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Na rota da violência: crianças em contexto armado

Na rota da violência: crianças em contexto armado

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O artigo analisa, de uma perspectiva sociocultural construtivista, os processos de canalização cultural no desenvolvimento e participação de crianças em organizações criminosas no Rio de Janeiro e em outros contextos de violência armada.

Neste artigo analisam-se, de uma perspectiva sociocultural construtivista, os processos de canalização cultural no desenvolvimento e participação de crianças em organizações criminosas no Rio de Janeiro e em outros contextos de violência armada. A partir dos dados trazidos pelas pesquisas de Dowdney (2003, 2005) e do Observatório de Favelas (2006), são discutidos o conceito de infância, e os principais fatores que contribuem para o desenvolvimento de crianças em tais contextos, como as estratégias de aliciamento, por parte de adultos, que colaboram para o ingresso, permanência e utilização de crianças em atividades criminosas. São destacados os contextos escolar e laboral, sempre presentes na narrativa dos sujeitos que participaram das pesquisas mencionadas. Conclui-se que o estudo do tema exige a adoção de uma perspectiva sistêmica que considere desde o conjunto de fatores histórico-culturais que deram origem às práticas e à cultura coletiva das comunidades armadas, até questões como autonomia e responsabilidade social dos sujeitos. O artigo propõe, igualmente, que é preciso criar espaços coletivos de expressão e co-construção de significados a partir dos quais surgirão novas práticas socioculturais que promovam reflexões pessoais e coletivas, no sentido da promoção do desenvolvimento saudável de sujeitos e da comunidade.

Palavras chave: crianças; violência; concepção de infância; canalização cultural; sociocultural.


Introdução

Os contextos em que as crianças se encontram afetadas pela violência armada e organizada vêm despertando interesse da comunidade científica. Algumas pesquisas (Dowdney, 2002, 2005; Observatório de Favelas, 2006) vêm apresentando relatórios detalhados que descrevem centenas de entrevistas de situações nas quais, freqüentemente, as crianças são levadas a tomar sérias decisões, e inclusive a cometer homicídios. O presente artigo apresenta uma perspectiva geral sobre esta questão a partir de um ponto de vista sociocultural construtivista, analisando como, de forma complexa e paradoxal, estas crianças e jovens adolescentes que aparentemente acabam por atuar de forma independente do adulto — o que sugeriria um certo grau de protagonismo — são igualmente dominadas e subjugadas nos contextos de violência organizada. É importante destacar que a obtenção de dados no interior de comunidades dominadas pelos grupos criminosos do tráfico de drogas é extremamente difícil e perigoso, motivo pelo qual se justifica a necessidade da análise exaustiva das informações disponíveis por meio de pesquisas já divulgadas.

A percepção de que crianças [01], em contexto de violência armada, se relacionam de forma bastante distinta com os adultos, assumindo um certo grau de independência em relação a estes, partiu da análise de várias pesquisas e relatórios sobre a participação de crianças em conflitos armados e em criminalidade organizada. Este artigo aponta para o fato de que, quando crianças e adultos se encontram nessas situações, as relações de cuidado, distribuição de responsabilidade e as interações entre pessoas de faixas etárias diferentes se estabelecem e se desenvolvem de forma muito diversa dos padrões mais encontrados na sociedade.

Ao investigar as descrições das funções assumidas pelas crianças em contextos armados, e ao analisar a forma com que se realiza o seu recrutamento, o emprego que fazem das armas de fogo e o exercício da liderança, é preciso proceder uma análise crítica de boa parte do conjunto de fatores que contribem para um conceito de "infância" (e.g. Ariès, 1978; Krammer, 2003) bastante diverso daquele que usualmente circula, em especial, no contexto da cultura urbana ocidental. O poder da cultura na definição do que é ou não é o "ser criança", de perto relacionada a questões sobre relações de poder (Foucault, 1984) se apresenta aqui de forma nítida e contundente. Nesta direção é que o presente trabalho adota uma perspectiva teórica recentemente denominada psicologia sociocultural construtivista, ou co-construtivista (e.g. Branco, 2003; 2006; Rogoff, 2005; Valsiner, 2007; Wertsch, 1998), com forte ênfase no papel da cultura (Bruner, 1997; Shweder, 1990; Valsiner, 2007) e da canalização cultural (Valsiner, 1998) sobre a construção ativa e pró-ativa do sujeito em seu próprio desenvolvimento (Piaget, 1994; Valsiner, 1998, 2007).

As informações e análises a seguir apresentadas têm por objetivo descrever as condições em que foram observadas e investigadas as relações entre adultos e crianças em diferentes contextos armados. Com base nesses dados de pesquisa serão analisados os processos de co-construção de significados e crenças, que acabam por orientar as práticas socioculturais e individuais aqui destacadas. Merecem especial atenção os relatos sobre as relações entre adultos e crianças que indicam elementos que possam auxiliar na análise do desenvolvimento de um suposto protagonismo infantil, bem como da construção coletiva de significados sobre as relações entre adultos e crianças.

Sobre as crianças aliciadas por quadrilhas do tráfico de drogas, os estudos de Dowdney (2003, 2005) descrevem, com detalhes e entrevistas, o ponto de vista de adultos e crianças sobre suas relações no contexto dos grupos dos quais participam. O trabalho publicado em 2003 descreve uma pesquisa de campo inteiramente realizada na cidade do Rio de Janeiro. Estes dois trabalhos serão analisados conjuntamente.

De acordo com os dados levantados por Dowdney (2003), cerca de 5 mil crianças armadas estão envolvidas nas disputas de facções do tráfico de drogas por controle de território no Rio de Janeiro, em condições muito semelhantes às de crianças que atuam como soldados em conflitos armados de variados graus de intensidade ao redor do mundo, e que não se caracterizam oficialmente como guerra civil ou guerra declarada entre países.

A discussão acadêmica que se formou em torno da polêmica sobre a conveniência e desvantagens de assemelhar a utilização de crianças pelos traficantes de drogas do Rio de Janeiro às crianças-soldado, que atuam em conflitos armados no mundo, foi muito improdutiva sob o ponto de vista prático. Preponderou o fato de que a cidade não está, oficialmente, em guerra. Assim, segundo alguns pesquisadores, a identificação das crianças utilizadas pelo tráfico de drogas como soldados seria um equívoco, pois poderia provocar a perda dos direitos civis destas crianças e legitimar o uso da força excessiva do Estado contra elas (Viva Rio, 2007).

