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Direito de superfície e o aparente conflito de normas entre Código Civil e Estatuto da Cidade

Direito de superfície e o aparente conflito de normas entre Código Civil e Estatuto da Cidade

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Cada um desses diplomas regula a matéria de uma maneira própria, cabendo ao aplicador do direito saber qual dos dois dispositivos aplicar, dependendo do caso concreto.

Introdução

O direito de superfície é um instituto de origens remotas na história, que objetiva um melhor aproveitamento econômico-social do solo. Trata-se da possibilidade de o proprietário conceder a um terceiro o direito de construir ou plantar em seu terreno, por tempo determinado ou indeterminado, de forma gratuita ou onerosa.

Esse direito esteve presente nos Estados e teve grande desenvolvimento até a Revolução Francesa, quando, devido ao caráter absoluto que foi atribuído à propriedade, grande parte dos Estados deixou de adotá-lo.

No direito brasileiro, o direito de superfície não estava previsto no Código Civil de 1916, porém, está previsto no Código Civil de 2002. Mas não foi com o Código Civil que este direito foi introduzido no ordenamento brasileiro, mas com o Estatuto da Cidade, em 2001.

Ocorre que, hoje, há dois diplomas legais disciplinando a matéria: o Estatuto da Cidade e o Código Civil. Cada um desses diplomas regula a matéria de uma maneira própria, cabendo ao aplicador do direito saber qual dos dois dispositivos aplicar, dependendo do caso concreto; o que será observado no estudo que se segue, que tem como marco teórico os apontamentos de Ricardo Pereira Lira.

Para tanto, o trabalho está dividido da seguinte forma: no primeiro capítulo, far-se-á a contextualização histórica do direito de superfície, seu surgimento e desenvolvimento. No segundo capítulo, suas características gerais. Após, um breve estudo sobre a previsão do instituto em outros países. Nos quarto e quinto capítulos, haverá o estudo do direito de superfície, seu tratamento, características, limitações, no Estatuto da Cidade e no Código Civil, respectivamente. E, finalmente, no sexto capítulo, haverá um estudo demonstrando o afastamento de um possível conflito aparente de normas entre os dois diplomas.


1 Histórico

O instituto da superfície nasceu no direito romano, no período denominado "romano-helênico" ou pós-clássico, por volta de 565 a.C. A origem da superfície deveu-se aos arrendamentos de longo prazo (locatio conductio rei), admitindo-se a co-existência separadamente da propriedade do solo e da propriedade das construções (DERBLY, 2002:742).

A professora Rosane Pinto (2000:81) esclarece que

... até o surgimento da concepção de propriedade do solo separada da propriedade da superfície, transcorreu um longo período de tempo que remonta à origem e à história do direito de propriedade, assim como o surgimento dos direitos reais em Roma.

Em períodos mais longínquos, os romanos sequer diferenciavam coisas materiais e imateriais, não tinham qualquer noção do direito envolvendo essas idéias, tendo, na verdade, conhecimento apenas sobre as coisas materiais. Assim esclarece a professora Rosane Pinto (2000:81):

Somente com a admissão pelos romanos da existência de coisas incorpóreas (iura), o domínio passou a sofrer certas limitações. Através do surgimento das servidões, do usufruto e do uso, admitiu-se a existência de iura in re aliena. Mas o imóvel em toda a sua extensão, isto é, solo e acessões, ainda que sofresse limitações decorrentes do direito de trânsito, usufruto e uso, continuava a pertencer, na sua totalidade e com exclusividade, ao proprietário, que só podia dele dispor por inteiro. Tal fato decorria do caráter absoluto do domínio, pois vigorava em Roma a regra de que tudo quanto fosse acrescido ao solo a ele se agregava e ao dono do solo pertencia (superfícies solo cedit).

Nesse período, por meio de uma espécie de arrendamento perpétuo ou a longo prazo (cem anos ou mais), o Estado passou a arrendar suas terras aos particulares. Esses particulares ficavam obrigados a pagar uma quantia anual.

Posteriormente, outras entidades passaram a fazer essa espécie de arrendamento, como municípios e até mesmo associações religiosas.

A idéia era a de fazer com que as terras fossem ocupadas e cultivadas, fixando pessoas nos territórios conquistados por Roma, garantindo o domínio.

Mais tarde, os latifundiários aproveitaram do mesmo instituto para cultivar as imensas glebas de terra, o que ampliou a forma de ocupação e cultivo das terras.

Segundo Rosane Pinto (2000:81):

A Administração Imperial Romana, por outro lado, na parte oriental do Império arrendava a particulares, por longo prazo, vastas áreas de terras incultas, para cultivá-las, mediante o pagamento de um canon anual. Eram de duas espécies essas concessões, ou seja, o ius emphytuticum e o ius perpeturim.

O objeto do ius emphytuticum eram as terras de propriedade privada do príncipe destinadas à exploração e a concessão se dava a longo prazo. O ius perpeturium tinha como objeto as terras do próprio Estado e seu arrendamento destinava-se apenas à obtenção de uma renda fixa, daí seu caráter imutável e perpétuo e a única forma do titular ser despejado era por meio de disposição especial do Imperador nesse sentido (PINTO, 2000:81).

Por volta do século V a. C, estas duas espécies se fundiram em um só, ganhando o nome de enphyteusis e sua aplicação se estendeu às terras das cidades, das corporações, da Igreja e dos particulares em geral (PINTO, 2000:81).

Posteriormente, com a necessidade de atrair os colonos às terras, cominou-se a enfiteuse grega com o arrendamento público romano, nascendo um modo próprio de arrendamento de glebas de terras latifundiárias aos colonos.

Durante o período clássico, houve uma evolução desse instituto, que chegou até mesmo a mudar sua finalidade, deixando de ser a mera ocupação das terras para exploração ou para garantia do domínio, tomando moldes de direito real. São as palavras de Rosane Pinto (2000:82):

Mediante arrendamento de terrenos do Estado, mais tarde estendido aos municípios e, depois, aos particulares, permitiu-se a construção, à margem das estradas ou em praças públicas, de edifícios, onde banqueiros, estaleiros, taberneiros etc. desenvolviam suas atividades econômicas. As concessões desses arrendamentos, permitidas pelos Magistrados romanos, a princípio de longo prazo e, posteriormente, inclusive concedidas a título perpétuo, eram autorizadas mediante a obrigação de construção no terreno locado e de pagamento de quantia única, ou de uma pensão anual, o pensio ou solarium. Do exercício do arrendamento decorreu a necessidade da sua proteção. A concessão da proteção ao direito de uso e fruição da edificação pelo pretor, através de um novo interdito, o de superficiebus. Assim, esse direito, que era pessoal, vai tomando contornos de direito real.

Nesse diapasão, a superfície constituiu-se em instituto autônomo de direito real, de uso e fruição, de uma construção em terreno alheio. No entanto, o superficiário não era proprietário do edifício, pois, o direito romano não concebeu a idéia da propriedade da construção separada da propriedade do solo, não alcançando, portanto, o status do domínio.

Aqui, o direito de superfície decorria de contrato, caso decorresse de uma compra e venda, locação ou doação; herança ou legado, havendo a possibilidade de aquisição em virtude de usucapião.

Além do uso e gozo, o superficiário poderia constituir usufruto, gravar de servidão ou hipotecar.

Para a extinção do direito de superfície, era necessário o vencimento do prazo da concessão, a renúncia do superficiatário, o resgate, a confusão dos titulares, da destruição do imóvel, da prescrição.

Durante a idade média, houve grande salto no direito de superfície. Tal direito passou a ser admitido em relação a plantações e, nesse caso, a propriedade da plantação era diversa da do solo. O mesmo ocorreu em relação às construções.

Essa separação da propriedade do solo da propriedade das construções ou plantações foi influência determinante para a idéia do domínio dividido em direto ou iminente, pertencente ao proprietário do imóvel, e útil, pertencente ao superficiatário. Ou seja, houve o desmembramento da propriedade fundiária em direta e útil.

Sobre as causas determinantes do desenvolvimento da superfície durante a idade média, Rosane Pinto leciona (2000:83):

As principais razões que ensejaram o desenvolvimento da superfície nesse período histórico decorreram, respectivamente, do interesse da Igreja católica em legitimar as construções feitas sobre os terrenos de sua propriedade e de dar destinação produtiva às suas terras incultas e da influência do direito dos povos bárbaros, especialmente dos germânicos. Estes, por serem nômades, não se prendendo à terra, atribuíam maior valor ao trabalho do construtor e às coisas plantadas do que ao direito de propriedade do solo.

Ocorre que os institutos da enfiteuse e da superfície acabaram sendo aplicados com abuso, principalmente em relação à cobrança dos impostos. É o que explica Rogério Derbly (2002:744):

A superfície, neste período, foi concebida como verdadeira propriedade paralela à propriedade do solo. Este entendimento durou até a Revolução Francesa, quando então, devido aos abusos cometidos pelos senhores feudais – escravidão dos homens a terra e altos preços dos censos que eram obrigados a suportar pelo uso da superfície – a enfiteuse, quanto à superfície foram banidas, restaurando-se a unidade da propriedade na pessoa do proprietário do solo.

