierno e não reputa como odiosa a verdade de que os presídios contemporâneos são verdadeiras "escolas do crime". As tentativas de incluir o menor de 18 anos no sistema penal geral partem do pressuposto genérico de que este (o menor) já possui discernimento suficiente para determinar os próprios atos, do que não discordamos (em termos). Não olvidamos que existem adolescentes capazes de compreender suas ações, porém, desistir de sua re-socialização não parece ser a medida mais razoável, porquanto é sabido que o caminho da prisão (nos moldes atuais), salvo raríssimas exceções, não comporta retorno.

Tema deveras discutido, a "delinqüência juvenil" tem se mostrado alvo de inúmeros discursos eleitoreiros, que de nada servem para elucidação do problema. A maioridade penal, como uma das muitas facetas dessa intensa temática, emerge como a mais recente moeda para a captação de votos, principalmente porque surge como promessa de diminuição da criminalidade no Brasil. Problemas complexos exigem soluções sistemáticas, não necessariamente complicadas, mas sempre planejadas. Parece mais razoável implementar políticas adequadas de redução da pobreza, tais como educação familiar nas populações carentes, com o fim de controlar a natalidade nesses centros de pobreza, aumentando, a longo-prazo, as perspectivas de sucesso daqueles menos abastados.

Imagine-se o perigo, ademais, de se perder o significado da social democracia positivamente instituída, a duras penas, pela Constituição Federal de 1988. A crescente onda pode justificar a burla de determinadas garantias fundamentais que foram petrificadas pelo povo, por meio de seus constituintes? Tal violação pode representar o estopim para uma perigosa autocracia das emendas constitucionais, já que estas (as emendas) poderão, se forem permitidos vilipêndios dessa natureza, modificar toda e qualquer norma positivada pela Constituição ou mesmo princípios sensíveis que se encontram implícitos. Hoje a liberdade dos menores, amanhã a dos demais cidadãos? São questionamentos que não podem ser olvidados.

A curto-prazo, como sucedânea da medida paliativa de encarcerar os menores de 18 anos como se adultos fossem, existe a possibilidade de sistematização da legislação específica, mormente no tocante à execução das medidas sócio-educativas como formas de re-socialização efetiva.

A contribuição desta pesquisa não termina na problematização da redução da maioridade penal em face da Constituição Federal, pois, será investigada se tal redução é legítima, sobretudo se considerados os fundamentos políticos e sociais da República Federativa do Brasil.

Almeja-se, ao término deste projeto bibliográfico, que as respostas para as questões seguintes estejam alicerçadas; são elas: a) É plausível afirmar que a evolução histórico-legislativa dos direitos da criança e do adolescente se coaduna com as recentes discussões acerca da maioridade penal? b) Com relação à localização dos direitos e garantias fundamentais no ordenamento pátrio, é adequado afirmar que estes se limitam aos positivados no artigo 5º da Constituição Federal de 1988? c) O artigo 228 da Constituição Federal prevê uma garantia à liberdade dos menores de 18 anos? d) Qual a semântica ontológica do princípio da isonomia aplicada ao tema? e) Sob o aspecto político, mormente no que toca à re-socialização, seria razoável incluir o menor (ainda em desenvolvimento sócio-político) no sistema penal geral?

Com o desiderato de sistematizar o estudo e facilitar a compreensão do tema, no Capítulo I serão traçados Aspectos Históricos da Maioridade Penal, haja vista ser tal evolução indispensável para a efetiva contextualização da disciplina, mormente porque é estudando o passado que se compreende o presente. No Capítulo II, como conseguinte lógico, a matéria será delimitada e estudar-se-á A contextualização do tema sob a ótica Constitucional. Enfim, no Capítulo III, intitulado Re-socialização do menor infrator e a falência do sistema penal hodierno, serão traçados aspectos jurídicos e sociológicos que argumentam contra a redução da idade penal como forma de mitigar a violência.

Os dados adquiridos para a exposição dos argumentos, por ser uma pesquisa predominantemente teórica, foram concretizados basicamente por meio de documentação indireta (pesquisa documental).


Capítulo I

É sabido que o Código Napoleônico, já nos primeiros anos do século XIX, fixou o marco moderno do direito civil. Mais de cem anos depois, precisamente em 1º de janeiro de 1916, o codex francês inspirou o Código Civil brasileiro (posteriormente substituído pelo "Novo" Código Civil – Lei 10.406, de 10.01.2002).

No que toca à responsabilidade civil, especificamente, tanto no Código Napoleônico quanto nos diplomas pátrios hodiernos, pode-se reputar que não há diferença significativa entre a responsabilidade de donos de animais pelos atos praticados por estes e a responsabilidade dos pais por atos praticados por menores sob sua égide.

A propósito, leciona Maria Helena Diniz (2002, p. 250) que: "A responsabilidade paterna, como decorrente que é dos deveres do poder familiar, não depende de ser ou não imputável o filho, pelo menos em face os princípios comuns dos arts. 186, 927, 932, I e 933".

Portanto, do ponto de vista da responsabilidade civil, o século XIX iniciou (e tal idéia se manteve) creditando resposta similar tanto ao animal quanto ao menor, ou seja, cabe ao "proprietário" à responsabilidade dos atos praticados por eles.

1.2- As Ordenações Filipinas.

Quando D. João VI desembarcou no Brasil com sua corte, em 1808, estavam em vigência no Brasil, no plano do Direito Penal, as Ordenações Filipinas. Estas Ordenações vigeram em Portugal a partir de 1603 e no Brasil até 1830, com o implemento do Código Penal do Império.

Naquele tempo, como sabido, os primados da Igreja Católica eram preponderantes e tal circunstância foi estendida ao conhecimento jurídico; portanto, o Direito Canônico presidia a jurisdição do Estado. Pelo catecismo católico, a idade da razão plena era atingida aos 07 (sete) anos. Como o Estado não se separava da Igreja, tal idade foi estendida à responsabilidade penal.

A propósito do tema, José Henrique Pierangelli (apud SARAIVA, 2005, p. 27) destaca que as Ordenações Filipinas asseguravam apenas, em favor dos menores de dezessete anos, a inaplicabilidade da pena de morte; reportando-se ao Título CXXXV do Livro Quinto daquele diploma legal:

Quando algum homem, ou mulher, que passar de vinte anos cometer qualquer delito, dar-lhe-á a pena total, que lhe seria dada, se de vinte e cinco anos passasse.E se for de idade de dezessete anos até vinte, ficará ao arbítrio dos julgadores dar-lhe a pena total, ou diminuir-lha. E neste caso olhará o julgador o modo com que o delito foi cometido e as circunstâncias dele, e a pessoa do menor; e se achar em tanta malícia, que lhe pareça que merece pena total, dar-lhe-á, posto que seja de morte natural.E parecendo-lhe que não a merece, poder-lhe-á diminuir, segundo qualidade, ou simpleza, com que achar, que o delito foi cometido.E quando o delinqüente for menor de dezessete anos cumpridos, posto que o delito mereça morte natural, em nenhum caso lhe será dada, mas ficará em arbítrio do julgador dar-lhe outra menor pena. E não sendo o delito tal, em que caiba pena de morte natural, se guardará a disposição do Direito comum.

Em suma: quando D. João embarcou no Brasil, no início do século XIX, a imputabilidade penal tinha início aos sete anos de idade, eximindo-se o menor, em qualquer caso, da pena de morte. Entre dezesseis e vinte um anos havia um mecanismo peculiar, no qual o adolescente poderia ser condenado à morte, ou, a depender do caso, ter sua pena atenuada. A imputabilidade penal plena era observada àqueles maiores de vinte um anos, aos quais era permitida até a pena de morte em certos delitos.

Enquanto no Brasil, notadamente atrasado em aspectos políticos e sociais, vigorava essa legislação vetusta e violentadora, na Inglaterra, pais de notável cunho iluminista, era editada a primeira norma de combate ao trabalho infantil, conhecida como "Carta dos Aprendizes", de 1802; este ato normativo limitava a jornada de trabalho à criança trabalhadora ao máximo de doze horas diárias e proibia o trabalho noturno (SARAIVA, 2002, p. 19).

1.3- O Código Penal do Império de 1830.

Como corolário da proclamação da "independência" do Brasil em 1822, deu-se em 1830 a criação do primeiro Código Penal brasileiro. Este codex fixava a idade penal plena em 14 anos. [01]

O código previu ainda um critério biopsicológico para punição de crianças entre sete e catorze anos. Consoante lição de Rolf Koerner Júnior (1998, pp. 124-125), em parecer de sua lavra:

Declaração do Tribunal de Relação da Corte, proferida em 23 de março de 1864, assentou que os menores de sete anos não tinham responsabilidade alguma, não estando, portanto, sujeitos a processo. Entre os sete e quatorze anos, os menores que obrassem com discernimento poderiam ser considerados relativamente imputáveis e, nos termos do artigo 13 do mesmo Código, serem recolhidos às casas de correção "pelo prazo que ao juiz parecer, contanto que o recolhimento não exceda à idade de dezessete anos.

Mister relembrar, para melhor contextualização das proposições, que em 1840 foi procedida a emancipação de Dom Pedro II, que aos 14 anos de idade tornou-se imperador do Brasil, extinguindo-se o período da Regência. O imperador, malgrado ter apenas 14 anos de idade, era considerado, à época, adulto, e contraiu matrimônio aos dezessete anos.

1.4- Os avanços na luta pelos direitos em meados do século XIX.

Na vigência do Código Penal de 1830, travava-se no Brasil a luta abolicionista; enquanto isso, nos Estados Unidos, tomava força o movimento feminista, o qual, mais tarde, germinaria a ideologia de um Direito de Menores.

É preciso lembrar, para efeito ilustrativo, o dia 8 de março de 1857, marcado por ser o dia de uma das primeiras manifestações organizadas por trabalhadores do sexo feminino. Como cita o magistrado João Batista Costa (2005, pp. 29-30):

Centenas de mulheres das fábricas de vestuário e têxteis de Nova Iorque iniciaram uma marcha de protesto contra os baixos salários, o período de 12 horas diárias e as más condições de trabalho. Durante a greve, deu-se um incêndio que causou a morte a cerca de 130 manifestantes. A data de 8 de março restou reverenciada, desde 1975, pela ONU, como o Dia Internacional da Mulher.

No caso específico do Brasil, considera-se um marco histórico na luta pelos direitos humanos o movimento abolicionista, mais especificamente com a edição da Lei do Ventre Livre (Lei 2.040, de 28.09.1871).

A referida Lei, que em seu tempo constituiu indubitável avanço, se aposta em análise contemporânea, reputar-se-ia como cruenta; seu teor costuma ser ignorado nas escolas quando se estuda o movimento abolicionista. Como exemplo de tal indiferença, vejamos:

Art.1º- Os filhos da mulher escrava, que nascerem no Império desde a data desta lei, serão considerados de condição livre.

§1º. Os ditos filhos menores ficarão em poder e sob a autoridade dos senhores de suas mães, os quais terão a obrigação de criá-los e tratá-los até a idade de oito anos completos.

Chegando o filho da escrava a esta idade, o senhor da mãe terá a opção ou de receber do Estado a indenização de 600$000, ou utilizar-se dos serviços do menor até a idade de 21 anos completos.

No primeiro caso o Governo receberá o menor e lhe dará destino, em conformidade da presente lei.

No final do século XIX e início do século XX o Brasil veio a conhecer as primeiras instituições públicas de abrigamento, justamente para abrigar esses jovens "livres". Antes disso, a Igreja tinha o quase monopólio da atividade assistencial; na prática, os menores "livres" eram acolhidos pelas Santas Casas de Misericórdia (instituição religiosa), locais de abandono intelectual, afetivo e material (MARCÍLIO, 1998, p. 97).

1.5- O Código Penal de 1890.

Em 1889, com o advento da República, o antigo Código Penal do Império foi substituído pelo Código Penal dos Estados Unidos do Brasil (primeiro nome dado ao Estado republicano brasileiro). O referido Código se deu com a publicação do Decreto nº 847, de 11 de outubro de 1890.

Como visto, no início do século a imputabilidade penal se dava aos sete anos de idade e, pelo Código Penal do Império, tal critério puramente biológico foi substituído por um sistema biopsicológico, o qual era baseado no discernimento entre sete e quatorze anos. O Código Republicano de 1890, por sua vez, estipulou ser irresponsável penalmente o menor com idade até nove anos (art. 27, 1º).

A imputabilidade plena permanecia, tal como no Código Imperial, fixada para os maiores de quatorze anos (art.30).

Acerca do Código Penal de 1980, o critério biopsicológico, fundado ainda na premissa do "discernimento" foi ratificado com as seguintes modificações: o maior de nove anos e menor de 14 anos submeter-se-ia à avaliação do Magistrado (art. 27, 2º) sobre "a sua aptidão para distinguir o bem do mal, o reconhecimento de possuir ele relativa lucidez para se orientar em face das alternativas do justo e do injusto, da moralidade e da imoralidade, do lícito e do ilícito".

Repare-se na subjetividade do comando normativo proposto pelo referido Código. Caberia ao Magistrado, de acordo com critérios "objetivamente" propostos pela norma, mas efetivamente subjetivos, aquilatar o grau de discernimento do menor infrator, para assim aplicar a pena que lhe fosse mais arrazoada. Sabe-se que por mais imparcial que seja o juiz, não pode olvidar de critérios subjetivos adquiridos por experiências próprias. Daí a falha desse sistema [02].

Ao final do século XIX, em suma, por critério "objetivo", a imputabilidade penal era alcançada aos quatorze anos, podendo retroagir aos nove, conforme o discernimento do infrator. Comparada esta era com o início do século, quando a imputabilidade penal era fixada em nove anos, podemos considerar que já houve avanço.

1.6- O fim do século XIX. Primeiro Tribunal de Menores.

Remonta ao ano de 1896, final da última década do século XIX, um grande marco histórico para o Direito da Criança, o chamado "Caso Marie Anne". O caso é informado como precedente histórico da luta pelos direitos da infância nos Tribunais do mundo. Conta João Batista Costa Saraiva (2005, p.33) que:

A menina de nove anos sofria intensos maus-tratos impostos pelos pais, fato que chegou ao conhecimento público de Nova Iorque daquela época. O certo é que os pais julgavam-se donos dos filhos e que poderiam educá-los como lhes aprouvesse. O castigo físico- até hoje utilizado por alguns- era visto como método educativo e sendo as crianças- como animais- propriedade de seus donos, no caso dos pais, poderiam ser educadas da forma que entendessem.

O fato é que a situação degradante, de tão notória que ficou, chegou aos Tribunais. Daí é que se encontra o ponto crucial e chocante: a entidade que ingressou em juízo para pleitear os direitos de Marie Anne e elidi-la dos seus agressores foi a Sociedade Protetora dos Animais de Nova Iorque. A ironia do caso é que não existia uma sociedade que protegesse a criança, mas já havia uma entidade protetora de animais.

Com o fito de defender os direitos da criança, a fim de demonstrar legitimidade para agir, a Sociedade alegou que se Marie Anne fosse um cavalo, um cachorro ou um gato não deveria ser submetida a tratamento tão brutal, imagine sendo uma pessoa.

De qualquer forma, a ação foi vencida pela entidade; teve início uma nova era no Direito. Antes tratada como "coisa", a criança passou a condição pelo menos de protegida do Estado. Estava nascendo o Direito de Menores. Já em 1899, instalava-se no Estado Americano de Illinois o Primeiro Tribunal de Menores do Mundo.

2. O século XX

2.1- Contextualização jurídica no início do século

Como visto, o movimento das mulheres estava em plena evolução no início do século XX; reivindicava, principalmente, o direito ao voto e à igualdade de oportunidades e direitos em relação aos homens.

O primeiro Tribunal de Menores foi criado em Illinois, nos Estados Unidos da América, em 1899. Como era de se esperar, outros países seguiram o modelo americano e aderiram à sistemática (em ordem cronológica): Inglaterra em 1905, Alemanha em 1908, Portugal e Hungria em 1911, França em 1912, Argentina em 1921, Japão em 1922, Brasil em 1923, Espanha em 1924, México em 1927 e Chile em 1928.

De maneira paralela, construía-se a Doutrina do Direito do Menor, fundamentada no binômio carência/delinqüência. Dois episódios se mostraram fundamentais no início do século XX. O primeiro foi a realização do Congresso Internacional de Menores, realizado em Paris, no interstício de 29 de junho a 1º de julho de 1911. Esse evento foi fundamental porque além de reunir grandes juristas renomados à época, também sedimentou o que seria o novo conjunto de princípios do novo direito. Ademais, influenciou a criação de inúmeros Tribunais especializados na Europa (MENDEZ, 1998, p. 53).

Infelizmente, no entanto, a política adotada pelos ditames principiológicos discutidos no evento, mostraram-se extremamente discriminatórias e ineficazes. A pretexto de "proteger" o menor, a doutrina mitigava vários princípios gerais (como o da a legalidade). Em suma, dispensava-se ao menor tratamento igual ao destinado aos adultos, igualando aqueles que não eram iguais. Estava sendo abarcada a Doutrina da Situação Irregular, que consagrava o binômio carência/delinqüência.

A critica que pode ser feita quanto à violação ao princípio da legalidade, como destaca Emílio Garcia Mendez (1998, p. 53), é que o juiz passou a ter um amplo poder em face do menor e prerrogativas de um pater familiae. A pedra angular das reformas consistiu em alterar substancialmente as funções do juiz. A jurisdição de menores deveria possuir caráter familiar e o juiz deveria ser um pai e um juiz de vigilância.

O segundo evento de grande relevância no início do século XX foi a Declaração de Gênova dos Direitos da Criança, porquanto foi, no dizer do professor João Batista Costa Saraiva (2005, p.38), tal evento constituiu-se "no primeiro instrumento internacional a reconhecer a idéia de um Direito da Criança".

2.2- Da Consolidação das Leis Penais em 1922 ao Código Mello Matos de 1927.

O binômio carência/delinqüência, que marcou o sistema adotado no início do século, e a conseqüente confusão ontológica, que não distinguia, em tese, os abandonados dos infratores, serviu como fundamento para a criação das primeiras legislações brasileiras no tocante ao "novo" Direito da Criança.

Entre 1921 e 1927, importantes inovações legislativas foram inseridas no ordenamento jurídico pátrio. Vejamos os principais.

A Lei. 4.242, de 5 de janeiro de 1921, por exemplo, abandonou o sistema biopsicológico vigente desde o Código Penal da República, em 1980. Esse diploma assevera, no art. 3º, §16, a exclusão de qualquer processo penal de menores que não tivessem completado quatorze anos de idade. Passou-se a adotar, portanto, um critério objetivo de punibilidade, qual seja, a idade.

E seguida, com o Decreto 17.943-A, de 12 de outubro de 1927, estabelecia-se o Código de Menores (também conhecido como Código Mello Matos), preceituando que quando com idade maior de 14 anos e inferior a 18 anos, submeter-se-ia o menor abandonado ou delinqüente ao regime estabelecido neste Código. Parece ter sido revivido, pelo menos em parte, o critério biopsicológico para análise de aplicabilidade na norma processual penal.

2.3- Progresso no Direito das Mulheres. Rápido Paralelo.

Enquanto o Direito da Criança dava os primeiros passos à ascensão, o movimento em prol dos Direitos da Mulher, no âmbito internacional, já angariava grandes conquistas.Conta o Professor João Batista da Costa Saraiva (2005, pp. 41-42) que no Brasil, em 1917, Deolinda liderou uma passeata de 84 "sufragettes", no Rio de Janeiro. Era a criação de uma Associação de Mulheres visando a centralizar os esforços para intensificar a luta pelo voto.

No ano de 1928, o Estado do Rio Grande do Norte se fez pioneiro no direito ao voto feminino. O então Governador Juvenal Lamartine antecipou-se à União e introduziu na Constituição do seu Estado a alteração da Legislação Eleitoral, proporcionando às mulheres potiguares o direito ao sufrágio. Naquele mesmo ano, ainda no estado potiguar, foi eleita a primeira Prefeita do Brasil: Alzira Soriano de Souza, no município de Lages. Finalmente, em 1932, o Presidente Getúlio Vargas promulgou o novo Código Eleitoral, que garantiu à mulher o direito ao voto.

Esse paralelo mostra um ponto importante: a mulher conquistou seu espaço de maneira célere devido a sua alta organização e grande capacidade de reunião. Os menores, no entanto, raramente teriam tais atributos e eram poucos os que reclamavam pelos direitos deles. Daí a necessidade de uma tutela efetiva de Proteção Integral às crianças e aos adolescentes.

2.4- O Código Penal de 1940.

O tema da responsabilidade penal juvenil no Código de 1940, a seguir o modelo tutelar vigente, fundou-se na premissa de imaturidade do menor.

A exposição de motivos do referido código bem demonstra essa acepção quando reza que "não cuida o projeto dos imaturos (menores de 18 anos) senão para declará-los inteira e irrestritamente fora do direito penal (art. 23), sujeitos apenas à pedagogia corretiva da legislação especial".

A legislação especial citada na exposição de motivos, relembre-se, tinha como objeto, sem distinção, tanto os delinqüentes, quanto os abandonados, ou seja, eram levados às casas de reforma tanto os adolescentes infratores como os abandonados; eram tratados sem distinção. Em 1942, no Governo de Getúlio Vargas, com o desiderato de atender essas pessoas, criou o SAM (Serviço de Assistência aos Menores).

No dizer de Antônio Carlos Gomes da Costa (1991, p. 14), o SAM era um órgão do Ministério da Justiça que funcionava como um similar do Sistema Penitenciário Geral com uma diferença: servia para a população menor de idade. O SAM possuía orientação eminentemente correicional-repressiva; seu sistema era baseado em internatos (casas de correção e reformatórios). Seguia o modelo europeu-continental de reforma juvenil. O que reforça a tese de serem tratados sem distinção os delinqüentes dos abandonados era o fato de que, em tais sistemas, tanto eram abrigados adolescentes autores de infração penal como também patronatos agrícolas e escolas de aprendizagem de ofícios urbanos para os menores carentes e abandonados.

A idéia de incapacidade dos menores os colocava em condição equivalente aos inimputáveis por condição psíquica, tanto que as medidas aplicáveis aos menores se efetivavam por tempo indeterminado, tal como ocorria com aplicação das medidas de segurança aplicáveis aos inimputáveis por incapacidade mental. A premissa da total irresponsabilidade do menor é corolário da tutela Doutrinária da Situação Irregular.

A Segunda Guerra Mundial, oficialmente terminada no final da década de 40, despertou o mundo para os direitos da pessoa humana. As atrocidades cometidas contra os judeus e outras civilizações, além dos horrores próprios de qualquer guerra, foram mostrados ao mundo como uma vitrine da pior face do ser humano: as crueldades que podemos cometer contra o próximo. Viu-se como premente a necessidade de serem instituídos preceitos que regrassem e protegessem a dignidade da pessoa humana, em sua acepção mais ampla.

É nesse contexto que surge a Declaração Universal dos Direitos do Homem. Onze anos depois, a ONU produziria um novo documento fundamental, A Declaração dos Direitos da Criança, alertando a necessidade de proteger a geração garantidora do amanhã.

2.5- A Declaração Universal dos Direitos da Criança.

A Declaração dos Direitos da Criança, adotada pela Assembléia das Nações Unidas de 20 de novembro de 1959 e ratificada pelo Brasil, se constitui, como afirmado, em um mecanismo fundamental para conquistas relevantes nos direitos da criança. A legislação internacional começa a se livrar das amarras da cultura tutelar (total irresponsabilidade juvenil) para dar os primeiros passos para atingir a Doutrina da Proteção Integral. Tenta-se retirar o menor da condição de objeto da norma e transformá-lo em sujeito da norma, titular de direitos e obrigações.

No contexto internacional, no final da década de 50 e início dos anos sessenta, surgem no mundo diversas conquistas inerentes aos Direitos do Homem, notadamente os ligados à dignidade. Nos Estados Unidos, por exemplo, os negros obtêm importantes avanços, dos quais pode ser citado o acesso à Universidade em condições igualitárias com os brancos.

A Lei 4.513/64 estabelecia a Política Nacional de Bem-Estar do Menor, criando-se uma gestão centralizada e vertical, baseada em padrões uniformes de atenção direta implementados por órgãos executores inteiramente uniformes em termos de conteúdo, método e gestão (COSTA, 1991, p. 18).

O órgão nacional gestor desta política passa a ser a FUNABEM (Fundação Nacional de Bem-Estar do Menor), e os órgãos estaduais eram as FEBEMs (Fundações Estaduais de Bem-Estar do Menor).

O professor João Batista da Costa Saraiva (2005, p. 47) comenta a respeito da referida Lei:

Esta ordem legislativa (que teria mais adiante seu arcabouço completado pelo Código de Menores de 1979- Lei 6.697) não se dirigia ao conjunto da população infanto-juvenil brasileira. Movida pela Doutrina da Situação Irregular, tinha por destinatários apenas as crianças e os jovens considerados em situação irregular, onde incluíam aqueles menores em estado de necessidade em razão da manifesta incapacidade dos pais para mantê-los, colocando-os na condição de objeto potencial de intervenção do sistema de Justiça, os Juizados de Menores.

Consoante verificado, a norma tutelou o princípio da situação irregular, que não diferencia delinqüente de carente, portanto, parte de um pressuposto que reina até os tempos hodiernos: da pobreza nasce o crime. O cunho eminentemente tutelar da legislação e a idéia de "criminalizar" a pobreza, culminarão com o advento do Código de menores de 1979, a positivação da situação irregular.

2.6- O Código de Menores, Lei 6.697/79. A Doutrina da situação Irregular.

O Código de Menores (Lei 6.697/79 de 10 de outubro de 1979) foi claramente inspirado na Doutrina da Situação Irregular. Em síntese, tal Doutrina parte da premissa de que o menor é objeto da norma somente quando se encontrar em estado de abandono social.

O artigo 2º do mencionado corpo normativo preceituava:

"Art.2º: Para efeito deste Código, considera-se em situação irregular o menor:

I- privado de condições essenciais à sua subsistência, saúde e instrução obrigatória, ainda que eventualmente, em razão de:

a) falta, ação ou omissão dos pais ou responsável;

b) manifesta impossibilidade dos pais ou responsável para provê-las;

II- vítima de maus-tratos ou castigos imoderados impostos pelos pais ou responsável;

III- em perigo moral, devido a:

a) encontrar-se, de modo habitual, em ambiente contrário aos bons costumes;

b) exploração de atividades contrária aos bons costumes;

IV- privado de representação ou assistência legal, pela falta eventual dos pais ou responsável;

V- com desvio de conduta, em virtude de grave inadaptação familiar ou comunitária;

VI- autor de infração penal." (grifo nosso)

É fácil perceber, em uma rápida passagem de olhar pelo texto da norma acima, que o menor negligenciado é equiparado àquele que cometeu uma infração penal. A declaração da situação irregular tanto pode derivar de sua conduta pessoal (infração praticada por ele), como da família (maus-tratos) ou da própria sociedade na qual está inserido (abandono).

Mary Beloff (1991, pp. 9-21), professora de Direito Penal Juvenil na Faculdade de Direito da Universidade de Buenos Aires, propõe uma série de distinções entre a Doutrina da Situação Irregular, que imperava no Código de Menores e nas legislações latino-americanas da época, e a Doutrina da Proteção Integral, que foi adotada pela Convenção das Nações Unidas de Direito da Criança (dominante na nova ordem internacional).

Do excelente trabalho da professora, podem ser reputadas como características da situação irregular:

a) As crianças e os jovens aparecem como meros objetos de proteção, ou seja, não são reconhecidos como sujeitos de direito.

b) Estabelece-se uma distinção entre as crianças que nasceram em lares abastados e aquelas em "situação irregular". Em outras palavras, a definição de criança não se confundiria com a de menor (contradição em termos). Enquanto a este seria aplicado o Juízo de Menores, àquela caberia o Direito de Família.

c) Surge a idéia de que o menor é absolutamente incapaz e irresponsável. Por tal motivo, sua opinião seria irrelevante.

d) O juiz de menores, ao tratar da questão da criminalidade juvenil, deveria locupletar as lacunas deixadas pela falta de políticas públicas, porquanto, como visto, os abandonados eram tratados tais como os delinqüentes. Tal fenômeno ficou conhecido como "sequestro e judicialização dos problemas sociais" (SARAIVA, 2005, p. 48).

e) As garantias inerentes ao Estado de Direito somente eram asseguradas aos que fossem adultos, já que os menores não eram sujeitos de direito.

f) As garantias processuais asseguradas aos adultos para aplicação de medidas constritivas de direito não seriam aplicadas aos menores, posto que a aplicação de sanção não está submetida necessariamente ao fato cometido e sim ao requisito de estar o menor em "situação irregular".

O professor João Batista Costa Saraiva (2005, p. 53) conta que no período de vigência do Código de Menores, cerca de 80% dos menores que ocupavam o sistema FEBEM não cometeram infrações penais definidos em nossa legislação. Estavam lá não por serem autores de infrações, mas por serem vítimas do descaso. Existia, na verdade, uma espécie de controle da pobreza. Cerceavam a liberdade dos menores sem respeitar garantias mínimas processuais.

Era preciso mudar tal acepção. No tocante ao Direito Penal houve diversas tentativas de alteração da legislação penal brasileira. No Projeto Hungria, em 1963, era mantida a idade de inimputabilidade penal aos dezoito anos, no entanto, seria possível incluir no sistema de aplicação penal ao maior de dezesseis anos que fosse considerado maturo. Seria, portanto, a retomada do critério biopsicológico da imputabilidade penal, afastado pelo Código de 1940. Esse projeto do saudoso Nelson Hungria, todavia, nunca entrou em vigor [03].

A percepção de que a imputabilidade penal será aplicada ao menor com capacidade de discernimento é superada em parte pela Doutrina de Assis Toledo, que inspirou a Reforma Penal de 1984. A Exposição de Motivos da Lei 7.209/84 (reforma) assevera que a imputabilidade penal aos dezoitos anos é fixada por um critério de política criminal.

A reforma penal de 1984 deu nova redação à parte geral do Código penal brasileiro. Manteve, em seu artigo 27, a imputabilidade penal aos dezoito anos, observando um critério puramente biológico.

Deveras pedagógica é a Exposição de Motivos de 1984 ao tratar da inimputabilidade penal aos menores de 18 anos, por isso passamos a expô-la:

Manteve o Projeto a inimputabilidade penal ao menor de 18 (dezoito) anos. Trata-se de opção apoiada em critérios de política criminal. Os que preconizam a redução do limite, sob a justificativa da criminalidade crescente, que a cada dia recruta maior número de menores, não consideram a circunstância de que o menor, ser ainda incompleto, isto é, naturalmente anti-social na medida em que não é socializado e instruído. O reajustamento do processo de formação do caráter deve ser cometido à educação, não à pena criminal. De resto, com a legislação de menores recentemente editada, dispõe o Estado dos instrumentos necessários ao afastamento do jovem delinqüente, menor de 18 (dezoito) anos, do convívio social, sem sua necessária submissão ao tratamento do delinqüente adulto, expondo-o à contaminação carcerária.

