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Medidas de segurança.

A impossibilidade de manutenção do instituto face à sua vinculação ao pressuposto da periculosidade

Medidas de segurança. A impossibilidade de manutenção do instituto face à sua vinculação ao pressuposto da periculosidade

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A periculosidade passa a legitimar o discurso jurídico no sentido de afastar da sociedade todos aqueles que possam trazer algum risco para a harmonia social.

Resumo: este trabalho busca abordar a medida de segurança, espécie de sanção penal aplicada aos doentes mentais infratores, problematizando questões acerca da sua utilização face à ideologia da defesa social. Nesse sentido, serão analisados os motivos que justificaram o surgimento do instituto, as regras que devem ser observadas para sua aplicação, os argumentos usualmente utilizados pela doutrina para diferenciar as medidas de segurança das penas propriamente ditas, questionando-se, ao final, sobre a legitimidade dos tratamentos hoje dispensados ao louco infrator que, com base no pressuposto da periculosidade, têm servido apenas para segregá-los definitivamente do meio social.

Palavras-chave: medidas de segurança, doença mental, periculosidade, defesa social e prisão perpétua.


1 INTRODUÇÃO

As medidas de segurança, instrumento utilizado com vistas à contenção dos denominados "loucos infratores", não têm recebido a devida importância nos manuais de Direito Penal, não possuindo estes uma análise crítica suficiente para demonstrar a real efetividade do instituto, bem como o seu real alcance, sendo, portanto, poucos os trabalhos que se dedicam a uma análise profunda do problema, visando à modificação da estrutura que hoje se impõe.

Possuindo aplicação destinada à prevenção e defesa social, as medidas de segurança intervêm na esfera de liberdade individual dos doentes mentais infratores gerando para estes, na maioria absoluta dos casos, um único destino, qual seja, a segregação eterna.

O aumento da criminalidade observado em tempos passados proporcionou a implementação de novos meios sancionatórios capazes de atuar não mais sobre o ato criminoso praticado, mas sobre o próprio indivíduo, em particular sobre aqueles sujeitos considerados inadaptáveis a uma convivência pacífica no meio social. Coube ao Direito Penal, assim, providenciar a contenção de todos aqueles que se apresentassem como descumpridores ou prováveis descumpridores das regras de comportamento.

É neste contexto que passaremos a analisar, a partir de então, o tratamento despendido à loucura no decorrer dos séculos que possibilitou o surgimento do instituto ora em apreço, e que vem, desde os seus primórdios, gerando conseqüências no mínimo desumanas para o portador de sofrimento mental infrator.


2 SURGIMENTO HISTÓRICO DAS MEDIDAS DE SEGURANÇA

O Direito Penal, para proteger determinados bens jurídicos tidos como fundamentais, sempre buscou neutralizar todos aqueles indivíduos que pudessem colocar em risco a harmonia do convívio em sociedade, atribuindo como conseqüência direta a todos os descumpridores ou prováveis descumpridores das regras de comportamento impostas determinados tipos de sanções. É nesse contexto que surge o instituto ao qual hoje se denomina medida de segurança.

Na Roma antiga, como indivíduos que pudessem colocar em risco os ideais de pacificação social, os furiosus, assim denominados os doentes mentais, eram afastados do seu convívio com a coletividade tendo em vista a temibilidade de suas condutas. Dessa forma, permaneciam sob os cuidados e tutela de seus familiares, devendo por estes ser contidos. Diversamente, se suas famílias não se responsabilizassem pelos mesmos, eram submetidos à custódia das autoridades públicas. [01]

Torna-se possível perceber, portanto, desde essa época, a segregação dos portadores de doença mental do convívio social em razão do estigma da periculosidade. Assim, uma vez rotulados como entes perigosos, deveriam ser afastados do convívio social. Vale ressaltar, entretanto, que estes não eram atingidos pelo Direito Penal, mas excluídos pela simples condição de loucos. Uma das justificativas para a não punição encontrava-se no fato da loucura ser considerada por si só, nesse período, um castigo para aqueles que por ela fossem atingidos.