Obviamente, tal instituto não foi bem visto pelos ativistas da Revolução Francesa. Rosane Pinto chega a seguinte conclusão (2000:83):

Assim, de instituições simples, à época dos romanos, transformaram-se, na Idade Média, convertendo-se em fonte de renda para os proprietários de vastas áreas de terra, ao mesmo tempo que se apresentavam aos que cultivavam a terra como intolerável ônus à sua propriedade de fato.

Consequentemente, o Código Civil Francês de 1804, um marco da era moderna, não contemplou os institutos da enfiteuse e da superfície. Em decorrência disso, outros instrumentos jurídicos publicados seguiram a mesma orientação, salvo o Código Civil da Holanda de 1884 e o Código Civil Austríaco de 1811. Não obstante, mesmo na França, os institutos continuaram a existir consuetudinariamente e é assim que até hoje se mantém, com base na construção doutrinária.

Em meados do século XX, quase todos os ordenamentos jurídicos europeus passaram a regular o instituto da superfície, às vezes limitado apenas às edificações. É interessante destacar que a Espanha, em seu Código Civil de 1889, não disciplinou a matéria, porém, o fez por via ordinária, em 1956, criando uma modalidade urbanística de direito de superfície (PINTO, 2000:84). No Código Alemão, o instituto surgiu como direito real e limitado às edificações.

No Brasil, há registros de que, enquanto colônia de Portugal, o direito de superfície vigorou. Após a independência, em 1822, foi publicada, em 20.10.1823, a Lei 20, determinando que continuassem a vigorar as Ordenações Filipinas, por inexistência de leis próprias (DERBLY, 2002:745).

Somente em 1864, por força da Lei 1.237, o direito de superfície foi extinto. É que, diante da necessidade de se substituir a legislação estrangeira, os encarregados de elaborar o Código Civil brasileiro não incluíram a superfície.

O projeto do Código Civil de 1916 não contemplava a superfície, embora alguns revisores o tenham acrescido, mas sem obterem a aprovação da Comissão Especial da Câmara dos Deputados (DERBLY, 2002:746). E assim, sem elencar no rol dos direitos reais o direito de superfície, o Código Civil de 1916 foi promulgado.

Em 1967, houve a promulgação do Decreto-Lei 271, que, segundo Rosane Pinto (2000:86):

...instituiu a concessão de uso de terrenos públicos ou particulares, remunerada ou gratuita, por tempo certo ou indeterminado, como direito real resolúvel, para fins específicos de urbanização, industrialização, edificação, cultivo da terra, ou outra utilização de interesse social, permitindo-se a concessão, inclusive de uso do espaço aéreo, contratada por instrumento público ou particular, ou por simples termo administrativo, com registro cível e trasmissível por atos inter vivos ou por sucessão legítima ou testamentária, conforme dispõem, respectivamente, o Art. 7º e parágrafos e Art. 8º do referido diploma legal.

Por conta desses dispositivos, alguns juristas entenderam por estar-se diante da reintrodução do direito de superfície ao ordenamento brasileiro. No entanto, não foi o que prevaleceu, conforme explica Rosane Pinto (2000:86):

... o direito real de uso e o direito real de superfície são categorias distintas de direitos reais limitados.

... a concessão de direito real de uso, outorgada por pessoa jurídica de direito público ou privada, não se confunde com o direito de superfície. No primeiro caso, não se opera a suspensão do princípio superfície solo cedit não sendo afetado o princípio da acessão.

No que tange a concessão de uso do espaço aéreo, há uma impropriedade de qualificação, haja vista que o espaço aéreo não é coisa que se transmita ou conceda; tampouco há um direito de superfície, mas uma servidão em benefício de prédios vizinhos.

Embora abolido do ordenamento jurídico brasileiro até muito recentemente, o direito de superfície foi finalmente introduzido, por meio do Estatuto da Cidade (Lei 10.257/2001) e posteriormente, com o advento do Código Civil de 2002. O instituto, como se apresenta nos dois diplomas legais mencionados, será detalhadamente estudado nos capítulos que se seguem.


2 Considerações Gerais

Para o fim de delinear o conceito do direito de superfície, é necessário compreender antes o conceito de acessão.

Segundo Ricardo Pereira Lira (2003:251):

Acessão é a união física entre duas coisas, formando, de maneira indissolúvel, um conjunto em que uma das partes, embora possa ser reconhecível, não guarda autonomia, sendo subordinada, dependente do todo, seguindo-lhe o destino jurídico.

A acessão pode ocorrer de dois modos distintos. É chamada acessão discreta, quando resulta de um desenvolvimento natural da própria coisa, como acontece com os frutos da árvore e com as crias dos animais. E é chamada de contínua quando há uma união exógena das coisas, como ocorre com as plantações (LIRA, 2003:251).

Como já pincelado anteriormente, a edificação e a plantação são regidas pelo princípio superfícies solo cedit, isto é, tudo que se planta ou constrói em solo alheio é da propriedade do dono do solo. E é esse o princípio que prevalece no ordenamento jurídico brasileiro.

Lira adverte que (2003:251):

Pode ocorrer, contudo, a suspensão dos efeitos da acessão, quando se terá a superfície temporânea, ou a interrupção dos efeitos da acessão, quando se consubstanciará, nesses casos, o princípio superfície colo cedit, pois a propriedade do incremento (construção ou plantação) é de quem o realizou, continuando o terreno do domínio do dono do solo.

Assim, trata-se do direito de superfície, que suspende ou interrompe os efeitos da acessão e aquele que constrói ou planta sobre terreno alheio fica com a propriedade de superfície, ou seja, da construção ou plantação, totalmente distinta da propriedade do solo.

Diante disso, Lira conceitua o direito de superfície (2003:252):

É o direito real sobre coisa alheia, autônomo, temporário ou perpétuo, de fazer uma construção ou plantação sobre ou sob solo alheio, ficando a construção ou plantação da propriedade de quem constrói ou planta, bem como o direito de manter essa propriedade sobre o solo alheio.

É direito real sobre coisa alheia porque, na sua forma inicial, revela-se em princípio por uma concessão ad aedificandum ou ad plantandum, sendo que o instrumento que contèm essa concessão (contrato superficiário), levado ao Registro de Imóveis, já dá nascimento a um direito real sobre o lote ou gleba alheia. Concretizando-se a concessão, pela construção ou plantação, o direito que era incorpóreo se corporifica, com a materialização do incremento, gerando o direito real de mantê-lo sobre ou sob a propriedade de outrem.

Além disso, é direito autônomo por ter características que o diferenciam dos demais direitos reais sobre coisa alheia. Ora, na enfiteuse, o enfiteuticador entrega ao enfiteuta o uso e gozo e há a possibilidade de transferir a terceiros esses direitos, desde que pago o laudêmio. Ao contrário do direito de superfície, em que não há esse desdobramento e a transferência independe de pagamento de laudêmio. No usufruto, ocorre o mesmo, já que o proprietário transfere ao usufrutuário tanto o uso como o gozo da coisa, o que não ocorre na superfície. Já na servidão, há necessidade de indicação de um imóvel dominante e outro serviente, o que não ocorre no direito de superfície. A concessão do direito real de uso de que trata o Decreto-Lei n. 271/67 não enseja a interrupção dos efeitos da acessão. Tampouco pode-se confundir a superfície com locação, uma vez que a primeira encontra-se no campo dos direitos reais, ao passo que a segunda está nos direitos pessoais (LIRA, 2003:252).

Por esse motivo, Rosane Pinto leciona (2000:88):

Concedido o direito de superfície, ao superficiário pertence o edifício construído ou a plantação feita, continuando o solo a pertencer ao dono da propriedade, enquanto durar o prazo da concessão da propriedade resolutiva da superfície. Este terá como retribuição imediata o pagamento de uma pensão periódica, o solarium dos romanos, se assim for convencionado e, como retribuição futura, a aquisição da res superficiaria.

Com o término do prazo da propriedade superficiária, cessa o termo final da suspensão da acessão, atribuindo-se, imediatamente, ao proprietário do solo a propriedade da construção ou plantação neste existente, por decorrência do princípio de que superfícies solo cedit.

Desta forma, tendo em vista sua natureza jurídica, isto é, o caráter da norma concreta, é inquestionável que o direito de superfície apresenta-se como direito real imobiliário, oponível erga omnes, limitado e autônomo, de construir ou manter construções ou de manter ou erigir plantações, em solo alheio, em caráter temporário ou perpétuo.

Rosane Pinto adverte que o conceito de superfície, como direito real, pode variar em razão da forma como é disciplinado nos diversos ordenamentos e acentua (2000:87):

No sentido jurídico tradicional, que provém do direito romano, a superfície, como direito real, é tudo que se eleva acima do solo, compreendendo, além do cumprimento e da largura, a altura, pois é acima do solo que as obras são construídas e onde se encontram as plantações apesar de alguns ordenamentos estenderem o direito de superfície a obras feitas no subsolo.

