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Da interposição concomitante de habeas corpus e de apelação criminal em caso de defesa técnica apenas formalmente efetiva.

Aplicação da doutrina de Amartya Sen ao processo penal

Da interposição concomitante de habeas corpus e de apelação criminal em caso de defesa técnica apenas formalmente efetiva. Aplicação da doutrina de Amartya Sen ao processo penal

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O "habeas corpus" deve corrigir a injustiça da condenação daquele que não tiver suprido o elemento da liberdade substantiva, a defesa técnica.

"Vivemos um mundo de opulência sem precedentes, mas também de privação e opressão extraordinárias. O desenvolvimento consiste na eliminação de privações de liberdade que limitam as escolhas e as oportunidades das pessoas de exercer ponderadamente sua condição de cidadão." (Amartya Sen)

RESUMO

O habeas corpus pode ser usado concomitantemente à apelação criminal em caso de condenação em primeira instância em que a defesa técnica for apenas formalmente efetiva, em vez de realmente efetiva. Devido a maior celeridade, o habeas corpus deve corrigir a injustiça da condenação daquele que não tiver suprido o elemento da liberdade substantiva, a defesa técnica. Trata-se de mais um exemplo da adaptação e aplicação da doutrina do economista Amartya Sen ao processo penal.

Palavras-chave: Direito Constitucional, Direito Processual Penal, Habeas corpus, Amartya Sen, Defesa Técnica.


ABSTRACT

Habeas corpus could be used, at the same time of a criminal appeal, in cases of condemnation when technical defense is just formally effective, while it should be also really effective. More rapid than a appeal, habeas corpus is the instrument to correct the injustice imposed to one who was not provided his technical defense as freedom. This text is another example of the economist Amartya Sen’s doctrine applied to the criminal law process.

Keywords: Constitutional Law, Criminal Law Process, Habeas corpus, Amartya Sen, Technical Defense.


1 – INTRODUÇÃO

Neste texto, pretendemos demonstrar a possibilidade de se utilizar habeas corpus em caso de defesa técnica formalmente efetiva, e não realmente efetiva, no intuito de declarar nula decisão judicial que a considere nesse sentido, ao mesmo tempo em que se interpõe a apelação criminal [01]. Dá-se seqüência, portanto, à idéia trazida em artigo anterior [02], no qual introduzimos o conceito de defesa técnica realmente efetiva, como contribuição da doutrina do economista Amartya Sen [03] ao processo penal, a ser utilizado como princípio de hermenêutica da Súmula 523 do Supremo Tribunal Federal (STF) [04], que amplia o alcance da nulidade prescrita no Código de Processo Penal (CPP). [05] Seria aviltante que uma pessoa fosse privada do seu direito de liberdade de locomoção [06] por causa da atuação pífia ou meramente formal do seu advogado. Sendo o habeas corpus o remédio constitucional para tutelar a proteger a liberdade de locomoção do indivíduo face às arbitrariedades, obviamente, portanto, o será com relação à falta de atenção do magistrado que permitiu a atuação e a permanência de um advogado que não foi realmente efetivo na defesa técnica de um acusado, agindo de modo meramente formal. [07]

Em trabalho anterior, defendemos a tese de que o advogado vem a complementar a liberdade substantiva [08] do acusado. A defesa técnica, portanto, vem a constituir um "elemento da liberdade substantiva" do sujeito, oferecendo-lhe um "funcionamento" [09] (SEN, 2001, p. 79) que lhe é deficiente, aumentando suas "capacidades" [10] (SEN, 2000, p. 95) e, por extensão, o seu "conjunto capacitário" [11] (SEN, 2000, p. 96). Recapitulemos brevemente. Os "funcionamentos" contêm estados e ações que influenciam o modo de vida do ser humano. "Capacidades" seriam combinações de "funcionamentos" (não necessariamente de todos ao mesmo tempo). Quer dizer, "capacidades" seriam somente as combinações possíveis de "funcionamentos" para uma pessoa. Em outras palavras, as "capacidades" seriam a liberdade substantiva que uma pessoa teria de promover combinações alternativas de "funcionamentos". O "conjunto capacitário", por sua vez, seria constituído pelos vetores alternativos de "funcionamentos" que uma pessoa poderia escolher. Ou, ainda, a falta de liberdade do sujeito de escolher as combinações alternativas entre "funcionamentos" é um reflexo da exclusão social.

O estudo do economista indiano demonstra que, para que haja uma vida que valha a pena ser vivida, não são suficientes apenas provimentos que lhe forneçam um mínimo necessário para a sobrevivência, algo mais relativo à biologia que ao social. Há de se levar em consideração, portanto, além do conceito de pobreza absoluta, o de pobreza relativa, [12] no qual as pessoas se privam de um bem-estar maior por falta de "funcionamentos" e "capacidades", que seriam, talvez, os instrumentos de mensuração dessa pobreza relativa:

"Creio que as contribuições mais significativas de Sen ao debate sobre desigualdade e pobreza são, em primeiro lugar, a dimensão de avaliação dos estados sociais em termos dos seres e fazeres, e do espaço aberto aos indivíduos para escolher entre seres e fazeres alternativos, isto é, em termos dos funcionamentos e capacidades dos indivíduos para levarem adiante seus planos de vida. Esta dimensão avaliatória representaria o grau de liberdade efetivamente gozado pelos indivíduos em uma sociedade, segundo a ética do desenvolvimento de Sen. Em segundo lugar, penso que Sen elabora, para além de uma noção de pobreza absoluta — que corresponderia ao alcance de uma condição de vida abaixo do mínimo fisicamente adequado, conceito mais biológico do que social —, uma noção de pobreza relativa. Esta seria afetada pelo nível de desigualdade socioeconômica prevalecente em uma sociedade, e as noções de funcionamentos e capacidades estariam aptas a aferi-lo." (KERTZNETZKY, 2000, p. 117)