No entanto, essa preocupação parece infundada, uma vez que as semelhanças entre os casos não são fatores suficientes para provocar a perda de direitos civis de quem quer que seja. Além do mais, significa superestimar o poder de influência de uma definição acadêmica que, por si só, não tem nenhum efeito jurídico, e de forma alguma a sua enunciação anulará a aplicação do direito interno brasileiro. Na verdade, esse tipo de violência já vem ocorrendo, o que é demonstrado pelas estatísticas de vitimização de adolescentes e jovens moradores de favelas, assunto que será discutido mais adiante.

No entanto, quando se trata de investigar violações dos direitos humanos, é sempre bom lembrar que este consiste em um assunto controverso, polêmico e dificilmente passível de solução acadêmica genérica sem que estejam disponíveis as informações detalhadas sobre o caso concreto que se pretende analisar. Além disso, é importante ter em mente que uma arma automática carregada é perigosa na mão de qualquer adulto habilitado, quanto mais nas mãos de crianças que, manifestamente, têm a intenção de utilizá-la. O direito à vida deve ser garantido a todos, indistintamente. Os conflitos de valores daí decorrentes se estendem a difíceis questões morais, cujos indícios disponíveis mostram que a sociedade brasileira está longe de conseguir equacionar. A comparação entre crianças que trabalham para o tráfico de drogas e crianças-soldado pode ter diversas interpretações, e uma perspectiva sistêmica, característica da abordagem sociocultural, exige a adoção de um posicionamento crítico acerca dos significados em jogo e de suas conseqüências no que tange ao contexto social. Sendo assim, é dever do pesquisador realizar um esforço no sentido de identificar e analisar o máximo de fatores aí envolvidos, evitando, a priori, a tomada de "partido", principalmente em relação às questões complexas do âmbito da segurança pública.

O estudo de crianças que participam de contextos de violência armada nos auxilia na discussão dos critérios e das canalizações culturais que vêm, historicamente, sendo utilizados para a definição de "infância". Afinal, quais são os critérios de permanência e término da infância adotados pelos grupos que praticam a violência armada?


Crianças na violência armada e organizada ligada à criminalidade urbana

A comunidade científica vem conduzindo algumas pesquisas sobre a participação de crianças em atividades de violência armada no Brasil. Neste artigo são abordados os dados apresentados por Dowdney (2003, 2005) e pelo Observatório de Favelas (2006). A primeira pesquisa (Dowdney, 2003) foi realizada de novembro de 2001 a agosto de 2002, e trata das funções assumidas por crianças e adolescentes nas quadrilhas de traficantes em favelas do Rio de Janeiro, moradores de áreas de alto risco social. Dowdney (2003) discute a história, a estrutura e a organização dessas quadrilhas de traficantes. Durante a fase da pesquisa de campo, foram identificados cerca de 5.000 crianças e adolescentes que mantinham alguma vinculação com as quadrilhas.

Em outro trabalho, Dowdney (2005) compara a participação de crianças e jovens em grupos armados de 10 países: Brasil, Colômbia, Equador, El Salvador, Honduras, Jamaica, Nigéria, Filipinas, África do Sul e Estados Unidos, localizados em quatro continentes. A estratégia metodológica do estudo contou com a consulta a fontes bibliográficas e a realização de entrevistas informais, semi-estruturadas e formais com 120 crianças e adolescentes, todos membros de grupos armados. A pesquisa de campo se deu de 2003 a 2004 e tratou de três temas preponderantes: resumos contextuais dos grupos criminosos; as formas de participação de crianças e jovens nesses grupos; e as políticas sociais para tratar o envolvimento das crianças e jovens.

Outro relatório que servirá de fonte de dados é o sumário executivo da pesquisa intitulada Caminhada de Crianças, Adolescentes e Jovens na Rede do Tráfico de Drogas no Varejo do Rio de Janeiro, 2004-2006 (Observatório de Favelas, 2006). Esta pesquisa foi realizada com 230 sujeitos, em 34 comunidades carentes da cidade do Rio de Janeiro. O trabalho iniciou-se em junho de 2004 com a aplicação de um questionário com 94 questões relativas às relações dos adolescentes e jovens com a rede do tráfico de drogas. Em 2005 e 2006, a pesquisa foi atualizada por meio de encontros adicionais com os mesmos sujeitos.

As informações documentadas nessas pesquisas relatam uma riqueza de detalhes muito grande, tendo em vista a realização de um grande número de contatos das equipes de pesquisa com as crianças e adolescentes. As entrevistas versaram sobre diferentes aspectos de suas relações com o grupo, suas famílias, a comunidade etc, e sobre aspectos referentes à sua subjetividade, opiniões, planos e desventuras. Ambas as pesquisas de Dowdney (2003, 2005) procuram caracterizar o contexto mais amplo em que as crianças estão inseridas, e no relatório da pesquisa mais recente, o autor argumenta sobre a enorme semelhança entre as quadrilhas armadas nos países investigados. Afirma que os grupos agem de forma a dominar um determinado território e são ativos em áreas bastante definidas, particularmente nas áreas mais pobres e sob risco social.

Esses grupos costumam exercer o domínio das comunidades em que se inserem em medida diretamente proporcional ao seu poder armado. Quanto mais armado é o grupo, mais intervém e domina as práticas da comunidade. Todos os grupos estudados envolvem-se em confrontos com grupos rivais e com as forças de segurança. Na maior parte das vezes, os confrontos ocorrem para o controle de território onde se desenvolverão suas atividades criminosas.


Como as crianças se envolvem nas organizações criminosas?

O processo de envolvimento de crianças nos grupos é descrito como sendo muito semelhante. Dowdney (2003, 2005) e Observatório de Favelas (2006) afirmam que este se inicia com o ingresso da criança por volta dos 10 anos de idade e as primeiras atividades e o envolvimento se dão progressivamente, sob a forma de prestação de pequenos serviços. O processo é lento, podendo levar meses ou anos para que uma criança seja considerada um membro integral da quadrilha. As entrevistas realizadas com moradores mais antigos nas favelas do Rio de Janeiro revelaram que, nos anos 80, o emprego de crianças não era comum. Este fenômeno teve um incremento acelerado a partir dos anos 90 e, atualmente, os menores de 18 anos representam de 50 a 60% da força de trabalho à disposição dessas quadrilhas. Dowdney (2005) relata algumas narrativas:

Antigamente, os adolescentes e crianças eram só aviõezinhos. Elas não ficavam naquele meio (...) agora não, agora elas andam armadas mesmo. (p.115)
          Morador de Favela - Rio de Janeiro