Assim, o direito de superfície pode ser resumido como um direito de caráter real que confere a propriedade da construção ou plantação, ainda que de modo temporário, mediante pagamento ou não de uma quantia periódica, transmissível por ato inter vivos ou causa mortis, alienável, podendo ser temporário ou perpétuo.

É notório que a superfície pode ser edilícia, se tiver por objeto a construção; ou vegetal, se tiver por objeto a plantação. Segundo as palavras de Rosane Pinto (2003:88):

Conforme já mencionado, o objeto do direito de superfície pode ser construções, às vezes denominadas superfície edílica, ou plantações, também chamada de superfície vegetal, agrícola ou agrária, sendo que algumas legislações contemplam, tão-somente, uma ou outra forma. São admitidas construções dos mais variados tipos, que vão desde cadeiras de teatro ou estádios, assim como construções preexistentes. Porém, só poderá referir-se a uma construção em sua totalidade e não limitá-la a uma só parte. Quanto às plantações, estas se referem às culturas duradouras, como videiras e árvores frutíferas e aquelas destinadas a corte, que podem, também, ser preexistentes.

Ainda sobre as características da superfície, esta poderá ser perpétua, se ocorrer a interrupção dos efeitos da acessão e será temporária se acontecer a simples suspensão dos efeitos da acessão. Será remunerada se previsto o pagamento de cânon ou gratuita, se não.

Há três formas de constituição da superfície, conforme aponta Lira (2003:253):

A primeira delas é a concessão para construir ou plantar, que, em sistemas como o nosso, deve formalizar-se por escritura pública, já que necessariamente o valor do imóvel será superior à taxa legal, devidamente registrada no Registro de Imóveis.

A segunda delas é a constituição por cisão. Essa modalidade parte de um imóvel construído ou plantado, no qual já se tenham operado os efeitos da acessão. O dono do imóvel retém em seu domínio o terreno e transfere a outrem, que passa a ser superficiário, a propriedade da construção ou plantação.A nós nos parece inexistir obstáculo no sentido de que a operação se desenvolva inversamente: o dono do imóvel transfere a outrem a propriedade do terreno e retém o domínio da construção ou plantação, passando, assim, a assumir a condição de superficiário.

A derradeira forma a considerar é a da possibilidade da constituição da superfície por usucapião. Lavram controvérsias sobre o tema. Juristas há que dão pela impossibilidade dessa modalidade de constituição, uma vez que se determinada pessoa exerce a posse de certa edificação como o animus rem sibi habendi, desde que satisfeitos os demais requisitos da usucapião, adquirirá necessariamente o domínio do trato de terra sobre o qual assenta dita edificação, tornando-se, dessa maneira, proprietária do todo, não se caracterizando logicamente uma propriedade separada superficiária mantida sobre o solo de outrem. Outros há que se manifestam por outra possibilidade, como, por exemplo, se, no caso de uma edificação relativamente à qual se tenham operado os efeitos da acessão, o possuidor da edificação, com animus domini, passa a pagar, pelo prazo suficiente à consumação da usucapião, ao proprietário um solário, que implica evidentemente no reconhecimento do domínio do trato de terra sobre o qual está a edificação, aperfeiçoando-se, assim, a aquisição, pelo usucapiente, da edificação pousada sobre o solo de outrem. Quod plerumque accidit, afigura-se-nos que a primeira hipótese será de ocorrência mais freqüente, e a segunda, de ocorrência significativamente bem mais remota.

O direito de superfície pode ser exercido de formas distintas. Um primeiro modo é o exercício que se dá no subsolo. Uma outra maneira é o direito de sobrelevação, ou seja, um direito de superfície em segundo grau, em que o superficiário concede a um terceiro o direito de construir sobre sua propriedade superficiária, em que a propriedade do solo continua do primeiro concedente, que faz a concessão ao primeiro superficiário, que, por sua vez, faz outra concessão ao segundo superficiário. Exemplo de uma maneira de exercício de superfície é o que ocorre em favelas, onde se dá o "direito de laje", em que o morador concede a outrem o direito de construir sobre a sua laje, criando o direito informal situação bastante semelhante à prevista em Códigos Civis europeus (LIRA, 2003:253).

Lira ainda aponta alguns direitos e obrigações do superficiário (2003:254):

Respinguemos os direitos do superficiário:

a) tem ele, no caso da concessão ad aedificandum ou ad plantandum, o direito de imitir-se na posse do terreno para construir ou plantar;

b) tem ele a posse direta da área objeto da concessão, incluindo o acesso ao entorno necessário ao exercício do direito de construir ou plantar;

c) se prevista no título, tem o superficiário direito à indenização do valor do bem superficiário, quando da extinção da superfície, quando dito bem ingressa no patrimônio do concedente (o que se chama impropriamente de reversão, e dizemos impropriamente porque o bem jamais esteve no patrimônio do concedente);

d) domínio sobre o bem superficiário;

e) instituir direitos reais de uso, gozo e garantia sobre o bem superficiário;

f) reconstruir ou replantar, se ocorrer a perda do bem superficiário dentro do prazo da concessão, salvo disposição contrária.

Indiquemos as obrigações do superficiário:

a) realizar a construção ou plantação dentro do prazo assinado no título, sob pena de caducidade do direito;

b) pagar o solarium, na superfície remunerada;

c) pagar os tributos incidentes sobre o bem superficiário, na forma da legislação fiscal aplicável;

d) conceder preferência ao concedente no caso de alienação da superfície.

Obviamente, os direitos e obrigações do concedente resultam dos acima elencados e são assim resumidos por Rosane Pinto (2000:88):

... ao proprietário do solo é lícito:

a) utilizar parte do imóvel que não constitui o objeto da superfície, observadas eventuais restrições contratuais;

b) receber o pagamento da pensão periódica, caso tenha sido ajustada;

c) exercer o direito de preferência na aquisição da superfície, se for colocada à venda pelo superficiário;

d) proceder à resolução da superfície antes do advento do termo, se temporária. Se o superficiário não edificar ou plantar no tempo aprazado, ou se edificar em desacordo com o convencionado, ou, ainda, se lhe der destinação diversa da prevista no negócio;

e) construir gravames reais sobre o solo;

f) tornar-se dono da construção, ou plantação, uma vez extinta a superfície, indenizando, ou não, o superficiário.

Outrossim, são obrigações que competem ao concedente:

a) não praticar atos que impeçam ou prejudiquem a concretização, ou o exercício do objeto do direito de superfície;

b) dar preferência ao superficiário na aquisição da propriedade do solo, caso esta se faça a título oneroso.

É importante ressaltar a possibilidade de proteção possessória, conforme leciona Rosane Pinto (2000:89):

... concedido o direito de superfície, o superficiário, como titular de um direito real, passa a gozar da proteção possessória em geral e, quando tornar-se proprietário da construção ou plantação, passará a dispor das ações petitórias. Portanto, assiste-lhe o direito de propor as ações possessórias, como as ações de manutenção e de reintegração de posse, por decorrência da relação existente entre o próprio fato da posse e a pessoa do superficiário. Na condição de proprietário da construção ou plantação cabe-lhe o uso das ações petitórias, isto é, da ação reivindicatória, contra quem quer que o prive da posse da construção ou da plantação, da ação negatória, contra quem pretenda direitos sobre a construção ou a plantação e da ação confessória, para que se declare o seu direito. Por ter a posse do bem e ser proprietário, assiste-lhe o direito de beneficiar-se das ações de embargos de terceiro, de nunciação de obra nova e de dano infecto.

Na prática, o direito de superfície aumenta as possibilidades de utilização da propriedade por parte do titular do terreno.

No caso de um proprietário não ter recursos para explorar seu terreno, ele poderá ceder a superfície para que outro dê destinação econômica; numa praça pública, o município pode conceder o subsolo para exploração de um estacionamento, entre outros exemplos.

Lira acentua o seguinte (2003:254):

Não se deve descartar a eventualidade de utilizar-se o direito de superfície como instrumento útil em uma política habitacional de assentamento de população carente, concedendo-se a área em que está assentada dita população em superfície, com uma cláusula de opção de compra pelos moradores ao final do prazo da superfície.


3 Direito comparado

Vários ordenamentos jurídicos fazem a previsão do direito de superfície, o que trouxe fundamento doutrinário para posterior previsão legal do instituto também no ordenamento brasileiro.

No direito francês não há uma regulamentação positivada do direito de superfície. O direito de superfície existe lá por conta da imposição doutrinária e jurisprudencial, partindo de uma interpretação sobre a existência de uma presunção relativa sobre o direito de propriedade, conforme o que dispõe o art. 553 do Código Civil de Napoleão, senão vejamos:

Art. 553 Todas as construções, plantações e obras em um terreno ou sobre ele presumem-se ter sido feitas às custas do proprietário e pertencerem-lhe, se não se prova o contrário...

Desta forma, é possível que se prove que as plantações ou construções feitas em terreno alheio não são do dono do terreno, mas de quem as realizou.