Sem uma defesa técnica adequada (defesa técnica realmente efetiva), há prejuízo para o acusado no decorrer do processo penal. Numa interpretação da doutrina de Sen, o advogado é um agente que vem a balancear a relação jurídico-processual ao suplantar uma deficiência do acusado, compensando o seu estado de pobreza relativa (falta de liberdade efetivamente usufruída na sociedade) pelo emprego dos conhecimentos profissionais inerentes à uma real e efetiva defesa técnica. Formalmente, o acusado pode estar provido de defesa técnica, porém, na realidade, se não lhe foi suprimido um "elemento de liberdade substantiva", há, na nossa ótica, nulidade absoluta do processo a partir do momento em que o advogado assumiu a causa, devendo aquele ser declarada a nulidade dos atos processuais desde então. O instrumento adequado para argüir tal intento, depois da sentença condenatória, é o habeas corpus, concomitantemente à apelação criminal, pelos motivos que exporemos no momento oportuno.

Não temos a intenção de banalizar o instituto do habeas corpus, utilizando-o para todas e quaisquer causas. Neste estudo, sustentamos somente a possibilidade de utilização simultânea do habeas corpus – pelo processo ser manifestamente nulo [13] – com a apelação criminal, em caso de condenação em primeira instância, em que tenha havido deficiência na defesa técnica. Mesmo sendo a apelação criminal o recurso mais adequado em se tratando de atacar sentença de juiz monocrático, ressaltamos que o habeas corpus é mais rápido e eficiente na tutela da liberdade de locomoção. Em sede de apelação criminal, sustentar-se-á, preliminarmente, a nulidade absoluta por defesa técnica deficiente.

Para tal intento, discorreremos neste texto sobre a aplicabilidade do princípio do duplo grau de jurisdição com relação às ações autônomas de impugnação e os recursos ordinários, tal como a natureza jurídica do habeas corpus e dos recursos ordinários, em especial a apelação criminal. Em seguida, aventaremos a possibilidade de utilização concomitante de habeas corpus e de apelação criminal, os posicionamentos favoráveis e contrários. Adiante, escreveremos a problemática da defesa técnica, sustentando que a defesa ineficiente, ou apenas formalmente efetiva, deve ser considerada absolutamente nula, por ofensa ao princípio constitucional da ampla defesa, por uma interpretação desfavorável da Súmula 253 do STF, que ampliou o alcance do art. 564, III, "c", do CPP. Abordaremos, inclusive, o problema da dilação probatória no habeas corpus no caso da defesa técnica formalmente efetiva, e não realmente efetiva, e a complementaridade do mesmo, em caso de insucesso, com a apelação criminal. A nulidade do processo por defesa técnica ineficiente pode ser alegada em habeas corpus e apelação criminal, simultaneamente, como se pretende demonstrar neste estudo.


2 – AÇÕES AUTÔNOMAS DE IMPUGNAÇÃO, RECURSOS ORDINÁRIOS E O PRINCÍPIO DO DUPLO GRAU DE JURISDIÇÃO

Interessante fazer a diferenciação entre ação autônoma de impugnação e recursos ordinários já que em ambos os casos há reexame do caso julgado em primeira instância por uma instância superior. [14] Entretanto, é necessário, antes, explicar o princípio do duplo grau de jurisdição. Para Cintra et al (2006, 187), ordenamentos jurídicos contemporâneos têm agasalhado esse princípio justamente para corrigir eventuais erros de magistrados e também para atender a inconformidade natural da parte vencida. "Mas o principal fundamento para a manutenção do princípio do duplo grau é de natureza política: nenhum ato estatal pode ficar imune aos necessários controles. O Poder Judiciário, principalmente onde seus membros não são sufragados pelo povo, é, dentre todos, o de menor representatividade. Não o legitimaram nas urnas, sendo o controle popular sobre o exercício da função jurisdicional ainda incipiente em muitos ordenamentos, como o nosso." (CINTRA ET AL, 2006, p. 81)

Existe também a finalidade, no reexame da causa por instância superior, de dar maior clareza e acerto na aplicação do Direito:

"O princípio do duplo grau de jurisdição dá maior certeza à aplicação do Direito, com a proteção ou restauração do direito porventura violado e é por isso que se encontra assente nas legislações. Um segundo exame da relação jurídica posta em litígio é necessário para uma justa composição do conflito de interesses. O que se busca, em verdade, outra coisa não é senão a efetiva garantia da proteção jurisdicional. Se não houver recursos, a incerteza cessará com a decisão única, mas haverá o risco de consagrar-se uma injustiça." (MIRABETE, 2002, p. 605)

O habeas corpus, por ser ação, tem rito e tratamento diferenciados dos da apelação criminal – esta um recurso ordinário –, embora ambos sejam apreciados por uma instância superior em respeito ao princípio do duplo grau de jurisdição. Por isso, discorremos brevemente, a seguir, sobre a natureza jurídica de cada um deles.

2.1. Da Natureza Jurídica do Habeas Corpus

O habeas corpus – embora inserido no Livro III, Título II, do Código de Processo Penal Brasileiro [15] como Recurso – na realidade é uma ação de impugnação autônoma. [16] É uma garantia com previsão expressa na Constituição Federal de 1988: "Art. 5º (...) LXVIII - conceder-se-á habeas corpus sempre que alguém sofrer ou se achar ameaçado de sofrer violência ou coação em sua liberdade de locomoção, por ilegalidade ou abuso de poder".