Eu me envolvi porque não voltei pra escola, eu não tinha dinheiro e me divertia com eles [bandas], andando de moto e essas coisas. Eu tinha 12 anos, eu já conhecia alguns dos caras do grupo. Eu comecei a conhecer eles melhor e andar com eles o dia todo. Eu gostava de tudo que eles faziam: as motos, o dinheiro... Isso excita qualquer um. As pessoas entram no grupo por essas coisas, senão eu não participaria. Eu gosto de festas e de andar com garotas. (p. 116)
          Membro de uma banda delinqüente - Medelin - Colômbia

Dowdney (2005, p. 73) apresenta o ingresso de crianças nos grupos criminosos segundo um modelo de cinco estágios, cada um com características próprias. Inicialmente, dá-se a exposição ao grupo pelo contexto do local onde a criança transita. Em seguida, a introdução por amigos ou por integrantes da família. A etapa seguinte consiste na fase de transição ("acompanhando", prestando favores, realizando pequenas tarefas ou se tornando aprendiz). Segue-se a participação plena (o sujeito é considerado confiável, e pode se submeter ao rito de passagem [02]), e a partir daí recebe uma arma de fogo, sendo considerado membro integral do grupo.

A quantidade de adolescentes do sexo masculino que tenta ingressar nos grupos criminosos locais torna desnecessária uma política de recrutamento ativo na maioria dos casos. A pesquisa (Dowdney, 2005) indica que a maioria dos entrevistados relatou que o seu ingresso no grupo se deu de forma racional e voluntária. O pesquisador argumenta que, sob o ponto de vista das crianças, o ingresso nesses grupos lhes proporciona melhores condições de reagir aos riscos sociais a que estão sujeitos. No entanto, os entrevistados indicam que a escolha em aderir a um desses grupos depende da pessoa, que é formada pelos diversos tipos de influência e de opções a que cada um tem acesso. A pesquisa do Observatório de Favelas (2006) também relata narrativas semelhantes de entrevistados que afirmam não terem sido forçosamente recrutados para o tráfico.

Sobre a questão das funções exercidas, ambos os estudos de Dowdney (2003, 2005) concluem que, inicialmente, em todos os grupos, as crianças estão subordinadas a outros integrantes mais experientes. Cada grupo tem o seu sistema de regras para a disciplina interna e funções razoavelmente definidas. Em todos os casos estudados por Dowdney (2005), as noções de idade adulta não são baseadas em um critério cronológico, mas na capacidade do sujeito realizar as funções necessárias ao grupo, como usar armas de fogo e compartilhar dos códigos e crenças culturais específicos do grupo. As funções não armadas, basicamente, consistem no apoio às atividades criminosas: ser olheiro, espião, informante, carregar, limpar e guardar armas. Quando utilizam armas, trabalham de guarda-costas, executam escoltas, defendem territórios e/ou bens, executam patrulhas armadas, vendem drogas, participam de confrontos armados e cobram tributos.

Você começa olhando.... e tem um traficante... onde você mora, você conhece aquele moleque que nasceu contigo, que tá lá hoje... tu conhece ele, ele pede pra você guardar uma arma ou... guardar alguma coisa pra ele... você vai guardando, daqui a pouco você se... tá entrando no meio, sem você perceber, você já está no meio. (Dowdney, 2005, p.74)
          Adolescente de 16 anos - Morador de Favela - Brasil

Segundo o autor, as pesquisas indicam que todos os grupos, em algum momento, fornecem armas às crianças. As narrativas relatam que as crianças recebem a primeira arma para uso pessoal entre os 12 e 14 anos, e que parte das crianças entrevistadas admitiu ter atirado e matado outras pessoas.

Embora não haja um padrão rígido, observa-se o procedimento comum a todos os grupos investigados em disponibilizar armas para crianças e adolescentes. Na maior parte dos casos, tanto a posse de armas de fogo, quanto a execução de tarefas mais diretamente ligadas ao crime se percebe que a criança ou o adolescente pode desempenhar uma função dentro da estratégia da organização criminosa, momento em que, pelo menos nominalmente, a infância é percebida como tendo acabado e a idade adulta começado. Esse é um elemento particularmente importante, pois serve como indicador empírico das diferentes possibilidades de construção social da infância. Para esses grupos, o critério não é cronológico, mas são outros, como a compreensão cultural do que é ser adulto ou a capacidade da pessoa trabalhar e usar arma de fogo, o que vai ao encontro dos seus objetivos operacionais.

Os jovens da comunidade de Craig Town, na Jamaica, relataram que não apreciam a participação de garotos de 12 anos armados em gangues, e que fariam tudo para impedir crianças dessa idade de ingressar nos grupos. Todavia, afirmaram ser aceitável que garotos de 14 andassem armados e em gangues, já que nessa idade são considerados "suficientemente homens".

Dowdney (2003, 2005) conclui que existem outros critérios que orientam a significação que esses grupos dão ao período que chamamos de infância. Para eles, ter deixado a infância era um critério aceitável para que crianças recebessem armas e realizassem atividades consideradas pela sociedade como criminosas. Um exemplo que ajuda a apoiar essa argumentação ocorre em Maguindanao, nas Filipinas. Esta é uma província, onde certas crenças proclamam que a idade adulta começa no início da puberdade, de 13 a 15 anos. Nas comunidades dessa região é comum que crianças recebam armas de seu próprio pai com vistas a prover a defesa da família e da comunidade. Essas práticas significam que armar crianças não é entendido como algo extraordinário pelos habitantes dessa região (Dowdney, 2005, p. 100).

O critério mais comumente utilizado pelos criminosos para indicar o fim da infância é a capacidade do jovem de usar uma arma. Um membro adulto dos Egbesu Boys, grupo nigeriano, quando perguntado se crianças recebiam armas, respondeu: "Ah! Logo depois que você começa a usar uma arma, você não é mais criança, você é então adulto" (Dowdney, 2005, p. 100, grifo nosso). O estudo indica, assim, que contextos histórico-culturais caracterizados por uma necessidade de trabalhadores armados leva a uma construção de significado sobre a infância bastante diversa daquela compartilhada pelos adultos da classe média urbana na sociedade ocidental.