Com a expansão da Revolução Industrial, houve um crescimento desordenado das grandes cidades européias, o que ocasionou uma elevação das taxas de desemprego e, como conseqüência de todo esse processo, um grande aumento dos crimes cometidos contra o patrimônio. Assim, "[...] um movimento global faz derivar a ilegalidade do ataque aos corpos para o desvio mais ou menos direto dos bens". (FOUCAULT, 2001, p.65). Todo esse processo clamava pela necessidade de segurança, o que levou à aplicação de medidas de correção a todos aqueles que apresentavam comportamentos tidos como anti-sociais.

Como bem destaca Virgílio de Mattos:

Era preciso controlar as massas de vagabundos, sem-terra, sem-teto, sem trabalho e sobretudo os sem possibilidade de vir a conseguir trabalho. Para as grandes cidades, fluem as hordas de famintos, os doentes, os loucos, as prostitutas, inconcebível o que essa gente era capaz de fazer – literalmente – por um pedaço de pão. (MATTOS, 2006, p. 58).

Tendo isto em vista, passa-se a ser traçada uma trajetória única para todos aqueles indivíduos considerados socialmente perigosos para os ideais da classe dominante da época, sendo inseridos nesse quadro os criminosos, mendigos, vagabundos e loucos.

A segregação, a partir de então, aparece como resposta eficaz à contenção desses indivíduos. Assim, à todas as condutas que desobedecessem regras sociais impostas, ou que se apresentassem como propulsoras de comportamentos criminosos em razão do modo de vida do agente, seriam aplicadas sanções, sendo a mais comum delas aquela que possui como característica imediata a privação da liberdade do indivíduo.

Ocorre, contudo, que o aumento da criminalidade, juntamente com o alto índice de reincidência observado durante o decorrer do século XIX, acabou por gerar discussões acerca das possíveis insuficiências do sistema penal. [02]

A sanção-pena, medida de caráter exclusivamente retributivo, já não era considerada como meio capaz de atingir os propósitos de intimidação e emenda a que se propunha, o que levou pensadores da época a instituir a necessidade de criação de medidas que pudessem evitar a prática de delitos, visando com isso resguardar a segurança da própria sociedade. Surgem, assim, as várias reflexões "[...] sobre a necessidade quanto à enunciação de uma nova espécie de resposta jurídico-penal". (FERRARI, 2001, p.16).

Os estudos realizados em prol da negação do caráter exclusivo de retribuição das penas disseminaram os ideais da Escola Positiva italiana que sustentava a idéia de que a prisão, do modo como era imposta, simplesmente aumentava os impulsos criminosos do delinqüente. Necessário seria o estabelecimento de novos métodos capazes de defender a sociedade desses indivíduos, e esse fim só poderia ser alcançado por meio de tratamentos que visassem à correção e recuperação do delinqüente. [03]

Assim sendo, a nova medida criminal se orientaria por critérios de periculosidade, o que passava a não demandar necessariamente o cometimento de uma conduta criminosa para que houvesse a intervenção do Direito Penal na vida de determinados indivíduos. Uma vez considerados socialmente perigosos seriam excluídos do meio social todos aqueles que representassem risco para a sociedade, ou pelo menos para os ideais de uma classe específica.

Desta maneira, passam a se destacar invocações referentes à possível forma de aplicação dessas medidas, estabelecendo-se que a alguns indivíduos, após o cumprimento de uma sanção-pena, ainda deveria ser aplicada uma medida de tratamento como forma de prevenir o cometimento de novos crimes, de coibir a reincidência. A outros, por apresentarem comportamentos considerados anti-sociais, se enquadrando nesse aspecto loucos, mendigos, vagabundos, prostitutas, ébrios habituais, a mesma medida seria aplicada sem que para tanto fosse necessário anterior cometimento de um injusto penal.

Ocorre, dessa forma, uma mudança de foco: deixa-se de considerar o fato delituoso, para considerar a pessoa do delinqüente; a exigência da pré-existência do cometimento de um ilícito, para a condição de periculosidade do agente.