Este raciocínio não podia ser usado quando ainda vigia o Código Civil de 1916 no Brasil, haja vista que a previsão do então art. 545 não dizia respeito à propriedade da construção ou plantação, mas apenas a quem as tivesse feito e a quem incorria as despesas necessárias a sua efetivação. Note:

Art. 545 Toda construção, ou plantação, existente em um terreno, se presume feita pelo proprietário e à sua custa, até que o contrário se prove.

O próprio art. 547 afastava a possibilidade da superfície, dizendo claramente que "quem semeia, planta ou edifica em terreno alheio, perde, em proveito do proprietário, as sementes, plantas e construções..."

O Código Alemão, até 1919, previa o direito de superfície, permitindo que um imóvel fosse gravado em favor de terceiro com o direito de ter uma construção acima ou abaixo do solo. Esse direito era alienável e transmissível por sucessão e não se extinguia pelo perecimento da construção. Ainda havia previsão de que o direito de superfície se estendesse a uma parte do imóvel que não fosse necessária a construção, mas que oferecesse utilidade ao uso dela. Porém, há vedação a que o direito de superfície ficasse restrito a uma parte de uma edificação, sobretudo um pavimento. O acordo de vontade feito entre as partes deveria ser feito no cartório de registro de imóveis.

As normas sobre direito de superfície, tal como constavam do Código Civil Alemão, não mais atendiam às necessidades pós-guerra, motivo pelo qual editou-se uma lei em 1919, regulamentando o direito de superfície.

Na Itália, o Código Civil de 1865 não disciplinou o direito de superfície. Sua existência e moldes foram feitos segundo a doutrina, como ocorreu na França. Houve uma presunção contrária ao que estava disposto no art. 448 do Código, tal qual fizeram os franceses.

O Código Civil Italiano de 1942 acabou por disciplinar a matéria expressamente, com um título especialmente para o assunto, trazendo a possibilidade de construção com propriedade diversa da do proprietário do solo, bem como sua alienação separadamente. Previu ainda a possibilidade de superfície por tempo determinado, segundo o qual, findo o prazo, o proprietário do solo adquire a propriedade da construção. No entanto, esse direito só vale em relação às construções, uma vez que em relação às plantações há disposição expressa no sentido de que não pode ser constituída ou transferida propriedade de plantação separadamente da propriedade do solo.

No direito inglês, até hoje subsistem os contratos superficiários denominados de building lease.

No direito austríaco, há previsão expressa de que a propriedade é dividida em propriedade do solo e propriedade da superfície.

A legislação suíça hoje é no sentido de que as construções e outras obras feitas na superfície ou no subsolo, bem unidas ao terreno de qualquer outra forma durável, podem ter um proprietário distinto, desde que estejam inscritas como servidões no Registro de Imóveis.

A legislação portuguesa disciplina o assunto, permitindo superfície para construção ou plantações, porém, o próprio legislador se confunde, senão vejamos nas palavras de Rosane Pinto (2003:88):

... em análise à legislação portuguesa que disciplina o instituto, os termos árvores e plantação elencados na lei resultaram em confusão, inclusive entre autores estrangeiros. Como solução, sugere-se a interpretação extensiva, para que se estenda aos arbustos, a referência a árvores.

No Brasil, hoje, o instituto da superfície está previsto em dois diplomas legais: no Estatuto da Cidade de 2001 e no Código Civil de 2002.

Eduardo Sócrates Castanheira Sarmento Filho (2008) faz a seguinte observação:

Circunstâncias históricas fizeram com que o direito de superfície fosse introduzido na legislação brasileira em dois textos distintos e cronologicamente muito próximos – o Estatuto da Cidade e o Novo Código Civil -, apresentando unidade estrutural, mas com campos de incidência distintos, além de normas conflitantes, fato que gera alguma dificuldade na sua aplicação.

A forma como o direito de superfície foi abordado em cada um desses diplomas será adiante analisada.


4 Direito de superfície no Estatuto da Cidade

A Constituição de 1988 foi a primeira Constituição brasileira a colocar o Direito à Cidade num patamar constitucional, atribuindo à União Federal a competência para instituir diretrizes para o desenvolvimento urbano. Seus arts. 182 [01] e 183 trazem normas constitucionais de política urbana a ser executadas pelo poder público municipal, com fim de alcançar-se a função social da cidade e garantir o bem-estar de seus habitantes.

Vários anos se passaram até que o Congresso Nacional elaborasse uma lei, que regulamentasse os referidos arts. 182 e 183, trazendo princípios para a disciplina das Cidades. Assim, em 10 de janeiro de 2001, foi aprovado o Estatuto da Cidade, Lei Federal n. 10.257 [02].

Esse Estatuto manteve instrumentos antigos; criou novos instrumentos, como o direito de preempção, a outorga do direito de construir e a usucapião coletiva; e restabeleceu instrumentos que caíram em desuso, como o direito de superfície.

No Estatuto, o direito de superfície foi arrolado como instrumento de política urbana, configurando mecanismo de limitação ao caráter exclusivo do direito de propriedade [03].

A superfície age como mecanismo efetivador da função social da posse, ganhando destaque como forma de se evitar a incidência de instrumentos outros, também efetivadores da função social da posse, que atuam de forma bem mais drástica sobre o patrimônio do proprietário, como o IPTU progressivo, o parcelamento, edificação ou utilização compulsórios ou até mesmo a desapropriação.

Explicita-se, assim, a possibilidade de utilização do direito de superfície como meio de dar à posse uma destinação condizente à sua função social, inclusive lucrativa ao proprietário, sobretudo quando esteja a propriedade na iminência de ser alvo de outros institutos que apresentam caráter punitivo.

Por força do direito de superfície, parte das prerrogativas originalmente do proprietário são, temporariamente, transferidas a terceiros, tratando-se de um instrumento extremamente importante para fazer cumprir a função social do imóvel.

Fernando Dias Menezes Almeida (167) observa:

Com a edição da Lei 10.257/2001, o direito de superfície passou a integrar o Direito positivo brasileiro. Mais recentemente, o novo Código Civil também cuidou do instituto (cf. arts. 1369 a 1377).

Trata-se de instituto que comporta tratamento tanto pelo ângulo do direito civil, como pelo do direito urbanístico, em perspectivas que se complementam.

Ao instituir o direito de superfície, a finalidade a que visou o legislador, através da Lei que ora se comenta, certamente foi estabelecida do ponto de vista urbanístico.

A certeza de que o direito de superfície, aqui, tem contornos urbanísticos advém do fato de que o instituto previsto no Estatuto da Cidade tem aplicação mais ampla no que diz respeito às faculdades do seu titular, pois este se torna titular do domínio útil sobre coisa alheia, pode usar edificações, modificá-las ou ainda construir em terreno não edificado, fruí-las ou delas dispor. Já no Código Civil, esse direito é definido como direito de construir ou plantar em terreno alheio; obviamente, plantar é fenômeno estranho ao direito urbanístico.

É por este motivo que o Estatuto da Cidade, no que diz respeito ao Direito de Superfície dentro da política urbana, é tido como norma especial em relação ao Código Civil.

A norma sobre o direito de superfície no Estatuto vem no Art. 21 [04].

Fernando Dias Menezes de Almeida (168) acentua que:

É certo que o Estatuto da Cidade, ao prever o direito de superfície, visando à finalidade urbanística, ainda assim naturalmente teve de disciplinar aspectos que poder-se-iam dizer "civis" da matéria (exemplo: a forma de sua pactuação, as obrigações das partes envolvidas e sua extinção); mas são aspectos instrumentais em relação ao direito definido.

O objeto do direito de superfície previsto no Estatuto é o terreno urbano.

De acordo com o entendimento que vem desde o direito urbano, por superfície entende-se tudo que é edificado sobre o solo. Desta sorte, o termo "terreno" não quer dizer apenas o solo não edificado, mas também tudo que está edificado sobre este solo.

Por isso, Fernando Dias Menezes de Almeida (168) enfatiza que:

O superficiário pode tanto usar, fruir e dispor de uma edificação já existente, como antes edificar sobre a terra nua.

Assim, a expressão superfície do terreno significa tudo o que está ou será edificado sobre o terreno. É isso que é concedido a outrem, pelo proprietário, como objeto de direito.

Daí dizer-se que a superfície será do terreno. E não se confunde com o próprio terreno.

É notório que o superficiário não terá a propriedade do terreno. Mas há discussão em relação à superfície, se seria esta uma verdadeira propriedade (domínio pleno) ou seria um domínio útil.

Segundo Fernando Dias Menezes de Almeida (169), a dúvida procede pelos seguintes motivos:

... no Direito Romano o superficiário não era proprietário das edificações, em que pese tivesse sobre elas amplo direito; por outro lado, José Afonso da Silva, descrevendo o Direito italiano com base em Balbi, é expresso ao afirmar que o superficiário é proprietário da superfície.

Ora, a Lei 10.257/01 não traz nada expresso sobre a questão. Apesar disso, é da tradição do nosso Direito acolher a tese superfícies solo cedit, ou seja, o solo é o bem principal e a construção e plantação a ele aderidas são o acessório. A conclusão é a de que o acessório não pode ter proprietário diverso do principal.