Na África do Sul, o envolvimento de crianças em atividades tradicionalmente observadas no comportamento adultos, como crimes sérios e uso de armas de fogo, não foi relatado como relacionado a alguma idade específica a partir da qual a criança tomaria parte nas ações do grupo. Em vez disso, os entrevistados julgavam que o critério mais importante e decisivo é a capacidade para realizar o serviço. Não há tarefa proibida para adolescentes que mostrem possuir as capacidades certas nas gangues de rua de Manenberg. De forma semelhante, para esse Vice-Lord desconhecido, em Chicago, quando se trata de vender drogas, a capacidade conta mais que a idade:

Não depende da idade, depende da esperteza. Certas pessoas são feitas pra certas coisas. Certas pessoas não conseguem guardar as próprias drogas em separado. A mente delas não foi feita pra isso. Certas pessoas foram feitas pra ficar de olho, outras pra cozinhar, têm certas coisas que certas pessoas fazem, elas sabem o que fazer [...] Não é pela idade, é pelo conhecimento (Dowdney, 2005, p.101, grifo nosso)
          Vice-Lord, Chicago

Em El Salvador, membros de gangues que haviam matado disseram que, na primeira ocasião, haviam ficado assustados, mas que depois da primeira morte ficava mais fácil. Quando perguntado sobre como se sentiu após matar a primeira vítima, um entrevistado respondeu: "(...) naquele dia eu não dormi, quando me via atirando nele... E como eu chorei, eu não dormi bem. Depois eu fiquei viciado em matar". Além de se tornarem psicologicamente afetados, a participação em níveis intensos de violência letal também provocou nos entrevistados uma atitude muito fatalista em relação à própria morte, que visualizavam como precoce e violenta:

Eu acho que vou acabar do mesmo jeito que meu pai [morto num conflito], porque nesse tipo de trabalho, coisas assim acontecem. É por isso que desde agora eu já estou economizando pra educação dos meus irmãos e irmãs. (Dowdney, 2005, p.283)
          Membro de 17 anos de um CVO, que ingressou aos 14, Filipinas

Meu futuro, só vendo mesmo aí [na boca] qual vai ser meu futuro. Se eu vou conseguir ficar aí até 18 anos. Se eu não dé mole eu fico, se eu não dé mole aí pros polícias me agarrar à toa e me matar eu fico. (Dowdney, 2005, p.118)
          Olheiro, 14 anos, Rio de Janeiro

Dowdney (2003) afirma ser comum os traficantes adultos declararem que o tráfico não é um trabalho adequado para crianças ou menores de 18 anos. No entanto, quando perguntados sobre a participação ativa de crianças e adolescentes, inclusive com o uso de armas, os entrevistados não avaliaram a infância ou a menoridade segundo o critério de idade, mas segundo a maturidade e a capacidade necessárias às atividades cotidianas do tráfico (Dowdney, 2005, p.128).

Entrevistador – Você acha normal que crianças estão andando armadas?
          Soldado – Ué, a gente usa prá se defender. Crianças não. Como eu disse, anda quem tá preparado.
          Entrevistador – Mas, pessoas de 13, 14 anos é criança.
          Soldado – É, mas tem uns que já é mais preparado prá manusear a arma.
          Soldado, 18 anos

Outra definição muito comum acerca da infância baseia-se na confiança e na maturidade. Em outro exemplo, pode-se observar a dificuldade que o entrevistado (gerente) tem para explicitar o critério para diferenciar crianças de adultos, principalmente se considerada a dimensão cronológica.

Gerente – Ah, se a criança, ou algum menor quiser vir... a gente não deixa entrar no tráfico. A gente não deixa. A gente não deixa. Por isso que ninguém pede prá entrar.
          Entrevistador – Mas eu já conversei com vários menores que trabalham no tráfico, que foram deixados entrar.
          Gerente – Menor sim... de certa idade... aqueles menor. A gente fala os...já tá mais adulto, é isso que eu quero dizer, os já mais adulto.
          Entrevistador – O que que é uma criança então prá você? Até que idade?
          Gerente – Poxa, até 14 anos.
          Entrevistador – Até 14 anos é uma criança.
          Gerente – 14 já tá... prá cima já sabe...
          Entrevistador – Já sabe o quê?
          Gerente – É, de 13, né... prá baixo ainda é criança.
          Entrevistador – Então, de 13 prá cima, é... já era, é adulto.
          Gerente – É. Quem a gente considera os mais adultos, os que já... a gente já sente mais confiança... os que já levam... a gente já sente mais firmeza na conversa, no papo.
          Entrevistador – ... Você achava que quando você tinha 14 anos e você entrou no crime você era criança?
          Gerente – Não! Eu não me achava mais criança. (Dowdney, 2005, p.129, grifo nosso)
          Gerente de preto, 23 anos

A mesma pesquisa apresenta a narrativa de um outro gerente de boca que afirmou que o término da infância se dá quando a criança começa a pensar como um criminoso, e não como criança, perdendo assim a inocência e a sua condição infantil (Dowdney, 2005, p.129). Este gerente de boca, com 16 anos, ao falar da questão, diz: "Assim menos de tamanho, mas que (...) já matava, já cortava. Já tinha mente criminosa (...) eles tinham maldade na mente. A mente deles era muito maldosa, já". (p. 129). Em seguida afirma: "Eu me sinto como jovem, mas minha mente já é muito poluída...tem muita maldade" (p. 130). Um gerente de segurança de 17 anos disse que, uma vez envolvido no negócio, a diferença entre menor e adulto não existe mais. Além do mais, ele, pessoalmente, considerava os menores como sendo freqüentemente mais competentes que os adultos em certas funções do tráfico, como citamos anteriormente.

Além da confiança, da capacidade e do "preparo" serem definitivos quando os traficantes examinam a noção de infância e o que é ser "menor", a compreensão da responsabilidade individual era outro fator a influenciar os entrevistados sobre o que é ser ou não ser criança. Isso tem relação com opções de vida, isto é, se um menor faz a opção de envolver-se com o tráfico – como os entrevistados afirmam ser sempre o caso – e está "preparado" para essa opção, então o menor é responsável pelo que venha a lhe acontecer, inclusive morrer.

As noções de responsabilidade pessoal e de opção individual sempre aparecem nas entrevistas com traficantes de qualquer idade, pelo menos como uma forma de justificar o porquê da utilização de crianças pelos criminosos, uma vez que isso não é aceitável diante da sociedade, das normas jurídicas e de grande parte da própria comunidade onde esses grupos atuam. Esse é um dos paradoxos com os quais os grupos convivem, pois existe a reprovação coletiva acerca da iniciação de crianças em atividades criminosas. Isso reflete uma orientação individualista dos que se encontram envolvidas no tráfico, pois é mais fácil atribuir ao indivíduo a decisão de aderir ao grupo. Mais adiante, será discutido como estas pessoas insistem na responsabilidade individual daqueles que integram a estrutura de trabalho do tráfico nas favelas, afinal esta tribuição é muito funcional como argumento para justificar o ingresso "voluntário" de jovens de menor idade, com isto isentando a pressão do grupo social neste ingresso precoce.