Nesse contexto, o infrator portador de doença mental e todos aqueles que representam perigo para o meio social passam a ser punidos não pelo ato que efetivamente praticaram, mas pelo risco que representariam estando em liberdade. Como bem destaca Rui Carlos Alvim: "Percebe-se que o intento não mais concerne a uma equação de justiça – equilíbrio entre os delitos e as penas –, pressupondo antes e tão somente um sentido utilitarista, estribado na defesa social." (ALVIM, 1997, p.22). A exclusão daqueles considerados inadaptáveis a uma convivência pacífica se apresenta, assim, como fim último ao alcance da defesa da sociedade.

Foi apenas em 1893, contudo, com a elaboração do anteprojeto do Código Penal Suíço, por Carl Stooss, que houve a sistematização desta nova espécie de resposta jurídico-penal, a qual se denominou medida de segurança, sendo esta destinada à recuperação daqueles delinqüentes tidos como "perigosos".

Tendo em vistas as palavras de Luiz Regis Prado:

O anteprojeto continha disposições sobre a internação dos multi-reincidentes, aplicada em substituição da sanção penal, assim como a previsão da internação facultativa em casa de trabalho e o asilo para ébrios contumazes, dentre outras significativas medidas. Seu artigo 40 prescrevia que, no caso de constatar a possibilidade de reincidência, mesmo após o cumprimento da pena, a autoridade federal poderia ordenar que tal pena fosse substituída pela internação do condenado em um estabelecimento adequado por um prazo de tempo que variava de dez a vinte anos. (PRADO, 2005, p.740).

Surge, assim, a noção regulamentada de uma dupla via sancionatória, e tal acontecimento acabou por traduzir todos os estudos realizados anteriormente em relação à necessidade de criação de uma espécie de sanção, de cunho essencialmente preventivo, que substituísse ou complementasse, quando necessário, o fim retributivo da sanção-pena.

A partir de então, o instituto das medidas de segurança passou a caminhar ao lado das penas, se diferenciando delas em alguns aspectos, mas corroborando inevitavelmente com toda estrutura de exclusão apresentada em relação àqueles que supostamente pudessem provocar algum mal para a sociedade. Dentre estes pode ser incluído aquele que seria mais tarde o grande personagem para quem se voltaria sua aplicação, ou seja, o louco infrator.


3 Sistematização das medidas de segurança no ordenamento jurídico brasileiro

No ordenamento jurídico brasileiro, possível se torna observar o tratamento despendido ao louco infrator já no Código Criminal do Império de 1830. Nesse diploma, medidas de tratamento de cunho meramente humanitário atingiam aqueles que, afetados pelo estado de loucura, viessem a praticar algum crime.

Em 1890, quando da sistematização da matéria no Código Penal da República, passou-se a estabelecer entre seus dispositivos que todos aqueles indivíduos isentos de culpabilidade em virtude de doença mental seriam entregues às suas famílias ou recolhidos em hospitais de alienados. Eram considerados, também nessa época, como não criminosos, enquadrando-se nesse aspecto todos aqueles que acometidos por imbecilidade nativa ou enfraquecimento senil, viessem a praticar algum delito [04].

Foi apenas com o Código Penal de 1940, entretanto, que ocorreu a introdução definitiva no ordenamento jurídico brasileiro das medidas de segurança, sendo teoricamente abstraída destas a idéia essencialmente retributiva da pena.

Nesse contexto, com a promulgação do referido diploma, a inimputabilidade, ou falta de capacidade de entendimento ou vontade em virtude de doença mental ou desenvolvimento mental incompleto, passou a delimitar a intervenção coercitiva do Estado na esfera de liberdade de uma categoria diferenciada de infratores, de forma a mantê-los distantes da sociedade.

Como forma do Direito Penal intervir diretamente nas ações daqueles indivíduos que apresentavam comportamentos desviantes, a medida de segurança seria aplicada ora de forma a substituir a pena em relação àqueles considerados inimputáveis, ora como complemento às penas dos imputáveis. Instituiu-se, assim, no Brasil, o sistema do duplo binário, que se caracteriza pela possibilidade de utilização de duas vias distintas de sanções criminais em relação a um único injusto penal.