Nesse sentido, as lições de Fernando Dias Menezes de Almeida (170):

... nada há no regime do direito de superfície, efetivamente introduzido no Direito positivo brasileiro, que permita identificar o afastamento da regra da acessão imobiliária. A Lei 10.257/2001 nada diz sobre o superficiário ser proprietário da construção e ainda dá elementos que reforçam a tese contrária, por exemplo: prevê, como regra, no Art. 24, que o proprietário recuperará o pleno domínio do terreno, bem como das acessões e benfeitorias introduzidas no imóvel.

Ora, ninguém nega que o domínio direto do terreno o proprietário sempre teve; agora irá recuperar o domínio pleno (somando ao domínio direto as faculdades de domínio útil). E essa regra é aplicada pela Lei ao terreno bem como às acessões e benfeitorias. Ou seja, o proprietário, que já tinha o domínio direto sobre as acessões e benfeitorias, desde sua origem, agora terá o domínio pleno sobre elas.

Neste diapasão, conclui-se que o superficiário é titular do domínio útil da superfície, ou seja, exerce um direito real sobre uma coisa alheia.

Ainda em relação ao termo terreno urbano constante do Art. 21 do Estatuto, conclui-se pelo afastamento da incidência desse direito em relação a terrenos rurais.

A concessão do direito de superfície apenas pode ser dada pelo proprietário do terreno. O poder público apenas poderá fazer tal concessão se tratar-se de seus próprios terrenos.

Nas palavras de Fernando Dias Menezes de Almeida (171):

Aliás, como já visto, o proprietário em questão pode ser um particular, ou mesmo o Poder Público.

Por não tratar-se de alienação da propriedade, senão de simples cessão temporária e voluntária do domínio útil, nada há de incompatível entre o regime dos bens públicos (v.g., inalienabilidade) e o direito de superfície, como de resto já não havia no caso da enfiteuse.

Ainda há que se ressaltar que o direito de superfície não é eterno, podendo ser estabelecido por tempo determinado ou indeterminado.

E segundo Fernando Dias Menezes de Almeida (172):

Tempo indeterminado não se confunde com perpetuidade. Em tese, a distinção entre as duas situações (em casos análogos ao da superfície) diz com a possibilidade, em se tratando de prazo indeterminado, de ruptura do vínculo jurídico em defesa do interesse da parte que não detém o bem.

Em verdade, o Estatuto da Cidade não previu o meio pelo qual essa ruptura em caso de superfície por tempo indeterminado se dará. Neste caso, cabe às partes estipularem o meio contratualmente ou, não o fazendo, cabe a aplicação analógica do Art. 581 [05] do Código Civil, presumindo-se o prazo como sendo aquele necessário ao uso para o qual com concedido.

É de se atentar, ainda, que o caput do Art. 21 do Estatuto impõe uma forma para que as partes estabeleçam o direito de superfície, qual seja, por meio de escritura pública, registrada no cartório de registro de imóveis.

Considerando o Art. 104 [06] do Código Civil, o desrespeito a este mandamento implica na invalidade do negócio jurídico.

É o que leciona Fernando Dias Menezes de Almeida (173):

... o contrato pelo qual as partes estabelecem o direito de superfície deve seguir a forma estabelecida na Lei: escritura pública, registrada no cartório de registro de imóveis. O não respeito a essa forma prescrita na Lei faz incidir a regra do art. 104 do novo Código Civil, prejudicando a validade do negócio jurídico.

Obviamente, como aqui a regra está em uma lei específica, não se aplica o limite do Art. 108 [07] do Código Civil. Portanto, a exigência do registro se faz para qualquer valor.

O §1º [08] do Art. 21 do Estatuto ainda dispõe sobre a possibilidade de o superficiário utilizar-se do solo, subsolo e espaço aéreo correspondente, no exercício do domínio útil.

Tal observação guarda coerência com o próprio Código Civil, que em seu Art. 1.229 [09] afirma que a propriedade do solo abrange a do espaço aéreo e o subsolo correspondentes.

Fernando Dias Menezes de Almeida (173) observa o seguinte:

Seu uso seguirá os limites impostos ao proprietário pelo Código Civil, ou por outras leis (v.g., de direito urbanístico), bem como os que forem estabelecidos no contrato que irá reger a concessão do direito de superfície. Em especial quanto ao subsolo, há que se atentar para as regras dos arts. 20 [10], IX e X, e 176 [11] da Constituição Federal.

É de se atentar ainda para o fato de que nesse parágrafo, a expressão utilizar está empregada em sentido amplo. Assim, abrange não apenas a ação de edificar conforme o coeficiente de aproveitamento, mas o usar e o fruir, que são atributos próprios do direito de superfície.

No contrato da concessão do direito de superfície, as partes devem definir se tal concessão é gratuita ou onerosa. Se onerosa, deverão definir também o valor, forma de pagamento, periodicidade, critérios de reajuste.

O silêncio das partes no que tange a ser gratuito ou onerosa, faz presumir que a concessão desse direito é gratuita. É que, se fosse onerosa, pelo menos um dos elementos acima citados deveriam constar do contrato, indicando a vontade das partes de que fosse onerosa.

Mas o §3º deve ser respeitado, mesmo nos casos de concessão gratuita da superfície, senão vejamos:

Art. 21, § 3º O superficiário responderá integralmente pelos encargos e tributos que incidirem sobre a propriedade superficiária, arcando, ainda, proporcionalmente à sua parcela de ocupação efetiva, com os encargos e tributos sobre a área objeto da concessão do direito de superfície, salvo disposição em contrário do contrato respectivo.

Este dispositivo traz uma responsabilidade e uma obrigação. A responsabilidade está devidamente explicitada logo na primeira frase do parágrafo, ao passo que a obrigação se traduz na palavra arcando.

É que um conceito não se confunde com o outro, conforme bem explica Fernando Dias Menezes de Almeida (175):

A compreensão desse dispositivo pressupõe a distinção entre os conceitos de responsabilidade e de obrigação. Obrigação diz respeito com a relação de dever estabelecida pela norma jurídica, isto é, com a prescrição de determinada conduta, cujo descumprimento faça incidir a sanção. Já a responsabilidade diz com a incidência da sanção, ante o descumprimento da obrigação.

Ainda que normalmente o obrigado a uma conduta seja o responsável pelo descumprimento dessa obrigação, isso não necessariamente ocorre. Assim sendo, o obrigado (aquele que deve se conduzir de determinada maneira, sob pena de fazer incidir a sanção) pode não ser responsável (aquele que sofrerá a sanção, a conseqüência pelo descumprimento da obrigação); e o inverso também vale: o responsável pode não ser o obrigado.

Diante disso, o superficiário será obrigado em relação a parcelas dos encargos e tributos proporcionalmente à sua parte, ou seja, a cobrança será dirigida a ele. Porém, o contrato de superfície pode estabelecer que o obrigado será o proprietário, integralmente ou em relação a uma proporção diversa.

Mas em relação à responsabilidade, o contrato não conseguirá alterar. É que segundo o parágrafo, o superficiário é o responsável pelos encargos e tributos não pagos referentes à sua parcela superficiária.

O Estatuto da Cidade ainda permite que o proprietário e o superficiário disponham no contrato sobre a possibilidade de transferência do direito de superfície a terceiros.

A observação que se deve fazer é que essa transferência trata-se de uma alienação, e não de uma sub-superfície, que pela interpretação sistemática da Lei, parece ser proibida. É que o direito de superfície não é um instituto criado para se auferir renda, mas para viabilizar o uso adequado de um determinado terreno.

Esta alienação pode ser onerosa, em favor do superficiário, sem qualquer obrigação de repasse de parcela dessa remuneração ao proprietário.

Obviamente, a pessoa que adquirir a superfície deverá cumprir o contrato firmado entre o proprietário e o antigo superficiário.

Além de transmissível por ato inter vivos, o direito de superfície também é transmissível causa mortis, conforme dispõe o §5º [12] do Art. 21.

Para tanto, dispensa-se a previsão contratual e, pelo texto do §5º, parece impossível que o contrato disponha de modo contrário, já que sempre que a quis, deixou expressa a possibilidade de o contrato dispor de forma contrária.

Nestes casos, os herdeiros terão direito a sucederem na superfície, pelo prazo que restar ou indeterminadamente se assim era o contrato.

O Estatuto, em seu Art. 22 [13], prevê o direito de preferência na superfície. Caso o proprietário resolva alienar o terreno, em igualdade de condições à oferta de terceiros, o superficiário terá o direito de preferência nessa compra. Caso seja o superficiário que resolva alienar a superfície, terá o proprietário preferência.

Ocorre que é somente esta previsão que existe no Estatuto sobre esse direito de preferência, faltando-lhe, portanto, regras mais específicas. Assim, tem-se utilizado analogicamente as regras referentes à enfiteuse, previstas no Código Civil de 1916, senão vejamos o que ensina Fernando Dias Menezes de Almeida (178):

Sugere-se, então, a aplicação analógica das regras previstas no Código Civil de 1916 [14] em matéria de enfiteuse, que ainda vigoram para as enfiteuses existentes, nos termos do Art. 2.038 do novo Código Civil.