No entendimento de Grinover et al (2006b, p. 349): "Na verdade, cuida-se de uma ação que tem por objeto uma prestação estatal consistente no restabelecimento da liberdade de ir, vir e ficar, ou, ainda, na remoção de ameaça que possa pairar sobre esse direito fundamental da pessoa. (...) Cumpre ressaltar, também, que a ação de habeas corpus é de conhecimento, pois tende à cognição completa e definitiva sobre a legalidade da apontada restrição do direito à liberdade de locomoção, ainda quando esta seja apenas potencial, como ocorre nas hipóteses em que se pede a ordem em caráter preventivo."

Alexandre de Moraes (2006, p. 111) também considera o habeas corpus como uma "ação constitucional de caráter penal e de procedimento especial, isenta de custas e que visa evitar ou cessar violência na liberdade de locomoção, por ilegalidade ou abuso de poder". Mirabete completa (2002, p. 709-710): "O habeas corpus é uma garantia individual, ou seja, um remédio jurídico destinado a tutelar a liberdade física do indivíduo, a liberdade de ir, ficar e vir. (...) Com ele se pode impugnar atos administrativos ou judiciários, inclusive a coisa julgada, e de particulares. (...) Trata-se de ação penal popular constitucional, embora por vezes possa servir de recurso." Por ser uma outra ação [17], se estabelece uma outra relação jurídico-processual, ao contrário dos recursos, como se verá abaixo.

2.2. Da Natureza Jurídica dos Recursos e da Apelação Criminal

Ensina Grinover et al (2006, p. 31-34) que "recurso é remédio contra as decisões judiciais", cuja natureza jurídica é "aspecto, elemento ou modalidade do próprio direito de ação e de defesa". Não são mais encarados, então, como ações distintas e autônomas das ações principais. Outros autores consideram que a questão ainda não está fechada. Sujeita-se, assim, a natureza jurídica dos recursos a uma vasta discussão doutrinária. Eis algumas das concepções: "a-) desdobramento do direito de ação que vinha sendo exercido até a decisão proferida; b-) como ação nova dentro do mesmo processo; c-) como qualquer meio destinado a obter a ‘reforma’ da decisão, quer se trate de ação como nos recursos voluntários, quer se cogite de provocação da instância superior pelo juiz que proferiu a decisão, como nos recursos de ofício." (MIRABETE, 2002, p. 606)

Cremos mais adequada conceber a natureza jurídica dos recursos tal como prevê Grinover et al. Trata-se não somente de diferenciar os recursos – caso considerados como decorrência imediata do direito de ação – das ações de impugnação autônomas, mas também de se reconhecer que, devido a tal distinção, uma espécie dos recursos (a apelação criminal) e uma espécie das ações de impugnação autônomas (Habeas corpus) poderiam ser utilizadas concomitantemente, ao se pleitear o reexame da matéria pelo duplo grau de jurisdição.

Sendo a apelação criminal uma espécie de recurso, por simples raciocínio, podemos dizer que sua natureza jurídica é derivada do direito de ação, um desdobramento deste após o proferimento da decisão em primeiro grau. Não pode ser, pois, uma outra ação dentro do mesmo processo. Afinal, só se faz coisa julgada da causa da qual não caiba mais recurso. E a coisa julgada é atacada por via de outra ação de impugnação autônoma, a revisão criminal. Assim, não teria sentido sustentar que a apelação criminal é uma ação diferente da ação principal, já que para se haver coisa julgada é necessário que já se tenha julgado a mesma, ou que se tenha perdido o prazo recursal. Caso o fosse, haveria duas coisas julgadas, uma para a ação principal e outra para a apelação criminal, ou algum outro imbróglio jurídico desta estirpe, dentro do mesmo processo.

Em suma, nos recursos – incluindo a apelação criminal – há continuidade da relação jurídico processual, ao contrário das ações de impugnação autônomas, que estabelecem nova relação jurídico processual.


3 – DO USO CONCOMITANTE DO HABEAS CORPUS COM A APELAÇÃO CRIMINAL

Os recursos só podem ser empregados se forem previstos em Lei, tal como suas hipóteses de cabimento, o que lhes confere um rol taxativo [18] de aplicação. Para cada tipo de situação, portanto, cabe um tipo de recurso: "Isso porque, na tentativa de equilibrar as garantias do valor justiça e do valor certeza, não se pode admitir que a via recursal permaneça indefinidamente aberta, o que sacrificaria o princípio da segurança jurídica: a possibilidade de revisão das decisões judiciárias há de ser prevista em Lei." (GRINOVER ET AL, 2006b, p. 38)

Num primeiro momento, quando da utilização concomitante do habeas corpus com a apelação criminal, poderíamos ser surpreendidos pelo princípio da taxatividade que, como exposto, vedaria a interposição de um recurso por outro e em hipóteses não descritas originalmente em Lei. A respeito do princípio da unirrecorribilidade das decisões, Nucci escreve (2006, p. 954): "(...) para cada decisão existe um único recurso cabível, não sendo viável combater um julgado por variados mecanismos. Além de poder gerar decisões contraditórias, haveria insegurança e ausência de economia processual. Excepciona essa regra o fato da decisão comportar mais, motivador de mais de um recurso. É possível que a parte interponha recursos extraordinário e especial, concomitantemente, contra acórdão, desde que a decisão contrarie, por um lado, a Constituição e, por outro, der a lei federal interpretação diversa da que lhe tenha dado outro tribunal."