Apesar de concordarem, hipoteticamente, que é errado empregar crianças no tráfico, ao avaliar em termos práticos as crianças e adolescentes que já iniciaram o processo de "andar" com traficantes, os próprios traficantes não mais consideram ou se referem à condição infantil de seus jovens membros. Agora já são "adultos", pois eles "querem", "sabem" e "decidem" fazer parte de um mundo no qual cada um é considerado completamente responsável por suas opções, individualmente responsável por essas escolhas. Segundo duas narrativas apresentadas por Dowdney (2005, p.132), o critério que vale é a destreza, o compromisso, a intenção:

Isso não é certo pra criança... Eu acho que não é certo. Mas entra quem qué, cada um tem seu destino, sua vida. Cada um faz o que qué, tem sua vida.
          Fiel do gerente-geral, 16 anos

Deus deu uma vida para cada um. Tá ligado, você tem a sua e eu tenho a minha, e a direção está na sua frente, você escolhe.
          Gerente, 17 anos

Esse último gerente, portanto, acredita que todos aqueles que entram para o tráfico sob suas ordens agem assim por opção pessoal. Entende que é óbvio para alguém que cresceu em meio ao tráfico, saber no que está se envolvendo. Um subgerente chegou a queixar-se de que menores eram difíceis de controlar, especialmente quando cresceram perto do tráfico na maior parte do tempo e querem sobrepujar traficantes mais velhos.

Pô, porque hoje já fica mais difícil controlar um... moleque de... 15 anos, vive desde de ... dez anos... o tráfico, vendo arma, vendo... porra, o bandido dando tiro, então quando ele entra... pô, ele entra mermo... aí para... prá metê bala mermo... menor sempre é mais... complicado de segurar do que os mais velho, mais velho sempre... tenta segurar os mais novos, mas fica meio difícil. (Dowdney, 2005, p.132, grifo nosso)
          Gerente de maconha, 23 anos

O acirramento dos conflitos tem levado as forças legais a deixar de ter reservas quanto a atirar em crianças como ocorria quando começaram a ser usadas em confrontos. Nos dias atuais ocorre o inverso, uma vez que crianças e adolescentes são mais ágeis, rápidos, pequenos, muitas vezes intrépidos; podem usar armas leves com eficiência, senão com precisão, e são difíceis de se manter presos quando detidos. Estas são as principais razões, apontadas pelos próprios traficantes, pelas quais crianças e adolescentes são acolhidas nas organizações criminosas como trunfos valiosos.

Essa forma de articular crenças, valores e a realidade é bastante funcional para auxiliar os criminosos a atingirem os seus objetivos. Empregar especialmente crianças em atividade proibidas e criminosas é vantajoso sob o ponto de vista operacional por diversos motivos: destemor, inexperiência, disponibilidade, baixo custo, menor risco de ameaça à hierarquia dentro do próprio grupo, entre outros.

Com tantas armas em circulação, a necessidade de combatentes, e o envolvimento crescente de crianças no tráfico, a utilização de armas pelas crianças segue a lógica esperada para que elas tomem parte nos conflitos territoriais entre facções e entre estas e as forças de segurança.

Como já visto, crianças e adolescentes, segundo suas próprias narrativas e a dos adultos envolvidos no tráfico, não são forçados a juntar-se às facções, entram "voluntariamente". Mas existem razões importantes pelas quais crianças e adolescentes são eficientes no combate armado e por que os traficantes adultos tomaram a decisão generalizada de "aceitá-los" e logo armá-los para as suas atividades criminosas.

Um bandido famoso no início dos anos 80 (conhecido pela alcunha de Meio Quilo), foi citado por um ex-traficante que trabalhou com ele como sendo um dos primeiros a empregar crianças e a compreender o seu valor em combate. Na entrevista, ele afirma que "a criança era mais rápida, a criança corria mais, mais ágil, era menor, passava entre buraco dentro da favela...". Em outra parte da entrevista ele ilustra os motivos do início do emprego de crianças no tráfico (Dowdney, 2005, p. 164).

Eu posso até tá enganado em dizer que ele foi o primeiro, mas que ele foi um dos pioneiros a usar isso como arma, a presença da criança como arma, porque eu já vi várias vezes o policial deixar de atirar porque era uma criança [...no] início, hoje em dia não tem mais isso, até porque a criança já perdeu aquela aura de que pô, "é só uma criança eu não vou atirar nela", [agora é] "vou atirar mais" porque os ossos não tão bem definidos e o corpo é mais delgado, é mais flexível, e o metabolismo da criança é mais acelerado, então "eu tenho que atirar para matar, se eu não atirar pra matar ele vai continuar vivo e vai atirar em mim." Agora atiram pra matar. Como eles tentaram atirar pra matar em mim por exemplo. Te falei né, eu levei um tiro aqui, na altura dessa costela aqui.
          Ex-traficante dos anos 80

Acompanhando seu envolvimento crescente nos combates armados entre facções e com a polícia, crianças e adolescentes também se tornaram alvos legitimados de execuções policiais, sendo alvejados abertamente durante os confrontos. Em razão do perigo que constituem crianças utilizando fuzis de assalto em confrontos armados, a polícia também não as percebe mais como crianças. Em alguns casos, são consideradas mais perigosas que os adultos. Um Major da Polícia Militar do Rio de Janeiro explicou aos pesquisadores os motivos (Dowdney, 2005, p. 170):

O potencial ofensivo de uma criança ou de um adolescente com uma arma de fogo é muito superior ao de um adulto armado. [...] Em razão do nível de maturidade da criança ou adolescente, [...] a possibilidade do adulto atirar no policial é muito menor do que criança ou adolescente atirar.

Ao estender-se em suas explicações, o oficial declarou que um policial experiente sempre atira primeiro numa criança armada que o ameaça, enquanto o policial inexperiente hesita antes de atirar. Isso ocorre porque o policial experiente conhece o perigo oferecido por uma criança portando uma arma, mas o inexperiente ainda não aprendeu isso.