O Código de 1916 prevê o direito de preferência nos casos de venda ou dação em pagamento, expressamente. Em casos de doação, constituição de dote ou troca por coisa não fungível do prédio aforado, o Código não prevê a preferência.

Ocorre que o Art. 22 do Estatuto utiliza a expressão doação, sem dizer se a título gratuito ou oneroso. Daí, recorrer-se a interpretação sistêmica para saber em quais alienações a preferência incidirá, conforme esclarece Fernando Dias Menezes de Almeida (179): "É razoável entender que a alienação não onerosa e mesmo a troca por coisa não fungível não podem gerar preferência, por não se adaptarem à lógica do instituto".

Sobre a extinção da superfície, o Estatuto prevê duas modalidades em seu Art. 23 [15].

Nos casos em que o direito de superfície é contratado por tempo determinado, sua extinção se dará pelo advento do termo. Esta extinção se dá de pleno direito, independentemente de qualquer interpelação judicial ou extrajudicial.

Logicamente, embora o Estatuto não preveja, numa analogia com a locação, se advindo o termo, o proprietário tolera a permanência do superficiário por mais de 30 dias, o contrato será considerado prorrogado por prazo indeterminado.

Por outro lado, se o superficiário permanecer no imóvel, mesmo após a exigência deste pelo proprietário, caberá a este tomar medidas judiciais.

Outro modo de extinção da superfície previsto no Art. 23 é pelo fato de descumprimento das obrigações contratuais. Se as partes não resolverem consensualmente, caberá ao Poder Judiciário apurar a ocorrência de hipótese de extinção.

Parece ser exemplo desse descumprimento contratual a hipótese que vem prevista no Art. 24, §1º - mal posicionado, por sinal. É que esse parágrafo prevê a extinção da superfície nos casos em que o superficiário der ao terreno destinação diversa daquela para a qual foi concedida.

Pela observação do próprio artigo, é de se notar que a deterioração ou perda do bem não é causa de extinção da superfície, já que é de sua natureza a faculdade de o superficiário novamente construir o bem.

De outro modo, a desapropriação, em qualquer de suas modalidades, embora não prevista no Art. 23, por óbvio, implica em extinção da superfície. Nestes casos, a indenização é paga ao proprietário, que deverá, eventualmente, repartir o valor proporcionalmente com o superficiário.

Com a extinção da superfície, o pleno domínio do terreno retorna às mãos do proprietário. Nele se incluem as acessões e benfeitorias, conforme disciplina o Art. 24 [16] do Estatuto.

O que acontece é que o proprietário, que durante a superfície manteve o domínio direto sobre o imóvel, retoma o domínio pleno, pois recupera as faculdades inerentes ao domínio útil.

Observa-se que o proprietário exercia o domínio direto sobre as acessões e benfeitorias e passa a exercer o domínio pleno também sobre elas, indenizando o superficiário apenas se houver estipulação contratual.

Por fim, enquanto a constituição do direito de superfície é registrada no cartório de imóveis, sua extinção é averbada.


5 Direito de Superfície no Código Civil

Uma das mudanças mais marcantes do Código Civil de 2002 para o de 1916 foi que, no Livro III, dedicado ao direito das coisas, há previsão do direito de superfície como direito real sobre coisa alheia.

Cristiano Chaves de Farias e Nelson Rosenvald (401), em sua obra, introduzem o assunto da seguinte forma:

No projeto do Código Civil de 1916 houve a inserção da matéria por Clóvis Beviláqua, mas a Comissão Revisora suprimiu o ingresso da temática. Também estava a superfície alinhado no anteprojeto do Código Civil de Orlando Gomes de 1963. Mas, pioneiramente, o Estatuto da Cidade (Lei n. 10.157/01) regulamentou os arts. 182 e 183 da Constituição Federal, introduzindo no ordenamento jurídico pátrio o direito de superfície. No Código Civil de 2002 a disciplina se instala no Livro do Direito das Coisas (arts. 1.369 a 1.377, do CC).

A finalidade do direito de superfície no Código Civil é atender às necessidades privadas.

A regra do Código Civil de 2002 é de que tudo que é plantado ou construído no solo é de propriedade do dono do solo. É o que consagra o art. 1.255 [17] do Código Civil.

Essa regra, porém, é relativizada com o direito de superfície. É que no caso do direito de superfície, a propriedade do que se plantou ou construiu será de propriedade desse terceiro que praticou o ato, permanecendo a propriedade do solo com seu proprietário.

Edílson Nobre Júnior leciona:

[o direito de superfície], como um direito incidente sobre um bem imóvel, independente do direito do solo sobre o qual é exercido. Tem como efeito excepcionar o brocardo latino quod solo inaedificatur solo cedit, consoante o qual tudo aquilo que é construído sobre o solo acede a este.

São essas as lições de Cristiano Chaves e Nelson Rosenvald (401):

Há um fenômeno de superposição de duas propriedades distintas. Nesta bipolarização da propriedade, o superficiário e o proprietário do solo atuam em esferas distintas. Enquanto o superficiário adquire a propriedade resolúvel das acessões (construções e plantações), o proprietário mantém a titularidade sobre o solo. Ou seja: ao contrário da dogmática dos direitos reais tradicionais de fruição (v.g.enfiteuse, usufruto), não há um desdobramento dos poderes dominiais, e sim a criação de duas propriedades autônomas.

Nota-se que no direito de superfície não há uma relação de subordinação. São duas propriedades autônomas e horizontalmente fracionadas. Cada uma dessas propriedades mantém seus atributos de uso, fruição, disposição e reivindicação.

O direito de superfície é firmado em um contrato solene por escritura pública levada a registro. Como já visto, a escritura pública, neste caso, independe do valor do imóvel, pois trata-se de exigência do próprio artigo. É possível que as partes estipulem neste contrato qualquer cláusula, desde que não atinja a legislação urbanística.

Após essa solenidade, o direito real de superfície constitui-se como direito real imobiliário.

A propósito, a superfície insere-se no Código Civil de 2002 em um rol numerus clausus de direitos reais (art. 1.225, II [18], CC).

Há uma diferença marcante entre a superfície prevista no Estatuto e a prevista no Código Civil. Esta só pode se dar por prazo determinado, enquanto que aquela admite estipulação por prazo indeterminado. Note-se que nenhuma delas permite a superfície perpetuamente.

O bem que será concedido em superfície é, num primeiro momento, incorpóreo. Após, o superficiário dará forma a esta superfície, construindo ou plantando.

Pelo Art. 1369 [19], CC, percebe-se que o legislador quis excluir a denominada superfície por cisão, ou seja, superfície de construções já edificadas antes do nascimento da superfície. Porém, a III Jornada de Direito Civil deu outra interpretação ao artigo, afirmando admitir-se a constituição do direito de superfície por cisão, o que pode ter grande utilidade no caso das construções mal conservadas.

Aqui, há também a possibilidade de disposição do direito de superfície, por transferência a terceiros via negócio jurídico ou pela sucessão dos herdeiros. Por obvio, diante da transmissão, o direito de superfície perdurará pelo tempo restante.

Cristiano Chaves e Nelson Rosenvald observam (407):

... nada impede que seja o direito de superfície objeto de transferência por legado, em razão de disposições testamentárias, com a possibilidade de inserção de cláusula de inalienabilidade da propriedade superficiária. Cuida-se de negócio jurídico mortis causa, que aqui poderia se aplicar sem lesão a normas de ordem pública.

O Art. 1369, parágrafo único [20], não autoriza obra no subsolo, exceto se isso for inerente à concessão feita, como, por exemplo, abertura de poço artesiano e canalização de águas até o local da plantação.

O direito de superfície poderá ser concedido de forma gratuita ou onerosa. Se onerosa, as partes podem estipular se o pagamento será integral ou parceladamente. A remuneração periódica do proprietário é chamada solarium ou cânon superficiário. Se gratuita, ainda assim será de grande utilidade para ambos os envolvidos, já que o proprietário, ao final, receberá o imóvel valorizado, sem ter investido para isso; ao passo que o superficiário terá tirado proveito econômico do mesmo enquanto durou a superfície.

Em todo o caso, o superficiário é quem deverá arcar com os encargos e tributos que incidirem sobre o imóvel. Não obstante a disposição expressa no Art. 1371 [21], as partes poderão estipular sobre o pagamento desses valores de forma proporcional entre o proprietário e o superficiário.

Cristiano Chaves e Nelson Rosenvald fazem uma observação interessante (409):

Não observamos inconstitucionalidade na regra, por suposta violação ao Art. 146, III, da Constituição Federal, que exigiria reserva de lei complementar para a definição de contribuintes e de tributos. Em sentido diverso, o Código Civil não criou nova espécie de contribuinte, e sim um responsável patrimonial em caráter de solidariedade passiva com o proprietário – contribuinte -, medida factível por meio de lei ordinária (art. 128 do CTN). Enquanto o contribuinte tem vínculo pessoal e direto com o fato imponível, o responsável se relaciona apenas de forma mediata com o fato gerador. Em suma, o poder público poderá cobrar as obrigações tributárias do proprietário ou do superficiário, ou mesmo de ambos.