Estes princípios, contudo, não se enquadram com toda sua amplitude nesta situação. O Superior Tribunal de Justiça (STJ) já decidiu pela possibilidade de interposição conjunta de habeas corpus com recurso ordinário, cujo fundamento explica a doutrina:

"A impetração de habeas corpus e a interposição do respectivo recurso ordinário, referentes ao mesmo ato, são conciliáveis, ainda que articulem os mesmos fatos e busquem a mesma situação jurídica, pois essa ação constitucional não encontra obstáculo na legislação ordinária, em homenagem à liberdade de locomoção, proclamada constitucionalmente. Dessa forma, tanto o habeas corpus quanto o recurso devem ser apreciados, embora, eventualmente, um julgamento possa repercutir no outro." (MORAES, 2006, p. 122-123, grifos do autor)

Contudo, há de se ressalvar o seguinte:

"Portanto, por ser o habeas corpus uma ação constitucional que visa impedir lesão ou restaurar o exercício do direito de liberdade, nada impedirá a concomitância com qualquer recurso, pois prevenir ou fazer cessar a violência ou coação não encontra obstáculo por determinação de rito ou encerramento do processo, sendo, porém, lícito ao Tribunal remeter o exame da pretensão para julgamento do recurso, de maior abrangência, quando o deslinde da matéria depender do exame de fatos ou do conjunto probatório." (MORAES, 2006, p. 123, grifos nossos)

Mas, como praticamente tudo em Direito, há controvérsias. Há posicionamentos jurisprudenciais a favor e contrários à impetração concomitante de habeas corpus com a interposição de apelação criminal. Existe também o problema relacionado à necessidade de dilação probatória em determinados processos, para comprovar o alegado em sede de habeas corpus. Contudo, esse tema será explicado oportunamente no tópico 4.3. deste texto, em conjunto com argüição de nulidade do processo por defesa técnica formalmente efetiva, e da complementaridade da apelação criminal.

3.1. Do Posicionamento Favorável à Concomitância do Habeas Corpus com a Apelação Criminal

Há possibilidade de se impetrar habeas corpus concomitantemente à interposição apelação criminal, para atacar sentença condenatória em primeira instância. Já se comprovou a possibilidade e o cabimento do primeiro para tutelar a liberdade de locomoção. Contudo, há de se salientar que se houver necessidade de dilação probatória, o Tribunal apreciará a apelação criminal. A lição de Mirabete (2003, p. 1696), nesse sentido, é clara:

"STF: ‘Não há impedimento em que seja impetrado habeas corpus, embora tenha sido interposta apelação da sentença condenatória, se a matéria versada no writ for apenas de direito, não havendo dúvidas quanto aos fatos’ (RT 599/448). STJ: ‘(...) RHC – Habeas corpus e apelação – Simultaneidade. 1. O entendimento pretoriano é no sentido de que não existe óbice à impetração de habeas corpus com a simultânea interposição de apelação, salvo em se tratando de matéria de exame da matéria de fato a reclamar investigação probatória, ou quando o evidenciado propósito de suprimir com o remédio heróico o segundo grau de jurisdição, com transferência para a instância especial o encargo do julgamento do recurso, de devolutividade ampla, para ser dirimido na esfera de conhecimento limitado. Recurso ordinário improvido’ (RSTJ 129/473). STJ: "Impetração de habeas corpus e interposição de apelação são conciliáveis, ainda que articulem os mesmos fatos e busquem a mesma situação jurídica. A ação constitucional não encontra obstáculo na legislação ordinária, em homenagem à liberdade de locomoção. A doutrina e a jurisprudência referem-se ao habeas corpus substitutivo (denominação imprópria, embora consagrada). A ação e o recurso devem ser apreciados, embora, eventualmente, um julgamento fosse repercutir no outro’ (RSTJ 46/454 e RT 691/372)."

3.2. Do posicionamento contrário à interposição concomitante de Habeas Corpus com Apelação Criminal

Há, contudo, decisões que se orientam contrariamente ao que sustentamos, o que deve ser exposto, embora que de maneira sucinta, para maiores fins de elucidação quanto à matéria discutida e estudada neste texto: "TJMT: ‘Não é através de habeas corpus que o Tribunal de Justiça há de rever decisão proferida em primeira instância. Estando o processo em grau de recurso aguardando providências pelas quais o próprio impetrante protestou, não se conhece da ordem impetrada’ (RT 532/391). TJSP: ‘Não se tratando de argüição de nulidade evidente, não cabe o habeas corpus enquanto pendente de julgamento recurso, porque não se vislumbra qualquer violência jurídica contra a liberdade do réu’ (RT 617/298-9)." (MIRABETE, 2003, p. 1696-1697)

A desvantagem de se impetrar somente o habeas corpus é a de perder o prazo recursal de cinco dias da apelação criminal. Denegado o habeas corpus, por considerar o Tribunal que a matéria em exame exige maior conjunto probatório, já houve a preclusão e a oportunidade de se interpor a apelação criminal. Entretanto, se já interposta a apelação criminal tempestivamente, decidir-se pela impetração do habeas corpus, se os julgadores entenderem não haver necessidade de maior dilação probatória, este será mais eficiente que aquela. Então, por questão de maior versatilidade, há de se interpor simultaneamente tanto a ação de impugnação autônoma quanto o recurso ordinário. [19] Apesar de, nessa hipótese, não se aplicar o princípio da fungibilidade das formas, não há óbice do princípio da taxatividade, muito menos do princípio da unirrecorribilidade das decisões.


4 – DA NULIDADE EM CASO DE DEFESA INEFICIENTE OU APENAS FORMALMENTE EFETIVA

A defesa considerada formalmente efetiva, sem ser realmente efetiva, deve ser atacada e considerada como absolutamente nula. Para que haja atendimento do princípio da ampla defesa, a defesa técnica deve ser formal e realmente efetiva. Assim, em palavras mais chulas, não adianta ter um advogado que faça uma defesa técnica de "mentirinha", tem que haver real efetividade nos serviços prestados. A defesa técnica, como versa o artigo 261 do Código de Processo Penal, é indisponível. A advocacia e a prestação, por este profissional, deve ser considerada como serviço público, embora ministrada de maneira privada, por força de interpretação do artigo 133 da Constituição Federal e do artigo 2º, §§ 1º e 2º, da Lei 8.906, de 4 de julho de 1994. Portanto, a ausência de defesa técnica é uma nulidade que não pode ser sanada.