Canalização cultural, subjetividade e a utilização de crianças no crime

Sob o ponto de vista psicológico, é interessante analisar os dados das pesquisas anteriormente descritas com base na compreensão dos motivos e significados que orientam criança, adolescentes e adultos, nesses contextos de violência, em suas relações uns com os outros. Para tanto, é necessário articular elementos das dimensões coletiva e individual, por meio da análise das interações sociais, das narrativas levantadas a partir das entrevistas com os sujeitos, de forma a destacar a cultura como elemento integrante do sistema de funções psicológicas desenvolvidas pelo indivíduo na organização histórica de seu grupo social, conforme destacado por Valsiner (2007). Sob esse ponto de vista, a cultura oferece aos indivíduos significados historicamente localizados, coletivamente negociados, o que estabelece limites e possibilidades para as suas ações. Apesar disso, cada pessoa, ao reconstruir estes significados, ao criar suas versões pessoais e externalizá-las, pode superar os supostos limites e ampliar as possibilidades, agindo de acordo com suas próprias orientações para objetivos e crenças (Branco, 2003, 2006), que podem ser distintas daquelas que predominam nos contextos socioculturais em que a pessoa está inserida.

A concepção co-construtivista enfatiza os aspectos dinâmicos e processuais da construção da subjetividade de forma descentrada, constituída e transformada continuamente nos sistemas culturais que a envolvem, em articulação com o caráter ativo do sujeito em sua capacidade de influir decisivamente nas construções de suas versões pessoais e da sociocultura (Valsiner, 2007). Ao analisar a narrativa de crianças e adolescentes levantadas pelas pesquisas anteriormente mencionadas, busca-se compreender a articulação conjunta do papel ativo do sujeito e a importância da cultura coletiva na construção da subjetividade e da ação (Valsiner 1998, 2007). Para isto, é necessário identificar e analisar o uso de significações (representações) coletivas para a construção do próprio sistema de significados durante as vivências, pessoais e coletivas, no contexto sociocultural em que cada qual se insere. De uma perspectiva dialógica indivíduo-sociedade (Gone, Miler & Rappaport, 1999; Hermans, 1996; Hermans, Kempen & Van Loon 1992; Sampson, 1985), a pessoa vai se constituindo em um processo dinâmico e fluído que prevê a ação conjunta de processos que levam à auto-organização e à inovação, ou desenvolvimento.

Na perspectiva adotada, utiliza-se um modelo bidirecional, co-construtivista de desenvolvimento no qual instrumentos de mediação semiótica coletivos são percebidos como guias sociais, que permitem a construção pessoal de significados, ao mesmo tempo em que possibilitam a modificação das práticas e bens simbólicos oferecidos pela cultura coletiva (Valsiner, 1998).

Os dados anteriormente apresentados indicam o quanto a conceituação (e significação) de infância e dos motivos que levam crianças e adolescentes a aderirem a grupos criminosos é dependente do contexto sociocultural. Os motivos que são expressos pelos sujeitos para sua adesão aos grupos seguem lógicas semelhantes. Machel (1996), quando se refere às crianças em conflitos armados, relata que a busca pela sobrevivência é o principal motivo. De fato, em países devastados por guerras civis, muitas vezes envolvendo genocídio e extermínio étnico, não há muito espaço para outras motivações que não estejam ligadas à própria sobrevivência. No entanto, existem narrativas que expressam motivos diferentes como a vontade de lutar por causas sociais ou religiosas, conforme podem ser encontradas nas informações trazidas por Machel no mesmo relatório.

Diferente cenário, no entanto, encontra-se no contexto de utilização de crianças nas organizações criminosas. A pesquisa conduzida pela equipe do Observatório de Favelas (2006) informa que existem alguns paradoxos que foram levantados a partir das entrevistas realizadas. Os três principais motivos indicados pelos participantes da pesquisa para a adesão de adolescentes e crianças ao tráfico de drogas foram: (1) ganhar muito dinheiro, 33%; (2) ajudar a família, 23%; (3) dificuldade em conseguir qualquer outro emprego, 9.1%. A soma percentual dessas categorias perfaz um total de 65.1% das respostas dos entrevistados. É possível perceber que os principais motivos apresentados são de ordem econômica e diretamente ligados aos canalizadores culturais referentes ao consumo de bens e serviços. Existe, portanto, uma grande expectativa em alcançar autonomia econômica.

No entanto, os dados apresentados pelo Observatório de Favelas (2006) indicam que podem existir alguns mitos com relação às atividades do tráfico de drogas, como por exemplo que todo e qualquer integrante desses grupos criminosos ganha muito dinheiro. O levantamento realizado durante a pesquisa revela que a renda média de, aproximadamente, 75% dos entrevistados não ultrapassa os 3 salários mínimos. Para tanto, suas atividades são exercidas em péssimas condições, conforme relataram 60% dos sujeitos que trabalham, por exemplo, mais de 10 horas por dia, com escalas de serviço que podem variar de 12 a 24 horas, sem descanso ou garantias adicionais.


Escola e trabalho

A análise de entrevistas (Observatório de Favelas, 2006) também revela que a dificuldade para estudar não foi um motivo relevante para os sujeitos, já que apenas 1.3% deles indicaram esse item como razão pela qual aderiu às organizações criminosas. Este é um aspecto interessante, pois, diz a referida pesquisa, é freqüente que se atribua à falta de oportunidade para ingresso na escola uma das causas para a adesão de crianças ao tráfico de drogas. Dowdney (2003) argumenta que existe, nas comunidades, uma percepção geral de que o tráfico é mais atraente em razão da ausência de possibilidades alternativas de emprego, de ascensão social, de status e de conseguir recursos financeiros. Nas palavras de um morador de favela:

É a falta de esperança porque é tudo difícil, já moram num lugar que não é nada bom [...] aí já tem aquela convivência [com os traficantes...] na visão deles eles acham que tráfico é a opção mais fácil. (Dowdney, 2005, p.123)

Esse dado é especialmente relevante, pois as perspectivas futuras e os valores assumidos no processo decisório são reguladores da evocação de possibilidades de ação (Valsiner, 2007). A exigüidade de perspectivas futuras colabora para o intenso quadro de privação de participação em diferentes referenciais simbólicos que poderiam regular uma diversidade maior de possibilidades de ação. Nesses contextos, nem a educação formal, nem a família conseguem indicar possibilidades futuras promissoras. As relações dos entrevistados com o espaço público demonstram que a falta de perspectiva, presente em suas narrativas, são elementos fundamentais para a compreensão da fixação nas ações de curto prazo em comparação com planos e possibilidades futuras de médio e longo prazos.