Com a publicação da Constituição Federal de 1988, a inimputabilidade penal do menor de 18 anos foi finalmente elevada à categoria de garantia fundamental. No plano interno, como veremos, a Carta da República erigiu a inimputabilidade do menor de 18 anos como clausula pétrea.

2.7- A Doutrina das Nações Unidas de Proteção Integral à Criança.

Como visto, no ano de 1979 vigorava no Brasil o Código de Menores. A despeito disso, no âmbito internacional, notadamete na Europa, a ONU estabelecia aquele mesmo interregno como Ano Internacional da Criança. Em 1989, dez anos após, portanto, ocorre a Convenção das Nações Unidas de Direito da Criança.

Para tanto, a Comissão de Direitos Humanos da ONU organizou um grupo de trabalho aberto para elaborar a questão. Em 1989, a Assembléia-Geral da Organização das Nações Unidas, reunida em Nova Iorque, aprovou a Convenção sobre os Direitos da Criança. Desde então, o antes famigerado Direito da Infância foi sedimentado em um documento normativo global, idôneo a vincular os países signatários, entre os quais se inclui o Brasil (SARAIVA, 2002, p. 15). A tão aclamada Convenção consagrou a Doutrina da Proteção Integral; é considerado como o principal documento internacional de Direitos da Criança (SARAIVA, 2005, p. 56).

O epigrafado documento tratou das regras mínimas das Nações Unidas para Administração da Justiça de Menores, as regras mínimas para a proteção dos jovens privados de liberdade e as Diretrizes das Nações Unidas para a prevenção da delinqüência juvenil. Este corpo de legislação internacional, com força coativa de lei para os países signatários (entre os quais se inclui o Brasil), modifica total e em definitivo a vetusta doutrina da situação irregular. A Doutrina da Proteção Integral foi encampada pela Constituição Federal [04], tendo sido aprovada pelo plenário do Congresso Constituinte pela esmagadora votação de 435 votos a favor e apenas 08 contra. O texto pátrio Constitucional (vigente em outubro de 1988) se antecipou à Convenção, porquanto o texto desta somente foi aprovado pela Assembléia das Nações Unidas em 20 de novembro de 1989 (SARAIVA, 2002, p. 15). [05]

A Doutrina das Nações Unidas de Proteção Integral à Criança estão alicerçadas a partir destes quatro documentos:

a) Convenção Internacional sobre Direitos da Criança (20/11/1989);

b) Regras Mínimas das Nações Unidas para a Administração dos Direitos dos Menores, conhecidas como "Regras de Beijing" (29/11/1985);

c) Regras das Nações Unidas para a Proteção dos Menores Privados de Liberdade (14/12/1990);

d) Diretrizes das Nações Unidas para a Prevenção da Delinqüência Juvenil, conhecidas mundialmente como "Diretrizes de Riad" ou "Riad Rules" (14/12/1990).

Assevera João Batista da Costa Saraiva (2005, p. 57) [06], ao mencionar a importância dos citados documentos, notadamente pelo o implemento da Doutrina da Proteção Integral:

Este conjunto normativo revogou a antiga concepção tutelar, trazendo a criança e o adolescente para uma condição de sujeito de direito, de protagonista de sua própria história, titular de direitos e obrigações próprios de sua peculiar condição de pessoa em desenvolvimento, dando um novo contorno ao funcionamento da Justiça da Infância e Juventude, abandonando o conceito de menor, como subcategoria de cidadania. (grifo nosso)

Com a inclusão do menor no sistema de garantias individuais, notadamente as de caráter processual penal, estes passaram a gozar efetivamente de tais prerrogativas, tal como já ocorria com os maiores de 18 anos. Os menores não seriam mais meros objetos de direitos e sim sujeitos de direitos.

Continua o supracitado autor, destacando que malgrado serem fundamentais, as garantias processuais penais não eram asseguradas aos menores em "situação irregular", porquanto o Estado, a pretexto de proteger o menor, violava os princípios da reserva legal, do devido processo legal, do pleno e formal conhecimento da acusação, da igualdade na relação processual, da ampla defesa e do contraditório, da defesa técnica por advogado, da privação de liberdade como excepcional e somente por ordem expressa da autoridade judiciária o em flagrante, da proteção contra a tortura e tratamento desumano ou degradante, entre outros inúmeros postulados (SARAIVA, 2005, p. 58).

No louvável trabalho de Mary Beloff (1999, pp. 18-9), a autora lista as principais características da Doutrina da Proteção Integral, quais sejam:

a) São definidos os direitos fundamentais das crianças, os quais são dotados de plena eficácia, cuja violação ou ameaça devem ser expurgadas pela família, sociedade, de sua comunidade e do Estado. Estes entes, sem embargo de outros, devem restabelecer o exercício do direito atingido, por meio de mecanismos e procedimentos efetivos e eficazes, tanto administrativos quanto judiciais, se for o caso.

b) Não mais existem as imprecisões terminológicas e conceituais observadas na Doutrina ultrapassada, tas como "categoria de risco", "perigo moral ou material", "circunstâncias especialmente difíceis", situação irregular", entre outras excrescências.

c) Ocorre uma mudança de interpretação fática: quando uma criança encontra-se ameaçada ou violada, implica dizer que a criança não está em "situação irregular", mas sim o seu responsável, seja o Estado, a sociedade ou a família, já que não cumpriram com suas incumbências de proteção.

d) É estabelecida uma importante diferenciação estrutural, posto que são separadas as competências sociais, voltadas principalmente para questões de abandono pontual, das competências jurisdicionais penais, voltadas precipuamente para questões atinentes às infrações penais (fim do binômio carência/delinqüência).

e) Proteção efetiva dos Direitos das Crianças e dos Adolescentes: diferentemente do modelo anterior, que visava à "proteção" do menor por meio de medidas que mais prejudicavam que protegiam. No novo modelo são preconizadas garantias positivas em favor do menor, que efetivamente o protegem contra os riscos sociais.

f) Este conceito de proteção resulta no reconhecimento e promoção de direitos, sem violá-los nem restringi-los. Também por este motivo a proteção não pode significar intervenção estatal coercitiva, salvo se agindo na estrita legalidade legítima.

g) Âmbito universal do novo conjunto normativo; com o fim do binômio carência/delinqüência, não faria mais sentido a Justiça de Menores somente para aqueles que se encontrasse em situação de abandono. A proteção integral não faz acepção de classe para definição de sujeição à nova ordem.

h) Não se tratam mais de pessoas incapazes ou incompletas, mas sim de pessoas completas, cuja particularidade é que está em desenvolvimento. Por isso são sujeitas de todos os direitos aplicáveis às demais pessoas, além de outros específicos que lhe dão uma condição peculiar, haja vista sua especial qualidade de pessoa em desenvolvimento.

i) Corolário dessa premissa é um imperativo lógico: o direito de a criança ser ouvida e sua palavra e opinião serem devidamente consideradas.

j) O juiz da Infância, obviamente, está limitado em sua intervenção pelo sistema garantidor.

k) Na questão do adolescente em conflito com a lei, enquanto autor de uma conduta tipificada como crime ou contravenção, reconhecem-se todas as garantias que correspondem aos adultos nos juízos criminais, segundo as constituições e os instrumentos internacionais pertinentes, mais garantias específicas. Destas, a principal é de que os adolescentes devem ser julgados por tribunais específicos, com procedimentos próprios e que a responsabilidade do adolescente pelo ato cometido resulte na aplicação de sanções distintas daquelas do sistema de adultos, estabelecendo, deste ponto de vista, uma responsabilidade penal juvenil distinta daquela do adulto.

l) Por conta da nova ordem, deve ser estabelecido um rol de medidas específicas aplicáveis ao adolescente infrator, que preverá somente em caráter excepcional, pedagógico e com limitação temporal severa, a medida de privação de liberdade.

Enfim, a Doutrina da Proteção Integral incorpora à questão do adolescente infrator a proposta de Luigi Ferraioli, conceituada por Noberto Bobbio como um sistema de garantismo, com a construção de colunas mestras do Estado de Direito (intransponíveis e inquebrantáveis), que tem por fundamento lógico a tutela das liberdades do indivíduo (e, portanto, das crianças e dos adolescentes enquanto sujeitos de direito) face às variadas maneiras de exercício arbitrário de poder estatal, notadamente aquelas observadas no declaradamente falho direito penal. [07]

2.8- A Constituição Federal e o Estatuto da Criança e do Adolescente.

A Constituição Federal de 1988, consoante já asseverado, antecipou-se à Convenção das Nações Unidas de Direitos da Criança e encampou o princípio da proteção integral, proclamando-o positivamente nos arts. 227 e 228. [08]

O Estatuto da Criança e do Adolescente de 1990 seguiu a postura ideológica da Carta da República no que toca à doutrina da proteção integral. Consoante ressalta o professor João Batista da Costa Saraiva (2005, pp.72- 73), o Brasil não somente foi o primeiro país da América Latina a positivar em seu ordenamento infraconstitucional os primados preconizados pela Convenção das Nações Unidas, como também elevou tais princípios à categoria de norma constitucional petrificada, já que trata de direitos e garantias individuais da pessoa humana.

O princípio da prioridade absoluta, insculpido no art. 227 da Constituição Federal, está ratificado no art. 4° do citado conjunto normativo infraconstitucional.

Como destaca o professor João Batista da Costa Saraiva (2005, p. 76), o Estatuto da Criança e do Adolescente se estrutura a partir de três grandes sistemas de garantia, harmônicos entre si, quais sejam:

a) o Sistema Primário, que dá conta das Políticas Públicas de Atendimento a crianças e adolescentes; de caráter universal, visando a toda população infanto-juvenil brasileira, sem quaisquer distinções.

b) o Sistema Secundário que trata das Medidas de Proteção dirigidas a crianças e adolescentes em situação de risco pessoal ou social, não autores de atos infracionais, de natureza preventiva, ou seja, crianças e adolescentes enquanto vítimas, enquanto violados em seus direitos fundamentais. As medidas protetivas visam a alcançar crianças e adolescentes enquanto vitimizados.

c) o Sistema Terceário, que trata das medidas sócio-educativas, aplicáveis a adolescentes em conflito com a Lei, autores de atos infracionais, ou seja, quando passam à condição de vitimizadores.

Esse tríplice sistema, consoante o autor (2005, p. 57), opera de forma harmônica, com acionamento gradual de cada um deles. Quando a criança ou o adolescente escapar ao sistema primário de prevenção, aciona-se o sistema secundário, cujo grande agente operador deve ser o Conselho Tutelar. Estando o adolescente em conflito com a lei (transgressor de normas penais), o terceiro sistema de prevenção, operador das medidas sócio-educativas, será acionado, o que pode ser chamado genericamente de "Sistema de Justiça" - Polícia / Ministério Público/ Defensoria Pública/ Judiciário/ Órgãos Executores das Medidas Sócio-educativas.

O desenvolvimento histórico do Direito da Criança e do Adolescente e suas implicações nacionais, mormente na categoria de norma constitucional, implica a adoção, hodiernamente, do princípio da proteção integral, sendo qualquer medida reducionista eminentemente inconstitucional, tanto do ponto de vista legal (por ferir núcleo sensível solidificado pelo histórico constitucional), quanto no aspecto da legitimidade (por não ser razoável incluir a pessoa em peculiar condição de desenvolvimento no sistema penal geral).

Consoante assevera o mestre Eugênio Couto Terra (apud SARAIVA, 2005, p. 80), o artigo 228 da Constituição é regra de imbricação direta com o princípio da dignidade da pessoa humana, porquanto é preservadora do direito de liberdade, caracterizando-se como autêntico direito fundamental. Logo, pela proibição de retrocesso da posição jurídica outorgada, no que se refere ao seu conteúdo de dignidade humana, é insuscetível de qualquer modificação. Além do que, uma interpretação desse artigo conforme o Estado Democrático de Direito afasta toda e qualquer possibilidade de que sofra alteração.

Lembremos, ademais, que a evolução histórica do Direito da Criança e do Adolescente assegurou a esses clientes a condição de sujeitos de direito e não meramente de objeto de direito. Daí a necessidade de, oportunamente, investigar se esses indivíduos sociais possuem ou não direito subjetivos e garantias individuais contra eventuais arbítrios estatais. Tal estudo, portanto, será exposto em tópico próprio.


Capítulo II

Comumente os escritos sobre direitos fundamentais, quando tratam da evolução histórica do tema, remontam à época das célebres cartas e estatutos assecuratórios de tais direitos, tais como a Magna Carta (1215-1225), a Petition of Rights (1628) e o Habeas Corpus Act (1679). Porém, como ressalta o Prof. José Afonso da Silva (2005, p.51), tais cartas não são tecnicamente declarações de direito no sentido moderno. Consoante ressalta o renomado autor, as verdadeiras declarações de direito só apareceram no século XVIII com as Revoluções americana e francesa, com a Virgínia Bill of Rights (1776) e a Declaration des Droit de l´Homme et du Citoyen (1789).

No entanto, sem desmerecer o significado de tais acontecimentos, a Professora Márcia Milhomens Corrêa (1998, pp. 37-38), em obra singular, traça um esboço histórico mais aprofundado de tais direitos, que, conforme a autora, remontam à Grécia antiga.

Para ela, na antiguidade clássica, não se aventava a idéia de existência de direitos do homem. A sociedade grega, além de escravocrata, fundava-se em uma moral coletiva e alargada. Apenas o cidadão grego gozava de liberdade, podendo participar dos assuntos públicos e da vida política. Na democracia ateniense - que alcança seu ápice por volta do século V a.C. - não se pode falar em verdadeira participação dos indivíduos no processo político; isso porque aqueles considerados cidadãos correspondiam apenas a 10% da população. Atenas possuía cerca de meio milhão de habitantes, dos quais trezentos mil eram escravos e cinqüenta mil eram estrangeiros. As mulheres e crianças também eram excluídas da vida pública.

Com a evolução do sofismo, verifica-se o que Márcia Milhomens Corrêa chama de "embrião dos direitos humanos"(1998, p. 39), dentro de uma perspectiva filosófica. A autora ensina que os sofistas eram uma espécie de professores viajantes, que iam de cidade em cidade ministrando aulas e seminários, com o escopo de oferecer bons conselhos em assuntos de família, ou seja, o trato competente da casa de alguém, e bons conselhos em assuntos públicos, isto é, contribuir com mais eficiência pela palavra e pela ação para o bom andamento dos assuntos da cidade. Os sofistas foram, para a autora, "representantes do humanismo grego"(1998, p. 39). Citando J, V. Luce, Milhomens (apud CORRÊA, p. 40) assevera que os sofistas, em seus melhores momentos, foram defensores dos direitos humanos, e alguns chegaram a questionar a validade da profundamente arraigada instituição social da escravidão.

Os sofistas Antifon e Alcidamas defendiam que "por natureza são todos iguais, quer sejam bárbaros ou helenos" e que "Deus Criou todos os homens livres e a nenhum fez escravo" (apud CANOTILHO, 1993, p. 501). Desta feita, o pensamento sofista proclama a igualdade entre os homens e lança a semente da idéia de direitos fundamentais.

Os estoicistas, por sua vez, dão um destaque ainda maior ao princípio da igualdade. Passa-se a considerar que os direitos do homem não estão adstritos ao espaço físico da polis e que as idéias de igualdade e dignidade referem-se a todos os homens, independentemente da qualidade de cidadão.

Fugindo da Grécia antiga e voltando os olhos ao mundo Romano, deparamo-nos com o deslocamento do princípio da igualdade para o âmbito da filosofia e da doutrina política, mas não ganha denotações tecnicamente jurídicas (CANOTILHO, 1993, p. 501).

O cristianismo propiciou uma mudança significativa à dimensão dada ao indivíduo. Ao preconizar que o homem é feito "à imagem e semelhança de Deus", esse sistema religioso sedimentou um entendimento antropocentrista que desencadeou diversas conseqüências no estudo da matéria.

A partir do século II, com a expansão do cristianismo e o declínio do Império Romano, os padres da Igreja, na tentativa de justificar a fé e converter pagãos, desenvolvem a corrente filosófica conhecida como patrística. A patrística procurou realizar uma síntese entre a filosofia platônica e a doutrina cristã, fazendo algumas adaptações à primeira. Seu principal expoente foi Santo Agostinho. O direito natural tomista distinguiu lex divina, lex natura e lex positiva e apontou a necessidade de submeter a lei positiva à lei natural, fundada na natureza dos homens.

Durante a Baixa Idade Média, o conceito de dignidade humana ganha nova semântica, sob a égide da escolástica (filosofia cristã que surge no século IX e perdura até o início do século XIV). A fé continua exercendo papel primordial na filosofia e a razão continua sendo firmada na figura divina, ligada mais ao transcendentalismo. O século XI, no entanto, é marcado por inúmeras manifestações consideradas "heréticas", seguidas pela implementação de diversas universidades na Europa. A partir do século XIII, é sentida a influência aristotélica no pensamento em virtude da difusão de traduções da autoria de São Tomas de Aquino diretamente do grego. A filosofia aristotélica tomista vem a ser uma síntese da escolástica (CORRÊA, 1998, p. 42).

A grande contribuição da corrente escolástica para a posterior fundamentação dos direitos humanos foi a combinação da teoria do direito natural com a teoria dos valores objetivos. Os espanhóis Francisco de Vitória, Gabriel Vásquez e Francisco Suarez preconizavam a substituição do conceito obscuro da "vontade divina" pela acepção da natureza ou "razão das coisas" (apud CANOTILHO, 1993, p. 502).

No sistema feudal, mais especificamente no período de transição do estado feudal da alta Idade Média para o estado territorial da Baixa Idade Média- os barões reivindicavam certos direitos, de cunho cooperativista, em face de seu susserano. A célebre Magna Carta Libertarum, de 1215, é freqüentemente aclamada como marco histórico nas modernas declarações de direitos humanos. Consoante já ressaltado acima, nos dizeres do prof. José Afonso da Silva (2005, p. 152), a Magna Carta e outras declarações que lhe foram contemporâneas, em países como Espanha, Portugal, Hungria, Polônia e Suécia, não abarcaram direitos individuais propriamente ditos, porquanto caracterizavam cunho meramente estamental. Sua importância reside no fato de haver ensejado, posteriormente, a transformação dos direitos estamentais em direitos do homem (CANOTILHO, 1993, p. 503).

Os documentos Petition of Rights, de 1628, Habeas Corpus Act, de 1679 e Bill of Rights, de 1688, incorporaram a individualização de direitos outrora estamentais. Esta individualização dos direitos estamentais está aliada à secularização do direito natural - com a teoria de valores objetivos da escolástica espanhola - e representa decisiva contribuição para a formação das garantias modernas dos direitos fundamentais.Todavia, como ressalta Márcia Milhomens Corrêa (1998, p. 44), não há que se falar, ainda, em direitos fundamentais tais como hoje os conhecemos.

A Idade Moderna acena com um certo deslumbramento do homem por sua própria natureza, sua própria razão. Esta razão secularizada situa o indivíduo como agente determinante da ordem sócio-política, como sujeito da história. A filosofia Renacenstista, ou seja, Humanista, é marcada pela revalorização da antiguidade clássica. O homem agora se reconhece capaz de determinar a validade autônoma do pensamento a partir de critérios racionais. Segundo a concepção jusnaturalista em vigor, todos os homens são naturalmente livres e possuem direitos inerentes, inatos, anteriores e superiores ao poder público. O objetivo da sociedade constituída é, portanto, conservar todos os diretos do indivíduo.

O liberalismo, marcado pela valorização do indivíduo em detrimento do Estado, e a concepção jusnaturalista trazem a possibilidade de juridicização dos direitos do homem e projetam-se nas Revoluções americana e francesa, dando surgimento às declarações de direitos "setecentistas" (CORRÊA, 1998, p. 47).

Produzida em nome da "Razão Universal", a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, adotada pela Assembléia Constituinte francesa em 27.08.1789, teve grande influência no desenvolvimento dos direitos fundamentais em todo o mundo. Ressalte-se que, ainda hoje, a Constituição francesa vigente, de 1958, a ela se remete em seu preâmbulo.

Todavia, como ressalta Márcia Milhomens Corrêa (1998, p. 48), os direitos assegurados até então eram de cunho eminentemente individualista. A autonomia privada consistia basicamente, nos direitos à vida, à liberdade e à propriedade, à segurança e à resistência. Por isso a teoria liberal dos direitos fundamentais os considera como direitos de defesa do cidadão perante o Estado.

Como ensina o professor José Afonso da Silva (2005, p. 167), as declarações do século XX, superando a proteção formal das declarações dos séculos XVIII e XIX, voltam-se para as desigualdades materiais (efetivas, substanciais) do ser humano concreto. Como pioneira no reconhecimento dos direitos sociais há que ser lembrada a Constituição Mexicana de 1917. Nas declarações de direitos hodiernas, busca-se assegurar ao homem (visto sem restrições discriminatórias) uma existência material digna, não só reconhecendo, mas, sobretudo, promovendo a concretização dos direitos econômicos, sociais e culturais.

Sobretudo a partir da II Grande Guerra Mundial, intensificou-se o movimento de universalização e internacionalização dos direitos fundamentais, com o desiderato de salvaguardar, além das fronteiras dos países, certos direitos de caráter fundamental. É de conhecimento geral os abusos cometidos pelos regimes totalitários (que integravam os chamados "países do eixo") durante a citada guerra e tais abusos reforçaram a necessidade de garantir a universalização de direitos mínimos de dignidade da pessoa humana. Surgiram, então, documentos como a Declaração Universal dos Direitos do Homem, de 1948, a Declaração dos Direitos da Criança, de 1959, a Declaração sobre a Eliminação da Discriminação à Mulher, de 1967, a Declaração dos Direitos do Deficiente Mental, de 1971, entre outros diversos tratados denominados por muitos de "humanistas".

Deveras didática é a lição do professor José Afonso da Silva (2005, p. 163) acerca da Declaração Universal dos Direitos do Homem, importante documento positivo dos direitos do homem. Eis a lição do insigne doutrinador:

A Declaração Universal dos Direitos do Homem contém trinta artigos, precedidos de um Preâmbulo com sete considerandos, em que reconhece solenemente: a dignidade da pessoa humana, como base da liberdade, da jstiça e da paz; o ideal democrático com fulcro no progresso econômico, social e cultural; o direito de resistência à opressão; finalmente, a concepção comum desses direitos.

Hodiernamente, malgrado as profundas celeumas na conceituação, no tratamento e na concretização dos direitos fundamentais (como veremos adiante), verifica-se uma sinalização de algumas tendências comuns, que são ressaltadas por Jorge Miranda (1998, pp. 24-25), dentre as quais destacam-se: a diversificação do catálogo, com a especificação de mais direitos; a acentuação da dimensão objetiva dos direitos, os quais passam a constituir princípios basilares da ordem jurídica; o reconhecimento de um conteúdo positivo até mesmo aos direitos de liberdade; a produção de efeitos também horizontais, isto é, em relação a particulares; e o desenvolvimento de meios e de garantias correlacionados ao controle de constitucionalidade para mantença desses pretensos direitos.

1.1.2- Semântica contemporânea dos chamados "direitos fundamentais".

Problemática e calorosa é a questão que trata da conceituação, delimitação e concretização dos chamados direitos fundamentais, a começar pela discussão terminológica que sempre é travada, mormente quando comparados os termos "direitos fundamentais", "direitos humanos" e direitos individuais".

Para início de discussão, mister ressaltar a diferenciação, se é que existe, entre direitos fundamentais e os chamados direitos humanos. Sobre o tema, o renomado jurista potiguar, Dr. Paulo Afonso Linhares (2002, p. 55), traça lição que, por seu caráter didático, merece ser repetida. Preceitua o respeitado doutrinador:

Ora, de princípio, vale ressaltar que, historicamente, os direitos fundamentais se situam no campo dos chamados direitos humanos, porém traduzidos em manifestações positivas de direito, enquanto aqueles genericamente não passam de consignas universais de cunho ético-político, de sorte a situá-las no plano da suprapositividade, numa dimensão eminentemente axiológica que transcende o mundo físico e na qual estão situados os direitos humanos, o direito natural, a idéia do direito, os princípios supremos da justiça, do direito justo (defendido por Stammler), da consciência, da moralidade, do bem comum, intuitivo, superior, ou como se queira chamar. (destaques no original)

Após traçar essa pretensa diferenciação, continua o ilustre professor (2002, p.56), asseverando:

Doutra parte, em linhas gerais, pode dizer-se que os direitos humanos se revestem de validade universal e intertemporal, enquanto os direitos fundamentais obedecem às limitações de tempo, espaço, e cuja existência depende essencialmente da sua inserção constitucional nos ordenamentos jurídicos dos diversos povos. Embora assentada essa distinção entre os direitos fundamentais e os direitos humanos, o fato é que, via de regra, ambos são tratados como uma só garantia de direitos. Em suma, os direitos fundamentais podem ser considerados como denominação genérica dos direitos humanos universais e dos direitos dos cidadãos nacionais (...)

Percebe-se que o citado jurista dá um caráter meramente didático à distinção entre direitos fundamentais e os direitos do homem, apesar de, inicialmente, tender por uma diferenciação terminológica. Para o autor, ao que parece, os "direitos humanos" seriam uma proposição genérica, axiológica (dever-ser), enquanto os "direitos fundamentais" seriam a positivação de tais preceitos naturais. Posteriormente, o autor tende a aceitar a distinção como de cunho didádito-filosófico.

Ainda acerca de distinções terminológicas, o mesmo autor, assevera a distinção entre direitos fundamentais e os chamados de direitos de personalidade. Para Paulo Afonso Linhares (2002, p. 56), seguindo idéias de Canotilho, enquanto os direitos de personalidade seguem uma ordem de direitos subjetivos que são traduzidos nos direitos de estado (direitos de cidadania, por exemplo), nos direitos sobre a própria pessoa (direito à intimidade, direito à vida, direito à integridade física e moral, etc.) e em muitos dos direitos à liberdade (livre expressão do pensamento), os direitos fundamentais se pautam por uma ordem objetiva, na medida em que são reconhecidos às pessoas coletivas, às instituições e, numa visão de maior apuro, às próprias coletividades de sujeitos indeterminados e não necessariamente ligadas por vínculo jurídico bem definido, ou seja, aquelas são portadoras dos chamados interesses difusos.

É bem verdade que a própria Constituição Federal brasileira não é uníssona no tocante as muitas definições e acepções dos chamados direitos fundamentais, refletindo a celeuma que atravessa a conceituação e contornos de tais direitos. A título de exemplo, encontramos na nossa Carta da República expressões como: a) direitos humanos (art. 4°, inciso II); b) direitos e garantias fundamentais (epígrafe do Título II, e art. 5°, § 1°); c) direitos e liberdades constitucionais (art. 5°, inc. LXXI) e d) direitos e garantias individuais (art. 60, § 4°, inc. IV).

Ingo Sarlet (2005, p. 35), em excelente trabalho sobre o tema, admite preferir o termo direito fundamental em detrimento aos demais. Explicita o autor que a Constituição Federal tendeu a adotar o termo, não obstante as críticas citadas nas linhas anteriores; para Sarlet, foi acertada a suposta escolha Constitucional ao termo "direitos fundamentais". Argumenta o autor que a epígrafe do Título II da Constituição se refere aos "Direitos e Garantias Fundamentais", consignando que o termo abrange todas as demais espécies ou categorias de direitos fundamentais, notadamente os direitos e deveres individuais e coletivos (Capítulo I), os direitos sociais (Capítulo II), a nacionalidade (Capítulo III), os direitos políticos (Capítulo IV) e o regramento dos partidos políticos.

Assevera o autor, ademais, que essas categorias englobam as diferentes funções exercidas pelos direitos fundamentais, de acordo com parâmetros desenvolvidos especialmente na doutrina e jurisprudência alemãs e recepcionadas pelo direito luso-espanhol, tais como os direitos de defesa (liberdade e igualdade), os direitos de cunho prestacional (incluindo os direitos sociais e políticos na sua dimensão positiva), bem como os direitos-garantia e as garantias institucionais, aspectos que ainda serão objeto de consideração.

O professor Ingo Sarlet (2005, pp. 35- 36) também não foge à diferenciação entre "direitos fundamentais" e "direitos humanos". A propósito do tema, profere:

Em que pese sejam ambos os termos ("direitos humanos" e "direitos fundamentais") comumente utilizados como sinônimos, a explicação corriqueira e, diga-se de passagem, procedente para a distinção é de que o termo "direitos fundamentais" se aplica para aqueles direitos do ser humano reconhecidos e positivados na esfera do direito constitucional positivo de determinado Estado, ao passo que a expressão "direitos humanos" guardaria relação com os documentos de direito internacional, por referir-se àquelas posições jurídicas que se reconhecem ao ser humano como tal, independentemente de sua vinculação com determinada ordem constitucional, e que, portanto, aspiram à validade universal, para todos os povos e tempos, de tal sorte que revelam um inequívoco caráter supranacional (internacional).

A posição do renomado jurista é amplamente aceita na seara jurídica, a qual nos filiaremos para delimitação da matéria a ser tratada no presente trabalho. Até para facilitar a proposição de critérios identificadores dos direitos fundamentais, utilizaremos, como regra, a expressão "direitos fundamentais" para designar o conjunto de normas aplicáveis aos regramentos objetivos e subjetivos assecuratórios de direitos inerentes ao indivíduo, vistos, eminentemente, sob ótica constitucional.