Anteriormente, havíamos sustentado que a defesa técnica é um elemento da liberdade substantiva do acusado. Vem a suprir a falta de um "funcionamento" do mesmo, de modo a ampliar as suas "combinações de funcionamentos" ("capacidades"), pela ampliação do seu "conjunto capacitário" (maior possibilidade de combinações de funcionamentos). O advogado vem a complementar um "funcionamento" ausente no acusado.

4.1. Da Defesa Técnica Formalmente Efetiva como Nulidade Prevista no Art. 564, III, ‘c’, do CPP

Há de se considerar que a defesa técnica formalmente efetiva, sem ser realmente efetiva, causa prejuízo ao acusado, pois lhe lesa, diretamente, a sua liberdade de locomoção. A Súmula 523 do STF ampliou o alcance do artigo 564, III, ‘c’, do CPP, contudo, no intuito de se evitar injustiças, que a defesa técnica fosse meramente formal. O advogado deve suprir a falta de um "funcionamento" do acusado, caso não o supra, não houve defesa técnica realmente efetiva. [20] Assim, a Súmula 523 do STF deve ser interpretada à luz da defesa técnica realmente efetiva como princípio de hermenêutica. Dessa maneira, não se aceitará a atuação meramente formal do advogado. Não basta acompanhar todos os atos processuais, sem que haja empenho e determinação de cumprir a defesa técnica. [21]

Constatada a defesa técnica formalmente efetiva que não seja realmente efetiva, em havendo prejuízo para o acusado, deve ser decretada a nulidade absoluta. Grinover et al (2006a, p. 88-89) sustenta que a ofensa à norma constitucional acarreta em nulidade absoluta. No entanto, salienta a autora (2006a, p. 89), que é preciso examinar se o vício afeta a ampla defesa como um todo, ou não: "Nessa linha – nulidade absoluta quando for afetada a defesa como um todo; nulidade relativa com prova do prejuízo (para a defesa) quando o vício do ato defensivo não tiver essa conseqüência – é que deve ser resolvida a questão das nulidades por vício ou inexistência dos tos processuais inerentes à defesa técnica e à autodefesa."

A defesa técnica formalmente efetiva, que não seja ao mesmo tempo realmente efetiva, deve ser provada para a decretação da nulidade, nos termos da Súmula 523 do STF. Deve haver provas da ineficiência ontológica, comprovando prejuízo para o acusado, devido à atuação pífia do seu advogado.

Apesar de Grinover et al (2006a, p. 89) considerar que nos casos em que a defesa como um todo é afetada há nulidade absoluta, por ocorrência de alguns óbices previstos no artigo 564, III, "a", "c", "e", "g", "l", "o", do CPP, ainda não se discutiu com profundidade a hipótese de a defesa técnica formalmente efetiva que não seja realmente efetiva ser enquadrada como nulidade prevista no artigo 564, III, "c", do CPP. Em todo caso, podemos alegar a nulidade absoluta do processo por defesa técnica formalmente efetiva, e não realmente efetiva, por desrespeito ao artigo 564, III, "c", do CPP, e ainda complementarmos com o mandamento da Súmula 523 do STF, que requer a comprovação do prejuízo.

4.2. Do Processo Manifestamente Nulo e da Dilação Probatória no Habeas Corpus

A decretação da nulidade do processo pode ser realizada por meio de ações autônomas de impugnação, como habeas corpus, mandado de segurança e revisão criminal, segundo Grinover et al (2006a, p. 42), que explica ainda:

"O habeas corpus, remédio constitucional destinado à proteção urgente do direito à liberdade de locomoção ou abuso de poder (CF, art. 5º, LXVIII), tem amplíssima aplicação no processo penal, porquanto a pretensão acusatória tem como finalidade, quase sempre, a imposição de pena privativa de liberdade. E a existência de um vício processual, com repercussão efetiva ou potencial na liberdade do acusado, caracteriza coação ilegal corrigível através do writ (art. 648, VI, do CPP). A utilização do habeas corpus como meio de decretação de invalidade dos atos processuais, ou de todo o procedimento, é admissível tanto no curso do feito como depois de prolatada a sentença, mesmo após o trânsito em julgado, enquanto não cumprida a pena e desde a existência do vício (e a conseqüente ilegalidade) possa ser demonstrada de plano." (GRINOVER ET AL, 2006a, p. 42)

A autora cita com maestria a propriedade de o artigo 648, VI, [22] do CPP, que justifica a utilização do habeas corpus como instrumento hábil para solicitar a decretação da nulidade do processo penal. Afinal, como já escrito anteriormente neste texto, trata-se de remédio constitucional-jurídico mais célere que qualquer outro recurso ordinário, entre estes a apelação criminal. Importante comentar que, por força do artigo 652 [23] do CPP, "o reconhecimento da nulidade implica, por lógica, a sua renovação, suplantando-se o vício e restaurando-se o devido processo legal". (NUCCI, 2006, p. 1037)

Portanto, todos os atos praticados pelo advogado que agiu formalmente efetiva, mas não realmente efetiva, devem ser considerados nulos e refeitos do modo legal, para se sanar as nulidades. Existe, contudo, o problema da dilação probatória no habeas corpus. A ilegalidade da coação e da ameaça deve estar demonstrada cabalmente. No rito sumário do habeas corpus não há fase de instrução probatória, contudo, há de se demonstrar o prejuízo causado ao acusado, que demonstrem os fatos. "Essas provas, como visto, devem acompanhar a inicial e as informações do coator, cabendo, excepcionalmente, sua obtenção ou complementação por determinação judicial." (GRINOVER ET AL, 2006b, p. 385)

Encarando o cotidiano forense, e fugindo um pouco do plano teórico, nossa tese de defesa técnica formalmente efetiva, e não realmente efetiva, poderia encontrar dificuldades na sua apreciação pelo Tribunal. Como provar cabalmente a inépcia do advogado na petição simples de habeas corpus?