Também parece haver confusão no que diz respeito à questão laboral, pois quando quase 10% dos sujeitos levanta a dificuldade de conseguir emprego como motivo para sua iniciação nas atividades criminosas, se considerada a sua idade de entrada nas organizações criminosas, encontra-se um novo paradoxo. No Brasil, o trabalho é expressamente proibido pela Constituição Federal até a idade de 16 anos, admitindo-se a situação de aprendiz a partir dos 14 anos. É sabido, no entanto, que, na prática, não há espaço no mercado de trabalho formal antes dos 18 anos de idade por causa do excesso de adultos em condições de serem empregados. Especialmente quando consideradas as condições especiais que devem ser oferecidas ao adolescente e a proximidade da apresentação para o serviço militar, tudo isto podendo ser visto como uma desvantagem pelo empregador. Deve-se considerar que essa foi uma opção realizada pelos legisladores brasileiros: crianças devem freqüentar a escola ao invés de trabalhar. No entanto, a escola, sua importância e a suposta influência positiva para evitar a adesão de crianças às organizações criminosas do tráfico de drogas não se fez visível nas narrativas dos sujeitos. Este "silêncio" em relação ao papel da escola em suas vidas, ou da possível contribuição que a educação possa oferecer em contraposição às ofertas das organizações criminosas, é suficiente para indicar que são necessárias investigações adicionais para desvelar os elementos encobertos pelo silêncio. Os dados são alarmantes (Observatório de Favelas, 2006) no que tange aos índices de abandono escolar (93%), o uso de drogas (89%) e a idade em que predomina o ingresso nas quadrilhas (46% entre 11 e 14 anos). No entanto, quando levantam as dificuldades para deixar o tráfico, alegam a baixa escolaridade, talvez fazendo referência formal ao discurso social que vincula as oportunidades de trabalho ao grau de estudo atingido. É necessário, portanto, investigar com profundidade as circunstâncias que contextualizam o abandono escolar nessa população.

Todas as pesquisas anteriormente discutidas, dão conta que existem certos fatores de ordem subjetiva tais como "adrenalina", "sensação de poder", e o "prestígio" que estão sempre presentes nas narrativas de integrantes dessas organizações, quando se expressam sobre os motivos que os mantém em atividade. Uma das narrativas mais freqüentes se relaciona à posse e utilização de armas de fogo pelas crianças e adolescentes, como anteriormente descrito. Esses fatores de ordem subjetiva funcionam, em sua expressão coletiva, como canalizadores culturais. O "prestígio" parece ser o exemplo mais claro, pois depende das significações de um coletivo de pessoas e pode representar o valor relativo que determinado indivíduo e suas ações alcançam na avaliação dos demais integrantes do grupo.

As canalizações culturais se evidenciam quando contextos extremamente carentes de todo tipo de recurso são analisados. A chave para o entendimento dessa canalização não consiste em se analisar o grau da carência de recursos, mas sim a forma como os indivíduos e a coletividade significam a carência. As pesquisas informam que, na interpretação dos entrevistados, eles se consideraram alvo de injustiças, que são moduladas por um intenso sentimento coletivo de falta de perspectiva. A importância dessa observação se baseia no fato de que significações como esta podem servir de razão e de elemento de justificativa para as ações do indivíduo: baseia sua motivação e argumentos na reciprocidade em relação àqueles que perpetram as injustiças contra ele. Em nível da subjetividade, as mesmas experiências podem assumir significados diferentes dependendo dos contextos e das próprias pessoas (Branco, 1993, 2006).

A injustiça serve como um dos princípios mediadores centrais para justificar as ações recíprocas de violência. Essa canalização cultural, que pode ter origem em situações reais, como a falta de investimentos do Estado na comunidade, pode também ser fruto de uma dificuldade de análise do contexto mais amplo, o que gera significações radicais e de qualidade reativa e imediatista, coletivamente construídas pelo grupo. Uma demora na construção de um hospital ou de uma escola pode ser, entretanto, legitimamente considerada ausência do Estado, ou indicador da pouca importância que determinada comunidade tem no conjunto do município.

A esse cenário se somam outras ameaças, que são explicitadas nas pesquisas e que, depois de significadas, passam a ter o seu valor simbólico próprio como canalizador cultural. Uma das mais lembradas pelos sujeitos é a violência policial e de grupos rivais.

Um morador de favela afirma para Dowdney (2003, p. 83) que "a polícia não respeita ninguém que mora no morro. Quem mora no morro não presta. Para eles não existe trabalhador". Sobre esse tema, o Observatório de Favelas (2006) mostra que 67% dos entrevistados tiveram confrontos com a polícia e cerca de 53% com grupos rivais. Ademais, a ação das forças de segurança do Estado é percebida como ilegal e, freqüentemente, ligada à motivações escusas, relatadas por 73% dos entrevistados como prática de violência física e por 53% como extorsão. A ação policial é entendida como uma forma de abrir oportunidade para extorsão ao invés de realizar as detenções sob a lei e encaminhar as crianças e os adolescentes às instituições competentes. Esta forma de operar colabora decisivamente para que tanto as crianças, quanto adolescentes, não deixem os limites territoriais da comunidade, o que promove a territorialidade dos grupos, bem como o isolamento de seus intergrantes. Dowdney (2003) chegou à proporção semelhante quando levantou que 47% consideram os policiais corruptos e desonestos e que 17% consideram que a polícia não respeita os moradores. É isto que relata um morador de favela (p. 84):

A violência policial é uma coisa muito séria. Quando meu irmão era menor, se envolvia nisso [tráfico]. Ele tinha 12 anos. Não esqueço uma vez que o policial entrou na minha casa e meu irmão não estava. Ele virou para minha mãe e falou assim: ‘se eu pegar o seu filho na pista eu vou matar seu filho, vou encher a cara dele de tiro...

Tal percepção também encontra apoio nos dados que relatam as prisões em comparação com as ocorrências policiais registradas. Os relatos sobre as prisões são trazidos por cerca de 54% dos entrevistados, enquanto os registros de entrada nas instituições não atingem 29%. Esta diferença serve de indicador da possível veracidade dos relatos de extorsão. Por que as forças de segurança executariam prisões sem o devido registro?

Existe uma intensa territorialidade (Dowdney, 2003, 2005; Observatório de Favelas, 2006) na organização dos grupos criminosos, com restrições à possibilidade de deslocamento de pessoas nessas áreas. É comum que não seja permitida a permanência de transeuntes desconhecidos. Esta prática, em articulação à intensa violência das forças de segurança, à fragilidade do sistema familiar e ao abandono escolar cria um cenário que converge para o isolamento das crianças e adolescentes de outros referenciais interpretativos mais construtivos que poderiam, sob o ponto de vista coletivo, representar aumento das possibilidades de saída das atividades criminosas.