Por meio dessa medida visava-se, através do tratamento, além de excluir da aplicação de uma pena aqueles considerados irresponsáveis, conter os etiquetados como perigosos, possuindo como pressupostos para sua aplicação a prática de fato previsto como crime e a periculosidade do agente, que por sua vez, era presumida pela lei em alguns casos específicos. Vale dizer, se o indivíduo ao cometer um delito, se enquadrasse em quaisquer das hipóteses previstas na lei como presuntivas de periculosidade, obrigatoriamente lhe seria aplicada a medida, sem que para tanto qualquer investigação judicial fosse realizada no sentido de comprovar ou não a existência da periculosidade criminal do agente. [05]

Ainda nesse mesmo sentido, admitia-se a aplicação do instituto, em casos excepcionais, àqueles acontecimentos tidos como quase-crimes, igualados a ilícitos penais na época. Para isso, levar-se-ia em conta fatos que "[...] não realizam inteiramente um injusto penal, mas contêm em si latente a configuração de um crime e revelam no seu autor não só a inclinação, mas a efetiva capacidade de cometer ações puníveis". (BRUNO, 1984, p. 301).

Dois eram os grupos em que se poderiam dividir as espécies de medidas de segurança nesse momento: medidas de segurança pessoais e patrimoniais. As primeiras, por sua vez, ainda se desdobravam em detentivas e não detentivas. Detentivas eram aquelas que deveriam ser cumpridas através de internação em manicômio judiciário, casa de custódia e tratamento, colônia agrícola ou em instituição de trabalho, reeducação ou ensino profissional. As não detentivas, em contrapartida, não exigiam a completa privação da liberdade do indivíduo. Enquadram-se, nesse sentido, a liberdade vigiada, o exílio local e a proibição de freqüentar determinados locais. Já as medidas patrimoniais compunham-se apenas pela interdição de estabelecimento comercial ou de sede de sociedade ou associação e pelo confisco de objetos que poderiam ocasionar a prática de qualquer delito. [06]

Uma vez judicialmente imposta a medida, previa o referido diploma, para os casos de internação, prazo mínimo de duração, sendo este tempo calculado levando-se em conta a pena de reclusão que seria abstratamente cominada ao crime cometido, ou seja, a própria gravidade do delito. Seu prazo máximo, contudo, ficou vinculado à cessação da periculosidade do agente infrator.

3.1 As medidas de segurança no Código Penal de 1984

O Código Penal de 1984 trouxe modificações em relação a algumas regras estabelecidas no diploma anterior no que se refere ao instituto ora em apreço. Dentre tais regras, pode-se citar a extinção do antigo sistema do duplo binário que, como já exposto, possibilitava a aplicação sucessiva de pena e medida de segurança. Adotou-se, assim, o sistema vicariante, que prima pela aplicação exclusiva de uma ou outra espécie de sanção penal.

Ademais, imperiosa se mostrou também a modificação realizada no que concerne à antiga possibilidade de ser utilizado, para fins de aplicação da medida, o critério da presunção de periculosidade. O Código atual não adotou tal preceito, exigindo para a aplicação da medida a comprovação, por perícia médica, da periculosidade criminal do agente, ou seja, da probabilidade de que este possa vir a reiterar em conduta criminosa após a prática de um delito, o que também se apresenta como um grande absurdo, pois nenhum tipo de saber, seja ele o jurídico, seja ele o psiquiátrico, é capaz de prever condutas, de predizer o futuro.

Contudo, assim estabeleceu-se para os dias atuais o âmbito de aplicação das medidas de segurança, a serem agora aplicadas apenas a inimputáveis e semi-imputáveis.

Inimputável, de acordo com a matéria disposta no artigo 26 do Código Penal, seria todo aquele que por doença mental ou desenvolvimento mental incompleto ou retardado, era, ao tempo da ação ou da omissão, inteiramente incapaz de entender o caráter ilícito do fato ou de determinar-se de acordo com esse entendimento. Assim, ao cometer um ilícito penal, o inimputável terá sua culpabilidade excluída face sua incapacidade de entender seu ato, sendo, portanto, isento de pena.