Pela simples juntada de cópia das peças dos autos que comprovem a atuação ineficiente do advogado? O objeto da prova, nesse caso, é o próprio fato a provar-se, a inépcia do advogado anterior. Podem entender os julgadores que os próprios documentos juntados são provas diretas, pois se referem ou consistem no próprio fato. Ou podem considerar que é caso de prova indireta, por não se referir ao próprio fato que se quer provar. (SANTOS, 2002, v. 2, p. 336) Para conjugar as duas classificações (prova direta ou prova indireta) seria mais interessante que, na própria peça de habeas corpus, fossem citadas e comprovadas com uma argumentação coerente e racional a respeito das performances ineficientes do advogado anterior, com devida indicação das páginas dos autos (cujas cópias serão juntadas na inicial).

Entendemos que deverá haver maior exercício de argumentação e lógica do novo advogado em comentar a inépcia do defensor anterior. Dependeremos de meios indiretos de prova, que são verificados por meio do raciocínio lógico. [24] Mas só para garantir, não custa nada – conforme vínhamos sustentando – a interposição conjunta da apelação criminal, para argüir, em sede de preliminar [25], a defesa técnica formalmente efetiva, e não realmente efetiva, como nulidade absoluta e pleitear a decretação da nulidade do processo a partir da atuação do advogado ineficiente.


5 – CONSIDERAÇÕES FINAIS

Há possibilidade de se utilizar como tese defensiva a nulidade por defesa técnica formalmente efetiva, e não realmente efetiva, para impetrar habeas corpus concomitantemente à interposição de apelação criminal. No primeiro requer-se a decretação da nulidade do processo, na segunda, em preliminar, sustenta-se o mesmo argumento. O habeas corpus seria apreciado com maior rapidez pelo Tribunal para atacar a sentença do juiz monocrático que observou somente a atuação formal do defensor, em vez da sua real efetividade. Adaptamos novamente a doutrina do economista Amartya Sen, no intuito de demonstrar a aplicabilidade dos seus conceitos no Direito Processual Penal, incluindo em fase recursal.

O acusado não pode ser privado do seu direito de locomoção pela atuação pífia e apenas formal do seu advogado. Apesar de considerarmos a defesa técnica formalmente efetiva, e não realmente efetiva, nulidade absoluta, que poderia ser decretada de ofício pelo juízo, trata-se de uma idéia ainda não testada em nossos tribunais. Portanto, há de se prová-la para apreciação em segunda instância, seja em habeas corpus ou em preliminar de apelação.

Apesar de considerarmos que pela juntada de partes do processo e a devida argumentação na inicial do habeas corpus já seriam provas suficientes (diretas, ou indiretas, conforme melhor considerarem) para o Tribunal apreciar de imediato. Nada impede que por questão de prudência se interponha, simultaneamente ao habeas corpus, a apelação criminal, o recurso ordinário próprio para atacar sentenças monocráticas. Dessa maneira, não se corre o risco de se ter o habeas corpus indeferido – devido ao problema da dilação probatória – e de se perder o prazo recursal de cinco dias para interposição da apelação criminal.

Há possibilidade de dupla apreciação, uma no habeas corpus e outra na apelação criminal. Ou de apreciação do habeas corpus em conjunto com a apelação criminal, se houver entendimento de que há necessidade de maior dilação probatória daquele. A doutrina de Sen é interdisciplinar, envolvendo vários aspectos da economia, da filosofia moral e polícia, visando uma mensuração da realidade para que se possa transformá-la para melhor. Pode-se dizer que seria arriscado tentar adaptá-la ao Direito Processual Penal. Mas aceitamos o risco, já que o Direito não pode ser encarado como um círculo fechado em si mesmo e imune às realidades sociais.

O Direito ao encerrar-se em si mesmo proporciona uma visão turva e oblíqua dos seres humanos, convertendo-os em coisas, que podem ser usadas para fins outros, mesmo que isso implique na violação da sua dignidade. Já dizia o filósofo alemão Immanuel Kant que as pessoas são fins nelas mesmas e jamais devem ser usadas como meios para atingir outros fins. A doutrina de Sen – ao considerar o ser humano mais que outro número em meio a estatísticas – vem reforçar o conceito de dignidade humana, cuja violação não se pode dar nem mesmo em nome do dito cumprimento formal da legislação. O Direito Processual Penal é, antes de tudo, ferramenta para implementar o respeito e o cumprimento aos Direitos e Garantias Fundamentais.

A injustiça sob o pretenso argumento de cumprimento da legislação vigente não pode prosperar. Por isso, é necessário vislumbrar o aspecto material das relações sociais e o aspecto humano das relações jurídicas. Foi isso que tentamos demonstrar, em poucas linhas, neste texto.


6 – BIBLIOGRAFIA

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YABIKU, Roger Moko. A defesa técnica como elemento da liberdade substantiva: contribuição da doutrina de Amartya Sen ao Processo Penal. Trabalho de Conclusão do Módulo "Ação Penal" (Pós-graduação em Direito Penal e Direito Processual Penal) – Unimep. 2006. 18 f.