O jurista potiguar Paulo Afonso Linhares (2002, pp. 91-97), acerca dos direitos fundamentais, traça cinco escolas doutrinárias (denominadas por Canotilho de "teorias"), que serviriam para justificar os direitos fundamentais, quais sejam: a doutrina liberal, a doutrina da ordem de valores, a doutrina social, a doutrina democrática funcional e a doutrina socialista. Traçaremos em poucas linhas, consoante estudos do Professor Paulo Afonso Linhares (2002, pp. 91- 97), o que preconiza cada uma das doutrinas citadas.

a) Doutrina liberal - a mais antiga das doutrinas dos direitos fundamentais, centrada ideologicamente na visão privatístico-individualista que é o cerne mesmo da ideologia liberal, tendo sua visão dos direitos fundamentais, no tocante à finalidade e ao seu objeto, um caráter exacerbadamente individual. São direitos exercitáveis contra o Estado, traduzidos em direitos de autonomia e direitos de defesa face àquele, tendo-se presente tendência de ampliação da liberdade individual, por um lado, e a restrição às ações do Estado de interferência na esfera do indivíduo, por outro lado.

b) Doutrina da ordem de valores – substancialmente, essa doutrina busca a formulação de garantias baseadas tão-somente na objetivação dos direitos fundamentais; peca, porém, largamente, quando tende estabelecer uma ordem e uma hierarquia de valores de caráter subjetivo, desprezando inteiramente qualquer critério que tenha esteio na objetividade, daí tudo redundando na tendência de transformação dos direitos fundamentais em algo estanque e divorciado dos outros princípios e direitos de berço constitucional, em franca contradição com o relevante papel da teoria dos direitos fundamentais como pressuposto para qualquer interpretação da constituição.

c) Doutrina social - é a doutrina dos direitos fundamentais que se contrapõe de modo mais incisivo à doutrina liberal, embora, como esta, considere que a liberdade tem uma dimensão social paralelamente à outra, de cunho individual. É importante lembrar o relevante papel que reserva ao Estado na realização dos direitos fundamentais, mormente no tangente aos direitos sociais, sendo a intervenção estatal considerada não como um limite, mas como finalidade daquele, porquanto a socialidade se revela como elemento essencial da liberdade e não meramente como condição existencial desta.

d) Doutrina democrática funcional- Essa doutrina tem como fundamento a noção de "cidadania ativa" na realização do chamado princípio democrático. Essa doutrina preconiza que a liberdade individual não é posta em si mesma, como um direito em si, mas como meio de obter representatividade democrática no seio social. Isso conferia um caráter de funcionalidade ao direito exercido e torna indispensável a presença do Estado na harmonização do exercício dos direitos fundamentais. O equívoco dessa doutrina está na abertura da possibilidade de suspensão ou perda dos direitos fundamentais quando em contradição com o principio democrático, o que, na prática, inaugurou o conceito de "democracia combatente" (uma espécie de pseudo-democracia).

e) Doutrina socialista - é severamente reducionista em face da teoria tradicional dos direitos humanos, a partir de um corte antropológico que conduz a uma concepção marcada pela funcionalização dos direitos fundamentais e a tendência de sujeitar esses direitos às condições materiais de existência, de cunho social e econômico, em detrimento das garantias jurídicas. Parte da premissa de que os interesses da sociedade se sobrepõem aos do indivíduo, cuja liberdade em oposição ao Estado se constitui mera ficção burguesa, razão por que os direitos fundamentais prescindem de concretas garantias materiais para serem efetivados, o que somente se torna possível com a apropriação social dos meios de produção e gestão centralizada da economia.

1.2- Apontamentos específicos acerca dos direitos fundamentais

Nos tópicos anteriores do presente capítulo (tópicos 1.1.1 e 1.1.2), foram traçados alguns pontos fundamentais para delimitação do tema e contextualização da discussão, por meio de evoluções históricas e conceituais. Nas linhas que se seguem, serão apresentadas considerações acerca da estrutura dos direitos fundamentais, seus limites interpretativos, além de demonstrar, sucintamente, o sistema assecuratório de tais direitos.

1.2.1- Estruturas e limites dos direitos fundamentais.

O eminente constitucionalista Gilmar Ferreira Mendes (2004, p. 01), em excelente trabalho acerca dos direitos fundamentais, traça limites sobremaneira didáticos no que toca à temática. Para o insigne autor, a Constituição Federal de 1988 reconheceu que os direitos fundamentais "são elementos integrantes da identidade e da continuidade da Constituição, considerando, por isso, ilegítima qualquer reforma constitucional tendente a suprimi-los (art. 60, § 4º)".

Consoante o autor, a complexidade do sistema de direitos fundamentais recomenda que se envidem esforços no sentido de precisar os elementos essenciais dessa categoria de direitos, em especial no que concerne à identificação dos âmbitos de proteção e à imposição de restrições ou limitações legais (MENDES, 2004, p. 02).

Os direitos fundamentais são, a um só tempo, direitos subjetivos e elementos fundamentais da ordem objetiva, pois, como vimos, é praticamente uníssona a doutrina a delimitar o âmbito dos direitos fundamentais às normas constitucionalmente preconizadas, implícita ou explicitamente. Enquanto direitos subjetivos, os direitos fundamentais outorgam aos titulares a possibilidade de impor os seus interesses em face dos órgãos obrigados. Na sua dimensão como elemento fundamental da ordem constitucional objetiva, os direitos fundamentais – tanto aqueles que asseguram, primariamente, um direito subjetivo quanto aqueloutros, concebidos como garantias individuais – formam a base do ordenamento jurídico de um Estado Democrático de Direito (MENDES, 2004, p. 02).

Os direitos fundamentais possuem certas características particulares que os identifica e distingue dos demais direitos. A vinculação ao valor liberdade e, sobretudo, a dignidade humana conduzem-nos a sua universalidade. Se é certo que os aspectos culturais devem ser respeitados e preservados é também inegável a existência de um núcleo mínimo de proteção à dignidade da pessoa humana que deve estar presente em qualquer lugar.

Por encontrarem limitações em outros direitos constitucionalmente consagrados, os direitos fundamentais não podem ser considerados absolutos (juris et de júri), tendo em vista a necessidade de convivência das liberdades públicas (por isso veremos, adiante, os limites dos limites ou "limites imanentes", que está diretamente relacionado ao alcance de determinada norma de direito fundamental).

Reconhecendo a dificuldade de serem estabelecidos critérios apriorísticos para analisar o alcance das normas fundamentais, Gilmar Ferreira Mendes (2004, p. 14), primado como de costume, pela doutrina alemã, procura definir critérios iniciadores desse âmbito de aplicação. Para se conhecer o alcance de terminado direito fundamental, consoante o autor, faz-se mister "que se identifique não só o objeto da proteção (o que é efetivamente protegido?: was ist (eventuell) geschützt?), mas também contra que tipo de agressão ou restrição se outorga essa proteção (Wogegen ist (eventuell) geschützt?)".

Uma questão posta rotineiramente é a que trata dos limites de aplicação dos direitos fundamentais, mormente porque, como vimos, os direitos fundamentais não são absolutos. Um direito fundamental não pode, por exemplo, servir para salvaguardar a prática de atividades ilícitas. Como resolver, então, esse impasse? Não obstante ser um tema deveras complexo, a professora Márcia Milhomens Corrêa (1998, p. 61), em poucas linhas, parece contornar a questão. Eis o que diz a autora:

Sem pretender abordar o assunto com maior profundidade, há que se esclarecer que, de acordo com o princípio da proporcionalidade, eventuais limitações aos direitos fundamentais só podem chegar até onde seja apropriado, necessário e proporcional (em sentido estrito) para salvaguardar a realização de um fim justificável de interesse público formulado pela lei limitadora.

Em uma análise superficial sobre as palavras da autora, poderia se chegar à conclusão que decisões políticas que, a pretexto de serem legitimadas pela sociedade, poderiam indiscriminadamente mitigar os direitos fundamentais, o que não é verídico. Desde que legítima, para que seja mantida a unidade da constituição, os limites nucleares dos direitos fundamentais devem ser mantidos intocáveis. Profere a mestra (1998, pp. 61-62):

Resta-nos ainda a indagação sobre o conteúdo e os limites de cada direito fundamental. Para esclarecer esses pontos é imprescindível o exame de noções relacionadas ao núcleo essencial e aos limites imanentes dos direitos fundamentais. Os direitos fundamentais possuem um núcleo essencial, uma espécie de conteúdo mínimo que não pode em hipótese alguma, ser violado, sob pena de fazer perecer o próprio direito. A Lei Fundamental de Bonn é a primeira a admitir que a existência de um núcleo ou conteúdo essencial é inerente a qualquer direito fundamental, ao estabelecer, no parágrafo segundo do art. 19, que: "em nenhum caso um direito fundamental poderá ser afetado em sua essência".

Em tópico específico, a ser tratado posteriormente, especificaremos os pontos acerca dos limites de reforma constitucional, momento em que trataremos das correntes que negam a vigência desse chamado núcleo essencial do direito fundamental. Por enquanto, daremos atenção, especificamente, a estrutura e os limites de tais núcleos. Indaga-se, precipuamente, se a cláusula que garante a proteção nuclear destina-se à proteção do direito fundamental, visto como direito individual-subjetivo, ou à proteção da norma objetiva da Constituição que estabelece o direito fundamental. Canotilho (1993, p. 618) acrescenta outra questão à discussão: estabelecer qual seria o valor da proteção, isto é, se o núcleo essencial seria um valor absoluto ou se dependeria da confrontação com outros direitos.

No que concerne ao objeto de proteção, as muitas teorias que existem poderiam se resumir em dois grandes grupos, quais sejam: o das teorias objetivas e o das teorias subjetivas.

Importante é a lição de Márcia Milhomens Corrêa (1998, pp. 63- 64) sobre o tema. Reza a autora que:

Como se depreende por sua própria denominação, as teorias objetivas consideram que o objeto de proteção do preceito constitucional é a garantia geral e abstrata prevista na norma, em vez a posição jurídica concreta do particular (direito subjetivo individual). As teorias objetivas foram extraídas das primeiras sentenças do Tribunal Constitucional Alemão. (...) Já as teorias subjetivas dão ênfase à proteção do núcleo essencial do direito fundamental sob a ótica do direito subjetivo do indivíduo. Assim como sucedido na elaboração das teorias objetivas, a fundamentação das teorias subjetivas foi extraída de algumas sentenças do Tribunal Constitucional alemão.

Imprescindível na celeuma que concerne ao núcleo essencial dos direitos fundamentais está a questão dos chamados limites imanentes. Os limites imanentes são aqueles deduzidos do próprio âmbito de proteção constitucional, o qual exclui, por si, certos modos de exercício de direito. Simplificando, os limites imanentes partem da premissa de que não há direito absoluto, mormente se o limite for posto por norma de igual legitimidade. Estão, portanto, relacionados ao âmbito de proteção constitucional dos direitos fundamentais, sendo justificados pela existência de "limites originários ou primitivos" impostos a todos os direitos que colocassem em risco bens jurídicos necessários à existência da comunidade.

A questão objeto de debates reside em saber se tais limites podem ser determinados abstratamente, por meio da interpretação "apriorística" ou se apenas diante do caso concreto seria possível identificá-los por meio da ponderação (a posteriori).

José Carlos Vieira de Andrade (apud NOVELINO, 2008, p. 243) adota o entendimento de que é necessário distinguir, abstratamente, os "bens ou esferas de ação abrangidos e protegidos pelo direito" das demais "figuras e zonas adjacentes".

Faz-se necessário, pois, distinguir e delimitar o exato âmbito de proteção de determinado direito, bem como seus contornos, para verificar se ocorre um conflito entre bens ou valores constitucionalmente protegidos ou se o próprio preceito constitucional não protege a forma de exercício do direito. Didática é a lição de Márcia Milhomens Corrêa (1998, p. 68), que expressa:

"Nos casos, por exemplo, em que alguém, invocando a liberdade de expressão artística,resolve fazer uma obra de arte em pleno cruzamento de duas avenidas, ou assassinar outrem no decorrer de um espetáculo teatral, ou, ainda, invocar a liberdade religiosa para legitimar sacrifícios humanos, ou o direito de propriedade para eximir-se do pagamento de impostos, pergunta-se: estaremos diante de hipóteses de colisões entre direitos fundamentais? A resposta é obviamente não. Em todos os exemplos apontados inexiste qualquer colisão de direitos. A questão resolve-se pela simples evocação dos limites imanentes dos direitos cuja violação se alega. Assim, a liberdade de expressão artística não foi afetada pela proibição de assassinar alguém para enfatizar a dramaticidade de um espetáculo teatral, do mesmo modo que a liberdade religiosa não resta comprometida diante da impossibilidade de sacrifício humano, visto que o exercício do pretenso direito fundamental invocado não encontra proteção no respectivo preceito constitucional".

Percebe-se, portanto, que não se trata de conflito (ou antinomia, como preferem alguns), uma vez que a solução do problema não demanda o recurso ao direito invocado pelo simples motivo de que não existe tal direito naquela situação proposta por Márcia Milhomens Corrêa. A alternativa que se entende viável, considerando a impossibilidade lógica da adoção de uma teoria de valores, reside na admissão da existência de limites imanentes implícitos toda vez que, diante de um dado caso concreto, possa se imaginar que a Constituição não esteja acobertando determinadas situações ou fórmulas atípicas de exercício do pretenso direito invocado.

Desta feita, o hermeneuta jurídico, quando diante de uma situação na qual se pretenda dispor sobre determinado conteúdo essencial de outro direito, deverá concluir que a proteção constitucional do direito invocado não se estende a tanto, sob pena de fazer ruir a idéia de unidade de sentido da constituição. Não pode o intérprete sequer valer-se da técnica da ponderação de princípios, até porque esta só é válida para antinomias aparentes, em virtude da completude do ordenamento jurídico. [09] Não se pode, em suma, suprimir núcleo essencial de determinado princípio sobre o pretexto de defender outro núcleo essencial, posto que não é tecnicamente nem legitimamente possível tal colisão.

1.2.2- Princípio da não-tipicidade dos direitos fundamentais ou "cláusula materialmente aberta de direitos fundamentais".

A Constituição Federal de 1988, em seu art. 5º, § 2º, assevera que: "Os direitos e garantias expressos nessa Constituição não excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados, ou dos tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte" (grifo nosso).

Uma singela interpretação gramatical sobre o parágrafo, insculpido no Título II da Carta Republicana já revela que o rol previsto no art. 5º, que trata dos direitos e garantias individuais, está longe de ser taxativo (numerus apertus), até porque o próprio parágrafo segundo do artigo preceitua que os direitos e garantias expressos nessa Constituição (reparemos que não se refere ao título ou artigo, especificamente, no qual está inserida a norma de extensão).

Todavia, nossa análise sobre tão importante matéria não poderia transitar por caminhos tão singelos e por tal motivo será necessária uma investigação mais aprofundada sobre o tema, o que se propõe a seguir.

A regra insculpida no art. 5°, §2°, da Constituição Federal de 1988, para o Dr. Ingo Sarlet (2005, p. 91), não é taxativo, ou seja, apesar de analítico, não se propõe a exaurir a matéria dos direitos fundamentais. Para ele, a CF de 1988 segue a tradição do nosso direito constitucional republicano, desde a Constituição de fevereiro de 1891, com alguma variação, mais no que diz com a expressão literal do texto do que com a sua efetiva ratio e seu telos. Inspirada na IX Emenda da Constituição dos EUA e tendo, por sua vez, posteriormente influenciado outras ordens constitucionais, a citada norma (art. 5°) traduz o entendimento de que, para além do conceito formal de Constituição (e de direitos fundamentais), há um conceito material, no sentido de existirem direitos que, por seu conteúdo, por sua substância, pertencem ao corpo fundamental da Constituição de um Estado, mesmo não constando no catálogo.

Em princípio, com base no entendimento exposto no art. 5°, § 2°, da CF, podemos, desde logo, cogitar de duas espécies de direitos fundamentais: a) direitos formal e materialmente fundamentais (ancorados na Constituição formal); b) direitos apenas materialmente constitucionais (sem amparo positivo na constituição). Encontrar os direitos formalmente constitucionais não parece ser tarefa das mais complicadas, porquanto, em suma, uma mera leitura gramatical de dispositivos constitucionais que tratam da matéria já se mostrará como arma razoável de sustentação teórica de tais direitos. Situação essa que não é repetida quando o tema é a definição de critérios subsuntivos que definam de forma plausível, sustentável, quais os direitos materialmente constitucionais.

Embora seja ponto pacífico na doutrina que os direitos fundamentais não se propõem a clausulas numerus apertus [10], é de se referir que a doutrina ainda não se encontra completamente pacificada no que diz com a posição assumida pelos direitos materialmente fundamentais (de modo especial os que não encontram amparo na Constituição formal) com relação aos direitos do catálogo, ou seja, se podem, ou não - e de que maneira -, ser equiparados no que tange ao seu regime jurídico. Outra questão crucial decorrente da abertura material do catálogo reside na dificuldade em identificar, no texto constitucional (ou mesmo fora dele), quais os direitos que efetivamente reúnem as condições para poder ser considerados materialmente fundamentais.

Passaremos, então, a propor alguns pontos que ajudarão a definir critérios para definição dos direitos materialmente fundamentais, mormente aqueles chamados "direitos de defesa", já que é esse ponto que especialmente interessa ao presente ensaio.

É inquestionável que a abertura material do catálogo do art. 5° abrange os direitos individuais (direitos de liberdade e de igualdade), dirigidos, precipuamente, à proteção do indivíduo (isolada ou coletivamente) contra intervenções do Estado. Não obstante a quase unanimidade doutrinária que milita favoravelmente pela abertura material do catálogo de direitos fundamentais na CF de 1988, constata-se a existência de uma autêntica lacuna, no sentido de uma ausência de propostas com relação à definição do conteúdo de um conceito substancial de direitos fundamentais calcado em nosso direito constitucional positivo.

Antes de adentrarmos o exame específico dos critérios de identificação da fundamentalidade material, mister uma breve análise do leque de opções que nos oferece o art. 5°, §2°, da nossa Carta Magna. Nesse contexto, há que levar em conta a categoria dos assim denominados "direitos implícitos", consoante a formulação consagrada pela nossa doutrina e que deve ser considerada em nossas considerações acerca do significado e alcance do art. 5°, §2°, da nossa Lei Fundamental.

Ao contrário da Constituição Portuguesa [11] (art. 16/1), que, no âmbito da abertura material do catálogo, se limita a mencionar a possibilidade de outros direitos fundamentais constantes das leis e regras de direito internacional, a nossa Carta Magna foi mais além, já que, ao referir os direitos "decorrentes do regime e dos princípios", evidentemente consagrou a existência de direitos fundamentais não-escritos, que podem ser deduzidos, por via de ato interpretativo, com base nos direitos constantes do "catálogo", bem como no regime e nos princípios fundamentais da nossa lei Suprema. Outrossim, é notório que o citado preceito abrange, além de direitos fundamentais escritos fora do catálogo, os direitos não-escritos, ou, se preferirmos a terminologia usual, os chamados direitos "implícitos" ou "decorrentes", com a ressalva de que estes devem ser considerados em sentido amplo, já que são direitos subentendidos nas normas definidoras de direitos e garantias e os decorrentes do regime e dos princípios (SARLET, 2005, p. 98).

Ainda a esse respeito, importa expor aquela que o Dr. Ingo Sarlet, declarou ser a transcrição mais contundente sobre o tema, em favor dessa tese; para Paulino Jacques (apud SARLET, 2005, p.99):

(...) o Legislador-Constituinte, ao referir os termos ''regime'' e ''princípios'', quis ensejar o reconhecimento e a garantia de outros direitos que as necessidades da vida social e as circunstâncias dos tempos pudessem exigir. É uma cláusula, por conseguinte, consagradora do princípio da ''equidade'' e da ''construção jurisprudencial, que informam todo o direito anglo-americano, e que, por via dele, penetram no nosso sistema jurídico. Também entre nós, não é a lei a única fonte de direito, porque o ''regime'', quer dizer, a forma de associação política (democracia social), e os ''princípios'' da Constituição (república federalista presidencialista) geram direitos.

A propósito do tema, arremata o Dr. Ingo Sarlet (2005, p.106- 107) :

O que se conclui do exposto é que o conceito materialmente aberto de direitos fundamentais consagrado pelo art. 5°, §2°, da nossa Constituição é de uma amplitude ímpar, encerrando expressamente, ao mesmo tempo, ao mesmo tempo, a possibilidade de identificação e construção jurisprudencial de direitos materialmente fundamentais não escritos (no sentido de não expressamente positivados), bem como de direitos fundamentais constantes em outras partes do texto constitucional e nos tratados internacionais. Tal constatação é, por outro lado, de suma relevância para viabilizar a delimitação de certos critérios que possam servir de parâmetro na atividade "reveladora" destes direitos. Neste sentido, o citado dispositivo reza que "os direitos e garantias expressos nesta Constituição não excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados, ou dos tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte".

Tarefa deveras importante para delimitação da matéria é a de realizar uma interpretação sistematizada do art.5°, §2°, da CF, especialmente no que toca ao significado e alcance das expressões "regime" e "princípios". Parece razoável o entendimento de que o citado preceito constitucional se refere às disposições contidas no Título I, arts. 1° a 4° (Dos Princípios Fundamentais), no qual também se encontram delineados os contornos básicos do Estado social e democrático de Direito que identifica a nossa República (SARLET, 2005, p. 107).

Desta feita, reputa-se que os direitos fundamentais decorrentes do regime e dos princípios, consoante denominação expressamente outorgada pelo art. 5°, § 2°, da CF, são posições jurídicas material e formalmente fundamentais fora do catálogo (Título II), diretamente deduzidas do regime e dos princípios fundamentais da Constituição, considerados como tais aqueles previstos no Título I (arts. 1° a 4°) de nossa Magna Carta, interpretação que se impõe até em homenagem necessária à especial dignidade dos direitos fundamentais na ordem constitucional pátria.

A Constituição de 1988 foi a primeira na história do constitucionalismo pátrio a prever um título próprio destinado aos princípios fundamentais, situado na parte inaugural do texto, logo após o preâmbulo e antes do direitos fundamentais. Mediante tal observância, o legislador Constituinte deixou transparecer de forma clara e inequívoca a sua intenção de outorgar aos princípios fundamentais a qualidade de normas embasadoras e informativas de toda a ordem constitucional, inclusive dos direitos fundamentais, que também integram aquilo que se pode denominar de núcleo essencial da Constituição material. Inovadora, ademais, foi a inclusão no texto Constitucional do princípio da dignidade da pessoa humana (art. 1°, inc. III, da CF). [12] O princípio da dignidade humana foi, portanto, erigido à categoria de princípio fundamental da República Federativa do Brasil e deve servir de sustentação teórica para qualquer atividade Estatal.

A dignidade da pessoa humana, um dos fundamentos do Estado brasileiro, constitui-se no "valor constitucional supremo" em torno do qual gravitam os direitos fundamentais. A exigência de cumprimento e promoção dos direitos fundamentais encontra-se estreitamente vinculada ao respeito à dignidade da pessoa humana, razão pela qual estes direitos "são os pressupostos elementares de uma vida humana livre e digna, tanto para o indivíduo como para a comunidade livre; a comunidade só é livre se for composta por homens livres e dignos" (NOVELINO, 2008, p. 243).

O reconhecimento de certos direitos fundamentais é uma manifestação necessária da primazia da dignidade da pessoa humana, núcleo axiológico da Constituição.

O ilustríssimo autor J.J. Canotilho (1993, p. 526), buscando um critério válido para determinar a fundamentalidade material de determinadas normas aponta as seguintes características inerentes à categoria dos direitos fundamentais:

a) de modo geral, as normas relativas aos direitos, liberdades e garantias revelam uma pretensão jurídica individual ou um direito subjetivo em favor de determinados sujeitos estabelecendo, em contrapartida, um dever jurídico aos destinatários passivos;

b) os direitos e liberdades e garantias são auto-executáveis, dispensando qualquer intermediação dos poderes públicos;

c) os direitos, liberdades e garantias têm função específica de defesa, auto-impondo-se como direitos negativos diretamente conformadores de um espaço subjetivo de distanciamento e autonomia com o correspondente dever de abstenção ou de proibição de agressão por parte dos destinatários passivos, públicos e privados.

Podemos ver que, para o saudoso autor, os direitos fundamentais são aqueles que conhecemos como direitos negativos, ou seja, aqueles integrantes da primeira geração (ou dimensão) de direitos. Independem de uma contraprestação do Estado e são auto-executáveis.

Vimos, então, que praticamente não é discutido na doutrina se as normas que declaram direitos fundamentais são exaustivas, porquanto tais normas, até por sua característica de fundamentalidade, não podem exaurir a matéria de forma casuística. A maior celeuma reside na delimitação de quais são os direitos que, não obstante fora do catálogo específico, são materialmente fundamentais e também merecem proteção jurídica. Ao longo do ensaio, verificaremos se o direito à liberdade do adolescente é materialmente fundamental e se tal direito merece ser garantido por cláusula de inimputabilidade.

O Supremo Tribunal Federal, em decisão que já se tornou célebre, decidiu a respeito da não-tipicidade dos direitos e garantias individuais, estendendo a fundamentalidade de determinados direitos a normas não catalogadas no Título II da Constituição Federal, que tratam dos "Direitos e Garantias Individuais". Tão importante decisão, em virtude de seu caráter didático, será retomada em tópico específico.

1.2.3- Sistema de Garantias dos Diretos Fundamentais

Não obstante o caráter auto-aplicável dos direitos fundamentais, não raramente, para efeito de proteção jurídica, os referidos direitos necessitam de ser assegurados por normas assecuratórias, garantidoras; verdadeiros instrumentos de efetividade Constitucional. Tais normas garantidoras são as chamadas pelos Constitucionalistas de "garantias individuais". [13]

A afirmação dos direitos fundamentais do homem no Direito Constitucional positivo reveste-se de indiscutível relevância, mas não basta que um direito seja reconhecido e declarado, é necessário garanti-lo, porque virão ocasiões em que será discutido e violado. A distinção entre direitos e garantias fundamentais, no Direito Brasileiro, remonta à Rui Barbosa (apud NOVELINO, 2008, p. 171), ao separar as disposições meramente declaratórias, que são as que imprimem existência legal aos direitos reconhecidos, e as disposições assecuratórias, que são as que, em defesa dos direitos, limitam o poder. Aquelas instituem os direitos; estas, as garantias, ocorrendo não raro juntar-se, na mesma disposição constitucional, ou legal, a fixação da garantia com a declaração do direito (MORAES, 2002, p. 171). A constituição, de fato, não consigna regra que separe as duas categorias (direitos e garantias), nem sequer adota terminologia precisa a respeito das garantias. Nesse aspecto, importante a lição de José Afonso da Silva (2005, pp. 186-187), que prescreve:

Assim é que a rubrica do Título II enuncia: "Dos direitos e garantias fundamentais", mas deixa à doutrina pesquisar onde estão os direitos e onde se acham as garantias. O Capítulo I deste título traz a rubrica: "Dos direitos e deveres individuais e coletivos", não menciona as garantias, ms boa parte dele constitui-se de garantias. Ela se vale de verbos para declarar direitos que são mais apropriados para enunciar garantias. Ou talvez melhor diríamos, ela reconhece alguns direitos garantindo-os. Por exemplo: "é assegurado o direito de resposta (...)" (art.5º, V). "é assegurada (...) a prestação de assistência religiosa (...)" (art. 5º, VII), "é garantido o direito de propriedade" (art. 5º, XXII), "é garantido o direito de herança" (art. 5º, XXX). Outras vezes, garantias são enunciadas pela inviolabilidade do elemento assecuratório. Assim, "a casa é o asilo inviolável do indivíduo" (art. 5º, XI), "é inviolável o sigilo da correspondência e das comunicações telefônicas (...)" (art. 5º, XII); ora nesses casos, a inviolabilidade do lar e do sigilo constitui garantia do direito à intimidade pessoal e familiar e da liberdade de transmissão pessoal de pensamento, mas a Constituição mesma fala em direitos de sigilo de correspondência e de sigilo de comunicação (art. 136, § 1º, I, b e c). Já noutro dispositivo esta que "são invioláveis à intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas (...)" (art. 5º, X); aqui o direito e a garantia se integram: inviolabilidade = garantia; intimidade, vida privada, honra, imagem pessoal = direito de privacidade. Temos ainda garantias expressas nesse artigo (art. 5º, §2º), garantias da magistratura (art. 95). O art. 138 menciona garantias constitucionais. Fica difícil distinguir as diferenças ou semelhanças entre o que sejam garantias fundamentais, garantias individuais e garantias constitucionais.

Em que pesem as discussões acerca da distinção entre garantias e direitos, bem como os vários aspectos que derivam daquelas, a este ensaio somente nos interessa as chamadas garantias dos direitos fundamentais, que serão distinguidas em dois grupos, quais sejam:

a) garantias gerais, destinadas a assegurar a existência e a efetividade daqueles direitos fundamentais; trata-se da estrutura de uma sociedade democrática, que conflui para a concepção do Estado Democrático de Direito, consagrada no art. 1º da CF. Na lição de Uadi Lamêgo Bulos (2005, p. 109), "consignam técnicas de limitação das arbitrariedades do Poder Público, contra toda e qualquer forma de discriminação à pessoa humana".

b) garantias constitucionais, que consistem nas instituições, determinações e procedimentos mediante os quais a própria Constituição tutela a observância ou, em caso de inobservância, a reintegração dos direitos fundamentais. São, por seu lado, de dois tipos: (a) garantias constitucionais gerais, que são instituições constitucionais que se inserem no mecanismo de freios e contrapesos dos poderes e, assim, obstam o arbítrio com o que constituem, ao mesmo tempo, técnicas de garantia e respeito aos direitos fundamentais; b) garantias constitucionais especiais, que são prescrições constitucionais estatuindo técnicas e mecanismos que, limitando a atuação dos órgãos estatais ou de particulares, protegem a eficácia, aplicabilidade e a inviolabilidade dos direitos fundamentais de modo específico, especial (SILVA, J. A., 2005, p. 188).

2- Limites à Reforma Constitucional

Trataremos nos tópicos seguintes de matérias imprescindíveis para compreensão sistemática do tema proposto; serão tecidas breves considerações acerca dos limites à reforma da Constituição, das cláusulas pétreas na Carta da Republica de 1988, bem como da posição do egrégio Supremo Tribunal Federal sobre a temática.

2.1- Limites ao poder de Reforma Constitucional.

2.1.1- Rigidez Constitucional como instrumento de estabilidade

A rigidez constitucional é o mais tradicional dos instrumentos jurídicos destinados a assegurar às constituições especial duração. Classicamente são consideradas rígidas as constituições que prevêem para cambiar suas normas, ou para a produção de normas adicionais com força constitucional, a adoção de um procedimento dificultoso em relação ao procedimento preconizado para a formação e/ou alteração de leis ordinárias. É importante salientar que, como reforça o Dr. Gustavo Just da Costa e Silva (2000, p. 62), "evidentemente que, para que a rigidez cumpra sua função, a maior dificuldade não se pode limitar a simples formalidades secundárias ou mesmo a uma pouco expressiva qualificação de quorum". Citando Constatino Mortati, assevera o autor que "a função do agravamento não se cumpre pelo simples fato de tornar mais difícil a formação da lei constitucional; resulta antes do recurso a certas particularidades dificuldades idôneas a conferir-lhe um cunho de maior autoridade ou a formar em torno de si um consenso mais amplo, ou atestar a existência de uma vontade mais consolidada" (2000, p. 62). No Direito alienígena, encontramos muitos exemplos de Constituições rígidas, mas aquela que mais perdurou no tempo (e justamente a mais rígida de todas): a Constituição Americana de 1787 [14]. O papel dessa acentuada rigidez na longevidade da Constituição Americana não pode ser desprezado. A última emenda (a 27ª em 211) foi aprovada em 1992, tendo sido proposta em março de 1971. Evidentemente, como vimos, a aferição do grau de rigidez constitucional não depende apenas da configuração normativa do procedimento reformador.