Por sua vez, como ainda dispõe o parágrafo primeiro do dispositivo legal acima mencionado, semi-imputável é todo aquele que, em virtude de perturbação de saúde mental ou desenvolvimento mental incompleto ou retardado não é capaz de entender inteiramente o caráter ilícito do fato emanado de sua prática delituosa ou de determinar-se de acordo com esse entendimento. Segundo Eduardo Reale Ferrari:

Denominados de fronteiriços, os semi-imputáveis encontram-se numa zona intermediária da higidez mental e a plena insanidade, ocupando faixa cinzenta os estados atenuados, incipientes e residuais de psicose, certos graus de oligofrenias e, em grande parte, as chamadas personalidades psicopáticas e os transtornos mentais transitórios. Embora capazes de entender o caráter ilícito do fato, não possuem integral aptidão sobre os seus atos, tendo como conseqüência a possibilidade de o juiz optar entre concretizar a pena com redução quantitativa ou aplicar a medida de segurança criminal [...]. (FERRARI, 2001, p. 39).

Importante ressaltar no momento a possibilidade trazida pela norma quanto à aplicação de medida de segurança aos semi-imputáveis. Se considerados culpáveis, como conceber o afastamento da aplicação de uma sanção-pena a estes tipos de indivíduos?

Esta possibilidade arbitrária concedida ao juiz de reduzir consideravelmente a pena, a saber, de 1/3 a 2/3, ou de aplicar medida de segurança, que pode significar uma restrição da liberdade do acusado por toda a sua vida, se mostra, no mínimo, absurda.

Como já observado anteriormente, o instituto das medidas de segurança é marcado pela indeterminação de sua duração, o que, por conseqüência, provoca uma intervenção ainda mais severa na liberdade individual daquele que a ela encontra-se submetido. Portanto, não há razões que justifiquem, quando presente a culpabilidade, a aplicação de uma medida que pode ser de caráter perpétuo em detrimento de uma pena, no sentido estrito, que, além de limitar o poder de punir do Estado, ainda assegura aos indivíduos todos os direitos e garantias inerentes a este tipo de sanção.

Desse modo, com a entrada em vigor do Código Penal de 1984, delimitou-se o âmbito de aplicação das medidas de segurança, se apresentando o instituto hodiernamente como conseqüência jurídica do delito praticado por aquele que não possui completo discernimento para entender a ilicitude de sua conduta. Para essa categoria de indivíduos afasta-se a aplicação de uma pena para aplicar "medida de tratamento" a ser cumprida em Hospitais de Custódia e Tratamento, tomando por base a periculosidade do agente e tendo por fim critérios meramente preventivos.

Nesse contexto, o louco, ao cometer qualquer conduta ilícita que se enquadre num tipo penal, passou a ter sua culpabilidade excluída por ser considerado irresponsável penalmente, tendo para si afastada a aplicação de uma pena para ser submetido a algo que se denomina de "tratamento", mas que de tratamento, como poderá ser observado adiante, quase nada tem.

A necessidade de prevenir delitos futuros se volta, assim, para o controle e exclusão daqueles etiquetados como perigosos e, nesse sentido, a única alternativa apresentada ao louco infrator se resume no seu afastamento do convívio social sob o argumento de que sua liberdade coloca em risco a tranqüilidade da sociedade. Exclusão, preconceito, e o velho e ainda atual estigma da periculosidade.


4 Análise do instituto medida de segurança

Indispensável se faz, no momento, tecer comentários acerca dos pressupostos hoje necessários à aplicação das medidas de segurança.

Diferentemente do que se tornou possível no século XIX, quando do surgimento do instituto em questão, hoje se torna imprescindível o cometimento de um injusto penal, ou seja, de um fato típico e antijurídico, para que o portador de doença mental seja submetido a este tipo de sanção criminal. Portanto, excluem-se da incidência da medida comportamentos considerados como meros desajustamentos de conduta, tal qual a vadiagem, a prostituição, a loucura, a mendicância, que, por si só, demandariam em tempos passados a aplicação de uma medida aflitiva como forma de defesa social.

Outro fator que se afigura como pressuposto necessário à aplicação de tais medidas curva-se à periculosidade criminal do agente. A esse tipo de periculosidade dá-se o sentido de "probabilidade de reiteração em ilícitos penais", de retorno a uma prática criminosa, voltando-se o seu conceito, portanto, para ações futuras daqueles indivíduos tidos como inimputáveis.