Notas

  1. Somente trataremos da apelação criminal em sentença definitiva de condenação de juiz monocrático em rito ordinário (art. 593, I), conforme preceitua o Capítulo III, do Título II, do Livro III, do Código de Processo Penal (CPP). Portanto, não serão feitas referências à apelação criminal do rito sumaríssimo, constante na Lei 9.099/95, nem da que se aplica às decisões do Tribunal do Júri (art. 593, III, "a", "b", "c" e "d", do CPP), muito menos da que ataca sentença definitiva absolutória proferida por juiz monocrático (também prevista no art. 593, I, do CPP) ou das que exigem reforma de decisão definitiva, ou com força definitiva, de juiz singular, que não seja cabível recurso em sentido estrito (art. 593, II, CPP).
  2. Trata-se do artigo jurídico "Defesa técnica como elemento da liberdade substantiva: aplicação da doutrina de Amartya Sen ao processo penal", apresentado para a obtenção de créditos na disciplina de "Ação Penal", do curso de pós-graduação em Direito Penal e Direito Processual Penal.
  3. O economista Amartya Kumar Sen nasceu em Santiniketan, então na Índia, mas hoje parte integrante do território de Bangladesh. Atualmente, está radicado nos Estados Unidos, onde exerce o cargo de professor de Economia e de Filosofia na Universidade de Harvard. Antes disso, lecionou na Delhi School of Economics, na London School of Economics, University of Oxford e foi reitor da University of Cambridge. Prêmio Nobel de Economia em 1998 pela sua contribuição para a teoria da decisão social e a doutrina do Welfare State, tem livros traduzidos em mais de 30 idiomas. Colaborou com o economista paquistanês Mahbud ul Haq na elaboração do Índice de Desenvolvimento Humano (IDH), que mensura o desenvolvimento de uma população não só pelos aspectos econômicos, mas também segundo as características sociais, culturais e políticas que podem influenciar na qualidade de vida.
  4. A Súmula 523 do STF dispõe: "No processo penal, a falta de defesa constitui nulidade absoluta, mas a sua deficiência só o anulará se houver prejuízo para o réu." Com relação à interpretação da referida súmula, argumentamos: "Podemos propor que a defesa técnica realmente efetiva seja um princípio de hermenêutica no momento de avaliar problemas relativos à Súmula 523 do STF ou que lhes sejam similares. Não basta que o advogado seja eficiente só aos olhos da Lei. A efetividade da defesa técnica deve ser real, constada ontologicamente para que a formalidade concebida para dar segurança à legislação não seja utilizada instrumental e cabalmente para justificar o injustificável." (YABIKU, 2006, p. 16)
  5. "Art. 564. A nulidade ocorrerá nos seguintes casos: (...) III – por falta das fórmulas e termos seguintes: (...) c) a nomeação de defensor ao réu presente, que não o tiver, ou ao ausente, e de curador ao menor de 21 (vinte e um) anos;"
  6. A liberdade de locomoção abrange: "direito de acesso e ingresso no território nacional; direito de saída do território nacional; direito de permanência no território nacional; direito de deslocamento dentro do território nacional." (MORAES, 2006, p. 112) Não é objeto deste estudo discorrer sobre outros aspectos da liberdade de locomoção – muito menos sobre os seus limites, como em caso de guerra, estado de sítio, ou outras hipóteses previstas na Constituição Federal de 1988 – que não sejam o direito de deslocamento dentro do território nacional. Aliás, é sobre este último que recai a pena de prisão (reclusão ou detenção).
  7. Antônio Scarance Fernandes (2005, p. 52) sustenta que o autor e o réu devem ter os mesmos ônus, direitos e deveres. O magistrado, portanto, deve dar tratamento preferencial à parte que esteja em desvantagem – principalmente se for a defesa – de modo a prover a "paridade de armas".
  8. Em inglês, na obra original de Amartya Sen, empregou-se o termo "freedom". Seria um aspecto "positivo" da liberdade, a ser encarado não somente como Direitos Humanos de Segunda Geração (ou Direitos Sociais), mas como a possibilidade real e efetiva, e não só formal e declarada, de o indivíduo poder escolher bens e realizar atividades visando o seu bem-estar. Sen avalia desenvolvimento de uma sociedade não só com base naquilo que as pessoas têm ou no seu potencial de consumo, mas também com relação ao que elas são (beings) e o que podem fazer (doings), de um ponto de vista efetivo.
  9. "Functionings", no original em inglês. No entendimento de Celia Kerstenetzky (2000, 114), o conceito de funcionamentos abrange propósitos humanos que não se detenham no ter, mas que vão além, levando em conta o ser (being) e o fazer (doing). O advogado complementaria o "being" e o "doing" do cliente, já que aquele é alguém que pode fazer algo que o segundo não pode: um profissional com a qualificação de realizar a defesa técnica.
  10. "Capabilities", no original em inglês. Numa explanação um pouco mais completa: "As capacidades, por sua vez, refletiriam as oportunidades de escolha por diferentes conjuntos de funcionamentos que estariam abertas para os indivíduos, representando a extensão da sua liberdade efetiva (...)." (KERSTENETZKY, 2000, 118).
  11. "Capability set", do original em inglês.
  12. Em vez de pobreza absoluta e pobreza relativa – conceitos cunhados por Célia Kertznetzky – , Olinto A. Pegoraro (2006, p. 151) prefere utilizar o termo pobreza real: "(...) Pobre é o despossuído de dinheiro, de casa, de utensílios domésticos, objetos de lazer e de informação como televisão, computador, etc. Mas este é apenas o aspecto externo e material, uma conseqüência externa e material, uma conseqüência da pobreza. A pobreza real é mais radical: é a ‘espoliação da pessoa’, das suas energias biológicas e psicológicas, da sua auto-estima. É o empobrecimento do ser humano que terá como conseqüência lógica sua dificuldade de trabalhar, de ganhar e comprar os bens materiais de que precisa. Então, pobreza não é, em primeiro lugar, baixo nível de renda mas baixo nível de existência pessoal, de energias corporais, espirituais, de liberdade e de auto-estima."