Em suma, pode-se reputar que, consoante lição de Gustavo Just da Costa e Silva (2000, p. 67), a instituição da rigidez relaciona-se, em primeira linha, com os usualmente chamados limites formais e circunstanciais da reforma constitucional, isto é, com as condições – positivas e negativas – de validade do procedimento reformador, e em segunda linha, pelos chamados limites materiais de reforma.

Enfim, o fator tempo é imprescindível para a concretização do sistema jurídico implementado e sustentado pela Constituição. Nesse sentido, é absolutamente essencial que a Constituição se mantenha em vigor durante um período suficiente para interferir na realidade social, em respeito ao princípio da segurança jurídica.

Não se discute, todavia, a necessidade de reforma constitucional, até porque a sociedade hodierna se movimenta em um ritmo acelerado e deveras mutável. Tão fortes quanto as razões que justificam a busca da estabilidade da constituição são aquelas que exigem a sua aptidão à mudança. A mobilidade da constituição é assim necessária até mesmo ao desempenho de seu mister de conformação do Estado; tarefa que implica a obtenção da unidade política da comunidade, e com isso o aprimoramento da forma e do controle; função portanto, racionalizadora e estabilizadora. Essa questão está atrelada à questão sociológica da constituição e se prende ao âmbito de legitimidade e eficácia constitucional, tão defendida por Ferdinand Lassale (apud NOVELINO, 2008, p. 39).

É claro que a constituição deve atender à realidade política de um Estado e às aspirações da sociedade que nela convive [15], todavia, deve assegurar que sejam salvaguardadas limitações protetivas da própria sociedade. Apesar da aparente contradição, não há que se confundir mutação constitucional, que se faz necessária, desde que não seja de forma substancial, de implementação de nova ordem constitucional, que se faz com a violação de conteúdos essenciais, que se ligam à unidade da Constituição. Como salienta a professora Márcia Milhomens Corrêa (1998, p. 131):

(...) sem dúvida, o sentido a conferir aos limites está intimamente ligado à noção de identidade constitucional. Se admitirmos que toda Constituição possui um núcleo constitutivo de identidade e que este núcleo é formado pelos princípios constitucionais fundamentais, obviamente a alteração desses princípios não implicaria modificação da Constituição, mas sim criação de uma nova Constituição. Seria, por assim dizer, um golpe dissimulado, já que o poder revisional, extrapolando suas atribuições, por meio da supressão de princípios fundamentais e, conseqüentemente, da identidade constitucional, estaria, na verdade, elaborando uma nova Constituição.

2.1.2- Limites ao poder de Reforma - considerações gerais.

O poder de reforma é exercido pelo poder constituinte derivado e, por ser derivado, sujeita-se a determinados limites impostos pela Constituição. A celeuma a respeito da possibilidade jurídica de restrições ao poder de reforma, mormente no que concerne à intangibilidade deste ou daquele preceito constitucional, rende, entre diversos doutrinadores de peso, intensos debates.

Vários autores, dentre os quais se inclui Laferrière – intenso defensor da impossibilidade de imposição de restrições ao poder de reforma-, não encontram fundamento lógico para aceitar as limitações impostas às gerações futuras pelo legislador constituinte, vedando a supressão de certos dispositivos constitucionais. Para o autor francês (apud CORRÊA, p. 97), as disposições que instituem as limitações são como simples moções ou manifestações políticas despidas de qualquer valor jurídico ou obrigatoriedade para os futuros constituintes. Carl Schimitt (apud CORRÊA, pp. 97-98), defensor da concepção política da Constituição, assevera que cláusulas limitativas são legítimas para o próprio poder constituinte que as criou, no entanto, não seria seriam coercitivas aos poderes vindouros, por não serem dotadas de sanção para o caso descumprimento.

É óbvio que qualquer Constituição não se pode prestar a "engessar" a marcha do processo histórico, porquanto sua eficácia está diretamente relacionada à realidade constitucional. No entanto, o processo de concretização da Constituição, ligado diretamente ao princípio da segurança jurídica, requer certa durabilidade, absolutamente incompatível com a total disponibilidade do texto por parte do denominado constituinte derivado. Desta feita, urge que sejam implementados mecanismos que limitem o poder revisional e/ou reformador [16].

Questão preliminar de incidência na discussão é a que concerne à diferenciação entre Poder Constituinte Derivado e Poder Constituinte Reformador. Em enxutos comentários, podemos dizer que, enquanto o poder Constituinte Originário é o responsável pela elaboração de uma Constituição, ao poder Constituinte Reformador incube a tarefa de alterá-la. O poder Constituinte Originário costuma ser caracterizado como incondicionado, autônomo e ilimitado; o poder Constituinte Reformador, por sua vez, revela-se como juridicamente limitado, distinguindo-se pelo seu caráter derivado, condicionado e sujeito às restrições previstas pelo Constituinte original [17]. É justamente a existência de normas limitativas da reforma constitucional que demonstra o fato de que mesmo após a entrada em vigor da Constituição o Poder Constituinte Originário continua a se fazer presente, já que, do contrário, poderia vir a depender do Legislador. Importa ter sempre presente.

O Dr. Ingo Sarlet (2005, pp. 386- 387) ensina que:

(...) importa ter sempre presente a noção de que também no direito constitucional pátrio o Legislador, ao proceder à reforma da Constituição, não dispõe de liberdade de conformação irrestrita, encontrando-se sujeito a um sistema de limitações que objetiva não apenas a manutenção da identidade da Constituição, mas também a preservação da sua posição hierárquica decorrente de sua supremacia no âmbito da ordem jurídica, de modo especial para evitar a elaboração de uma nova Constituição pela via da Reforma Constitucional.

Há quem defenda, tanto na doutrina pátria como na alienígena, que até mesmo o poder Constituinte Originário se limita a determinados critérios materiais. Argumentam que o poder Originário está balizado pelos valores aceitos pela sociedade, assim como pela conjuntura política, social e econômica desta mesma sociedade [18]. Todavia, esses mesmos autores são uníssonos quando o tema é limitação do poder Constituinte derivado, posto que, sendo poder constituído, "o poder derivado esbarra nos limites postos pelo poder constituinte originário.

Desta feita, não obstante os bons argumentos daqueles que defendem a limitação do poder originário às questões sócio-políticas, entendemos ter a razão aqueles que defendem ser o poder constituinte (originário) ilimitado, o que não ocorre, por via óbvia, com o poder constituído (derivado). Referindo-se ao poder constituinte derivado como um poder limitado e contido juridicamente na Constituição, Paulo Bonavides (1997, p. 198) assevera que o mesmo não pode sobrepor-se ao texto cosntitucional:

É óbvio pois que a reforma da Constituição nessa última hipótese só se fará segundo os moldes estabelecidos pelo próprio figurino constitucional; o constituinte que transpuser os limites expressos e tácitos de seu poder de reforma estaria usurpando competência ou praticando ato de subversão e infidelidade aos mandamentos constitucionais, desferindo, em suma,verdadeiro golpe de Estado contra a ordem constitucional.

A própria denominação "poder derivado" já denota a limitação que esse poder se submete. Ao contrário do que pensam muitos, essa limitação, ao invés de afrontar o princípio da soberania popular, confirma-o. A Constituição, expressão máxima do exercício da soberania do povo, deve prevalecer e reger o funcionamento dos poderes instituídos, sob pena de ruptura com a ordem Constitucional (CORRÊA, 1998, p. 103).

As limitações ao poder de reforma podem ser explícitas ou implícitas. As limitações explícitas (ou expressas), por óbvio, estão figuradas no texto constitucional e prestam-se a resguardar a identidade da Constituição e determinados princípios que o legislador constituinte originário julgou primordiais à configuração de determinado ordenamento jurídico. A doutrina hodierna costuma dividir as limitações expressas em limitações temporais, limitações circunstanciais e limitações materiais. As limitações implícitas, como veremos, estão mais condicionadas aos princípios substanciais da Constituição.

A limitação temporal é uma proibição de reforma de determinados dispositivos durante um certo período de tempo após a promulgação da Constituição, com a finalidade de assegurar a sua estabilidade e evitar alterações precipitadas e desnecessárias. A Constituição Imperial brasileira de 1824 vedava qualquer modificação em seu texto nos quatro anos seguintes à data de sua promulgação. A atual Constituição brasileira não prevê esta espécie de limitação para o poder reformador. Em relação ao poder revisor, havia uma limitação temporal de cinco anos (ADCT, art. 3º), conforme ressalta Marcelo Novelino (2008, p. 04).

As limitações circunstanciais, por sua vez, são normas aplicáveis a situações excepcionais, nas quais a livre vontade do poder reformador possa estar ameaçada. Enquanto perdurarem tais situações, é vedada qualquer modificação no texto constitucional, tal como ocorre durante o período de intervenção federal, estado de defesa e estado de sítio (art. 60, §1º, CF).

As limitações circunstanciais e temporais, embora importantes, não serão estudadas a fundo, porquanto, diante do proposto no presente trabalho, somente as limitações materiais interessam ao debate epigrafado [19].

2.1.3- Limites Materiais ao Poder de Reforma.

A primeira Constituição a fazer referência aos limites materiais de revisão foi a norte-americana, ao dispor, nos artigos V e IV, nº 3, respectivamente, que nenhum Estado poderia ser privado, sem o seu consentimento, do direito de voto no Senado em igualdade com os outros Estados e que os Estados Unidos garantiriam a todos os Estados da União a forma republicana de governo. Mais tarde, em 1814, a Constituição Norueguesa, em seu artigo 21, título V, estabeleceu que as modificações constitucionais não deveriam ser contrárias aos princípios da Constituição, limitando-se às disposições particulares que não importassem alteração do espírito constitucional. Hodiernamente, os limites materiais ao poder de revisão encontram guarida em diversas Constituições do mundo, entre elas, por exemplo, a Constituição da Suíça (arts. 118 a 123), a Lei Fundamental da Holanda (arts. 210 a 215), a Lei fundamental de Bonn (art. 79), a Constituição Francesa (art. 89), a Constituição Italiana (arts. 138 e 139), a Constituição Portuguesa (art. 288) e a Constituição Brasileira (art. 60, §4º), consoante assevera Márcia Milhomens Corrêa (1998, p. 105).

Os limites materiais à reforma constitucional, em apertada síntese, almejam assegurar a permanência de determinados conteúdos da Constituição tidos como essenciais, ao menos de acordo com o entendimento do Constituinte Originário. Já foi asseverado em linhas anteriores que em virtude da ausência de uma fonte jurídico-positiva, a vedação de certas alterações da Constituição tem suas intenções normativas voltadas para o futuro, já que o núcleo da Constituição atual passa, de certa forma (adquirindo permanência), a ser vigente também no futuro. Alexandre Pasqualini (2000, p. 80) sustenta que todo o sistema jurídico "reclama um núcleo de constante fixidez (cláusulas pétreas), capaz de governar os rumos legislativos e hermenêuticos não apenas dos poderes constituídos, mas da própria sociedade como um todo".

A existência de limitações materiais (substanciais) justifica-se, então, em face da necessidade de preservar as decisões sedimentares do Constituinte, evitando que uma reforma ampla e ilimitada possa acarretar na destruição da ordem constitucional, já que no âmago da previsão destes limites se encontra a tensão dialética e dinâmica que caracteriza a relação entre a necessidade de preservação da Constituição e os reclamos no sentido de sua alteração. O reconhecimento de limitações materiais significa que o conteúdo da Constituição não se encontra à disposição plena do legislador constitucional e de uma maioria qualificada, sendo necessário, por um lado, que se impeça uma vinculação inexorável e definitiva das futuras gerações às concepções do Constituinte, ao mesmo tempo em que se garanta às Constituições a realização de seus desideratos (SARLET, 2005, p. 390).

Com efeito, consoante a lição de Hesse (apud SARLET, 2005, p. 391), se é certo que uma ordem constitucional não pode continuar em vigor por meio da vedação de determinadas reformas, caso ela já tiver perdido a sua força normativa, também é verdade que ela não poderá alcançar as sua metas caso estiver à disposição plena dos poderes constituídos. Os limites à reforma constitucional, notadamente os de cunho material, traçam a distinção entre o desenvolvimento constitucional (no sentido de fazê-la vigente, potente) e a ruptura da ordem constitucional por métodos ilegais, inconstitucionais, ilegítimos. Desta feita, sustenta-se que uma reforma constitucional jamais poderá ameaçar a identidade e continuidade da Constituição, de tal maneira que a existência de limites materiais expressos exerce função de âmbito protetivo, obstando não apenas a destruição da ordem constitucional, mas, além disso, vedando também a reforma de seus elementos essenciais (SARLET, 2005, p. 391).

Além dos limites expressamente positivados na Constituição, a melhor doutrina se posiciona pela existência de limites não elencados expressamente no texto, mas que derivam da própria ordem principiológica da Constituição; seriam os limites materiais implícitos [20]. O publicista lusitano Canotilho (1993, pp. 1136- 1137) chama a atenção para o risco de as Constituições, especialmente as que não contém limitações expressas (cláusulas pétreas), se transformarem em Constituições provisórias, verdadeiras Constituições em branco, à mercê da discricionariedade e eventuais abusos do poder reformador.

Dentre os limites implícitos que harmonizam com o direito constitucional pátrio há que ser frisado, precipuamente, a impossibilidade de reforma total ou, pelo menos, que tenha por objeto os princípios fundamentais de nossa ordem constitucional, já que resultaria na sua destruição (BONAVIDES, 1997, p. 178).

Para aqueles que aceitam a existência dos limites implícitos à reforma, que entendemos estar com a razão, seria possível inferir que todos os princípios fundamentais do Título I da nossa Carta Republicana de 1988 (arts. 1º a 4º) integram o elenco dos limites materiais implícitos, ressaltando-se, entretanto, que boa parte deles já foi contemplada no rol das "cláusulas pétreas" do art. 60, §4º, da CF. Não nos pareceria razoável o entendimento de que a Federação e o princípio da separação dos poderes se encontrem protegidos contra o Poder Constituinte Reformador, e o princípio da dignidade da pessoa humana não (SARLET, 2005, p. 393).

Quanto à abrangência do rol dos limites materiais explícitos (art. 60, §4º, da CF), verifica-se um avanço relacionado ao direito constitucional pátrio anterior, já que é relevante o número de princípios e decisões fundamentais protegidos (princípio federativo, democrático, separação de poderes e direitos e garantias fundamentais). No que toca ao tratamento dado às "cláusulas pétreas" pela Constituição de 1988, consideradas por muitos como os limites materiais explícitos constitucionais (SARLET, 2005, pp. 397 e ss), serão explicitadas algumas considerações no tópico seguinte [21]

2.2- Cláusulas Pétreas na Constituição Federal de 1988

2.2.1- Questões preliminares

A Constituição da República Federativa do Brasil, promulgada no ano de 1988, em seu art. 60, § 4º, consagra os limites materiais explícitos de revisão constitucional. Reza o preceito que:

"§ 4º. Não será objeto de deliberação a proposta de emenda tendente a abolir:

I- a forma federativa de Estado;

II- o voto direto, secreto, universal e periódico;

III- a separação dos poderes;

IV- os direitos e garantias individuais".

É possível concluir que o constituinte de 1988 identificou os elementos constantes do §4º do art. 60 como integrantes da identidade constitucional, ou seja, caracterizou tais elementos como sendo elementares, fundamentais, imutáveis; tal escolha deveu-se, certamente, a problemas que o país enfrentou em tempos pretéritos. Há que se ter em conta que a Carta de 1988 foi fruto de uma época de transição da ditadura para a democracia e os elementos expostos no citado art. 60, § 4º caracterizam o modelo democrata adotado pelo Estado brasileiro. Evita-se, em última análise, que o país volte a ser governado por regimes autoritaristas, que não respeitam a soberania do povo.

Em virtude do proposto no presente ensaio bibliográfico, dedicaremos atenção específica ao inciso IV do citado parágrafo, que tornam insuscetíveis de mudança os direitos e garantias individuais. Primeiramente, cumpre lançar um olhar sobre o termo direitos e garantias "individuais" exposto no texto da Constituição Federal para extrairmos seu significado e abrangência. Tomando como partida o enunciado literal do inciso IV (direitos e garantias individuais), poder-se-ia afirmar que apenas os direitos e garantias individuais (art. 5º da CF) se encontram incluídos no rol das "cláusulas pétreas" de nossa Constituição. É preciso ter extremo cuidado ao fazer tão equivocada inferência, pois, se caso fôssemos nos agarrar a essa interpretação de cunho estritamente literal, teríamos de reconhecer que não apenas os direitos sociais (art. 6º a 11), mas também os direitos de nacionalidade (arts. 12 e 13), bem como os direitos políticos (arts. 14 a 17) fatalmente estariam excluídos da proteção outorgada pela norma contida no art. 60,§ 4º, inc. IV, de nossa Carta Republicana. A propósito, como argumenta Ingo Sarlet (2005, p. 401) "por uma questão de coerência, ate mesmo os direitos coletivos (de expressão coletiva) constantes no rol do art. 5º não seriam merecedores dessa proteção". Seria impossível, por exemplo, suprimir o mandado de segurança individual, mas o mandado de segurança coletivo (que é até mais democrático), por não ser uma "garantia individual", poderia ser suprimido. Tal conclusão, data venia aos que pensam de maneira contrária, é inaceitável.

Ingo Sarlet (2005, p. 402-403), criticando a corrente defensora da tese de que os direitos e garantias individuais a que se refere o art. 60, § 4, inc. IV, da CF, somente se dirigem aos direitos propriamente individuais, se pronuncia da seguinte maneira:

No direito pátrio, há quem sustente que os direitos sociais não podem, em hipótese alguma, ser considerados como integrando as "cláusulas pétreas" da Constituição, isso pelo fato de não poderem (ao menos na condição de direitos a prestações) ser equiparados aos direitos de liberdade do art. 5º. Para além disso, argumenta-se que, se o Constituinte efetivamente tivesse tido a intenção de gravar os direitos sociais com a cláusula da intangibilidade, ele o teria feito, ou nominando expressamente esta categoria de direitos no art. 60, § 4º, inc. IV, ou referindo-se de forma genérica a todos os direitos e garantias fundamentais, mas não apenas aos direitos e garantias individuais. Tal concepção e todas aquelas que lhe podem ser equiparadas esbarram, contudo, nos seguintes argumentos: a) a Constituição brasileira não traça qualquer diferença entre os direitos de liberdade (defesa) e os direitos sociais, inclusive no que diz com eventual primazia dos primeiros sobre os segundos; b) os partidários de uma exegese conservadora e restritiva em regra partem da premissa de que todos os direitos sociais podem ser conceituados como direitos a prestações materiais estatais, quando, em verdade, já se demonstrou que boa parte dos direitos sociais são equiparáveis, no que diz com sua função precípua e estrutura jurídica, aos direitos de defesa; c) para além disso, relembramos que uma interpretação que limita o alcance das "cláusulas pétreas" aos direitos fundamentais elencados no art. 5º da CF acaba por excluir também os direitos de nacionalidade e os direitos políticos, que igualmente não foram expressamente previstos no art. 60, § 4º, inciso IV, de nossa lei Fundamental.

Patente foi a falta de técnica do legislador, porquanto deveria utilizar a expressão direitos e garantias fundamentais como sucedânea da expressão limitativa "individuais", já que tal escolha apontaria para o mesmo norte axiológico previsto sistematicamente pelos princípios constitucionais. Aliás, o pouco critério na adoção de expressões distintas, ao que parece empregadas como sinônimas, aparece também, somente como um dos muitos exemplos que poderiam ser citados, no art. 34, in. VII, item b, que prevê a intervenção da União nos Estados e no Distrito Federal para assegurar a observância dos direitos da pessoa humana (CORRÊA, 1998, p. 128).

Essas considerações demonstram que apenas por meio de uma interpretação sistemática se poderá encontrar uma resposta satisfatória no que toca à celeuma da abrangência do art. 60, §4º, inc. IV, da CF. Já no preâmbulo de nossa Constitucional, em pese a sua falta de normatividade, encontramos referência expressa no sentido de que a garantia dos direitos individuais e sociais, da igualdade e da justiça constitui objetivo permanente do nosso Estado.

Verifica-se que todos os direitos fundamentais consagrados em nossa Constituição (mesmo aqueles que não pertencem ao Título II) são, na verdade e em última análise, direitos de titularidade individual, ainda que alguns sejam de expressão coletiva. É o indivíduo que tem assegurado o direito de voto, assim como é o indivíduo que tem direito à saúde (imagine não mencionar a saúde como direito individual/fundamental), assistência social, etc. Até mesmo o direito a um meio ambiente saudável e equilibrado (art.225 da CF), em que pese seu enquadramento como direito de terceira geração (ou dimensão), pode ser encaminhado a uma dimensão individual, pois mesmo um dano ambiental que venha a atingir um grupo dificilmente quantificável e delimitável de pessoas (indivíduos) gera um direito à reparação para cada prejudicado pelo dano macro-social (SARLET, 2005, p. 404).

A função precípua das "cláusulas pétreas" é a de impedir a destruição ou mitigação dos elementos essenciais da Constituição, encontrando-se a serviço da preservação, como já asseverado, da identidade constitucional, formada justamente pelas decisões fundamentais tomadas pelo Constituinte. Isso se manifesta com particular agudeza no caso dos direitos fundamentais, já que sua supressão, ainda que tendencial, fatalmente implicaria agressão (em maior ou menor grau) ao princípio da dignidade da pessoa humana (art. 1º, inc. III, da CF). Assim, uma interpretação restritiva da abrangência do art. 60, §4º, inciso IV, da CF não nos parece ser a melhor solução, mormente quando os direitos fundamentais indubitavelmente integram o cerne da nossa ordem constitucional (SARLET, 2005, p. 406).

2.2.2- Semânticas axiológica e interpretativa do art. 60, § 4º, inciso IV, da Constituição Federal.

Não é motivo de questionamentos que o preceito incurso no art. 60, § 4°, inciso IV da Constituição Federal é um limite material expresso que veda reforma in pejus, porquanto tal especificação está declarada gramaticalmente no dispositivo. Porém, reside uma dúvida plausível acerca do sentido de tal norma e da interpretação que dela se pode extrair; busca-se, então, a ontologia e a exegese dessa proposição normativa.

Na doutrina Constitucional, como ressalta Márcia Milhomens Corrêa (1998, p. 130), existem duas posições bastante diferenciadas no que toca ao sentido dos limites materiais ou cláusulas pétreas: uns entendem que os limites implicam vedações de ruptura da Constituição (proibições de golpes ou revoluções); outros entendem que os limites constituem regras de proibição de ruptura de determinados princípios constitucionais.

Canotilho e Vital Moreira (1991, p. 294) parecem adotar o último entendimento, ou seja, de que as cláusulas pétreas almejam assegurar a mantença de certos princípios essenciais, os quais são responsáveis pela identidade da Constituição. Os autores ressaltam que "os limites não fazem os preceitos constitucionais intocáveis, mas sim os princípios neles contidos".

Então, consoante os renomados autores, seria inadmissível mudanças substanciais nas normas que ferissem princípios fundamentais. Não se veda a alteração do dispositivo em si (do preceito positivado); o que se veda, de certo, é a alteração significativa que suprima ou diminua o princípio essencial que nele está contido, tal alteração, se intentada, será considerada afrontosa à identidade de uma ordem histórico constitucional concreta.

Não devemos olvidar, ademais, que o sentido a ser conferido à redação do dispositivo vedatório de reforma é muito mais amplo do que se imagina; o Constituinte originário vedou qualquer proposta tendente a abolir (após, cita expressamente as inviolabilidades). Da expressão "proposta tendente a abolir" podem ser abstraídos, pelo menos, dois comandos de abstenção imediata e de clara interpretação: 1°) qualquer proposta (uma mera proposição que seja) que intente ferir substancialmente uma das cláusulas pétreas deverá ser expurgada, rejeitada de pronto pelos constituintes derivados; pela necessidade premente de se assegurar a Ordem Constitucional, vê-se o caráter preventivo dado à referida norma (caracterizado o periculum in mora); 2°) a proposta modificadora não precisa abolir totalmente para se restar comprovado o atentado à ordem Constitucional; para tanto, basta que seja tendente a abolir determinado princípio, ou seja, basta que a mudança seja de tal forma que mitigue ou dificulte a plenitude de um dado princípio fundamental.

Outra questão que paira sobre o tema das cláusulas de petrificação, é acerca da hermenêutica que se deve estender a elas, sobretudo no que toca ao grau de liberdade de que dispõe o intérprete na busca da sua ontologia e abrangência. Por serem cláusulas excepcionais, limitativas do exercício do constituinte derivado, parte-se da premissa, preconizada por Klaus Stern (apud CORRÊA, 1998, p. 130), de que devem ser interpretadas restritivamente. Já que o Constituinte derivado é representante da soberania popular e responsável pela atualização Constitucional, é verdade que não poderia ser limitado completamente de modificar a Lei Fundamental de um Estado; todavia, consoante já demonstrado, para que seja mantido o núcleo essencial da Constituição – como corolário do princípio da segurança jurídica -, é necessário que se imponha limites a esse poder de reformar, já que o poder de reforma não implica poder implícito de destruir e recriar a ordem constitucional pré-estabelecida.

Desse aparente dilema surge um papel fundamental do intérprete Constitucional que, mediante processo dialético de exegese, deve verificar com cautela a exata extensão de determinado princípio para que não se proponha a transitar entre os dois extremos interpretativos, quais sejam: "engessamento" Constitucional ou sua face oposta, que é fragilidade da Constituição.

Parece-nos que o melhor norteador para o estabelecimento de parâmetros para tal ponderação está na própria Constituição Federal da República Federativa do Brasil, que, em seu artigo 1°, estabelece quais são os princípios fundamentais do nosso Estado; notadamente no inciso III desse mesmo artigo verifica-se a valoração máxima do Estado à dignidade da pessoa humana. Daí inferirmos que toda a árvore interpretativa de que deve se valer o constitucionalista deve trilhar pelos parâmetros estabelecidos no art. 1° da Carta Magna, homenageando a melhor e sistemática interpretação.

Márcia Milhomens Corrêa (1998, p. 137), ao abordar essa problemática questão, expõe que:

Deparamo-nos aqui com um sério problema, que aponta para uma incongruência a ser sanada: se, de um lado, é certo que o objetivo das cláusulas pétreas é justamente a preservação da força normativa dos princípios fundamentais, de outro, esta tarefa mostra-se incompatível com uma interpretação restritiva desses mesmos princípios. Para resolução desse aparente conflito, há que se traçar uma diferença entre interpretação das cláusulas pétreas e interpretação dos princípios por elas protegidos; apenas as cláusulas pétreas devem ser interpretadas restritivamente e não os princípios por ela protegidos.

O conteúdo dos princípios que constituem o objeto das cláusulas pétreas não comporta restrições a priore. Márcia Milhomens Corrêa, nesse sentido, explica que seria impossível, por exemplo, estabelecer de antemão e em definitivo quais são os preceitos que estabelecem garantias individuais. Este elenco, conforme a autora, possui caráter histórico [22], resultando de um processo permanente de densificação, mediante a incorporação de novos e sucessivos conteúdos ao núcleo essencial de cada direito(1998, p. 137). Seria possível, por exemplo, positivar de forma extremamente casuísta, quais seriam os preceitos que abarcariam o princípio da dignidade humana? A resposta a esse questionamento há de ser negativa, já que tais princípios somente devem ser mensurados com adequados modelos interpretativos de caráter sistemático.

Há que se ter em mente, de qualquer maneira, que a defesa normativa deve recair sobre o princípio implícito na norma positiva e não na norma em si. Nesse sentido, o Supremo Tribunal Federal, no julgamento da ADI – 2024/DF, manifestando-se sobre a constitucionalidade de emenda versando sobre a reforma previdenciária, entendeu que a forma federativa de Estado, elevada à condição de princípio intangível por todas as Constituições brasileiras, não pode ser conceituada a partir de um modelo ideal e apriorístico de Federação, mas sim, aquele concretamente adotado pelo Constituinte originário. Para além disso – ainda de acordo com o STF – as limitações materiais ao poder de reforma constitucional, não significam uma intangibilidade literal, mas apenas a proteção do núcleo essencial dos princípios e institutos cuja preservação é assegurada pelas "cláusulas pétreas" (SARLET, 2005, p. 410).

2.3- ADI n°: 939/DF - Supremo Tribunal Federal X Direitos Substancialmente Fundamentais e Limites à Reforma Constituição

A Ação Direta de Inconstitucionalidade n° 939/DF foi proposta pela Confederação Nacional dos Trabalhadores no Comércio – CNTC – em face da Emenda Constitucional n°: 03, de 17.03.1993, e da Lei Complementar n°: 77/93, que implementaram o Imposto Provisório sobre a Movimentação Financeira – IPMF (que deu a origem à extinta CPMF). Discutiu-se, in casu, se seria possível uma norma constitucional inconstitucional [23].

O texto da emenda constitucional n°: 03/93 preceituava que:

Art. 2°. A União poderá instituir, nos termos de lei complementar, com vigência até 31 de dezembro de 1994, imposto sobre movimentação ou transmissão de valores e de créditos e direitos de natureza financeira.

§1°. A alíquota do imposto de que trata este artigo não excederá a vinte e cinto centésimos por cento, facultado ao Poder Executivo reduzi-la ou restabelecê-la, total ou parcialmente, nas condições e limites fixados em lei.

§2°. Ao imposto de que trata este artigo não se aplica o art. 150, III, b, e VI, nem o dispositivo do §5° do art. 153 da Constituição Federal.

§3°. O produto da arrecadação do imposto de que trata este artigo não se encontra sujeito a qualquer modalidade de repartição com outra entidade federada.

§4°. Do produto da arrecadação do imposto de que trata este artigo serão destinados vinte por cento para custeio de programas de habitação popular.

O Tribunal não acatou o argumento de que a Emenda seria constitucional por apenas criar uma nova exceção a uma regra que já possui várias [24]. Nesse ponto específico,o raciocínio prevalecente foi de que, se existe uma regra com previsão das respectivas exceções, a ampliação destas põe em risco aquela. Se fosse permitida a ampliação das exceções constitucionalmente previstas, a tendência seria de abolir a própria regra, pois as exceções suplantariam a regra.

No mesmo julgamento, o Supremo Tribunal Federal considerou também inconstitucional a previsão de que o novel Imposto Provisório sobre Movimentação Financeira não seria sujeito à imunidade tributária recíproca, que impede a União, os Estados, o DF e os Municípios instituam impostos sobre patrimônio, renda ou serviços uns dos outros (CF, art. 150, VI, a). Entendeu, nesse tocante, que a regra que concede imunidade é verdadeiro corolário do princípio federativo e norma que tendesse a abolir tal princípio seria inconstitucional por ferir o previsto no art. 60, § 4º, inciso I, da Constituição Federal, que trata das chamadas "cláusulas pétreas".