Aníbal Bruno corrobora o exposto ao aduzir que:

Essa condição de periculosidade, que se conceitua juridicamente na fórmula probabilidade de delinqüir, é um estado de desajustamento social do homem, de máxima gravidade, resultante de uma maneira de ser particular do indivíduo congênita ou gerada pela pressão de condições desfavoráveis do meio. Maneira de ser que pode exprimir-se na estrutura constitucional do indivíduo, anátomo-físico-psicológica, anormalmente estruturada, ou resultar de deformação imprimida social-cultural, em que se desenvolveu a vida do homem. Aí está, nos casos extremos, uma criminosidade latente à espera da circunstância externa do momento para exprimir-se no ato de delinqüir. (BRUNO, Aníbal, 1984, p. 289)

A realização de perícia médica psiquiátrica será o meio utilizado para que, após o cometimento de um injusto penal pelo doente mental, dita periculosidade seja comprovada. Para tanto, a perícia deverá levar em consideração aspectos que dizem respeito à vida pregressa do doente mental infrator, como, por exemplo, seus antecedentes pessoais, familiares, sua história social, os motivos e circunstâncias que o levaram a praticar a conduta delituosa, determinando, a partir desses elementos a existência ou não dessa periculosidade. [07]

O que ocorre, contudo, é que ainda hoje continua sendo feita uma ligação extremamente forte entre loucura e perigo como se essas duas condições estivessem absolutamente atreladas entre si. Tal posicionamento deve ser analisado de forma extremamente cautelosa, pois pode afetar de forma direta o destino do louco infrator.

O doente mental, simplesmente por ter praticado um injusto penal, não necessariamente deve ser considerado como perigoso. O problema que aqui se apresenta se reduz a essa generalização que habitualmente é difundida, o que gera ainda mais preconceito e colabora com a estigmatização criada em torno dos denominados inimputáveis. A perícia, portanto, deve se restringir à comprovação da probabilidade de reiteração em ilícitos penais. Caso tal probabilidade não seja vislumbrada não caberá a aplicação da medida, visto que um de seus pressupostos se volta à comprovação da periculosidade criminal, e não periculosidade social do agente.

Contudo, interessante nos faz indagar neste instante a capacidade atribuída ao perito para analisar a probabilidade do louco infrator, ou quem quer que seja, praticar um delito. Tal possibilidade é ilógica, sendo inconcebível sua utilização como meio de legitimação de uma reação coercitiva de tal monta. Ninguém é capaz de antever acontecimentos futuros; nem nós mesmos sabemos o que podemos fazer em tempos que ainda estão por vir. Assim sendo, não cabe ao Direito Penal punir determinados agentes com base apenas em um critério subjetivo, como é o da periculosidade.

4.1 Espécies

O art.96 do Código Penal elenca em seus incisos as duas espécies hoje existentes de medidas de segurança, a saber, internação em hospital de custódia e tratamento psiquiátrico ou sujeição a tratamento ambulatorial.

Vale ressaltar, no entanto, que atualmente essas são as únicas espécies de medidas de segurança aplicáveis aos inimputáveis ou semi-imputáveis. Todas as outras existentes em legislações anteriores não mais prevalecem.

Nesse diapasão, será por meio de uma dessas medidas que se buscará atingir o suposto escopo do instituto, qual seja, o tratamento do louco infrator de modo a tornar possível sua reinserção no meio social e, por conseguinte, sua não reiteração em práticas delituosas.

A primeira delas, medida de internação, possui caráter essencialmente aflitivo, tendo em vista a privação da liberdade daquele que será a ela submetido. Por outro lado, temos a segunda espécie de medida de segurança, denominada de tratamento ambulatorial. Neste caso em particular, diferentemente do que se observa com as medidas de segurança detentivas, não ocorre uma efetiva privação da liberdade do indivíduo. O tratamento se realiza em meio aberto, recebendo o paciente acompanhamento psiquiátrico durante toda sua duração.