  13. "Art. 648. A coação considerar-se-á ilegal: (...) VI – quando o processo for manifestamente nulo." (CPP)
  14. Apesar de não estar expresso explicitamente na Constituição Federal de 1988, Cintra et al (2006, p, 81) sustenta que a própria prevê o duplo grau de jurisdição, já que se incumbe de enumerar as instâncias recursais aos órgãos jurisdicionais como os tribunais superiores, os tribunais federais e os tribunais dos Estados. Alexandre de Moraes (2006, p.72) concorda em termos, salientando que a Constituição prevê juízes, tribunais e alguns tipos de recursos, mas não dispõe sobre a obrigatoriedade do duplo grau de jurisdição: "Dessa forma, há competências originárias em que não haverá o chamado duplo grau de jurisdição, por exemplo, nas ações de competência dos Tribunais." Não é o intuito deste texto explorar a polêmica da obrigatoriedade, ou não, do duplo grau de jurisdição. Por isso, com relação ao assunto, nos reservaremos a expor somente o conteúdo desta nota.
  15. Artigo 647, do Código de Processo Penal: "Dar-se-á habeas corpus sempre que alguém sofrer ou se achar na iminência de sofrer violência ou coação ilegal na sua liberdade de ir e vir, salvo nos casos de punição disciplinar."
  16. Alexandre de Moraes (2006, p. 111) explica: "Não se trata, portanto, de uma espécie de recurso, apesar de regulamentado no capítulo a eles destinado no Código de Processo Penal."
  17. Com relação à sua natureza jurídica, a Súmula 93 das Mesas de Processo Penal do Departamento de Direito Processual da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (FD-USP) dispõe: "O habeas corpus é garantia constitucional do direito de locomoção e,no plano processual, tem a natureza jurídica de ação, de impetrado pelo paciente ou terceiro; quando concedido de ofício, representa manifestação do exercício espontâneo da jurisdição."
  18. O princípio da fungibilidade das formas mitiga o princípio da taxatividade dos recursos, versa a Súmula 129 das Mesas de Processo Penal do Departamento de Direito Processual da FD-USP: "O pressuposto objetivo do cabimento e adequação dos recursos é mitigado pelo princípio da fungibilidade, com o aproveitamento do recurso impróprio, ressalvada a hipótese de má-fé, e desde que interposto no prazo do recurso cabível."
  19. Vale a pena ser transcrita a lição de Nucci (2006, p. 1030): "(...) Se o processo for evidentemente nulo, não pode produzir efeitos negativos ao réu ou condenado. Logicamente, somente se utiliza o habeas corpus, em lugar da revisão criminal, no caso de processo findo, quando houver prisão ou quando a situação for teratológica, passível de verificação nítida pelas provas apresentadas com a impetração. No caso do processo em andamento, quando o prejuízo para o réu for irreparável. Tal pode dar-se pela lentidão no processamento do recurso interposto em se tratando de acusado preso."
  20. "TACRSP: ‘Quando a defesa técnica, em sua manifestação, não é benéfica ao réu, em sua sorte processual, defesa não é. Vale dizer, é inexistente, nula, prejudicial ao ofendido, nulificando a garantia constitucional, a promessa estatal pro cive. (RT 575/396)" (MIRABETE, 2003, p. 661)
  21. Heráclito Mossin (2005, p. 302) exemplifica o acatamento da defesa técnica formalmente efetiva, e não realmente efetiva, pelos tribunais: "Processual penal – Defesa ineficaz – Inocorrência – Improvimento do apelo. Se houve intervenção do procurador do réu em todas as fases do procedimento, manifestando-se nos momentos próprios e de acordo com a conveniência da teses esposada, não há de se cogitar de falta de defesa ou de deficiência apta a anular o processo, máxime se nas razões recursais o próprio apelante afirma que sua condenação guarda coerência com a prova existente nos autos, posto que essa concordância mostra não ter sofrido qualquer prejuízo decorrente da atuação do seu patrono, tenha sido este brilhante, ou não, e, conseqüentemente, afasta o reconhecimento de nulidade (inteligência da Súmula n. 523, do STF) (TJAP, Acr n. 372.95-Santana, Rel. Des. Mário Gurtyev, Câmara Única, j. 6/6/1995, DOE n. 1.105 de 30/06/1995)"
  22. CPP: "Art. 648. A coação considerar-se-á ilegal: (...) VI – quando o processo for manifestamente nulo."
  23. CPP: "Art. 652. Se o habeas corpus for concedido em virtude de nulidade no processo, este será renovado."
  24. "Enquanto na prova direta a conclusão objetiva é conseqüente da afirmação da testemunha ou da atestação da coisa ou documento, sem necessidade maior do raciocínio, na indireta o raciocínio reclama a formulação de hipóteses, teses, sua apreciação, exclusão de umas, aceitação de outras, enfim trabalhos indutivos maiores ou menores, para se atingir a verdade relativa ao fato probando." (SANTOS, 2002, v. 2, p. 336)
  25. "Caso os vícios preexistentes não tenham sido reconhecidos na sentença, ou na hipótese de ser irregularidade da própria decisão, ao tribunal competente, no exame de eventual recurso, caberá decretar a invalidade, mediante argüição como preliminar, pelo interessado, ou de ofício, em se tratando de recurso necessário (art. 574, segunda parte, do CPP) ou de nulidade absoluta." (GRINOVER ET AL, 2006a, p. 40)

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  • Roger Moko Yabiku

    Roger Moko Yabiku

    Advogado, jornalista e professor universitário. Bacharel em Direito e Jornalismo, graduado pelo Programa Especial de Formação Pedagógica de Professores de Filosofia, MBA em Comércio Exterior, Especialista em Direito Penal e Direito Processual Penal e Mestre em Filosofia (Ética). Professor do CEUNSP e da Faculdade de São Roque - UNIESP.

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Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

YABIKU, Roger Moko. Da interposição concomitante de habeas corpus e de apelação criminal em caso de defesa técnica apenas formalmente efetiva. Aplicação da doutrina de Amartya Sen ao processo penal. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 15, n. 2461, 28 mar. 2010. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/14591. Acesso em: 28 mar. 2024.