Ademais, se considerou inconstitucional a previsão de que o IPMF não obedecesse à imunidade dos templos de qualquer culto (CF, art. 150, VI, b). A imunidade, denominada religiosa, protege a liberdade de culto, que é um direito individual.

Na mesma linha, também foram consideradas protegidas por "cláusulas de eternidade", a imunidade dos livros, jornais, periódicos e o papel destinado a sua impressão (protegendo a livre manifestação do pensamento e barateando o acesso à informação, garantias individuais), bem como a proteção a diversas instituições cujas atividades são consectários de outras garantias constitucionalmente protegidas, tais como a liberdade sindical, liberdade de criação e filiação a partidos políticos (ALEXANDRE, 2007, pp. 93- 94).

Quanto a Lei Complementar nº 77/93, o Tribunal, por maioria, declarou a inconstitucionalidade do art. 28, no ponto específico em que permitiu a cobrança do tributo no ano de 1993 (por ferir a anterioridade), e a inconstitucionalidade, sem redução dos textos, dos artigos 3º, 4º e 8º, por deixarem de excluir, da incidência do IPMF, as pessoas Jurídicas de Direito Público (ferir o pacto federativo) e as demais entidades e empresas referidas nas alíneas a, b, c e d, do inciso VI, do art. 150 da Constituição da República (defesa à liberdade de pensamento, liberdade de culto, entre outras proteções violadas).

Importa notar que a mais alta corte do país, competente para julgar, em via concentrada, a constitucionalidade ou não de lei (em sentido amplo) em face da Constituição Federal, já se manifestou acerca da existência de garantias individuais fora do rol do artigo 5º da Lei Fundamental e declarou que os direitos e garantias individuais previstos no art. 5º da Constituição Federal não exaurem o âmbito de proteção constitucional assegurado a outras garantias previstas na própria Lei Magna ou mesmo decorrente de princípios e regimes por ela adotados (art. 5º, §2º, da CF) . Em outras palavras, o Supremo Tribunal Federal sedimentou o entendimento que defendíamos acerca da não-taxatividade dos direitos e garantias individuais.

Para melhor elucidar a questão, a fim de dirimir eventuais questionamentos, daremos atenção especial ao princípio da anterioridade como garantia individual e passaremos a transcrever trechos de alguns dos votos nos quais esta questão foi especificamente abordada com maior profundidade [25]. Ressalte-se, de antemão, com a devida vênia, que os então Ministros Sepúlveda Pertence e Octavio Gallotti, votos vencidos em parte, não consideraram o princípio da anterioridade como uma garantia acobertada pela proteção conferida às cláusulas pétreas.

O Ministro Sidney Sanches, relator do processo, em voto deveras didático, assim se manifestou:

(...) O constituinte originário, ou melhor a Constituição Federal de 05-10-1988, no Título II, dedicado aos direitos e garantias fundamentais, destinou o capítulo I aos direitos e deveres individuais e coletivos.

Enunciou-os no art. 5º e seus setenta e sete incisos. E no § 2º desse único artigo do Capítulo I, aduziu:

§2º. Os direitos e garantias expressamente expressos nesta Constituição não excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados..."

Já no Título VI, destinado à tributação e orçamento, e no Capítulo I, dedicado ao Sistema Tributário Nacional, mais precisamente na Seção II, regulou a Constituição "as limitações ao poder de tributar", estabelecendo, desde logo, no art. 150:

"Art. 150. Sem prejuízo de outras garantias asseguradas ao contribuinte, é vedado à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios:

III- Cobrar Tributos:

b) no mesmo exercício financeiro em que haja sido publicada a lei que os instituiu ou aumentou."

Trata-se, pois, de garantia outorgada ao contribuinte, em face do disposto nesse art. 150, III, b, em conjugação com o § 2º, do art. 5º, da Constituição Federal.

Ora, ao cuidar do processo legislativo e, mas especificamente, da emenda à Constituição, esta, no §4º do art. 60, deixa claro:

"Não será objeto de deliberação a proposta de emenda tendente a abolir:

IV- os direitos e garantias individuais".

Entre esses direitos e garantias individuais, estão pela extensão contida no § 2º do art. 5º e pela especificação feita no art. 150, II, b, a garantia ao contribuinte de que a União não criará nem cobrará tributos "no mesmo exercício financeiro em que haja sido publicada a lei que os instituiu ou aumentou".

No caso, o art. 2º da EC nº 3/93, permitindo a instituição do tributo em questão, no mesmo ano de 1993, o que se consumou com o advento da Lei Complementar nº 77, de 13- 7- 1993. parece, assim a um primeiro exame, para efeito de medida cautelar, haver afrontado o disposto nos referidos § 2º, do art. 5º, art. 150, III, b, e § 4º, do art. 60, da Constituição Federal".

11. Agora, já ao ensejo do julgamento do mérito, não estou convencido do contrário, sobretudo depois da leitura dos votos dos eminentes ministros Ilmar Galvão, Marco Aurélio, Carlos Veloso, Celso de Melo, Paulo Bossard e Néri da Silveira, que, mesmo para efeito de medida cautelar de suspensão da cobrança do tributo, em 1993, não deixaram de vislumbrar, desde logo, a violação, quanto a esse ponto, ao princípio da garantia individual do contribuinte, que nem por Emenda Constitucional se pode afrontar, ainda que temporariamente, em face dos referidos § 2º do art. 5º, artigos 150, III, b, e 60, parágrafo 4º, inciso IV, da Constituição Federal.

12. Nem me parece que, além das exceções ao princípio da anterioridade, previstas expressamente no §1º do art. 150, pela Constituição originária, outras pudessem ser estabelecidas por emenda constitucional, ou seja, pela Constituição derivada.

13. Se não se entender assim, o princípio e a garantia individual tributária, que ele encerra, ficariam esvaziados, mediante novas e sucessivas emendas constitucionais, alargando as exceções, seja para impostos previstos no texto originário, seja para os não previstos."

O ministro Marco Aurélio, igualmente, considerou o princípio da anterioridade como garantia constitucional:

Senhor Presidente, em primeiro lugar, registro minha convicção firme e categórica de que não temos, como garantias constitucionais apenas o rol do art. 5º da Lei Básica de 1988. Em outros artigos da Carta, encontramos, também, princípios e garantias do cidadão, nesse embate diário que trava com o Estado, e o objetivo maior da Constituição é justamente proporcionar uma certa igualação das forças envolvidas – as do estado e as de cada cidadão considerado per se.

"§2º. Os direitos e garantias expressos nesta Constituição não excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados, ou dos tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte."

Veja V. Exa. que o Diploma Maior admite os direitos implícitos, os direitos que decorrem de preceitos nela contidos e que, portanto, não estão expressos.

(...) De início, Senhor Presidente, vemos o afastamento da anterioridade, e creio que posso deixar de discorrer a respeito. A Corte, ao enfrentar o pedido de concessão de liminar, teve presente que a anterioridade encerra uma garantia constitucional, e não vejo, em face apenas da Carta conter algumas exceções a esse princípio, como esvaziá-lo, como colocá-lo em plano secundário a ponto de dizer da impertinência do inciso IV, do § 4º. Do art. 60, ou até mesmo, num passo um pouco mais largo, assentar que não se está diante de uma garantia constitucional, como está previsto, com todas as letras, na alínea b, do inciso III, do art. 150 da Carta.

O Ministro Carlos Velloso, em seu voto, relembrou as considerações feitas no julgamento da medida cautelar requerida na ADin n º 939:

Senhor presidente, examino a questão posta na Emenda Constitucional nº 3, de 1993. Tenho como relevante, no ponto, a argüição, no sentido de que a Emenda Constitucional nº 3, desrespeitando ou fazendo tabula rasa do princípio da anterioridade, excepcionando-o, viola limitação material ao poder constituinte derivado, a limitação inscrita no art. 60, § 4º, IV, da Constituição.

(...) Sr. Presidente, o que entendo relevante, no caso, é a questão da anterioridade. Na verdade, o princípio da anterioridade, inscrito no art. 150, inciso III, letra b, da Constituição, a exercício financeiro em que haja sido publicada a lei que os instituiu ou aumentou, é uma garantia individual, uma garantia do contribuinte; é a própria Constituição que deixa expresso que o princípio da anterioridade é uma garantia do contribuinte: no caput do art. 150 da Constituição está escrito que "sem prejuízo de outras garantias asseguradas ao contribuinte, é vedado à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios", e seguem-se as vedações estabelecidas como garantias do contribuinte.

Ora, a Constituição, no seu art. 60, § 4º, inciso IV, estabelece que "não será objeto de deliberação a proposta tendente a abolir os direitos e garantias individuais". Direitos e garantias individuais não são apenas aqueles que estão inscritos nos incisos do art. 5º. Não. Esses direitos e essas garantias se espalham pela Constituição. O próprio art. 5º, no seu § 2º, estabelece que os direitos e garantias expressos nesta Constituição não excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados, ou dos tratados internacionais em que a República do Brasil seja parte.

É sabido, hoje, que a doutrina dos direitos fundamentais não compreende, apenas, direitos e garantias individuais, mas também, direitos e garantias sociais, direitos atinentes à nacionalidade e direitos políticos. Este quadro todo compõe a teoria dos direitos fundamentais. Hoje não falamos, apenas, em direitos individuais, assim direitos de primeira geração. Já falamos em direitos de primeira, de segunda, de terceira e até de quarta geração.

(...) Sr. Presidente, retomo o fio do raciocínio anterior: a Emenda Constitucional nº 3, ao estabelecer, no § 2º, do art. 2º, que ao imposto de que trata este artigo não se aplica o art. 150, inciso III, letra b, incorreu em inconstitucionalidade. É o que me parece, pelo menos ao primeiro exame. É que, assim procedendo, a Emenda suprime, suspende e afasta garantia do contribuinte derivado ou de revisão. Tenho, portanto, como relevante o fundamento da inicial, quando sustenta que não poderia a lei – e o Tribunal já entendeu que está compreendida a Emenda Constitucional n 3 – excepcionar, suspender ou suprimir garantia de direito individual garantia do contribuinte.

Com essas considerações, Sr. Presidente, meu voto é no sentido de, deferindo a medida cautelar, suspender, no § 2º, do art. 2º, da Emenda Constitucional nº 3, de 1993, a expressão "não se aplica o art. 150, inciso III, letra b".

Na oportunidade do julgamento da ação principal, o Ministro Carlos Velloso reforçou o entendimento adotado em linhas pretéritas:

(...) No que tange ao princípio da anterioridade, deixei expresso meu pensamento de que as garantias dos contribuintes, inscritas no art. 150 da Constituição, são intangíveis à mão do constituinte derivado, tendo em vista o disposto no art 60, § 4º, IV, da Constituição.

O Ministro Celso de Melo, em brilhante explanação, seguindo o raciocínio anterior, afirmou:

(...) Dentro desse contexto, tenho por irrecusável que a norma inscrita no art. 2º, §2º, da Emenda Constitucional nº 3/93 – ao reduzir, ainda que temporariamente, a abrangência da cláusula de proteção representada pelo princípio da anterioridade – vulnera, nas múltiplas dimensões jurídico-constitucional dos direitos e garantias individuais do contribuinte.

A norma questionada desconsidera – ante o que prescreve, cogentemente, o art. 60, § 4º, IV, da Constituição- o fato de que a anterioridade tributária, traduzindo limitação constitucional ao poder impositivo das pessoas políticas, constitui direito público subjetivo oponível ao Estado pelos contribuintes que dela se beneficiam.

Dentro dessa perspectiva, o ato normativo em causa efetivamente agride e afronta o regime dos direitos fundamentais dos contribuintes, na medida em que viabiliza a imediata exigibilidade desse novo imposto – típico e nominado – incluído, mediante emenda à Constituição, na esfera de competência impositiva ordinária da União Federal.

Nessa mesma esteira, o Ministro Néri da Silveira pronunciou que:

No que concerne ao princípio da anterioridade, considerado pelo Tribunal, ao conceder a medida cautelar, para que o IPMF não fosse exigido até 31-12-93, penso que, efetivamente, a disposição que determinou sua não aplicação à espécie tributária, conforme previsto na Emenda Constitucional nº 3/1993, art. 2º, fere a cláusula pétrea prevista no art. 60, § 4º, inciso IV, da Lei Maior.

A Ação Direta de Inconstitucionalidade de nº 939/DF é de significativa importância para a história da jurisprudência constitucional do Brasil porque é considerada a primeira ação que questionou a possibilidade de declaração de inconstitucionalidade de uma Emenda à Constituição (CORRÊA, 1998, p. 146). Ademais, como visto, esse julgamento solidificou o entendimento na Corte Constitucional acerca da cláusula aberta dos direitos fundamentais, ou seja, o Supremo Tribunal assentou entendimento de que o rol previsto no art. 5º da Constituição Federal não é exaustivo, até mesmo por força de expressão contida no §2º desse mesmo artigo.

Passemos agora a externar a argumentação dos votos vencidos que, a despeito de não concordarmos, são plausíveis e merecem respeito. O Ministro Sepúlveda Pertence, que, tendo em vista a contextualização do tema no Estado brasileiro, sustenta a incompatibilidade entre a exigência da anterioridade no caso concreto e a dinâmica contemporânea administrativa e financeira:

3. Creio que na demarcação de qual seja a extensão da limitação material ao poder de reforma constitucional, que proíbe a deliberação sobre propostas tendentes a abolir direitos e garantias individuais, o intérprete não pode fugir a uma carga axiológica a atribuir, no contexto da Constituição, a eventuais direitos ou garantias nela inseridos. E não consigo, por mais que me esforce, ver, na regra da anterioridade, recortada de exceções no próprio texto de 1988, a grandeza de cláusula perene, que se lhe quer atribuir, de modo a impedir ao órgão de reforma constitucional a instituição de um imposto provisório que a ela não se submeta.

4. Com todas as vênias – não estive presente ao julgamento da medida cautelar – da maioria que se formou pela concessão da liminar, diria que a grandeza atribuída à regra da anterioridade, no contexto da Constituição vigente, é fruto mais de uma interpretação retrospectiva a que há dias aludia, citando Luiz Roberto Barroso e Barbosa Moreira (v. MS 21.689), de uma interpretação nostálgica: o que se quer, à força, é ver na anterioridade o velho princípio da anualidade, da exigência da prévia autorização orçamentária anual para cobrança de cada imposto, que, esse sim – não é preciso repetir a História a partir de João Sem Terra -, teve uma carga histórica e política de grande relevo. Mas a verdade é que a dinâmica da administração financeira do contemporâneo Estado intervencionista a superou, mal ou bem, no constitucionalismo brasileiro.

O voto do ilustre jurista Sepúlveda Pertence, que já não integra mais o quadro de Ministros do Supremo Tribunal Federal, com a devida vênia, não merece total arrimo. É certo que a interpretação hermenêutica não pode se desvincular de uma certa carga axiológica, até porque a própria Constituição Federal integra valores de toda a sociedade. No entanto, não podemos utilizar a axiologia para restringir, por meio de exegese, direitos fundamentais protegidos positivamente na Constituição Federal. A abolição ou mitigação de um determinado direito fundamental abre um precedente perigoso para que a exceção se torne regra. Em outras palavras, se permitida uma "pequena" violação a um direito fundamental, outros vilipêndios "maiores" certamente virão, o que restaria por desestabilizar a Ordem Constitucional e, por conseguinte, a segurança jurídica.

3- Os menores de dezoito anos como sujeitos de direitos e garantias fundamentais: imputabilidade penal x garantia individual.

Nesse ponto da discussão, faz-se mister que sejam retomados algumas colocações especificadas ao longo do presente ensaio, para efeito de contextualização do que já foi exposto.

No Capítulo I desta obra, tecemos algumas considerações acerca da evolução histórica do Direito da Criança e do Adolescente, dando ênfase à evolução da idade penal. Vimos, naquele capítulo, que as crianças e os adolescentes eram tratados como objeto de direitos e não como sujeitos de direitos. Com a evolução histórica pela qual passou o Direito da Criança e do Adolescente (nacional e internacionalmente), esses seres humanos passaram à condição de sujeitos de direito e gozaram, a partir de então, de especial atenção do Estado, sobretudo porque sua peculiar condição de pessoa em desenvolvimento assim exigia. Foi constatado, ademais, que o princípio da proteção integral , preconizado em tratados internacionais, dos quais o Brasil é signatário, foi encampado pela Constituição Federal da República (art. 227, CF).

No capitulo II, expusemos, em vários tópicos, temas relacionados aos Direitos Fundamentais (teoria, abrangência, limites e interpretação), aos Limites à Reforma Constitucional (rigidez constitucional e limites materiais à reforma) e às chamadas "cláusulas pétreas" (semântica, interpretação e entendimento do Supremo Tribunal Federal).

Observamos, em suma, nesses vários tópicos, que a disciplina dos direitos fundamentais é de suma importância para o desenvolvimento social, porquanto o Estado é feito de pessoas e não o contrário. Daí a necessidade perene de respeitar e salvaguardar os direitos fundamentais do homem. Vimos que na ótica Constitucional pátria, os direitos fundamentais são integrantes do regime geral da Constituição (asseguram o princípio basilar do Estado brasileiro que é o da dignidade da pessoa humana). Observamos, outrossim, que os direitos fundamentais não estão sujeitos a tipicidade exaustiva (cláusula aberta dos direitos fundamentais) e não podem ser posicionados somente no artigo 5º da Constituição Federal, até por disposição expressa do § 2º do mesmo artigo.

Quanto aos Limites de Reforma à Constituição, vimos que a rigidez constitucional existe para que haja uma certa segurança jurídica nas relações sociais, para que o amanhã não seja algo incerto na sociedade, pois tal incerteza certamente traria gravíssimos entraves em termos de pacificação social. Asseveramos que, por óbvio, uma Constituição positivada não pode ser totalmente imutável, sob pena de total falta de eficácia por ilegitimidade. No entanto, verificamos que a mudança de núcleos essenciais na Constituição viola o que chamamos de "identidade constitucional"; tal modificação, por conseguinte, não significaria uma alteração propriamente dita, mas sim, a criação de uma nova Ordem Constitucional. Observamos que a nossa Lei Fundamental de 1988 expressou alguns limites materiais à mudança constitucional, especialmente no art. 60, § 4, da CF. Porém, acentuamos que existem, ainda, limites implícitos ao poder de reforma que são derivados dos fundamentos e do regime constitucional pátrio.

No que concerne ao Supremo Tribunal Federal, verificamos que o egrégio tribunal, de forma adequada, sistematizou a interpretação constitucional e pacificou entendimento de que os direitos e garantias individuais não são somente aqueles elencados no art. 5º da Carta da República, porquanto derivam de seu regime e princípios fundamentais (numerus clausus); na mesma oportunidade, o colendo Tribunal também asseverou que a reforma constitucional está expressamente limitada pelo art. 60, § 4º, da Lei Fundamental, pelas chamadas "cláusulas pétreas".

Nos tópicos que seguem, verificaremos se é possível afirmar que os menores de dezoito anos são sujeitos de direitos e garantias fundamentais; se a resposta for positiva, analisaremos se a inimputabilidade penal dos referidos sujeitos de direito constitui um garantia individual contra a restrição de liberdade.

3.2- Isonomia e Inimputabilidade Penal do menor de dezoito anos.

A discussão acerca da inimputabilidade penal do menor de dezoito anos passa, ao nosso ver, necessariamente, por uma discussão acerca da semântica ontológica do princípio da isonomia, ou seja, qual seria o fundamento, a natureza jurídica e a aplicação da isonomia a casos específicos.

Como relacionar o princípio da isonomia ao tratamento diferenciado dado pela Constituição Federal àqueles que se encontram em peculiar condição (no caso do menor, como pessoa em singular condição de desenvolvimento)? Tentaremos responder a esse questionamento no decorrer desse tópico.

Antes de aprofundar a discussão, mister seja citado o preceito que consagra, mas não exaure, o princípio da isonomia (ou igualdade) na Constituição Federal. Reza o art. 5°, caput, da Constituição Federal que "todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza(...).

Uma leitura rápida do dispositivo acima poderia induzir um leitor desatento ao erro, acreditando que qualquer tratamento diferenciador seria inconstitucional, por exemplo, tratar desigualmente a Criança e o Adolescente com relação àqueles maiores de 18 anos. Veremos, a seguir, que tal premissa é falha. Em verdade, tratar igualmente aqueles que são desiguais acentuaria ainda mais a desigualdade entre eles (NOVELINO, 2008, p. 292).

Na verdade, a expressão "sem distinção de qualquer natureza" não impede a lei de estabelecer distinções. Apesar de parecer contraditório, somente no plano da aparência tal paradoxo existe. Essencialmente, "o papel da lei não é outro senão o de implantar diferenciações" (BASTOS, 1995, p. 169).

O que se deve analisar é "se o elemento discriminador, cuja adoção exige uma justificativa racional, está em harmonia com um fim constitucionalmente consagrado, devendo o critério utilizado na diferenciação ser objetivo, razoável e proporcional" (NOVELINO, 2008, p. 292).

Há que distinguir, portanto, a igualdade formal (aquela que não prevê distinções para aqueles que se encontram em situação "igual") da igualdade material (que busca desigualar os desiguais para tratá-los efetivamente de forma "igual") [26]. A igualdade formal "é um princípio de ação, segundo o qual os seres humanos de uma mesma categoria essencial devem ser tratados da mesma forma. Porque existem desigualdades, é que se aspira à igualdade real ou material que busque realizar a igualização das condições desiguais, do que se extrai que a lei geral, abstrata e impessoal que incide em todos igualmente, levando em conta apenas a igualdade dos indivíduos e não a igualdade dos grupos, acaba por gerar mais desigualdades e propiciar a injustiça"(SILVA, 2005, p. 214).

Acerca do princípio da isonomia, salutar é a lição do professor José Afonso da Silva (2005, p. 215):

(...) o princípio não pode ser entendido em sentido individualista, que não leve em conta as diferenças entre grupos. Quando se diz que o legislador não pode distinguir, isso não significa que a lei deva tratar todos abstratamente iguais, pois o tratamento igual – esclarece Petzold – não se dirige a passoas integralmente iguais entre si, mas àquelas que são iguais sob os apectos tomados em consideração pela norma, o que implica que os "iguais" podem diferir totalmente sob outros aspectos ignorados ou considerados como irrelevantes pelo legislador. Este julga, assim, como "essenciais" ou "relevantes", certos aspectos ou características das pessoas, das circunstâncias ou das situações nas quais essas pessoas se encontram, e funda sobre esses aspectos "essencias" previstos por essas normas são consideradas encontrar-se nas "situações idênticas", ainda que possam diferir por outros aspectos ignorados ou julgados irrelevantes pelo legislador; vale dizer que as pessoas ou situações são iguais ou desiguais de modo relativo, ou seja, sob certos aspectos.

Ainda sobre a essência do princípio isonômico, Uadi Lamêgo Bulos (2005, p. 120) profere que:

Os homens nunca foram iguais e jamais o serão no plano terreno. A desigualdade é própria da condição humana. Por possuírem origem diversa, posição social peculiar, é impossível afirmar-se que o homem é totalmente idêntico ao seu semelhante em direitos, obrigações, faculdades e ônus. Daí se buscar uma igualdade proporcional, porque não se pode tratar igualmente situações provenientes de fatos desiguais. O raciocínio que orienta a compreensão do princípio da isonomia tem sentido objetivo: aquinhoar igualmente os iguais e desigualmente as situações desiguais. Dessa maneira, atribui-se ao princípio sentido real e não nominal, igualdade material e não incidental ou particular, porquanto a igualdade consiste em assegurar aos homens que estão equiparados os mesmos direitos, benefícios e vantagens, ao lado dos deveres correspondentes. O mesmo ocorre em relação àqueles que estiverem desequiparados, os quais deverão receber o tratamento que lhes é devido à medida de suas desigualdades.

Percebe-se que a doutrina é uníssona no que concerne à necessidade de se empregar um teor axiológico ao princípio da isonomia, dando-lhe um caráter de realização da "justiça social" ou eqüidade Aristotélica (SILVA, 2005, p. 215).

Entretanto, também é ponto pacífico que não se pode definir casuisticamente quais seriam casos de isonomia material ou mesmo casos em que a substancial igualdade fosse desrespeitada, em virtude da relatividade e abstração de tal conceito (LENZA, 2006, p. 532).

Para ajudar a mitigar a celeuma da relatividade do princípio da isonomia, mormente no campo pragmático, Celso Antônio Bandeira de Melo (1995, p. 21), em obra monográfica sobre o tema, propôs alguns critérios que almejam delimitar, ou pelo menos, extrair limites à aplicação da isonomia ao caso concreto, os quais ajudariam a verificar se o princípio está sendo desrespeitado ou não. Conforme o autor, os critérios norteadores seriam basicamente três, quais sejam: "a) a primeira diz com o elemento tomado como fator de desigualação; b) a segunda reporta-se à correlação lógica abstrata existente entre o fator erigido em critério de discrímen e a disparidade estabelecida no tratamento jurídico diversificado; c) a terceira atina à consonância desta correlação lógica com os interesses absorvidos no sistema constitucional e destarte juridicizados".

Para verificarmos a validade da diferenciação proposta pela Constituição no que toca aos menores de 18 anos com relação aos indivíduos que não mais pertencem a tal faixa etária, analisaremos, em poucas linhas, os critérios traçados pelo ilustre Celso de Mello, trazendo a discussão para o tema em apreço.

O primeiro critério proposto diz respeito ao elemento tomado com fator de discriminação. Em se tratando da diferenciação do menor de dezoito anos com relação aos maiores de dezoito anos, a delimitação do elemento distintivo salta aos olhos: no caso, é o elemento "idade". O legislador Constituinte de 1988 seguiu uma tendência internacional de adotar o critério da idade para delimitar o teor da diferenciação entre crianças e adolescentes com relação aos "adultos".

Definido o primeiro critério, tomamos para análise a segunda proposição, que é a "correlação lógica abstrata existente entre o fator erigido em critério de discrímen e a disparidade estabelecida no tratamento jurídico diversificado"(MELO, 1995, p. 21). Nesse critério, busca-se a relação lógica que fundamentou a adoção de um fator de discriminação, ou seja, o motivo que ensejou a diferenciação. No caso específico da criança e do adolescente, a fundamentação lógica que torna premente a distinção com relação aos adultos é a condição daqueles de "pessoas em desenvolvimento".

É indubitável que a condição peculiar das crianças e dos adolescentes no que diz respeito à formação (tanto no seio social, como educacional, cultural, familiar, etc) exige um tratamento diferenciado com relação a outras pessoas que se encontram em idade mais avançada. É óbvio que os menores de 18 anos, mesmo para aqueles que defendem sua total emancipação psíquica, não é dotado de plena formação social e necessita de tratamento diferenciado do legislador e dos aplicadores da lei de maneira geral (CORRÊA, 1998, p. 194).

O terceiro critério diferenciador, no dizer de Celso Antônio Bandeira de Mello (1995, p. 21), "atina à consonância desta correlação lógica com os interesses absorvidos no sistema constitucional e destarte juridicizados", ou seja, o terceiro âmbito norteador diz respeito ao sistema constitucional de um determinado Estado e ao regime que ele adota no tocante à justiça social. A principiologia adotada pela Constituição Federal de 1988, consoante assevera Pedro Lenza (2006, p. 532) encampa a possibilidade de aplicar critérios de "diferenciação positiva" (affirmatives actions)?

O artigo 3º, inciso I, da Lei Fundamental, traça as primeiras linhas para responder à indagação. Reza o artigo que "constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil: I- construir uma sociedade livre, justa e solidária. II- erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais" (grifos nossos).

Ademais, no art. 227, § 3º, inciso V, encampando positivamente a doutrina da proteção integral da criança e do adolescente no que toca à restrição da liberdade, reza que:

"Art. 227- É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança e ao adolescente, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar (...) §3ºO direito a proteção especial abrangerá os seguintes aspectos: V- obediência aos princípios de brevidade, excepcionalidade e respeito à condição peculiar de pessoa em desenvolvimento(...)

Assim, é possível inferir que a sistemática Constitucional, até pela evolução histórica do Direito da Criança e do Adolescente (como visto no capítulo I), adotou o princípio da proteção integral e permitiu diferenciações que mitigassem as desigualdades existentes entre os menores de 18 anos e aqueles que não se encontrem nessa peculiar condição. Reputa-se, ademais, que a diferenciação proposta pelo Constituinte originário está respaldada por critérios de validade que torna a totalmente legítima. Portanto, a inimputabilidade penal do menor de 18 anos é corolário mediato do princípio da isonomia em sua semântica efetiva, material, substancial.

3.3- Inimputabilidade penal como garantia individual (fundamental)?

Vimos no item anterior que o tratamento Constitucional dado à inimputabilidade penal do menor de 18 anos é perfeitamente harmônico com o princípio da igualdade ou isonomia encampado pela Constituição Federal de 1988.

Ademais, no Capítulo I dessa obra, consoante já asseverado, constatamos que as Crianças e os Adolescentes são sujeitos de direito, portanto, não há dúvida de que toda a legislação constitucional aplicável aos indivíduos em geral, por óbvio, também lhes é aplicável. Aliás, em virtude de sua peculiar condição de pessoa em desenvolvimento, a proteção constitucional dedicada às Crianças e aos Adolescentes é mais ampla.

A Constituição Federal trata, especificamente, da Criança e do Adolescente no Título VIII (Da Ordem Social), Capítulo VII (Da família, da criança, do adolescente e do idoso). É possível inferir, após leitura sistêmica desses preceitos Constitucionais à luz da principiologia adotada pela própria Lei Fundamental, que a Criança e o Adolescente são sujeitos de Direito, e como tais, merecem proteção legal contra constrição da liberdade (em sua acepção mais ampla). A própria evolução histórica do Direito da Criança e do Adolescente corrobora com o entendimento de que, hodiernamente, vigora o princípio da proteção integral desses indivíduos.

À criança e ao adolescente, portanto, é assegurado o direito à liberdade [27] (manutenção do status libertatis).

Quanto à aplicabilidade dos direitos à liberdade, ensina José Afonso da Silva (2005, p. 269) que:

As normas constitucionais que definem as liberdades consideradas neste capítulo são, via de regra, daquelas que denominamos de eficácia plena e aplicabilidade direta e imediata, porque o legislador constituinte deu normatividade suficiente aos interesses vinculados à matéria de que cogitam.Vale dizer, não dependem de legislação nem providência do Poder Público para serem aplicadas. Algumas normas podem caracterizar-se como de eficácia contida, mas sempre de aplicabilidade direta e imediata, caso em que a previsão de lei não se destina a integrar-lhes a eficácia (que já têm amplamente), mas visa restringir-lhes a plenitude desta, regulando os direitos subjetivos que delas decorrem para os indivíduos ou grupos. Enquanto o legislador, neste caso, não produzir a normatividade restritiva, sua eficácia será plena.