Cumpre salientar que, apesar da internação ser, em regra, o tipo de medida mais aplicada atualmente, o tratamento ambulatorial deveria ser privilegiado nesse sentido, pois, ao não afastar o doente mental infrator do convívio social, propicia ao mesmo maiores possibilidades de readaptação.

Ocorre, contudo, que a modulação da medida de segurança deverá observar o disposto no artigo 97 do Código Penal, que ao abordar o assunto assim dispõe: "Se o agente for inimputável, o juiz determinará sua internação (art.26). Se, todavia, o fato previsto como crime for punível com detenção, poderá o juiz submetê-lo a tratamento ambulatorial."

Necessário se faz observar, neste instante, como o instituto em voga se distancia das finalidades de tratamento por ele ditadas. Ao se restringir, num primeiro momento, à análise do crime praticado pelo louco infrator, torna-se visível o caráter meramente excludente das medidas de segurança. Se comete crime punível com reclusão, obrigatória será a internação do doente mental infrator, por tempo indeterminado, independentemente das condições pessoais apresentadas pelo agente, não se perquirindo, pois, acerca do tipo de tratamento mais adequado ao caso concreto quando da escolha da medida.

Ora, se a justificativa para a aplicação das medidas de segurança, em teoria, se restringe ao alcance da cura do louco infrator de modo a possibilitar sua reinserção no meio social, não deveria o magistrado estar vinculado apenas à condição pessoal do agente quando da modulação da medida, submetendo-o, assim, de acordo com o quadro clínico apresentado, ao tipo de tratamento que melhor se adapte às suas reais necessidades?

Outrossim, vale aqui destacar que uma vez aplicada a medida esta ficará vinculada à cessação da periculosidade do agente. Desse modo, será realizado exame pericial pela autoridade administrativa responsável pelo tratamento no sentido de averiguar as condições pessoais do doente mental infrator, remetendo ao juiz relatório minucioso que o habilite a resolver sobre sua possível revogação ou permanência.

Isto posto, estabelece-se então todo trajeto a ser percorrido pelo louco infrator desde o momento em que seja a ele aplicado o instituto ora em apreço até sua revogação, podendo esta ocorrer, quem sabe, no instante em que seja comprovada a cessação de sua dita periculosidade.


5 Pena e medida de segurança: A supressão de direitos como conseqüência da "diferença"

A doutrina sempre procurou destacar as diferenças existentes entre pena e medida de segurança, seja em relação à sua natureza, seja em relação à sua finalidade, o que prepondera nos dias de hoje como pressupostos que irão delimitar a aplicação de um ou outro instituto.

Sob esse ponto de vista, a pena se diferenciaria da medida de segurança, num primeiro momento, pelo fato de ser intrínseco a ela o caráter aflitivo referente à conduta criminosa praticada pelo agente. Por ter praticado um fato criminoso, este deverá ser punido. Já no que diz respeito à medida de segurança, teoricamente, foi retirado de seu conteúdo qualquer finalidade punitiva. Sua característica maior se volta para o tratamento daquele que cometeu o crime sem ter a capacidade de entender o caráter ilícito de sua conduta, enquadrando-se nesse plano o doente mental infrator. Destinar-se-ia, portanto, à sua cura e readaptação social.

A medida de segurança foi supostamente formulada com fim exclusivamente preventivo, ou seja, visa não possibilitar que o indivíduo venha a reincidir na conduta criminosa, julgando um comportamento futuro e não o crime efetivamente praticado. É tratamento fundado na periculosidade do agente e que se destina à defesa social. A pena, diferentemente, teria por fim castigar aquele que causou um mal para a sociedade, recaindo, pois, sobre a repressão do próprio delito, o que demonstra seu escopo retributivo, embora possua também uma finalidade preventiva com vistas à ressocialização do infrator.

A pena possui limites de duração preestabelecidos de acordo com o tipo penal praticado. Assim, aquele que comete, por exemplo, um homicídio, será privado de sua liberdade por um prazo que, de acordo com o artigo 121 do Código Penal, poderá variar de 6 (seis) meses a 20 (vinte) anos. Nesse mesmo sentido, embora venha o indivíduo a cometer outros delitos, sua pena não poderá ultrapassar o prazo máximo de 30 (trinta) anos. De maneira contrária, e diga-se desde já inconstitucional, aquele que vier a praticar um crime sem ter a capacidade de entender sua conduta no momento dessa prática não terá tempo predeterminado para ser submetido a uma espécie de conseqüência jurídica, também de caráter aflitivo, por ser a este indivíduo aplicada uma medida de segurança.