Como ocorre no Estatuto, ocorrendo a alienação da superfície ou do imóvel, caberá ao proprietário ou superficiário, respectivamente, a preferência na aquisição daqueles.

Segundo Maria Helena Diniz (1097):

Aquele que preterir o direito de preferência do outro deverá pagar indenização pelas perdas e danos, e o preterido poderá depositar em juízo o valor igual ao pago pelo terceiro.

O Código ainda permite que o proprietário extinga o contrato no caso do superficiário dar destinação diversa à pactuada, sendo a extinção uma conseqüência do desvio de finalidade.

A extinção da concessão da superfície deverá ser averbada no Cartório de Registros Imobiliários. A partir daí, o proprietário do imóvel volta ter o domínio pleno, independente de indenização sobre a construção ou plantação realizada, salvo disposição expressa em contrário no contrato que instituiu a superfície.

Cristiano Chaves e Nelson Rosenvald (405) fazem uma importante observação quanto à destinação diversa da superfície:

... poderá o superficiário constituir ônus reais sobre o seu direito de propriedade, concedendo parcelas dominiais para a formação de direitos reais em coisa alheia, como o usufruto, servidão e direito de habitação.

Neste sentido, na III Jornada de Direito Civil do Conselho de Justiça Federal, aprovou o seguinte enunciado:

Enunciado n. 249: a propriedade superficiária pode ser autonomamente objeto de direitos reais de gozo e de garantia, cujo prazo não exceda a duração da concessão da superfície, não se lhe aplicando o art. 1474 [22].

Nos casos de desapropriação, a indenização deverá ser repartida entre o proprietário e o superficiário, do mesmo modo que ocorre no Estatuto da Cidade, no valor que corresponder ao direito de cada um deles.


6 Conflito aparente de normas

Como o direito de superfície acabou sendo reintroduzido no ordenamento jurídico por meio de dois diplomas legais distintos, faz-se necessário saber se houve a revogação do Estatuto da Cidade frente ao Novo Código Civil, no que tange ao direito de superfície.

Tendo em vista o Código Civil ter regulado a mesma matéria que já estava tratada no Estatuto da Cidade, alguns afirmam que o Código Civil teria revogado o Estatuto nesta matéria, segundo o §1º, Art. 2º da Lei de Introdução do Código Civil, que assim dispõe:

§ 1º A lei posterior revoga a anterior quando expressamente o declare, quando seja com ela incompatível ou quando regule inteiramente a matéria de que tratava a lei anterior.

Este é o raciocínio com o qual coaduna J. Miguel Lobato Gómez:

O Novo Código Civil é posterior à Constituição e, praticamente, a todas as leis especiais vigentes, incluindo o Estatuto da Cidade. Além disso, não cabe dúvida que os princípios fundamentais que inspiram o novo Código em matéria patrimonial podem considerar-se formal e materialmente, conformas a atual Carta Magna do Brasil, especialmente em matéria de função social da propriedade e do contrato. Portanto, ninguém pode argumentar que o código civil vigente, por mais que seja o resultado de um processo iniciado nos anos setenta, por mais que assuma conceitos, regras e princípios de direito patrimonial já consagrados no vetusto texto de 1916, não teve em conta a Constituição e não respeitou seus princípios fundamentais. Além disso, embora seja uma lei geral, é uma lei posterior que, se não derroga por completo nenhuma lei anterior, ao menos derroga tacitamente todos os preceitos das leis vigentes com antecedência, gerais e especiais, em tudo o que sejam claramente contrárias ou se oponham ao estabelecido nelas.

Noutro giro, há doutrinadores que apontam que o critério que deve prevalecer nesse conflito de normas é o da especialidade. Afirmam que o Estatuto da Cidade seria um microssistema, assim como o Código de Defesa do Consumidor.

Em casos como este, a prudência deve imperar, conforme ensina Maria Helena Diniz (2001:90):

Em caso de antinomia entre o critério de especialidade e o cronológico, valeria o metacritério lex posterior generalis non derrogat priori speciali, segundo o qual a regra de especialidade prevaleceria sobre a cronológica. Esse critério é parcialmente inefetivo, por ser menos seguro do que o anterior, podendo gerar uma antinomia real. A meta-regra lex posterior generalis non derrogat priori speciali não tem valor absoluto, dado que, às vezes, lex posterior generalis derogat priori speciali, tendo em vista certas circunstâncias presentes. A preferência entre um critério e outro não é evidente, pois se constata uma oscilação entre eles. Não há uma regra definida; conforme o caso, haverá supremacia ora de um, ora de outro critério.

Diante disso, não houve revogação e os dois diplomas legais co-existem, cada um em seu campo de incidência. Esta é a orientação aprovada na I Jornada de Direito Civil:

Enunciado n. 93 – As normas previstas no Código Civil, regulando o direito de superfície, não revogam as normas relativas a direito de superfície constantes do Estatuto da Cidade (Lei 10.257/2001), por ser um instrumento de política urbana.

Desta forma, prevalece o entendimento de que os dois diplomas convivem no que diz respeito ao direito de superfície. Não obstante, outra discussão é travada. Visando estabelecer o critério de fixação da especialidade, para saber qual a lei aplicável ao caso concreto.

Sarmento Filho (2008) resume a polêmica que envolve o tema:

Em primeiro lugar, existem aqueles que elegem como objeto determinante da especialidade o fator localização do imóvel (a). Desse modo, quando o imóvel sobre o qual se institui a superfície se localizar em área urbana, aplica-se o Estatuto da Cidade, ao passo que o Código Civil estaria reservado aos imóveis rurais.

Outros, por sua vez, consideram que a especialidade do Estatuto da Cidade não seria no sentido de aplicá-lo sempre que o solo fosse urbano, mas sim quando o direito superficiário fosse utilizado como instrumento de política urbanística (b).

Destarte, nos casos em que o direito de superfície não fosse utilizado como instrumento de política urbana, mas como simples aproveitamento econômico da propriedade pelos particulares incidiria o Código Civil, mesmo que o solo fosse situado no perímetro urbano.

Isto porque o Estatuto da Cidade, Lei n. 10.257/01, foi editado para dar cumprimento ao artigo 182 da CF/88, que trata da política de desenvolvimento urbano.

Assim, o que esses doutrinadores têm a dizer é que o Código Civil traz um direito de superfície como instrumento destinado a atender interesses e necessidades privados, ao passo que no Estatuto da Cidade, o direito de superfície é voltado para atender as necessidades do desenvolvimento urbano, viabilizando a função social da cidade. Destarte, o caso concreto, dentro desses motivos, determinaria qual o diploma legal o regeria.

Mesmo porque o Código Civil não revogou expressamente a lei especial, como o fez no caso do Código Comercial, o que demonstra que a vontade do legislador não foi a de revogar o Estatuto da Cidade.

Na verdade, o caso concreto dirá se é caso de aplicação do Estatuto da Cidade, do Código Civil ou dos dois, pois o aplicador do direito deve buscar harmonizar as normas provenientes de múltiplas fontes.

Por isso, Sarmento Filho (2008) exemplifica:

... se o município, por exemplo, desafetar uma praça e instituir o direito de superfície para explorar como estacionamento, incidirá as regras do Estatuto da Cidade.

Se, todavia, é o particular que constrói uma piscina no terreno vizinho sob o regime superficiário, aplicar-se-ia o Código Civil.

Percebe-se que não há incompatibilidade entre os dois regramentos, havendo apenas antinomias aparentes, facilmente superadas pelo diálogo das fontes.


Conclusão

O direito de superfície é um direito real sobre coisa alheia, no qual o proprietário de um imóvel tem a faculdade de conceder a um terceiro a propriedade das construções ou plantações que venha efetuar no solo, por tempo determinado ou indeterminado, mas nunca perpétuo. Para tanto, necessária a escritura pública no registro imobiliário.

O direito de superfície é uma forma de ordenar a propriedade urbana e incrementar sua função econômica, pela diversidade nas formas de utilização. Também é um importante mecanismo para o atendimento da função social da propriedade.

Este instituto surgiu no direito romano, e ao longo do tempo estava ou não previsto, dependendo da importância que se dava à propriedade. No direito medieval, por exemplo, a superfície foi utilizada como forma de legitimar construções já feitas em seu terreno. Já na Era Napoleônica, a concepção absoluta da propriedade não permitia tal fragmentação desta.

No direito brasileiro, a superfície, embora tenha sido prevista no projeto do Código de 1916, não permaneceu no texto que restou aprovado. Somente com o Estatuto da Cidade, de 2001, é que o direito de superfície foi introduzido no ordenamento brasileiro. Posteriormente, o Código Civil de 2002 também trouxe previsão do instituto.