Parece óbvio, então, que os menores de 18 anos (crianças e adolescentes na acepção legal [28]) merecem proteção contra a restrição de liberdade. Quando tal restrição for necessária, conforme legislação específica, deverá seguir o preceituado no inciso V do art. 227 da Carta Republicana de 1988, que determina "obediência aos princípios de brevidade, excepcionalidade e respeito à condição peculiar de pessoa em desenvolvimento, quando da aplicação de qualquer medida privativa da liberdade".

A liberdade de locomoção pode, é claro, ser restringida por lei ordinária (caso do Código Penal, por exemplo) em casos excepcionais (em respeito ao princípio da intervenção mínima no direito de liberdade), mas o direito à liberdade, abstratamente considerado, não pode ser suprimido, e se for mitigado, deverá se adequar aos ditames Constitucionais (NOVELINO, 2008, p. 307). À guisa de exemplo, não seria possível, do ponto de vista jurídico, uma lei ordinária que permitisse a aplicação de pena cruel (de acoites diários, por exemplo) àquele indivíduo condenado pelo crime de latrocínio, porquanto o art. 5°, inciso, XLVII, alínea e, da Constituição Federal, reza que "não haverá penas cruéis". Ressalte-se que, nem mesmo uma emenda à constituição seria idônea a criar tal sanção, já que existe limitação expressa de reforma, como vimos, no art. 60, § 4°, inc. IV, da Lei Máxima, que erigiu os direitos fundamentais à categoria de "cláusula pétrea".

Consoante já asseverado quando da distinção entre direitos e garantias fundamentais, os direitos subjetivamente considerados podem possuir pouca eficácia se não forem dotados de garantias que os assegurem. Portanto, em regra, os direitos fundamentais constitucionais, até mesmo aqueles negativos (ou de defesa), possuem regras garantidoras de tais direitos, como forma de assegurá-los e efetivá-los (SILVA, 2005, pp. 186 e ss).

Devemos nos lembrar, ademais, da lição de José Afonso da Silva (2005, pp.186- 187) (citada no item 1.2.3 desta obra), ao classificar as garantias fundamentais (individuais) na Constituição da República. O autor expressa que algumas vezes as garantias são explícitas por meio de verbos seguidos das medidas assecuratórias, como por exemplo: "é assegurado o direito de resposta (...)" (art.5º, V). "é assegurada (...) a prestação de assistência religiosa (...)" (art. 5º, VII), "é garantido o direito de propriedade" (art. 5º, XXII), "é garantido o direito de herança" (art. 5º, XXX).

Outras vezes, no entanto, conforme o autor, as garantias são enunciadas pela inviolabilidade do elemento assecuratório. Assim, "a casa é o asilo inviolável do indivíduo" (art. 5º, XI), "é inviolável o sigilo da correspondência e das comunicações telefônicas (...)" (art. 5º, XII); ora nesses casos, a inviolabilidade do lar e do sigilo constitui garantia do direito à intimidade pessoal e familiar e da liberdade de transmissão pessoal de pensamento, mas a Constituição mesma fala em direitos de sigilo de correspondência e de sigilo de comunicação (art. 136, § 1º, I, b e c). Já noutro dispositivo esta que "são invioláveis à intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas (...)" (art. 5º, X); aqui o direito e a garantia se integram: inviolabilidade = garantia.

O constitucionalista (SILVA, 2005, p. 187) afirma ainda que há outras garantias individuais não expressas exatamente no art. 5º da Constituição Federal, como por exemplo, aquelas que atinem à magistratura (art. 95, CF).

Diante do exposto, é possível questionar, então, se a imposição constitucional expressa no artigo 228 da Constituição Federal que, com a utilização de um verbo ("são") seguido de uma inviolabilidade ("inimputáveis") seria ou não uma garantia individual (fundamental) expressa em favor da criança e do adolescente.

Em se tratando do direito à liberdade (lembrando que aqui se fala somente na acepção "negativa" da liberdade) do menor de 18 anos, a Constituição Federal de 1988 pareceu expressar garantia fundamental no art. 228 de seu corpo. Preceitua o citado dispositivo que "são penalmente inimputáveis os menores de 18 (dezoito) anos, sujeitos às normas da legislação especial".

Parece-nos, portanto, que a Constituição Federal de 1988 expressou uma garantia individual do menor de 18 anos de não sofrer persecução penal comum, ou seja, de ser inimputável, sendo-lhe aplicável, no que couber, a legislação especial adequada (no caso, a lei 8.069/90, o Estatuto da Criança e do Adolescente [29]).

Nesse sentido, o ilustre jurista Alexandre de Moraes, na obra Constituição do Brasil Interpretada (2005, p. 2176) expressa que "a Constituição brasileira seguiu a tendência internacional consagrada no art. 1° da Convenção dos Direitos da Criança, que estabelece ser criança todo ser humano com menos de 18 anos".

Continua, então, o constitucionalista (2005, p. 2176, grifo nosso), asseverando que:

(...) a Constituição Federal de 1988, expressamente em seu art. 228, previu, entre os vários direitos e garantias específicos das crianças e dos adolescentes, a seguinte regra: são penalmente inimputáveis os menores de dezoito anos, sujeitos às normas da legislação especial.

Essa previsão transforma em especialíssimo o tratamento dado ao menor de 18 anos em relação à lei penal. Dessa forma, impossível a legislação ordinária prever responsabilidade penal aos menores de 18 anos. A questão, todavia, deve ser analisada em seu aspecto mais complexo, qual seja,, a possibilidade de alteração constitucional que possibilitasse uma redução da idade geradora da imputabilidade penal. Seria possível uma emenda constitucional, nos termos do art. 60 da Constituição Federal, para alteração do art. 228?

Entende-se impossível essa hipótese, por tratar-se a inimputabilidade penal, prevista no art. 288 da Constituição Federal, de verdadeira garantia individual da criança e do adolescente em não serem submetidos à persecução penal em Juízo, tampouco poderem ser responsabilizados criminalmente, com conseqüente aplicação de sanção penal. Lembremo-nos, pois, de que essa verdadeira cláusula de irresponsabilidade penal do menor de 18 anos enquanto garantia positiva de liberdade, igualmente transforma-se em garantia negativa em relação ao Estado, impedindo a persecução penal em juízo.

Inferência tão brilhante de tão respeitado autor seria digna de unânimes elogios, não fosse a necessidade de se fazer um registro no que toca especificamente a um termo utilizado, ao nosso ver, equivocadamente, qual seja "irresponsabilidade penal". O referido termo foi mencionado pelo autor para se referir à inimputabilidade penal do menor de 18 anos, posto que inimputabilidade, como veremos no Capítulo III, não se confunde com irresponsabilidade. Essa falsa impressão do senso comum de que o menor de 18 anos é um "irresponsável penal" será refutada adiante.

No mesmo sentido, o Magistrado Eugênio Couto Terra (apud SARAIVA, 2005, pp. 78- 79) preceitua que:

O art.228, ao estabelecer a idade mínima para a imputabilidade penal, assegura a todos os cidadãos menores de dezoito anos uma posição jurídica subjetiva, qual seja, a condição de inimputável diante do sistema penal. E tal posição, por sua vez, gera uma posição jurídica objetiva: a de ter a condição de inimputável respeitada pelo Estado.

Num enfoque do ponto de vista individual de todo cidadão menor de dezoito anos, trata-se de garantia asseguradora, em última análise, do direito de liberdade. É, em verdade, uma explicitação do alcance que tem o direito de liberdade em relação aos menores de dezoito anos. Exerce uma típica função de defesa contra o Estado, que fica proibido de proceder a persecução penal.

Trata-se, portanto, de garantia individual, com caráter de fundamentalidade, pois diretamente ligada ao exercício do direito de liberdade de todo cidadão menor de dezoito anos. E não se pode olvidar que a liberdade sempre está vinculada ao princípio fundamental da dignidade da pessoa humana, especialmente em relação às crianças e adolescentes, pois foram reconhecidos como merecedores de absoluta prioridade da atenção da família, da sociedade e do Estado, em face da peculiar condição de seres humanos em desenvolvimento.

É notório, portanto, que o art. 228 da Constituição Federal encerra garantia individual (fundamental) em favor da criança e do adolescente contra a persecução penal geral, sendo-lhes aplicável, no que couber, a legislação específica.

Digna de registro, mas não de arrimo, a posição daqueles que entendem que o art. 228 da Constituição não abarca garantia fundamental do menor de 18 anos, portanto, suprimível por emenda à Constituição. Possui como principal defensor no direito pátrio o jurista Guilherme de Souza Nucci (2000, p. 109), o qual observa:

(...) uma tendência mundial na redução da maioridade penal, pois não mais é crível que menores de 16 ou 17 anos, por exemplo, não tenham condições de compreender o caráter ilícito do que praticam, tendo em vista que o desenvolvimento mental acompanha, como é natural, a evolução dos tempos, tornando a pessoa mais precocemente preparada para a compreensão integral dos fatos da vida.

Conclui o autor que:

(...) não podemos concordar com a tese de que há direitos e garantias fundamentais do homem soltos em outros trechos da Carta, por isso também cláusulas pétreas, inseridas na impossibilidade de emenda constitucional suprimindo ou modificando o art. 228 da Constituição.

Malgrado o referido autor ser de indiscutível saber jurídico, ousamos discordar de seu entendimento, por dois motivos: 1°- porque a conclusão de que o menor de 16 ou de 17 anos, por exemplo, seria capaz de entender o ilícito não pode servir de justificativa para redução da idade penal, consoante veremos no Capítulo III dessa obra; 2°- porque a inferência de que os direitos e garantias individuais não se encontram em "outros trechos da Carta" não se coaduna com uma interpretação sistemática da Constituição, como já demonstrado.

Para aqueles que entendem que os direitos e garantias individuais não se encontram ao longo de todo o texto da Constituição Federal, seria constitucional, somente como um dos muitos exemplos possíveis, a edição de uma emenda à Constituição que alterasse o artigo 231 [30] da lei Fundamental, determinando que não mais seriam reconhecidos aos índios os seus costumes, línguas, crenças e tradições, acarretando, por óbvio, uma total aculturação daquela etnia e posterior extinção. Outro exemplo seria a supressão da garantia dos magistrados de irredutibilidade de subsídios (expressa no art. 95 da CF). Parece claro que tal entendimento não pode prevalecer, em homenagem ao princípio da manutenção da identidade constitucional (manutenção de núcleos essenciais), corolário do primado da segurança jurídica.

Sobre a vedação ao retrocesso, ou seja, de violar núcleos essenciais da Constituição adquiridos ao longo de um dificultoso processo histórico, assinala o Doutor Ingo Sarlet (2005, p. 412) que:

Convém relembrar que, havendo (ou não) menção expressa no âmbito do direito positivo a um direito à segurança jurídica. De há muito, pelo menos no âmbito do pensamento constitucional contemporâneo, se enraizou a idéia de que um autêntico Estado de Direito é sempre também – pelo menos em princípio e num certo sentido – um Estado da segurança jurídica, já que, do contrário, também o "governo das leis" (até pelo fato de serem expressão da vontade política de um grupo) poderá resultar em despotismo e toda a sorte de iniquidades. Com efeito, a doutrina constitucional contemporânea tem considerado a segurança jurídica como expressão inarredável do Estado de Direito, de tal sorte que a egurança jurídica passou a ter o status de subprincípio concretizador do princípio fundamental e estruturante do Estado de Direito.

Não podemos, como já verificado, desrespeitar núcleos essenciais de direitos fundamentais erigidos à categoria de núcleos intangíveis e identificadores da identidade Constitucional, sob pena de retroceder ao estado de total desordem jurídica (SARLET, pp. 412 e ss.).


Capítulo III

No capítulo anterior, encerramos a discussão acerca da inconstitucionalidade da redução da idade penal no que toca especificamente ao aspecto da estrita obediência à legalidade constitucional, ou seja, verificamos se há impeditivo de reforma constitucional positivado na própria Constituição Federal (art. 60, § 4°, inc. IV) e se a inimputabilidade penal do menor de 18 anos é considerada garantia individual contra a persecução penal geral.

No presente capítulo, trataremos da celeuma sob o prisma da legitimidade, ou seja, verificaremos se as justificativas para a redução da idade penal, consoante preconizam seus defensores, são idôneas ao fim que propõem, que é o de redução dos índices de criminalidade.

Como ensina Gilmar Mendes (2004, pp. 49- 50):

(...) a doutrina constitucional moderna enfatiza que, em se tratando de imposição de restrições a determinados direitos, deve-se indagar não apenas sobre a admissibilidade constitucional da restrição eventualmente fixada (reserva legal), mas também sobre a compatibilidade das restrições estabelecidas com o princípio da proporcionalidade. Essa orientação, que permitiu converter o princípio da reserva legal (gesetzesvorbehalt) no princípio da reserva legal proporcional (Vorbehalt des verhältnismässigen Gesetzes), pressupõe não só a legitimidade dos meios utilizados e dos fins perseguidos pelo legislador, mas também a adequação desses meios para consecução dos objetivos pretendidos (geeignetheit) e a necessidade de sua utilização (Notwendigkeit oder Erforderlichkeit). O subprincípio da adequação (Geeignetheit) exige que as medidas interventivas adotadas mostrem-se aptas a atingir os objetivos pretendidos. O subprincípio da necessidade (Notwendigkeit oder Erforderlichkeit) significa que nenhum meio menos gravoso para o indivíduo revelar-se-ia igualmente eficaz na consecução dos objetivos pretendidos.

Para aqueles que defendem a plena possibilidade de mutabilidade constitucional em virtude da necessidade ditada pelos anseios sociais, verificaremos se há, realmente, necessidade e/ou adequação nas tentativas de se reduzir a idade penal e se tal redução reflete o legítimo interesse público. Analisaremos, portanto, a constitucionalidade das propostas de redução da idade penal no aspecto da legitimidade, tendo sempre em mente o principio da proporcionalidade (necessidade/adequação) [31].

2- Discussão do tema no Congresso Nacional. Argumentações a favor da redução da idade penal.

Nesse ponto, trataremos das principais Propostas de Emenda à Constituição Federal que tramitam no Congresso Nacional com o intuito de alteração no art. 228 da referida Carta Republicana. Externaremos os argumentos propostos pelos que defendem a redução da idade penal para posterior análise de legitimidade de tais proposituras [32].

Proposta de Emenda à Constituição n° 03, de 22 de março de 2001 [33]

Altera o art. 228 da Constituição Federal, reduzindo para dezesseis anos a idade para imputabilidade penal.

As Mesas da Câmara dos Deputados e do Senado Federal, nos termos do § 3º do art. 60 da Constituição Federal, promulgam a seguinte emenda constitucional.

Artigo 1º- O art. 228 da Constituição Federal passa a vigorar com a seguinte redação:

"Art. 228. São penalmente inimputáveisos menores de dezesseis anos, sujeitos às normas da legislação especial.

Parágrafo único. Os menores de dezoito anos e maiores de dezesseis anos são penalmente imputáveis na hipótese de reiteração ou reincidência em ato infracional e quando constatado seu amadurecimento intelectual e emocional, na forma da lei. (NR)"

Justificação:

O menor de dezoito anos e maior de dezesseis anos, embora possa ter a capacidade plena para entender o caráter criminoso do fato ou de determinar-se segundo esse entendimento, é considerado inimputável, pois, devido ao déficit da idade, de acordo com a regra vigente, se presume, de modo absoluto, que não possui o desenvolvimento mental indispensável para suportar a pena.

A idade de dezoito anos é um critério puramente biológico, que marca legalmente o amadurecimento da pessoa.

Embora a presente proposta reduza, no caput do art. 228, a idade de dezoito para dezesseis anos, mantendo o critério temporal, cria outros critérios para se determinar a imputabilidade do menor de dezoito e maior de dezesseis anos, qual seja a reiteração ou reincidência do ato infracional e o amadurecimento intelectual e emocional, a ser definido em lei ordinária.

É certo que haja um limite temporal para a imputabilidade. Mas é preciso atender às diferenças existentes entre as pessoas, a exemplo do Código Civil, que estabelece formas de alteração da capacidade civil abaixo dos vinte e um anos de idade, seja pela emancipação precoce, seja pela perda parcial ou total da capacidade nos casos que enumera.

No Direito Penal deve prevalecer a verdade real, factual. Note-se que a pessoa com mais de dezoito anos pode ser considerada inimputável se não tiver capacidade de entender os reflexos de suas ações, de acordo com o art. 26 do Código Penal. Há, porém, um vazio na lei no que se re fere à pessoa precocemente amadurecida ser responsabilizada por seus atos.

A experiência tem demonstrado que, em muitos casos, o cumprimento de medidas sócio-educativa de internação não tem sido eficaz para a recuperação de adolescentes envolvidos com atos in fracionais de grave ameaça ou violência à pessoa, sendo necessário a adoção de outras medidas que possam inibir a reiteração nesse tipo de delito.

O adolescente, por ser uma pessoa em formação, não tem plena consciência dos atos que pratica, motivo pelo qual não pode sofrer as mesmas penalidades impostas às pessoas adultas, no caso de cometimento de infrações penais. Avalia-se ainda, que ao adolescente infrator, pelo mesmo motivo, deve ser dada a oportunidade do cumprimento de medidas sócio-educativas voltadas para a sua recuperação e sua reinserção no convívio social.

Dessa forma, propomos a diminuição para dezesseis anos de idade o limite para a imputabilidade, determinando, também, critérios de amadurecimento intelectual e emocional, a serem definidos em lei, para os menores de dezoito anos e maiores de dezesseis anos.

Nesse sentido é que estamos reapresentando a nossa proposta, pois não podemos ser condescendentes com a prática reiterada de crimes. A alteração proposta visa coibir a reiteração e a reincidência de crimes, porque acreditamos que a legislação atual cria uma expectativa de impunidade para o menor infrator.

Isto posto, conclamamos os ilustres pares para aprovação desta pro posta, que busca adaptar a Constituição à realidade do nosso País.

Proposta de Emenda à Constituição n° 26, de 22 de maio de 2002 [34]

Altera o art. 228 da Constituição Federal, para reduzir a idade prevista para a imputabilidade penal, nas condições que estabelece.

As Mesas da Câmara dos Deputados e do Senado Federal, nos termos do § 3º do art. 60 da Constituição Federal, promulgam a seguinte Emenda ao texto constitucional:

Art. 1º O art. 228 da Constituição Federal passa a vigorar acrescido do seguinte parágrafo único:

Art. 228. ................................................

Parágrafo único. Os menores de dezoito e maiores de dezesseis anos responderão pela prática de crime hediondo ou contra a vida, na forma da lei, que exigirá laudo técnico, elaborado por junta nomeada pelo Juiz, para atestar se o agente, à época dos fatos, tinha capacidade de entender o caráter ilícito de seu ato;

Art. 2º Esta Emenda entra em vigor na data de sua publicação.

Justificação:

A Constituição Federal de 1988 repete os termos do Código Penal, de 1940, que considera inimputáveis os menores de dezoito anos de idade. Não nos parece necessário, no âmbito desta proposição, alertar os Senhores Congressistas sobre a necessidade de que sejam tomadas medidas mais firmes no combate à criminalidade e delinqüência que grassam em nosso País.

Mas considero essencial, para ressaltar a conveniência e oportunidade do debate que ora propomos, recordar os Membros do Parlamento para o fato de que, nos últimos sessenta anos, ocorreu um processo de inegável amadurecimento dos nossos adolescentes.

No mais das vezes e, sobretudo, nos centros urbanos, um jovem de dezesseis anos, nos dias atuais, detém informações, conhecimento, experiência de vida que lhe permitem discernir sobre a natureza lícita ou ilícita de seu comportamento. Conhece a realidade e tem condições de comportar-se, diante dela, com senso de responsabilidade.

Apesar desse quadro ser para nós evidente, não estamos propondo, simplesmente, a redução da inimputabilidade penal para dezesseis anos, como outros colegas parlamentares o fizeram, em outras oportunidades.

Limitamo-nos a sugerir que, na hipótese do cometimento de crime hediondo ou contra a vida, quando o laudo técnico de uma junta especializada, nomeada pelo Juiz, concluir pela capacidade do agente de perceber, à época dos fatos, a natureza criminosa de seu comportamento, poderá o agente responder ao processo criminal pertinente, em que lhe será possibilitada ampla defesa.

Consideramos a presente proposta a expressão da busca de um entendimento quanto a esse assunto tão polêmico e que, conforme registra a história recente do Congresso brasileiro, costuma dividir opiniões. De um lado, não nos omitimos diante do aumento da criminalidade; de outro, preservamos os jovens de idade entre dezesseis e dezoito anos da imputabilidade penal genérica, buscando assim uma solução negocia da.

Por tais razões, conclamamos os Senhores Congressistas a discutir e, de assim entenderem, aperfeiçoar esta Proposta de Emenda à Constituição, a qual, a nosso ver, expressa a justa preocupação do Parlamento brasileiro com relação ao necessário combate à delinqüência e criminalidade em nosso País.

Proposta de Emenda à Constituição n° 90, de 25 de novembro de 2003 [35].

Inclui parágrafo único no art. 228, da Constituição Federal, para considerar penalmente imputáveis os maiores de treze anos que tenham praticado crimes definidos como hediondos.

As Mesas da Câmara dos Deputados e do Senado Federal, nos termos do § 3º, do art. 60, da Constituição Federal, promulgam a seguinte Emenda ao texto constitucional:

Art. 1º Inclua-se no art. 228, da Constituição Federal, o seguinte parágrafo único.

"Art. 228. ..............................................

Parágrafo único. Os menores de dezoito anos e maiores de treze anos que tenham praticado crimes definidos como hediondos são penalmente imputáveis. (NR)"

Art. 2º Esta Emenda Constitucional entra em vigor na data de sua publicação.

Justificação:

A presente emenda constitucional tem por objetivo reduzir a maioridade penal para treze anos, quando o agente houver praticado qualquer dos crimes definidos pela lei como hediondos.

A noção de crime hediondo foi introduzida pelo legislador constituinte originário que os qualifica como inafiançáveis e insuscetíveis de graça ou anistia. Hediondos, ou horrendos são os crimes que, por seu alto grau de lesividade, causam imensa repulsa à sociedade e que devem, portanto, ser apenados com maior severidade.

São considerados hediondos, pela Lei nº 8.072, de 1990, os seguintes tipos penais:

I – homicídio (art. 121), quando praticado em atividade típica de grupo de extermínio, ainda que cometido por um só agente, e homicídio qualificado (art.121, § 2º, I, II, III, IV e V);

II – latrocínio (art. 157, § 3º, in fine);

III – extorsão qualificada pela morte (art. 158, § 2º);

IV – extorsão mediante seqüestro e na forma qualificada (art. 159, caput, e §§ 1º, 2º e 3º);

V – estupro (art. 213 e sua combinação com o art. 223, caput e parágrafo único);

VI – atentado violento ao pudor (art. 214 e sua combinação com o art. 223, caput e parágrafo único);

VII – epidemia com resultado morte (art. 267, § 1º).

VIII – falsificação, corrupção, adulteração ou alteração de produto destinado a fins terapêuticos ou medicinais (art. 273, caput e § 1º, § 1º-A e § 1º-B, com a redação dada pela Lei nº 9.677, de 2 de julho de 1998).

IX – genocídio (arts. 1º, 2º e 3º da Lei nº 2.889, de 1º de outubro de 1956, tentado ou consumado).

Na esfera penal, poucos temas despertam acalorados debates quanto à questão da redução da maioridade penal. Sobre o assunto, incontáveis monografias, livros e artigos foram escritos, uns defendendo a manutenção da imputabilidade criminal em 18 anos, outros advogando a necessidade da redução dessa idade.

Os que defendem a manutenção da maioridade penal em 18 anos costumam argumentar que, abaixo dessa faixa etária, o jovem não tem consciência plena de seus atos, e que a redução da idade de imputabilidade não representará garantia de que haverá diminuição nos indicadores de violência.

Alinhamo-nos entre aqueles que acreditam que o jovem de 13 anos de idade é perfeitamente capaz de reconhecer a gravidade de certas condutas delituosas, especialmente as mais graves.

Não é factível que no atual estágio da civilização, com as informações disponíveis nos diversos meios de comunicação de massa, uma pessoa de 13 anos não tenha consciência do sofrimento que se abate sobre uma vítima de estupro, ou da dor suportada por uma família cujo pai, mãe ou filho tenha sido assassinado.

Os órgãos de imprensa noticiam, diariamente, uma infinidade de crimes praticados por menores de 18 anos. Recentemente, contudo, chamou a atenção da população, pela premeditação, frieza e crueldade, o assassinato do jovem casal no Município paulista de Embu-Guaçu, que contou com a participação ativa de um menor. Autores de crimes tão graves, como esse, devem ser punidos de modo exemplar, não havendo argumento que dê sustentação à tese de que o menor não sabia o que estava fazendo.

Assim, para que a sociedade brasileira não mais continue a assistir, indefesa e passivamente, aos terríveis crimes praticados por jovens que, de antemão, sabem que não serão alcançados pelos rigores da Lei Penal, contamos com o apoio dos ilustres Membros do Congresso Nacional à presente Proposta de Emenda à Constituição, que reduz a maioridade penal para 13 anos, no caso do cometimento de crimes hediondos.

Proposta de Emenda à Constituição n° 09 de 16 de março de 2004 [36].

Acrescenta parágrafo ao art. 228 da Constituição Federal, para determinar a imputabilidade penal quando o menor apresentar idade psicológica igual ou superior a dezoito anos.

As Mesas da Câmara dos Deputados e do Senado Federal, nos termos do § 3º do art. 60 da Constituição Federal, promulgam a seguinte emenda ao texto constitucional: Artigo único. O art. 228 da Constituição Federal passa a vigorar acrescido do seguinte parágrafo:

"Art. 228. ..............................................

Parágrafo único. Nos casos de crimes hediondos ou lesão corporal de natureza grave, são imputáveis os menores que apresentem idade psicológica igual ou superior a dezoito anos, sendo capazes de entender o caráter ilícito do fato ou de determinar-se de acordo com esse entendimento."

Justificação:

A Sua Excelência Sr. Juiz Rommel Araújo de Oliveira, diante da vasta experiência na 2ª Vara Criminal de Macapá, há seis anos, tem observado que os menores de dezoito anos que participam de ilícitos graves em companhia de pessoas maiores recebem tratamentos diferenciados, por força do Estatuto da Criança e do Adolescente, mas que tal diferenciação fundamentada apenas na faixa etária não deve perdurar. É consabido que, com a evolução dos meios de comunicação, um adolescente com dezesseis ou dezessete anos, por exemplo, tem uma idade psicológica superior à sua idade cronológica, podendo compreender facilmente o caráter ilícito de sua conduta.

A Promotoria da Infância e da Juventude do Distrito Federal traçou o perfil dos jovens infratores, indicando que entre 1997 e 2001, 16.254 adolescentes com idade entre 12 e 17 anos cometeram 31.314 atos infracionais. Esses adolescentes, em sua grande maioria, eram do sexo masculino, tinham idade de 16 e 17 anos, e mostravam-se mais amadurecidos do que as meninas para o cometimento dos atos infracionais graves. Estas tinham a idade de 12 e 13 em percentual mais elevado e praticavam atos menos violentos, a exemplo de lesões corporais e envolvimento com drogas.

Demais disso, é de assinalar que a ação dos jovens criminosos não só aumentou, como tornou-se mais cruel, conforme dados do Distrito Federal – DF. A média mensal de latrocínios cresceu de 1,75 casos em 1998, para 4, nos primeiros noves meses de 2003.

Levantamento do Governo Federal indica que o DF lidera as estatísticas de roubo e furtos no país, e figura em segundo lugar em tentativa de homicídios, cometidos por menores de dezoito anos. Em 2002, a taxa de roubo por 100 mil habitantes foi de 1.107,3 no DF, 811,1 em São Paulo, e 779,1 no Rio de Janeiro.

É preciso que nós, legisladores, atentemos para a gravidade dos fatos cometidos por menores de dezoito anos que são noticiados na mídia e a ineficácia da legislação atual, no que se refere à proteção da sociedade contra esses delinqüentes. Os fatos impelem-nos a rever conceitos concebidos sem consideração do desenvolvimento intelectual dos jovens e as necessidades de aprimoramento da segurança e justiça da sociedade democrática.

Destarte, contamos com o apoio do ilustres pares para aprovação desta proposta de emenda à constituição, que visa imprimir maior rigor no julgamento dos crimes cometidos por menores que apresentem a idade psicológica igual ou superior a dezoito anos e sejam capazes de entender o caráter ilícito de suas condutas, e, conseqüentemente, ofertar maior paz à comunidade.

Das propostas de emenda à Constituição transcritas, além de outras já arquivadas [37], poderíamos extrair os principais argumentos que fundamentam a pretensão de redução da idade penal. Em suma, os principais argumentos daqueles que defendem a rebaixamento são:

a) em virtude dos avanços tecnológicos e culturais que vivenciamos hodiernamente, a idade cronológica dos adolescentes não corresponde à idade mental (os adolescentes maiores de dezesseis anos possuem plena capacidade de entendimento e autodeterminação, diferentemente daqueles de 1940, quando do início da Vigência do Código Penal);

b) O Estatuto da Criança e do Adolescente não alcança seus escopos de prevenir e reprimir a prática de atos infracionais entre os adolescentes;

c) O adolescente infrator é tido como "irresponsável penal", o que fomenta a sensação de impunidade perante a sociedade;

d) É comum a utilização de adolescentes como "instrumentos" para o cometimento de crime, ou seja, maiores de dezoito utilizam-se de menores, porquanto inimputáveis, para cometer crimes (autoria mediata). A redução da idade de inimputabilidade penal diminuirá tal prática;

e) A redução do limite constitucionalmente imposto diminuirá a violência e a criminalidade;

f) O menor de dezoito anos e maior de dezesseis já pode votar, o que denota sua capacidade de discernimento.

Estes seriam, em sucintas linhas, os principais argumentos daqueles que advogam pela redução da idade penal na Constituição Federal. Para uma análise de constitucionalidade sob o aspecto da legitimidade, verificaremos se tais proposições são verossímeis, se são legítimas.

3- Apontamentos específicos acerca da legitimidade das tentativas de redução da idade penal.

3.1- A idade de 18 anos como critério definidor da inimputabilidade penal.

Antes de qualquer apontamento, mister ressaltar que a escolha da idade penal como critério de inimputabilidade é um juízo de política criminal, ou seja, tal escolha não recai sobre critérios eminentemente jurídicos ou ideológicos, e sim por motivos político-filosóficos que permeiam uma determinada sociedade (CORRÊA, 1998, p. 187).

Somos reconhecedores de que, sem dúvida, o legislador penal de 1940 tinha sob sua égide uma realidade completamente distinta da ora vigente e, por óbvio, ao estabelecer a inimputabilidade penal para os menores de dezoito anos, agiu em consonância com as circunstâncias da época. Não é correto, no entanto, o argumento daqueles que afirmam ter sido a inimputabilidade penal do menor de 18 anos fruto de um vetusto juízo, datado ainda da década de 1940 (início da vigência do Código Penal).