Até aqui, diversos canalizadores culturais foram levantados para mostrar as sugestões sociais (Valsiner, 2007) que podem influir na entrada de crianças e adolescentes nas organizações criminosas. Resta agora, analisar outros aspectos importantes da canalização cultural e o papel construtivo do próprio sujeito nos processos de envolvimento e participação em tais contextos.

Na pesquisa do Observatório de Favelas (2006), apenas 24,3% dos entrevistados se consideraram satisfeitos com a vida que levam no tráfico. Este é um dado relevante, pois indica um grau elevado de insatisfação e de reflexão acerca das suas condições de vida. As canalizações culturais que cooperam para a permanência dos sujeitos nas atividades criminosas concorrem com outras que influenciam no sentido contrário. Ao destacarem que desenvolvem a atividade criminosa para ajudar a família, isso não implica, necessariamente, que a ajuda seja bem recebida quando o grupo familiar toma conhecimento de que o sustento provém do crime, por exemplo. Esses conflitos também se constituem em elementos da elaboração pessoal e coletiva e do embate de argumentações e fatores emocionais que podem ser relevantes quando se deseja promover a saída de crianças e adolescentes das atividades criminosas. A pesquisa também informa que, por ocasião do término do levantamento de dados, mais de 40% dos sujeitos entrevistados haviam deixado, voluntariamente, as atividades criminosas. Apesar do cuidado que este tipo de dado possa inspirar, é claro que revela uma disposição ativa dos sujeitos em refletir sobre os problemas inerentes a sua situação, levando-os a tomar, de forma autônoma, alguma medida para solucioná-los. Dowdney (2003, p. 219) revela o que, nas palavras de um morador de favela, falta para que seja possível retirar crianças e adolescentes do tráfico: "Tá faltando pessoas que trabalhem com projetos na comunidade, ouvir a comunidade" (grifo nosso).


Considerações finais

Abordar a temática do envolvimento e participação ativa de crianças e jovens adolescentes em contextos armados—tendo aqui se destacado organizações criminosas ligadas ao tráfico de drogas—exige a adoção de uma perspectiva sistêmica que considere desde o conjunto de fatores histórico-culturais que deram origem às práticas culturais (Rogoff, 2005) e à cultura coletiva (Valsiner, 2007) das comunidades envolvidas, até a dimensão subjetiva do sujeito de pouca idade que se envolve nas práticas criminosas destes grupos.

O presente trabalho buscou contribuir para a análise da questão adotando uma perspectiva teórica, sociocultural construtivista, que considera fundamental o estudo de todos os fatores interdependentes que colaboram na configuração da questão. Além de reconhecer a necessidade de que tais questões, altamente complexas, exigem uma abordagem inter- e trans-disciplinar, o artigo destaca os aspectos psicológicos que se referem ao desenvolvimento da criança. Neste sentido, sublinha a importância de se considerar, em uma perspectiva de causalidade complexa, a simultânea participação das sugestões sociais concretas (canalização cultural) e o papel construtivo do indivíduo em desenvolvimento, questionando com isto a existência de uma determinação social radical para a trajetória desenvolvimental de crianças que vivem em contextos liderados por organizações criminosas.

Antes de mais nada, porém, é preciso que a sociedade reflita sobre o conceito de criança. Não é mais possível estabelecer dicotomias entre etapas do desenvolvimento humano, onde aquele que ontem era totalmente irresponsável por seus atos, hoje passa a ser totalmente responsabilizado por suas ações. O desenvolvimento humano se constrói e se fundamenta na existência de processos, através dos quais as dimensões cognitivas, afetivas, motivacionais, e as características da personalidade humana vão se configurando. Sendo assim, é importante que as crianças sejam chamadas a participar e a protagonizar ações construtivas no contexto sociocultural em que está inserinda, com isto desenvolvendo valores morais e sociais que lhe permitam co-construir trajetórias para uma vida mais feliz.

Afirmar a existência de possibilidades outras para o desenvolvimento dessas crianças, entretanto, não significa apontar, de forma ingênua, para um simples exercício voluntário e intencional, por parte das crianças, para resistir aos variados apelos das organizações criminosas. O que se aponta aqui é a necessidade de atuação articulada dos diferentes setores de intervenção pública e comunitária no sentido de oferecer alternativas concretas de participação em práticas sociais saudáveis—nas escolas, postos de saúde, centros comunitários etc—que, de fato, permitam a essas crianças re-significar suas experiências e construir outros projetos para seu próprio desenvolvimento, para a sua vida. Além disso, uma estratégia eficaz é ampliar a possibilidade de participação infantil em diferentes contextos nos quais estejam disponíveis diversos referenciais interpretativos.

Não basta simplesmente o discurso, assim como não é suficiente apenas abrir escolas, postos de saúde etc na comunidade. A contribuição da psicologia, neste caso, é enfatizar a importância de que, em quaisquer que venham a ser os contextos de educação e cuidado para estas crianças e famílias, sejam trabalhados ali os processos de significação crítica da experiência individual e coletiva do grupo. Não basta, por exemplo, o discurso vazio de como a educação é importante e fundamental como mola propulsora da mudança e desenvolvimento dos indivíduos e da comunidade. É preciso criar espaços coletivos de expressão e construção de significados a partir dos quais surgirão novas práticas sociais que promovam reflexões pessoais e coletivas. Serão tais vivências e reflexões que poderão, então, dar origem a um novo conjunto de crenças e valores para a vida do grupo, em especial das crianças, os quais apontem para a construção de novos caminhos que conduzam a todos a uma vida melhor.


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Notas

  1. No texto utilizamos, em geral, o termo criança, mas este deve ser interpretado de forma inclusiva, referindo-se também a jovens adolescentes em conformidade com o art. 1º, da Convenção das Nações Unidas sobre os Direitos das Crianças.
  2. Muitas gangues ou quadrilhas possuem rituais de ingresso. Para detalhes, ver Dowdney (2005).

Autores


Informações sobre o texto

Originalmente publicado em "Athenea Digital", v. 13, pp. 153-169, 2008.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

PIRES, Sergio Fernandes Senna; BRANCO, Angela Uchoa. Na rota da violência: crianças em contexto armado. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 15, n. 2447, 14 mar. 2010. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/14507. Acesso em: 29 mar. 2024.