O instituto previsto no Código Civil e no Estatuto apresentam algumas peculiaridades.

Enquanto no Estatuto, o proprietário poderá conceder o direito de superfície por tempo determinado ou indeterminado, no Código Civil, tal somente poderá ocorrer por tempo determinado.

O Estatuto permite que o superficiário utilize o solo, o subsolo ou o espaço aéreo relativo ao terreno. Já o Código Civil não autoriza obra no subsolo, exceto se for esta inerente ao objeto da concessão.

O Estatuto da Cidade e o Código Civil coexistem no nosso ordenamento. Não cabe, aqui, a aplicação das regras de revogação. O Estatuto da Cidade é lei especial e sua finalidade é diversa daquela apresentada pelo Código Civil. O Estatuto regula a disciplina urbanística, promovendo a função social da cidade. Já no Código Civil, o direito de superfície é tido como instrumento destinado a atender as necessidades dos particulares.


Referência Bibliográfica

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Notas

  1. Art. 182. A política de desenvolvimento urbano, executada pelo Poder Público municipal, conforme diretrizes gerais fixadas em lei, tem por objetivo ordenar o pleno desenvolvimento das funções sociais da cidade e garantir o bem-estar de seus habitantes.
  2. § 1º O plano diretor, aprovado pela Câmara Municipal, obrigatório para cidades com mais de vinte mil habitantes, é o instrumento básico da política de desenvolvimento e de expansão urbana.

    § 2º A propriedade urbana cumpre sua função social quando atende às exigências fundamentais de ordenação da cidade expressas no plano diretor.

    § 3º As desapropriações de imóveis urbanos serão feitas com prévia e justa indenização em dinheiro.

    § 4º É facultado ao Poder Público municipal, mediante lei específica para área incluída no plano diretor, exigir, nos termos da lei federal, do proprietário do solo urbano não edificado, subutilizado ou não utilizado, que promova seu adequado aproveitamento, sob pena, sucessivamente, de:

    I – parcelamento ou edificação compulsórios;

    II – imposto sobre a propriedade predial e territorial urbana progressivo no tempo;

    III – desapropriação com pagamento mediante títulos da dívida pública de emissão previamente aprovada pelo Senado Federal, com prazo de resgate de até dez anos, em parcelas anuais, iguais e sucessivas, assegurados o valor real da indenização e os juros legais.

    Art. 183. Aquele que possuir como sua área urbana de até duzentos e cinqüenta metros quadrados, por cinco anos, ininterruptamente e sem oposição, utilizando-a para sua moradia ou de sua família, adquirir-lhe-á o domínio, desde que não seja proprietário de outro imóvel urbano ou rural.

    § 1º O título de domínio e a concessão de uso serão conferidos ao homem ou à mulher, ou a ambos, independentemente do estado civil.

    § 2º Esse direito não será reconhecido ao mesmo possuidor mais de uma vez.

    § 3º Os imóveis públicos não serão adquiridos por usucapião.

  3. Regulamenta os arts. 182 e 183 da Constituição Federal, estabelece diretrizes gerais da política urbana e dá outras providências.
  4. Art. 4º Para os fins desta Lei, serão utilizados, entre outros instrumentos:
  5. V – institutos jurídicos e políticos:

    l) direito de superfície;

  6. Art. 21. O proprietário urbano poderá conceder a outrem o direito de superfície do seu terreno, por tempo determinado ou indeterminado, mediante escritura pública registrada no cartório de registro de imóveis.
  7. § 1º O direito de superfície abrange o direito de utilizar o solo, o subsolo ou o espaço aéreo relativo ao terreno, na forma estabelecida no contrato respectivo, atendida a legislação urbanística.

    § 2º A concessão do direito de superfície poderá ser gratuita ou onerosa.

    § 3º O superficiário responderá integralmente pelos encargos e tributos que incidirem sobre a propriedade superficiária, arcando, ainda, proporcionalmente à sua parcela de ocupação efetiva, com os encargos e tributos sobre a área objeto da concessão do direito de superfície, salvo disposição em contrário do contrato respectivo.

    § 4º O direito de superfície pode ser transferido a terceiros, obedecidos os termos do contrato respectivo.

    § 5º Por morte do superficiário, os seus direitos transmitem-se a seus herdeiros.

  8. Art. 581. Se o comodato não tiver prazo convencional, presumir-se-lhe-á o necessário para o uso concedido; não podendo o comodante, salvo necessidade imprevista e urgente, reconhecida pelo juiz, suspender o uso e gozo da coisa emprestada, antes de findo o prazo convencional, ou o que se determine pelo uso outorgado.
  9. Art. 104. A validade do negócio jurídico requer:
  10. I – agente capaz;

    II – objeto lícito, possível, determinado ou determinável;

    III – forma prescrita ou não defesa em lei.

  11. Art. 108. Não dispondo a lei em contrário, a escritura pública é essencial à validade dos negócios jurídicos que visem à constituição, transferência, modificação ou renúncia de direitos reais sobre imóveis de valor superior a trinta vezes o maior salário mínimo vigente no País.
  12. § 1º O direito de superfície abrange o direito de utilizar o solo, o subsolo ou o espaço aéreo relativo ao terreno, na forma estabelecida no contrato respectivo, atendida a legislação urbanística.
  13. Art. 1.229. A propriedade do solo abrange a do espaço aéreo e subsolo correspondentes, em altura e profundidade úteis ao seu exercício, não podendo o proprietário opor-se a atividades que sejam realizadas, por terceiros, a uma altura ou profundidade tais, que não tenha ele interesse legítimo em impedi-las.
  14. Art. 20. São bens da União:
  15. IX – os recursos minerais, inclusive os do subsolo;

    X – as cavidades naturais subterrâneas e os sítios arqueológicos e pré-históricos;

  16. Art. 176. As jazidas, em lavra ou não, e demais recursos minerais e os potenciais de energia hidráulica constituem propriedade distinta da do solo, para efeito de exploração ou aproveitamento, e pertencem à União, garantida ao concessionário a propriedade do produto da lavra.
  17. § 5º Por morte do superficiário, os seus direitos transmitem-se a seus herdeiros.
  18. Art. 22 Em casos de alienação do terreno, ou do direito de superfície, o superficiário e o proprietário, respectivamente, terão direito de preferência, em igualdade de condições à oferta de terceiros.
  19. Art. 683.  O enfiteuta, ou foreiro, não pode vender nem dar em pagamento o domínio útil, sem prévio aviso ao senhorio direto, para que este exerça o direito de opção; e o senhorio direto tem 30 (trinta) dias para declarar, por escrito, datado e assinado, que quer a preferência na alienação, pelo mesmo preço e nas mesmas condições.
  20. Se, dentro no prazo indicado, não responder ou não oferecer o preço da alienação, poderá o foreiro efetuá-la com quem entender.

    Art. 684.  Compete igualmente ao foreiro o direito de preferência, no caso de querer o senhorio vender o domínio direto ou dá-lo em pagamento. Para este efeito, ficará o dito senhorio sujeito à mesma obrigação imposta, em semelhantes circunstâncias, ao foreiro.

    Art. 685.  Se o enfiteuta não cumprir o disposto no art. 683, poderá o senhorio direto usar, não obstante, de seu direito de preferência, havendo do adquirente o prédio pelo preço da aquisição.

  21. Art. 23 Extingue-se o direito de superfície:
  22. I – pelo advento do termo;

    II – pelo descumprimento das obrigações contratuais assumidas pelo superficiário.

  23. 24 Extinto o direito de superfície, o proprietário recuperará o pleno domínio do terreno, bem como das acessões e benfeitorias introduzidas no imóvel, independentemente de indenização, se as partes não houverem estipulado o contrário no respectivo contrato.
  24. §1º Antes do termo final do contrato, extinguir-se-á o direito de superfície se o superficiário der ao terreno destinação diversa daquela para a qual for concedida.

    §2º A extinção do direito de superfície será averbada no cartório de registro de imóveis.

  25. Art. 1.255. Aquele que semeia, planta ou edifica em terreno alheio perde, em proveito do proprietário, as sementes, plantas e construções; se procedeu de boa-fé, terá direito a indenização.
  26. Art. 1.225. São direitos reais:
  27. II - a superfície;

  28. Art. 1.369. O proprietário pode conceder a outrem o direito de construir ou de plantar em seu terreno, por tempo determinado, mediante escritura pública devidamente registrada no Cartório de Registro de Imóveis.
  29. Parágrafo único. O direito de superfície não autoriza obra no subsolo, salvo se for inerente ao objeto da concessão.
  30. Art. 1.371. O superficiário responderá pelos encargos e tributos que incidirem sobre o imóvel.
  31. Art. 1.374. Antes do termo final, resolver-se-á a concessão se o superficiário der ao terreno destinação diversa daquela para que foi concedida.

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Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

TEIXEIRA, Ivo Jorge Rocha. Direito de superfície e o aparente conflito de normas entre Código Civil e Estatuto da Cidade. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 15, n. 2451, 18 mar. 2010. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/14506. Acesso em: 28 mar. 2024.