Em 1988, a Assembléia Constituinte, em capítulo específico acerca das crianças e dos adolescentes, teve mais uma oportunidade de escolher a idade utilizada como critério definidor da inimputabilidade penal e elevou à categoria de garantia fundamental escolha no art. 228 da Constituição Federal. Portanto, não é correto afirmar que a fixação da idade penal em 18 anos é corolário tão somente do anacrônico Código Penal de 1940, porquanto, como vimos, a Lei Fundamental de 1988, ainda recentíssima quando comparada a outras constituições do mundo, retomou a discussão e preconizou serem inimputáveis aqueles indivíduos.

É claro que a maturidade emocional e psíquica não é uma referência estática diretamente relacionado à idade biológica. Por tal motivo, não podemos excluir a possibilidade de muitos adolescentes de dezessete anos possuírem suficiente desenvolvimento para os fins de imputabilidade penal. Da mesma maneira, não se pode afirmar categoricamente que um jovem de dezenove anos tenha completo desenvolvimento na sua capacidade de autodeterminação. A imputabilidade penal, conforme ressalta Márcia Milhomens Corrêa (1998, p. 188), "é uma presunção legal, que, em nosso ordenamento, é absoluta. Ora, presunção não se confunde com certeza. Em todo caso existe a necessidade do estabelecimento de uma idade limite".

São muitos os países do mundo que adotam a idade de dezoito anos como limite mínimo para imputabilidade penal, por exemplo, a Áustria, Dinamarca, Finlândia, França, Colômbia, México, Peru, Uruguai, Equador, Tailândia, Noruega, Holanda, Cuba, Venezuela, etc. Outros estabelecem como marco a idade de vinte e um anos, como é o caso da Suécia, Chile e Ilhas Salomão, etc (MIRABETE, 2005, p. 216).

Para Newton e Valter Fernandes (2002, p. 436), "o crime varia com a idade e nada é mais natural. É sabido que as paixões são mais violentas, e menos controláveis, na mocidade que na chamada idade madura, e as paixões figuram como motivo determinante". Entretanto, os mesmos autores (2002, p. 440) ponderam que:

(...) o importante é que se registre que o dado idade, apenas sobre o ponto de vista cronológico, tem valor relativo no que se refere à criminalidade e à natureza do crime, pois outras circunstâncias interferem no fenômeno, como acontece com as condições ambientais em que vive o indivíduo, o tipo de vida que leva, as situações familiares, o fator hereditariedade, etc...

Sobre o argumento daqueles que entendem o menor de dezoito anos como total possuidor de discernimento para determinar seus atos, deveras elucidativa é a lição de João Batista da Costa Saraiva [1996]. Ensina o autor que:

Outro ponto da argumentação pelo rebaixamento diz respeito ao discernimento. De que o jovem de hoje, mais informado, amadurece mais cedo. Ninguém discute a maior gama de informações ao alcance dos jovens. A televisão hoje invade todos os lares com suas informações e desinformações,trazendoformaçãoedeformação.Considerandoodesenvolvimento intelectual e o acesso médio à informação, é evidente que qualquer jovem, aos 16, 14 ou 12 anos de idade, é capaz de compreender a natureza ilícita de determinados atos. Aliás, até mesmo crianças pequenas sabem que não se pode matar, que machucar o outro é feio ou que não é permitido tomar para si o objeto do outro. O velho Catecismo Romano já considerava os sete anos como a ''idade da razão'', a partir daquela é possível "cometer um pecado mortal".Esse raciocínio sobre o discernimento, levado às últimas conseqüências, pode chegar à conclusão de que uma criança, independentemente da idade que possua, deva ser submetida ao processo penal e, eventualmente, recolhida a m presídio, desde que seja capaz de distinguir o"bem"do"mal".O que cabe aqui examinar é a modificabilidade do comportamento do adolescente e sua potencialidade para beneficiar-se dos processos pedagógicos, dada sua condição de pessoa em desenvolvimento.
A experiência dos Juizados da Infância e da Juventude no Rio Grande do Sul tem demonstrado que, aplicadas com seriedade as medidas constantes do Estatuto, diversos adolescentes, internados por infrações gravíssimas, como homicídio e latrocínio, têm logrado efetiva recuperação, após um período de internação. Progressivamente, esses jovens têm passado da privação total de liberdade à semi-liberdade assistida. Muitos passam algum tempo prestando serviços à comunidade, numa forma de demonstrar a si próprios e à sociedade que são capazes de atos construtivos e reparadores.

De fato, consoante ressalta Márcia Milhomens Corrêa: (1998, p. 157):

Na fase da adolescência, o indivíduo não consolidou, de modo definitivo, vários valores e sofre de maneira mais acentuada as influências de seu meio de amizades. Diversas vezes, o adolescente pratica um ato infracional impelido pelos apelos do meio no qual está inserido. A par dessa realidade, as Varas da Infância e Juventude estão repletas de adolescentes oriundos de meio social absolutamente inóspito, onde reina a criminalidade. Desprovidos de qualquer orientação ética, carentes de condições dignas de existência, acostumados desde cedo ao uso de bebidas alcoólicas e de substâncias entorpecentes, estes indivíduos em formação são praticamente guiados para o caminho da prática de atos ilícitos.

Nota-se, então, que o fator idade, por si só, não é determinante no aspecto da criminalidade no Brasil, que possui um caráter predominantemente sócio-político. Reputa-se que, em regra, enquanto o adolescente criado em situações economicamente favoráveis desenvolve o intelecto de maneira construtiva, aquele criado em condições menos favoráveis seria fatalmente atraído para a criminalidade [38]. A redução da idade penal somente acentuará tal problema.

3.2- O juízo da Infância e da Juventude X Impunidade.

É comum, em tempos de elevada criminalidade, que discursos emocionados, desprovidos de caráter científico sejam divulgados por certos órgãos de imprensa e por alguns políticos. O rebaixamento da idade penal tem sido a nova "aposta" daqueles que resumem o complexo sistema de atendimento ao menor infrator em um único nome: impunidade. A visão de que os menores infratores são verdadeiros irresponsáveis penais não pode permanecer, mormente em uma sociedade educada, pelo menos em tese, por parâmetros científicos.

Como ressalta Márcia Milhomens Corrêa (1998, p. 157), esse discurso, é:

(..) fruto do absoluto desconhecimento, não apenas da legislação especializada, mas também da práxis das Varas da Infância e da Juventude. Infelizmente, o desconhecimento da realidade jurídico-operacional por parte da população em relação á legislação especializada vem sendo adrede manipulado por uma imprensa alarmista, secundando interesses contrários ao bem estar dos adolescentes e da própria sociedade.

Ademais, alega-se que o sistema preconizado pela legislação específica que rege o processamento dos atos infracionais praticados pelos adolescentes não funciona a contento. Muito pelo contrário, o sistema sócio-educativo estabelecido pelo Estatuto da Criança e do Adolescente tem demonstrado, na prática, resultados consideravelmente melhores que a absoluta ineficácia do sistema penitenciário geral. A propósito, dados de 2004 do Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente (Conanda) estimam em 20 % a reincidência dentro do sistema sócio-educativo e 60 % no penitenciário (FERNANDES, J. C., 2007).

Portanto, é notória a falácia de que a inclusão do menor de dezoito anos no sistema penal geral diminuirá os índices de criminalidade e de reincidência. Pelo contrário, aqueles adolescentes "presos" por um crime contra o patrimônio, praticado sem violência, certamente sairão da penitenciária mais violentos e indesejavelmente "experientes" no aspecto criminal. João Batista da Costa Saraiva [1996], em poucas linhas, refutando a idéia de que o menor infrator submetido à legislação específica dá margem à impunidade, assevera que:

A propósito dessa medida privativa de liberdade - internação na linguagem da lei -, o que a distingue fundamentalmente da pena imposta ao maior de 18 anos é que, enquanto aquela é cumprida no sistema penitenciário que todos sabem o que é, nada mais fazendo além do encarcerar , onde se misturam criminosos de toda a espécie e graus de comprometimento -, aquela há que ser cumprida em um estabelecimento próprio para adolescentes infratores, que se propõe a oferecer educação escolar, profissionalização, dentro de uma proposta de atendimento pedagógico e psicoterápico, adequados à sua condição de pessoas em desenvolvimento. Daí não se cogitar de pena, mas, sim, medida sócio-educativa, que não se pode constituir em um simples recurso eufêmico da legislação.

No III Seminário Latino-Americano sobre Direitos da Criança e do Adolescente, cujo tema principal foi "A questão da Imputabilidade e Inimputabilidade", realizado em 1995, os participantes chegaram as seguintes conclusões encampadas pela UNICEF para o Brasil (CORRÊA, 1998, p. 190):

1- A inimputabilidade não implica irresponsabilidade e impunidade, ficando os adolescentes autores de atos infracionais sujeitos a medidas sócio-educativas, inclusive privação de liberdade;

2- O Estatuto da Criança e do Adolescente é suficientemente severo no que concerne às conseqüências jurídicas decorrentes dos atos infracionais praticados por adolescentes;

3- É necessária a imediata implantação ou implementação dos programas relativos às medidas sócio-educativas previstas no Estatuto da Criança e do Adolescente, que têm se mostrado, nos locais onde foram corretamente instalados, aptos a ser resposta social, justa e adequada, à prática de atos infracionais por adolescentes, com eficiência maior que pura e simples retribuição penal e o conseqüente ingresso do jovem no sistema penitenciário.

4- É mister, no embate à criminalidade infanto-juvenil, que sejam adotadas todas as medidas judiciais e extrajudiciais (políticas e administrativas), governamentais, no sentido da distribuição da justiça social, de modo a universalizar o acesso às políticas sociais públicas.

5- A fixação da imputabilidade a partir dos 18 anos de idade tem por fundamento critério de política legislativa adequado à realidade brasileira, manifestando-se os signatários intransigentes contrários a qualquer tentativa de redução da idade de responsabilidade penal, o que está de acordo com a normativa internacional, sendo imperiosa sua permanência em sede constitucional".

O argumento de que a redução da idade penal também diminuiria a utilização dos menores como instrumentos de crimes também cai por terra. Ainda na lição de João Batista da Costa Saraiva [1996]:

O argumento de que cada vez mais os adultos se servem de adolescentes para a prática de crimes e que por isso se faz necessária a redução da idade de imputabilidade penal se faz curioso. Ora, pretende-se estender ao "mandado" o mesmo sistema que não alcança o "mandante"? Quem, de qualquer modo, concorre para o crime incide nas penas a este cominadas, regra geral do concurso de agentes. Se a questão for de eficácia de sistema; porque o mandante (de regra, "pior" que o executor direto) não é responsabilizado? Aliás, reprimido o mandante, exclui-se a demanda. Na verdade, o argumento dos arautos do rebaixamento faz falacioso. O Estatuto oferece amplos mecanismos de responsabilização destes adolescentes infratores, e, que se tem constatado, em não raras oportunidades, é que, enquanto o co-autor adolescente foi privado de liberdade, julgado e sentenciado, estando em cumprimento de medida, seu parceiro imputável, muitas vezes, sequer teve seu processo em juízo concluído, estando freqüentemente em liberdade.

De fato, não é compreensível a idéia de que a redução da idade penal seria um meio idôneo de evitar a utilização de menores de dezoito anos na atividade criminosa. Se reduzirmos a idade penal para dezesseis anos, em breve surgirão aqueles que defenderão a redução para 14 anos de idade (em virtude do recrutamento para o crime daqueles pertencentes a nova faixa de inimputabilidade). Tais condutas certamente culminariam com uma infindável modificação legislativa que poria em risco a segurança jurídica.

No que toca ao entendimento daqueles que vislumbram a legislação específica aplicada ao menor infrator como "escudo da impunidade", João Batista da Costa Saraiva (2005. p. 77) preconiza que:

Não se pode ignorar que o Estatuto da Criança e do Adolescente instituiu no país um sistema que pode ser definido como de Direito Penal Juvenil. Estabelece um mecanismo de sancionamento, de caráter pedagógico em sua concepção e conteúdo, mas evidentemente retributivo em sua forma, articulado sob o fundamento do garantismo penal e de todos os princípios norteadores do sistema penal enquanto instrumento de cidadania, fundado nos princípios do Direito Penal Mínimo. Quando se afirma tal questão, não se estar a inventar um Direito Penal Juvenil. Este está ínsito ao sistema do Estatuto da Criança e do adolescente, e seu aclaramento decorre de uma efetiva operação hermenêutica, incorporando as conquistas do garantismo penal e a condição de cidadania que se reconhece no adolescente em conflito com a Lei. Esse sistema, quer se goste, quer não se goste, tem um perfil prisional em certo aspecto, pois é inegável que do ponto de vista objetivo, a privação de liberdade decorrente do internamento faz-se tão ou mais aflitiva do que a pena de prisão no sistema penal. Basileu Garcia que o elemento fundante do conceito de pena seria seu caráter de aflitividade. Do ponto de vista das sanções, há medidas sócio-educativas que têm a mesma correspondência das penas alternativas, haja vista a prestação de serviços à comunidade, presta em um outro sistema, com praticamente o mesmo perfil. O que pode ser mais aflitivo a um jovem de 16 anos do que a privação de liberdade, mesmo que em uma instituição que lhe assegure educação e uma série de atividades de caráter educacional e pedagógico, mas da qual não pode sair?

Reputa-se que "o "arsenal" de recursos postos à disposição da sociedade pelo Estatuto da Criança e do Adolescente prescinde da anacrônica proposta de redução da idade de imputabilidade penal para o enfrentamento da questão atinente à criminalidade juvenil. "Para tanto, o que necessitamos é de compromisso com a efetivação plena do Estatuto da Criança e do Adolescente em todos os níveis - sociedade e Estado fazendo valer este que é um instrumento de cidadania e responsabilização de adultos e jovens" (SARAIVA, [1996]).

Julio Fabbrini Mirabete (2005, p. 216), corroborando o entendimento, defende que:

A redução do limite de idade no direito penal comum representaria um retrocesso na política penal e penitenciária brasileira e criaria s promiscuidade dos jovens com delinqüentes contumazes. O Estatuto da Criança e do Adolescente prevê, aliás, instrumentos eficazes para impedir a prática reiterada de atos ilícitos por pessoas com menos de 18 anos, sem inconvenientes mencionados.

O que se faz necessário, enfim, e com urgência, no âmbito do combate à criminalidade juvenil, é a implementação de políticas efetivas do que está preconizado no Estatuto da Criança e do Adolescente, que prevê, se cumprido devidamente, a completa e positiva reinserção do adolescente infrator no meio social em que vivia; ou melhor, se cumprido efetivamente o ECA, o menor de dezoito, em regra, nem sequer cometerá o ato infracional.

3.3- A falência do sistema penal geral.

É corriqueira entre o senso-comum a idéia de que incluir o menor de 18 anos no sistema penitenciário diminuirá os índices de violência e criminalidade. Esta conclusão é conseqüência da falsa premissa de que a exacerbação das penas trará a solução para o sistemático problema da criminalidade. Acerca da falência do sistema penal geral, Evandro Lins e Silva (1991, p. 40), lecionam que:

Prisão é de fato uma monstruosa opção. O cativeiro das cadeias perpetua-se ante a insensibilidade da maioria, como uma forma ancestral de castigo. Para recuperar, para ressocializar, como sonharam nossos antepassados? Positivamente, jamais se viu alguém sair d um cárcere melhor de que quando entrou. E o estigma da prisão? Quem dá trabalho ao indivíduo que cumpriu a pena por crime considerado grave? Os egressos do cárcere estão sujeitos ainda a uma outra terrível condenação: o desemprego. Pior que tudo, são atirados a uma obrigatória marginalização. Legalmente, dentro dos padrões convencionais, não podem viver ou sobreviver. A sociedade que os enclausurou, sob o pretexto hipócrita de reinserí-los depois em seu seio, repudia-os, repele-os, rejeita-os. Deixa, aí sim, de haver alternativa, o ex condenado só tem uma solução: incorporar-se ao crime organizado. Não é demais martelar: a cadeia fabrica delinqüentes, cuja quantidade cresce na medida e na proporção em que for maior o número de presos e condenados. Os fariseus de todos os matizes, não podendo deixar de reconhecer a evidência dos malefícios da prisão, bradam que a pena tem caráter intimidativo e serve como retribuição do mal causado pelo infrator da norma penal. O fator intimidativo pode ser exercido por outras formas de punição, que não a cadeia, e, quanto à retribuição, seria um retorno à pena de castigo, anticientífica, verdadeiro talião patrocinado pelo Estado.

Ainda a propósito do tema, Michel Foucault (2002. p. 222) já ensinava que:

A prisão não pode deixar de fabricar delinqüentes. Fabrica-os pelo tipo de existência que faz os detentos levarem: que fiquem isolados em celas, ou que lhes seja imposto um trabalho inútil, para o qual não encontrarão utilidade, é de qualquer maneira não "pensar no homem em sociedade; é criar uma existência contra a natureza inútil e perigosa"; queremos que a prisão eduque os detentos, mas um sistema de educação que se dirige ao homem pode ter razoavelmente como objetivo agir contra o desejo da natureza? A prisão fabrica também delinqüentes impondo aos detentos limitações violentas; ela se destina a aplicar as leis, e a ensinar o respeito por elas; ora, todo o seu funcionamento se desenrola no sentido do abuso do poder: o sentimento de injustiça que um prisioneiro experimenta é uma das causas que mais podem tornar indomável o seu caráter.

Ainda nesse sentido, o renomado mestre italiano Luigi Ferrajoli (2006, p. 378) assenta que:

A pena privativa de liberdade, que na época moderna tem constituído a alternativa mais importante frente às penas ferozes e o principal veículo de mitigação e de racionalização das penas, já não parece, por sua vez, idônea- enquanto não pertinente ou desnecessária – para satisfazer nenhuma das duas razões que justificam a sanção penal: nem a prevenção dos delitos, dado o caráter criminógeno das prisões destinadas de fato, como nos dias de hoje é unanimemente reconhecido, a funcionar como escolas de delinqüência e de recrutamento da criminalidade organizada; nem a prevenção das vinganças privadas, satisfeita na atual sociedade dos mass media bem mais pela rapidez do processo e pela publicidade das condenações do que pela expiação da prisão.

Continua o autor, asseverando que (2006, pp. 379- 380):

A prisão é, portanto, uma instituição ao mesmo tempo antiliberal, desigual, atípica, extralegal e extrajudicial, ao menos em parte, lesiva para a dignidade das pessoas, penosa e inutilmente aflitiva.

Acerca da falência do hodierno sistema penal latino-americano, reputando-o como discriminatório (funciona apenas para os mais carentes), o professor Argentino Eugênio Raúl Zaffaroni (1991, p. 25) acrescenta que:

Os órgãos do sistema penal exercem seu poder militarizador e verticalizador-disciplinar,quer dizer, seu poder configurador, sobre os setores mais carentes da população e sobre alguns dissidentes (ou "diferentes") mais incômodos ou significativos.(...) Em síntese, e levando-se em conta a programação legal, deve-se concluir que o poder configurador ou positivo do sistema penal (o que cumpre a função de disciplinarismo verticalizante) é exercido à margem da legalidade, de forma arbitrariamente seletiva, porque a própria lei assim o planifica e porque o órgão legislativo deixa fora do discurso jurídico-penal amplíssimos âmbitos de controle social punitivo.

No caso brasileiro, especificamente, é notória a falência do sistema penal, sobretudo daqueles subtipos voltados à restrição de liberdade dos indivíduos (sistema penitenciário) [39]. Se o sistema é notadamente falho quanto à reintegração de pessoas consideradas, pelo menos em tese, de "plena formação sócio-cultural", o que esperar daqueles seres humanos considerados em fase de desenvolvimento?

3.4- O direito de sufrágio como critério definidor de discernimento suficiente à imputabilidade penal.

Não são poucos os que argumentam que o Constituinte de 1988 definiu um critério de discernimento por meio da idade quando, no art. 14, § 1°, inciso II, alínea c, da Constituição Federal, preceituou que aos maiores de 16 anos é facultado o exercício do sufrágio. Tal dispositivo constitucional serviu para que alguns criticar o fato de que o maior de 16 anos seria apto para traçar o destino do país, mas não o seria na hora de cumprir com suas obrigações penais. Tal argumento nem mereceria destaque não fossem seus inúmeros defensores. João Batista da Costa Saraiva [1996], sobre o tema, ensina que:

Dizer-se que se o jovem de 16 anos pode votar e por isso pode ir para a cadeia é uma meia verdade (ou uma inverdade completa). O voto aos 16 anos é facultativo, enquanto a imputabilidade é compulsória. De resto, a maioria esmagadora dos infratores nesta faixa de idade sequer sabem de sua potencial condição de eleitores; falta-lhes consciência e informação. A questão de fixação de idade determinada para o exercício de certos atos da cidadania decorre de uma decisão política e não guarda relações entre si, de forma que a capacidade eleitoral do jovem aos dezesseis anos - FACULTATIVA - se faz mitigada.

Há pelo menos dois pontos divergentes entre a FACULDADE de votar e a IMPUTABILIDADE PENAL. O primeiro ponto é o que toca ao elemento volitivo: enquanto no direito de votar existe uma mera faculdade (que quase sempre não é exercida, o que comprova a imaturidade dos eleitores menores de dezoito anos), na imputabilidade penal há uma imposição legal, compulsória, ou seja, aquele que infringir a norma penal é responsabilizado ainda que não concorde.

O segundo ponto que pode ser destacado concerne à própria essência dos institutos, já que o direito de sufrágio, como o próprio nome nos indica, é um direito subjetivo, desde que manifestada a vontade do menor de exercitá-lo; já a imputabilidade penal é um ônus suportado pelo indivíduo que infringir determinada norma penal.

Um outro ponto que deve ser destacado é que não há sistematização constitucional no que concerne a idade como critério definidor de uma maioridade absoluta, portanto, não há que se falar em padrão de discernimento fixado em idade "x" ou "y". Por exemplo, consoante a Carta Republicana de 1988, um adolescente pode trabalhar a partir de 14 anos, na condição de aprendiz (art. 7°, XXXIII); já no plano eleitoral, a Lei Fundamental estabelece a idade mínima de 18 anos para concorrer ao cargo de vereador (art. 14, §3°, VI, d); no âmbito de defesa da pátria, impõe-se o serviço militar obrigatório aos homens maiores de 18 anos (art. 143).

Ademais, devemos considerar que tanto o direito de voto como o direito a inimputabilidade foram estabelecidos pela mesma Carta. Márcia Milhomens Corrêa (1998, p. 200) reforça que:

Tal constatação, por si só, indica a compatibilidade entre ambos os direitos. Se é verdade que um dos cânones da hermenêutica constitucional é a unidade de sentido da Constituição, então tanto a faculdade de voto quanto a inimputabilidade penal, nos padrões estabelecidos, devem ser tomados como preceitos integrados num sistema unitário de regras e princípios e compreendidos harmonicamente.

Basta aceitarmos, para por fim à celeuma, que a escolha da idade como critério de inimputabilidade é de caráter político-criminal, e que é de boa praxe a fixação da idade penal em 18 anos (TOLEDO, 1991, p. 320).

3.5- Redução da idade penal como forma de punir a própria vítima

A vida das crianças e dos jovens sofre a poderosa influência da sociedade, sobretudo se esta estiver atormentada por um consumismo convalescente, por uma distribuição de riquezas injusta e perversa. O bem-estar, imprescindível a todos, exibe uma imensurável distancia entre a classe rica e a classe pobre. Esse "distanciamento é diametralmente antípoda, pois de um lado se depara com o pauperismo paroxisticamente exacerbado, com total miserabilidade, e, de outro, com o enriquecimento esbanjador, sub-reptício ou escancarado, muitas vezes conseguido desonestamente e às custas dos menos afortunados" (FERNANDES; FERNANDES, 2002, p. 486). De um lado vemos a miséria extrema, do outro encontramos a riqueza esbanjadora; entre os extremos há uma criança ou adolescente, nascido e criado em ambiente hostil, lutando pela sobrevivência.

É bastante salutar invocar o que Léon Michaux (apud FERNANDES; FERNANDES, 2002, p. 440), em seu livro "A Criança Delinqüente", questiona acerca do tema:

Que esperar de crianças que vivem em favelas infectas, em promiscuidade com elementos de toda ordem, vendo as cenas mais deprimentes, os gestos mais acanalhados, os procedimentos mais ignominiosos? Que esperar de crianças que em pleno período de formação dormem ao relento, sentindo frio, debaixo de pontes, à porta de casas comerciais, lado a lado com toda espécie de marginais adultos? Que esperar de crianças que prematuramente conhecem os horrores da fome e que se alimentam de migalhas jogadas fora ou da caridade pública? Quando uma criança dessas chega a lançar mão do que é alheio, podemos, temos o direito de chamá-las de delinqüentes?

Consoante já exposto, a pobreza é um fator social extremamente relevante para a acentuada criminalidade no Brasil, principalmente entre os jovens. Newton e Valter Fernandes (2002, p. 389), sobre a pobreza como fator social da criminalidade aduzem que:

De enfatizar, por ser a expressão da verdade, que os assaltantes, em sua quase totalidade, são indivíduos rudes, semi-analfabetos e pobres, quando não miseráveis. Sem formação moral adequada, eles são parias da sociedade, nutrindo indisfarçável raiva e aversão, quando não ódio, por todos aqueles que possuem bens de certo modo ostensivos, especialmente automóveis de luxo e mansões, símbolos inquestionáveis de um status econômico superior. Esse sentimento de revolta por viver na pobreza não deixa de ser um dos fatores que induz o indivíduo ao crime (contra o patrimônio, especialmente), adquirindo, não raro, um sentido de violência delinqüencial muito grande. De fato, assaltantes adultos ou jovens, agindo isoladamente ou em quadrilhas, não se apiedam de suas vítimas, matando-as, às vezes, pelo simples esboço de um gesto qualquer de pavor ou de instintiva e desarmada defesa.

Completam os autores, afirmando que o ódio ou aversão daqueles que vivem na pobreza contra os possuidores de bens "age como verdadeiro fermento, fazendo crescer o bolo da insatisfação, do inconformismo e da revolta das classes mais pobres da sociedade, que se tiverem a temperar o bolo algum hipertensor da violência e agressividade humanas, infalivelmente as levarão ao cometimento de alentado número de atos anti-sociais" (FERNANDES; FERNANDES, 2002, p. 389).

Pode-se reputar que, especialmente em países subdesenvolvidos, como é o caso do Brasil, "entre os fatores que influem na criminalidade o mais importante, o predominante, é o econômico sem sombra de dúvida" (FERNANDES; FERNANDES, 2002, p. 388). Voltando ao aspecto específico das crianças e dos adolescentes que crescem em meio inadequado à boa formação social, não é possível fechar os olhos à crescente violência na qual esses pequenos indivíduos estão envolvidos. Na verdade, não se pode negar a participação de adolescentes e mesmo crianças em assaltos, latrocínios e diversas outras infrações violentas, até mesmo de natureza sexual, além daquelas relativas ao uso e tráfico de drogas. Por outro lado, também é sabido que o "fenômeno da anti-socialidade do menor, sob o ponto de vista psicossosiológico, resulta de desajustamentos projetados em condutas desviantes, desajustamentos inerentes à desorganização pessoal, familiar e comunitária que grassam notadamente nos países subdesenvolvidos" (FERNANDES; FERNANDES, 2002, p. 487).

Um dos males que hodiernamente aflige nosso país certamente é a criminalidade, sempre em escala crescente; a delinqüência é cada vez mais precoce, consoante se observa nos noticiários cotidianos, dando conta de ações e crimes praticados ou com participação de menores, cuja perversão causa assombro e pena. Aliás, parece fácil para aqueles nascidos em boa família, com educação adequada e excelente logística comunitária, apontar negativamente para as crianças e adolescentes infratores que, em sua grande maioria, nasceu em ambiente completamente diverso daqueles que os criticam. "Quantos delinqüentes adultos não chegariam a essa situação, se tivessem tido oportunidade de ser membros úteis da sociedade, se tivessem alguém que impedisse que a semente do mal medrasse ao redor do caminho por onde iriam passar?" (FERNANDES; FERNANDES, 2002, p. 501). A resposta a essa pergunta parece apontar o verdadeiro culpado (se é que podemos chamar assim) da alta criminalidade entre as crianças e os adolescentes; estes, na verdade, são vítimas do descaso e abandono; são frutos daquilo que a própria sociedade semeou.

A propósito, Newton e Valter Fernandes (2002, p. 502) ainda acrescentam que:

Abandonar as crianças aos seus instintos, às induções perniciosas do mau exemplo, deixá-las sozinhas para resistir à influência do meio e da rua, deixá-las isoladas para enfrentar os germes mórbidos que já levam em si, fruto de taras hereditárias é, sem sombra de dúvida, ajudar a destruir a sociedade, é um anarquismo passivo muito mais cruel e aterrorizante, que o daqueles que sonham com sangrentas conquistas pretendendo explodir bombas de hidrogênio para a obtenção de novas terras, extraviados e insensatos, que desconhecem a verdadeira finalidade do homem na vida que é distribuir amor e com isso ajudar a união de todos os povos. Enquanto o Estado e a sociedade permanecerem inertes e eqüidistantes da problemática infantil, como que perfunctotiamente se alinhou, toda paz social, não passará de uma quimera e os humildes e os deserdados terão sempre um motivo para justificar sua insatisfação, sua infelicidade, quando não os seus próprios rancores. Para encerrar, justo proclamar que quando nos preocuparmos com essas esquecidas criaturas; quando lembrarmos dos abandonados, que se asfixiam em um ambiente de incompreensão, de miséria e de imoralidade; quando nenhuma criança mais dormir na rua, quase sempre sem haver se alimentado; quando o descaso e a incúria estatal e social enxergarem bem suas alminhas brancas, antes que elas se encham de negritude do mal e quando os poderosos laborarem para que nelas não possa brotar o ódio, estaremos dando o passo inicial para a diminuição da delinqüência infantil. Assim, e só assim, é que poderemos construir a grandeza da pátria, erigindo a tão sonhada paz social, já que um povo só é verdadeiramente grande quando mais culto, e sua civilização resplandece fulgurante, quando triunfa o direito dos menos favorecidos, dos mais humildes, dos carentes.

Então, como pretendemos enclausurar o que criamos? Seria legítimo, proporcional, encarcerar a pobreza como uma forma de institucionalização das discriminações sociais? É óbvio que a sociedade não pode alegar a própria torpeza para defesa de certos direitos que protege (princípio do nemo propriam turpitudinem allegans).

O controle da legitimidade, no âmago da proporcionalidade, como vimos, é uma forma de controle material da constitucionalidade e de tal não podemos nos afastar, sob pena de ferirmos a integridade da Constituição Federal. Portanto, se não é legítimo, se não é proporcional incluir os menores de dezoito anos no sistema penal geral, seria constitucional tal inclusão?


Conclusões

1.A evolução histórica da maioridade penal, bem como do Direito da Criança e do Adolescente como um todo, permite claramente a inferência de que, hodiernamente, em nosso ordenamento jurídico, seguido como regra no âmbito internacional, vigora o princípio da proteção integral, que preconiza, entre outras diretrizes, efetiva prioridade e total respeito à dignidade das crianças e dos adolescentes.

2.A plena adoção do princípio da proteção integral possui como corolário necessário o entendimento de que as crianças e os adolescentes, antes tidos como objetos de direito, são, no atual contexto jurídico, sujeitos de direito. De tal conclusão, emerge uma conseqüência de indiscutível importância: a criança e o adolescente são sujeitos de direitos fundamentais e merecem proteção contra violações de tais direitos;

3. Verificamos que a Constituição Federal de 1988 não foi precisa ao tratar do tema "direitos e garantias fundamentais", ora utilizando o termo "direitos e garantias individuais" (visto, por exemplo, no art. 60, § 4°, inc. IV), ora empregando a terminologia "direitos e garantias individuais" ( verificado, por exemplo, na epígrafe do Título II, e art. 5°, § 1°)".

4. A doutrina constitucionalista majoritária concorda que, não obstante a imprecisão terminológica adotada pela Lei Máxima de 1988, as normas que tratam dos direitos e garantias fundamentais estão espraiadas por toda a Carta Magna, como corolário necessário de sua principiologia e regime. Com relação, especificamente, à criança e ao adolescente, temos capítulo próprio na Lei Fundamental que trata de direitos e garantias desses indivíduos.

5.Vimos, ademais, ao estudarmos a estrutura dos direitos e garantias fundamentais, que neles existe um núcleo intangível que deve ser mantido caso se pretenda dar unidade e segurança à Constituição. Esses núcleos, basicamente, constituem-se em princípios constitucionais. A norma pode ser alterada, mas os princípios norteadores imiscuídos nela não podem ser suprimidos. Na garantia imposta pelo art. 228 da Constituição Federal de 1988, protegem-se, por exemplo, princípios como o da proteção integral, princípio da isonomia, princípio da proporcionalidade, entre outros. Importa saber que a supressão ou a alteração tendente a abolição desses princípios constitui-se em verdadeira violência à ordem constitucional.

6. Ao estudarmos o sistema de garantias constitucionais, verificamos que elas geralmente são compostas por um verbo seguido de uma inviolabilidade. O artigo 228 da Constituição Federal segue a referida fórmula ao propor: "São" (verbo) "inimputáveis" (inviolabilidade) "os menores de dezoito anos (...)". Portanto, não resta dúvidas de que a Carta Máxima trouxe uma garantia expressa de inimputabilidade penal ao menor de dezoito anos, garantindo-lhes uma posição jurídica subjetiva: de inimputáveis, pois, perante o sistema penal geral.

7. Constatamos que o princípio da não-tipicidade ou de cláusula materialmente aberta dos direitos e garantias fundamentais preconiza que as normas assecuratórias de eficácia e proteção de tais direitos e garantias não estão previstas exaustivamente no rol do art. 5º da Constituição Federal. Portanto, a referida relação de direitos e garantias positivadas não possui caráter taxativo (numerus clausus) e não exclui outras normas decorrentes dos princípios e regime adotados pela Carta Magna. Um exemplo bem claro de tal "abertura interpretativa" é verificado na garantia constitucional prevista no art. 228 da Lei Fundamental.

8.Ressaltamos, outrossim, a necessidade de reformas periódicas à Constituição Federal, até por questões de acompanhamento histórico-evolutivo da sociedade, todavia, a fim de que seja mantida a ordem jurídico-constitucional, devem ser respeitados certos limites de tal reforma. Vimos, portanto, que a modificação de alguns núcleos essenciais não significariam uma reforma propriamente dita, mas sim a edição de uma nova Constituição. É imprescindível a manutenção de núcleos essenciais para a garantia da unidade constitucional e para que sejam evitados vilipêndios de ordem cada vez maiores. Se fossem autorizadas modificações ilimitadas, a Constituição perderia completamente a sua eficácia e se transformaria em "letra morta".

9.O constituinte originário de 1988, preocupado com a manutenção da ordem constitucional, explicitou certos limites ao poder de reforma. Para o caso em destaque, no art. 60, § 4, inciso IV, preconizou que não serão objeto de deliberação propostas de emenda à constituição tendentes a abolir direitos e garantias individuais (fundamentais). Vimos que o direito à liberdade é de conotação fundamental, portanto, erigido à categoria de norma intangível. A garantia contra a restrição da liberdade do menor de dezoito anos, ressalvada a aplicação da legislação especial, foi esculpida no art. 228 da Constituição Federal.

10.O princípio da isonomia possui semântica muito mais ampla do que alguns pretendem imaginar. Na verdade, consoante constatado em linhas anteriores, o princípio possui um acentuado caráter axiológico, qual seja: o ideal de justiça, de eqüidade. A tentativa de incluir os menores de dezoito anos no sistema penal geral desconsidera a diferença notória entre pessoas que se encontram em situações desiguais; de um lado encontram-se aqueles que estão em fase de desenvolvimento sócio-cultural (crianças e adolescentes), de outro, aqueles que, em regra, são dotados de pleno desenvolvimento. É claro que exceções existem, como de adolescentes de 17 anos com pleno desenvolvimento cultural, mas exceção, como o próprio nome pressupõe, não pode servir de fundamento para ser erigida à categoria de regra.

11.Podemos reputar, portanto, sem sombras de dúvidas, que o artigo 228 constituiu garantia individual (fundamental) à criança e ao adolescente. Em conseqüência disso, as propostas de emenda à Constituição que tramitam no Congresso Nacional deveriam ser incontinenti sustadas, posto que, consoante preceito do art. 60, § 4º, inciso IV, nem sequer deveriam ser motivo de deliberação.

12.Quanto à legitimidade e proporcionalidade dos argumentos pela redução da idade penal, vimos que são totalmente inverossímeis. A escolha da idade de dezoito anos para imputabilidade penal segue tendência mundial majoritária, principalmente nos países tidos como desenvolvidos. Portanto, se em países tidos como de "1º mundo", em que os adolescentes são teoricamente mais cultos, mais desenvolvidos sócio-culturalmente, fixa-se a idade penal em dezoito anos, por que em um país como o Brasil, poço de aculturação social, no qual a maioria da população não possui efetiva educação, pretende-se diminuir a idade penal para dezesseis anos (ou menos)?

13.Reduzir a idade penal não diminuirá os índices de violência juvenil, pelo contrário, trará uma conseqüência devastadora para a sociedade, tão logo as crianças e adolescentes incluídos no falido sistema penitenciário (verdadeiras escolas do crime), voltem ao convívio social, dessa vez, muito mais violentos e algozes. Aqueles que preconizam a diminuição da idade penal não consideram, ou por ignorância simplesmente desconhecem, que a legislação especial aplicável aos menores, quando efetivamente posta em prática, mostra-se deveras eficaz no aspecto da reinserção dos infratores na sociedade. A idéia de que o Estatuto da Criança e do Adolescente é um escudo da impunidade é fruto do desconhecimento e do descaso.

14.Em verdade, a redução da idade penal será uma forma de punir a própria vítima, pois, restou-se demonstrado que a delinqüência juvenil no Brasil é corolário da crítica situação social em que vivem nossas crianças e adolescentes. Totalmente abandonados pelo Estado e pela sociedade, ficam jogados à própria sorte, sem educação, sem estrutura familiar, sem moradia e sem afeto. São recebidos pela criminalidade como única forma de "ascensão" social e, depois de parcialmente corrompidos, a mesma sociedade que o inseriu nesse sombrio caminho, pretende corrompê-lo ainda mais, inserindo-o no falido e criminógeno sistema penitenciário.

15.De tudo o que foi exposto, reputa-se que as tentativas de redução da idade penal são inconstitucionais não somente por violar garantias fundamentais das crianças e dos adolescentes, mas por não considerarem a legitimidade e proporcionalidade de tais propostas reducionistas.


Referências Bibliográficas

HENRIQUES, Antônio; MEDEIROS, João Bosco. Monografia no Curso de Direito: Trabalho de Conclusão de Curso. 4. ed. São Paulo: Atlas, 2004.

LAKATOS, Eva Maria; MARCONI, Marina de Andrade. Metodologia do Trabalho Científico. 4. ed. São Paulo: Atlas, 1992.

LEITE, Eduardo de Oliveira. A monografia Jurídica. 6. ed. Curitiba: Revista dos Tribunais, 2004).

SEVERINO, Antônio Joaquim. Metodologia do Trabalho Científico. 21. ed. São Paulo: Cortez, 2000.

2. Referencial Teórico Específico:

ARAUJO, Luiz Alberto Davi, JÚNIOR, Serrano Nunes. Curso de Direito Constitucional. 6 ed. São Paulo: Saraiva, 2004.

ALEXANDRE, Ricardo. Direito Tributário Esquematizado. São Paulo: Editora Método, 2007.

BASTOS, Celso Ribeiro. Curso de direito constitucional. 16. ed. São Paulo: Saraiva, 1995.

BASTOS, Celso Ribeiro, MARTINS, Ives Gandra. Comentários à Constituição do Brasil, vol.1. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2000.

______. Comentários à Constituição do Brasil, vol.II. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2000.

______. Comentários à Constituição do Brasil, vol.VIII. 2 ed. São Paulo: Saraiva, 2000.

BELOFF, Mary. Modelo de la Proteción Integral de los derechos Del nino y de la situación irregular: um modelo para desarmar. In Justícia e Derechos Del Nino. Santiago de Chile: UNICEF, 1999.

BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional. 7. ed. São Paulo: Malheiros Editores, 1997.

BULOS, Uadi Lammêgo Bulos. Constituição Federal Anotada. 6. ed. São Paulo: Saraiva, 2005.

CANCINO, Antônio José. El Derecho Penal Español de fin de siglo y el Derecho Penal Latino Americano. Santa Fé de Bogotá, Colômbia: Ediciones Jurídicas Gustavo Ibáñez Ltda., 1999.

CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito Constitucional. 6. ed. Coimbra: Livraria Almeidina, 1993.

CANOTILHO, J.J. Gomes, MOREIRA, Vital. Fundamentos da Constituição. Coimbra: Coimbra Editora, 1991.

CORRÊA, Márcia Milhomens Sirotheau. Caráter Fundamental da Inimputabilidade na Constituição. Porto Alegre: Sérgio Antônio Fabris Editor, 1998.

COSTA, Antônio Carlos Gomes da. De menor à cidadão: Notas para uma história do Novo Direito da Infância e da Juventude no Brasil. Brasília: CBIA- Ministério da Ação Social, 1991.

CUSTÓDIO, Antônio Joaquim Ferreira. Constituição Federal Interpretada pelo STF. 8. ed. São Paulo: Editora Juarez de Oliveira, 2004.

DAMÁSIO, Antônio. O erro de Descartes. São Paulo: Companhia das letras, 1996.

DINIZ, Maria Helena. Curso de Direito Civil Brasileiro, v.7: responsabilidade civil. 16. ed. São Paulo: Saraiva, 2002.

EVANDRO LINS E SILVA, De Beccaria a Filippo Gramatica, in Sistema Penal para o Terceiro Milênio. Rio de Janeiro: Revan, 1991.

FERNANDES, José Carlos. Faltam números sobre reincidência de adolescentes em conflito com a lei. Gazeta do Povo, Curitiba, 12 nov. 2007. Disponível em: <http://sociologia.seed.pr.gov.br/modules/noticias/article.php?storyid=57>. Acesso em : 15 jul. 2008.

FERNANDES, Newton. A falência do Sistema Prisional Brasileiro. São Paulo: RG Editores Associados, 2000.

FERNANDES, Newton; FERNANDES, Valter. Criminologia Integrada. 2. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002.

FERRAJOLI, Luigi. Direito e Razão: Teoria do Garantismo Penal. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2006.

FOUCAULT, Michel. Vigiar e Punir. 26. ed. Petrópolis: Editora Vozes, 2002. Tradução de Raquel Ramalhete.

JÚNIOR, José Cretella. Comentários à Constituição de 1988, vol.I. 3. ed., Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1998.

______. Comentários à Constituição de 1988, vol.II. 3. ed., Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1998.

KOERNER JUNIOR, Rolf et alli. Adolescentes privados de liberdade: A normativa Nacional e Internacional & Reflexões acerca da responsabilidade penal. 2. ed. São Paulo: Cortez, 1998.

LENZA, Pedro. Direito Constitucional Esquematizado. 10. ed. São Paulo: Método, 2006.

LINHARES, Paulo Afonso Linhares. Direitos Fundamentais e Qualidade de Vida. São Paulo: Iglu, 2002.

MARCÍLIO, Maria Luíza. História Social da Criança Abandonada. São Paulo: Hucitec, 1998, p. 97.

MIRANDA, Jorge. Manual de Direito Constitucional, tomo II. 4 ed. Lisboa: Coimbra Editora, 2000.

______. Manual de Direito Constitucional, tomo IV. 2 ed,. Lisboa: Coimbra Editora, 1998.

MORAES, Alexandre de. Constituição do Brasil interpretada.São Paulo: Atlas; 2005.

______. Direito Constitucional. 17 ed. São Paulo: Atlas, 2005.

MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Conteúdo jurídico do princípio da igualdade. 3. ed. São Paulo: Malheiros, 1995.

MENDES, Gilmar Ferreira. Direitos Fundamentais e Controle de Constitucionalidade. 3 ed. São Paulo: Saraiva, 2004.

MENDEZ, Emílio Garcia. Infância e Cidadania na América Latina. São Paulo: Hucitec, 1998.

MIRABETE, Julio Fabbrini. Manual de Direito Penal, parte geral. 22. ed. São Paulo: Atlas, 2005.

NOVELINO, Marcelo. Direito Constitucional. 2. ed. São Paulo: Método, 2008.

NUCCI, Guilherme de Souza. Código Penal comentado. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2000.

PASQUALINI, Alexandre. Hermenêutica e Sistema Jurídico: uma introdução à Interpretação sistemática do Direito. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2000.

SARAIVA, João Batista da Costa. A idade e as razões do não rebaixamento da imputabilidade penal. Porto Alegre: [1996]. Disponível em: http://www.mj.gov.br/sedh/ct/conanda/razoes.doc. Acesso em: 15 jul. 2008.

______. Desconstruindo o Mito da Impunidade: Um Ensaio de Direito Penal Juvenil. Brasília: do autor, 2002.

______. Direito Penal Juvenil. Adolescente e Ato Infracional: Garantias Processuais e Medidas Sócio-educativas. 2. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2003.

______. Adolescente em Conflito com a lei: da indiferença à proteção integral. 2. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2005.

SARLET, Ingo Wolfgang Sarlet. A Eficácia dos Direitos Fundamentais. 5. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2005.

SILVA, Gustavo Just da Costa e. Os limites da Reforma Constitucional. Rio de Janeiro: Renovar, 2000.

SILVA, José Afonso da. Aplicabilidade das Normas Constitucionais. 4. ed. São Paulo: Malheiros Editores, 2000.

______. Curso de Direito Constitucional Positivo. 24. ed. São Paulo: Malheiros Editores, 2005.

TOLEDO, Francisco de Assis. Princípios Básicos de Direito Penal. 4. ed. São Paulo: Saraiva. 1991.

ZAFFARONI, Eugenio Raul. Em busca das penas perdidas: a perda da legitimidade do sistema penal. Rio de Janeiro: Revan, 1991.


Notas

  1. Art. 10. Também não serão julgados criminosos: § 1º Os menores de quatorze anos.
  2. Sobre a impossibilidade de o juiz separar completamente a emoção da razão quando profere a sentença, vide a majestosa obra de DAMÁSIO, Antônio. O erro de Descartes.São Paulo: Companhia das letras, 1996.
  3. Em 1969, pelo Decreto-Lei 1.004, de 21.10.1969, foi proposto um Novo Código Penal brasileiro. Este diploma legal, publicado no Diário Oficial da União e que chegou a ser retificado em 1973, de prorrogação de vacattio legis a prorrogação de vacatio legis, foi revogado sem jamais haver vigorado. Esta lei incorporava o sistema biopsicológico, eis que o menor entre dezesseis e dezoito anos responderia criminalmente pelo fato praticado se apresentasse suficiente desenvolvimento psíquico para entender o caráter ilícito do fato e determinar-se de acordo com este entendimento. Neste caso, a pena seria diminuída de um terço até a metade, conforme preceituava a exposição de motivos do citado Código vacante.
  4. Art. 227. É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança e ao adolescente, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão.
  5. Saraiva, João Batista Costa. Direito Penal Juvenil. Adolescente e Ato Infracional: Garantias Processuais e Medidas Sócio-educativas. 2ªed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2002, p. 15.
  6. Saraiva, João Batista Costa. Adolescente em Conflito com a Lei: da indiferença à proteção integral. Porto Alegre: livraria do advogado, 2005, p. 57.
  7. Bobbio, Norberto. Prefácio a Direito e Razão: Teoria do Garantismo Penal, de Luigi Ferraioli. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2006.
  8. Art. 227. É dever da família, da sociedade do Estado assegurar à criança e ao adolescente, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão.
  9. §1°- O Estado promoverá programas de assistência integral à saúde da criança e do adolescente, admitida a participação de entidades não governamentais e obedecendo os seguintes preceitos:

    aplicação de percentual dos recursos públicos destinados à saúde na assistência materno-infantil;

    criação de programas de prevenção e atendimento especializado para os portadores de deficiência física, sensorial ou mental, bem como de reintegração social do adolescente portador de deficiência, mediante o treinamento para o trabalho e a convivência, e a facilitação do acesso aos bens e serviços coletivos, com a eliminação de preconceitos e obstáculos arquitetônicos.

    §2°- A lei disporá sobre normas de construção de logradouros e dos edifícios de uso público e de fabricação de veículos de transporte coletivo, a fim de garantir acesso adequado às pessoas portadoras de deficiência.

    §3°- O direito a proteção especial abrangerá os seguintes aspectos:

    idade mínima de quatorze anos para admissão ao trabalho, observado o disposto no art. 7°, XXXIII;

    garantia de direitos previdenciários e trabalhistas;

    III - garantia de acesso do trabalhador adolescente à escola;

    IV - garantia de pleno e formal conhecimento da atribuição de ato infracional, igualdade na relação processual e defesa técnica por profissional habilitado, segundo dispuser a legislação tutelar específica;

    V - obediência aos princípios de brevidade, excepcionalidade e respeito à condição peculiar de pessoa em desenvolvimento, quando da aplicação de qualquer medida privativa da liberdade;

    VI - estímulo do Poder Público, através de assistência jurídica, incentivos fiscais e subsídios, nos termos da lei, ao acolhimento, sob a forma de guarda, de criança ou adolescente órfão ou abandonado;

    VII - programas de prevenção e atendimento especializado à criança e ao adolescente dependente de entorpecentes e drogas afins.

    § 4º - A lei punirá severamente o abuso, a violência e a exploração sexual da criança e do adolescente.

    § 5º - A adoção será assistida pelo Poder Público, na forma da lei, que estabelecerá casos e condições de sua efetivação por parte de estrangeiros.

    § 6º - Os filhos, havidos ou não da relação do casamento, ou por adoção, terão os mesmos direitos e qualificações, proibidas quaisquer designações discriminatórias relativas à filiação.

    § 7º - No atendimento dos direitos da criança e do adolescente levar-se- á em consideração o disposto no art. 204.

    Art. 228- São penalmente inimputáveis os menores de dezoito anos, sujeitos às normas da legislação especial. (grifos nossos).

  10. Para ler mais sobre "ponderação de princípios " vide NOVELINO, Marcelo. Direito Constitucional. 2 ed., São Paulo: Ed. Método, 2008, p. 245.
  11. Neste sentido, por exemplo, Ingo Sarlet,(2005, p. 91), apenas para citar alguns dos mais eminentes tratadistas que cuidaram do tema desde a Constituição de 1891, menciona: J. Barbalho, Constituição Federal Brasileira, vol.VI, p.263 e ss., C. Maximiliano, Comentários à Constituição Federal Brasileira,p. 775 e ss.; A. P. Falcão, Constituição Anotada, vol.II, p. 253 e ss.; Pontes de Miranda, Comentários à Constituição de 1967 (com a Emenda n° 1, de 1969), vol. V, p. 658 e ss; M.G. Ferreira Filho, Comentários à Constituição Brasileira, vol. III, p. 136 e ss.
  12. O art. 16°, 1, da Constituição Portuguesa reza que "os direitos fundamentais consagrados na Constituição não excluem quaisquer outros constantes das leis e das regras aplicáveis de direito internacional" (grifo nosso). Muitas outras constituições contém preceitos que admitem expressamente a abertura do catálogo de direitos fundamentais para inclusão de novos direitos, como, por exemplo, a Constituição Venezuelana (art.50), a Constituição Peruana (art. 4°), a Constituição da Guiné-Bissau (art. 28), a Constituição Colombiana (art. 94) e a Constituição Cabo-verdiana (art.16, n°1)..
  13. Para ler mais sobre a natureza do princípio da dignidade da pessoa humana: acepções, conceituação, entre outras faces, vide SARLET, Ingo Wolfgang. A Eficácia dos Direitos Fundamentais. 5ª ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2005, pp. 103 e ss.
  14. Somente para citar exemplos de importantes autores que enfatizam tal distinção, mencionamos: SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. 24ª edição. São Paulo: Malheiros Editores, 2005, p. 186; MORAES, Alexandre de. Constituição do Brasil interpretada.São Paulo: Atlas; 2002, p. 171 e BULOS, Uadi Lammêgo Bulos. Constituição Federal Anotada. 6 ed. São Paulo: Saraiva, 2005, pp. 108 e 109.
  15. Em seu artigo V, a carta política americana propõe uma alternativa entre dois procedimentos. Pelo primeiro, as emendas devem ser aprovadas por ¾ das legislaturas dos Estados, mediante provocação de 2/3 de cada Casa do Congresso: como todos os Estados americanos, com exceção do Nebrasca, têm poder Legislativo bicameral, isso significa que as emendas devem ser aprovadas por pelo menos 75 dos parlamentares. O outro procedimento, poucas vezes tentado, exige a iniciativa de 2/3 das legislaturas estaduais, seguida da convocação, pelo Congresso, de Convenções destinadas a tal fim em cada um dos Estados, devendo a proposta ser aprovada por ¾ das convenções.
  16. No terceiro capítulo deste ensaio, serão propostas questões de criminologia que discutem acerca da legitimidade, do ponto de vista sócio-político, da tentativa de redução da idade penal. Tal discussão terá o escopo de averiguar se é legítimo o argumento daqueles que militam pela redução da idade penal, sob fundamento de que a Constituição deve atender aos anseios sociais. Veremos, portanto, se é adequada a redução, sob aspectos de política criminal, para fins de análise de legitimidade Constitucional.
  17. Importante que se abra um parêntese para, em poucas linhas, estabelecer a diferença entre Revisão e Reforma à Constituição. Embora alguns as vejam como sendo sinônimas, didaticamente podemos dizer que a reforma (art. 60, CF) é a via ordinária e permanente de modificação da Constituição. A revisão, uma via extraordinária e transitória. A atuação do poder derivado revisor está disciplinada no art. 3º do ADCT. Marcelo Novelino, autor constitucionalista, explica que "as diferenças entre suas limitações são basicamente duas: enquanto o poder de reforma não possui limitação temporal, a revisão só poderia ser realizada após cinco anos, contados da promulgação da Constituição de 1988. Por outro lado, o processo de votação e aprovação (limitação processual) é distinto, pois enquanto a proposta de emenda deve ser discutida e votada em cada Casa do Congresso Nacional, em dois turnos, com quorum de três quintos dos respectivos membros (art. 60, §2º); a revisão se realiza pelo voto da maioria absoluta dos membros do Congresso Nacional, em sessão unicameral (ADCT, art. 3º.)". NOVELINO, Marcelo. Direito Constitucional. 2 ed., São Paulo: Ed. Método, 2008, p. 94.
  18. Para saber mais sobre Poder Constituinte Derivado e Poder Constituinte Originário vide obra monográfica de SILVA, Gustavo Just da Costa e. Os limites da Reforma Constitucional. Rio de Janeiro: Renovar, 2000.
  19. Nesse sentido, posicionando-se a favor da limitação do próprio poder Constituinte Originário, na doutrina estrangeira temos MIRANDA, Jorge. Manual de Direito Constitucional, vol II. Coimbra: Coibra Editora Ltda, 1998, p. 86 e na doutrina pátria CORRÊA, Márcia Milhomens Sirotheau. Caráter Fundamental da Inimputabilidade na Constituição.Brasília: Sérgio Antônio Fabris Editor, 1998, p. 101..
  20. Para saber mais sobre limitações circunstanciais e temporais, vide SILVA, Gustavo Just da Costa e. Os limites da Reforma Constitucional. Rio de Janeiro: Renovar, 2000, pp. 66 e ss.
  21. Para entender mais sobre princípios implícitos constitucionais, vide a doutrina extremamente abalizada de José Joaquim Canotilho, em Direito Constitucional. 6. ed. Coimbra: Livraria Almeidina, 1993, pp. 1100 e ss.
  22. Alguns doutrinadores de grande estirpe preconizam o que chamam de "dupla revisão", possibilidade de se alterarem cláusulas anteriormente imodificáveis por duas etapas revisionais, uma geral e outra especial. Para ler mais sobre o tema vide SARLET, Ingo Wolfgang. A Eficácia dos Direitos Fundamentais. 5ª ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2005, p. 396-7 e CORRÊA, Márcia Milhomens Sirotheau. Caráter Fundamental da Inimputabilidade na Constituição.Brasília: Sérgio Antônio Fabris Editor, 1998, p. 111 a 116.
  23. Daí a importância de verificarmos a evolução da doutrina que assegura o Direito da Criança e do Adolescente no Capítulo I desta obra.
  24. Em que pese a aparente contradição, o termo "norma constitucional inconstitucional" parte da premissa de que uma emenda à constituição, embora seja formalmente constitucional (tenha seguido o devido processo legislativo) pode ser materialmente (substancialmente) inconstitucional, por ferir cláusulas pétreas. Entende-se, de maneira geral, no entanto, que em se tratando ne normas constitucionais ordinárias, não seria admissível tal declaração de inconstitucionalidade em virtude do princípio da unidade da Constituição.
  25. A Emenda, além de outras afrontas à Constituição, excluiu o IPMF da regra que impõe que a cobrança só poder ser feita no exercício financeiro seguinte ao da publicação da lei instituidora (princípio da anterioridade – CF, art. 150, III, b).
  26. O levantamento jurisprudencial a seguir exposto foi extraído de excelente obra da professora Márcia Milhomens Corrêa (1998, pp. 140-152).
  27. Recomendamos ao leitor que deseja se aprofundar nos contornos do princípio da isonomia a excelente obra monográfica de MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Conteúdo jurídico do princípio da igualdade.3ª ed. São Paulo: Malheiros, 1995.
  28. São inúmeras as discussões acerca do conceito de "liberdade". Para efeito desse projeto, a acepção que daremos à terminologia será a de liberdade negativa, ou seja, o direito de não ser submetido à restrição de liberdade em face de determinada autoridade. Para ler mais sobre o tema, vide SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. 24ª edição. São Paulo: Malheiros Editores, 2005, pp. 230 e ss..
  29. O Estatuto da Criança do Adolescente, em seu art. 2° preceitua que "considera-se criança, para efeito desta Lei, a pessoa até doze anos de idade incompletos, e adolescente aquela entre doze e dezoito anos de idade. Parágrafo único. Nos casos expressos em lei, aplica-se excepcionalmente este Estatuto às pessoas entre dezoito e vinte e um anos de idade." A lei expressamente define o menor de 18 anos como criança e adolescente, salvo em casos excepcionais, citados no próprio Estatuto.
  30. Ao contrário do que muitos imaginam, o Estatuto da Criança e do Adolescente prevê normas restritivas de liberdade, ou seja, em linguagem comum, prevê "prisão". Tais medidas serão mostradas mais detalhadamente no Capítulo III desta obra, no qual discutiremos acerca da legitimidade de redução da idade penal.
  31. Art. 231 da Constituição Federal: "São reconhecidos aos índios sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições, e os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam, competindo à União demarcá-las, proteger e fazer respeitar todos os seus bens".
  32. Para ler mais sobre o controle de constitucionalidade em face do princípio da proporcionalidade, vide MENDES, Gilmar Ferreira. Direitos Fundamentais e Controle de Constitucionalidade. 3 ed. São Paulo: Saraiva, 2004, p. 49 e ss.
  33. Para que o presente trabalho não perca o caráter atual, não será divulgada a tramitação de cada projeto de emenda à Constituição aqui exposto. Para aqueles que desejarem acompanhar o trânsito de tais propostas sugerimos visita ao sítio www.senado.gov.br . Na página inicial há um link específico para consultas dessa natureza.
  34. Relator do projeto: Senador José Roberto Arruda.
  35. Relator do Projeto: Senador Íris Rezende.
  36. Relator do projeto: Senador magno Malta.
  37. Relator do projeto: Senador Papaléo Paes.
  38. Também tramitaram no Congresso Nacional as seguintes Propostas de Emenda à Constituição, todas com a pretensão de reduzir a idade penal: PEC n° 171 de 1993; PEC n° 37, de 1995; PEC n° 91 de 1995; PEC n° 45 de 1996; PEC n° 49 de 1996; PEC n° 386 de 1996.
  39. Conforme dados do IBGE 7,2% da população com idade entre 12 e 17 anos é analfabeta; segundo levantamento realizado em 1995 na 2ª Vara da Infância e Adolescência do Rio de Janeiro, 35 % dos adolescentes que por lá passaram são analfabetos. Esses dados autorizam a conclusão que o perfil do adolescente infrator é de indivíduo proveniente de baixa-renda e baixo nível sócio-cultural. Apesar de os dados serem antigos, acredita-se que pouco tenha mudado (CORRÊA, 1998, p. 159).
  40. Para ver mais acerca da falência do sistema prisional no Brasil, vide excelente obra monográfica de FERNANDES, Newton. A falência do Sistema Prisional Brasileiro. São Paulo. RG Editores Associados, 2000. Nessa obra, entre outros levantamentos, estuda-se o tratamento de presos nos Estados do Rio Grande do Norte, Ceará, Rio Grande do Sul e São Paulo.

Autor


Informações sobre o texto

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

DANTAS SEGUNDO, Evaldo. Redução da idade penal em face da Constituição Federal. Apontamentos jurídicos acerca das tentativas de redução da idade para imputação criminal do menor de 18 anos. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 14, n. 2373, 30 dez. 2009. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/14105. Acesso em: 3 maio 2024.