A pena funda-se na culpabilidade. A medida de segurança se pauta exclusivamente na periculosidade do doente mental infrator.

Importante ressaltar, neste momento, que os critérios acima empregados para a diferenciação entre pena e medida de segurança engendram apenas cerceamento no que diz respeito aos direitos dos portadores de sofrimento mental. Com o objetivo de "beneficiar" esta categoria de indivíduos, excluindo sua culpabilidade, reservou-lhes o Direito Penal espécie de sanção que por se diferenciar, ao menos teoricamente, da pena, o submete a uma intervenção estatal ilimitada que, encoberta por uma falsa função terapêutica, não se coaduna com os princípios de um Estado de Direito.

É nesse contexto que a inimputabilidade e o estigma da periculosidade, que possibilita a aplicação das medidas de segurança, retira daqueles indivíduos considerados "irresponsáveis" direitos e garantias individuais a favor do alcance de uma suposta defesa social. Aos mentalmente sãos, aplica-se uma pena com todas as garantias inerentes ao instituto. Ao louco-delinqüente, estigmatizado, excluído, inimigo, cabe apenas a segregação eterna, ou até, quem sabe, o momento em que tenha sido comprovada a cessação de sua periculosidade.

Como bem demonstra Zaffaroni, o que hoje pode ser observado é a utilização de dois tipos diferenciados de tratamento penal:

(a) um para os infratores que pertencem às camadas socialmente aptas para a convivência e (b) outro para aqueles que não pertencem a elas. Os primeiros são retribuídos com uma pena limitada e proporcional, ao passo que os segundos são neutralizados com uma pena desproporcional e indeterminada (medida) [...] (ZAFFARONI, 2007, p.101)

Necessário se faz questionar, porém, por que aplicar àquele que não possui sequer capacidade para entender sua conduta uma medida que, na prática, se apresenta ainda mais gravosa do que a pena. Se ambas as espécies de sanção penal possuem caráter estritamente aflitivo, ou seja, privam o indivíduo de sua liberdade, exigem o cometimento de um fato típico e antijurídico para sua aplicação e possuem o mesmo escopo, qual seja, a defesa social, por que o louco que comete um injusto penal, apesar de não poder se submeter a uma pena, tendo em vista a "proteção" que o Direito Penal lhe concedeu nesse sentido, pode ser submetido a uma espécie de sanção diferenciada cuja diferença leva apenas à exclusão de direitos e garantias protegidos constitucionalmente?

A resposta a ser dada se resume no preconceito hoje existente que vê no "diferente" a figura de um "inimigo" e, por conseguinte, no louco a noção de perigo. Portanto, este deve ser neutralizado, mesmo que esta segregação se vislumbre numa privação eterna de sua liberdade. Como a pena não possibilitaria uma exclusão com tal extensão, nada melhor do que a criação de um "novo" instituto que o permita. Assim, muda-se o nome de "pena" para "medida de segurança" retirando do indivíduo todas as limitações impostas à primeira.

O que importa aqui ressaltar é o absurdo hoje existente em relação à possibilidade de utilização de um Direito Penal de autor, quando em questão injusto penal praticado pelo doente mental infrator. É inadmissível, num Estado Democrático de Direito, a aplicação de sanção que vise apenas conter o caráter considerado "perigoso" de uma determinada categoria de indivíduos. Nosso Direito Penal é de ato, de culpabilidade, devendo, pois, se restringir a esta última quando da aplicação de medida aflitiva a qualquer cidadão.

Ao empregar o discurso da periculosidade e do tratamento, afastando a culpabilidade para aplicação da medida de segurança ao doente mental infrator, o Direito Penal alija estes indivíduos de todos os direitos que lhes deveriam ser garantidos quando da prática pelos mesmos de um injusto penal. Rotula-o como perigoso, e através da estigmatização o afasta definitivamente do meio social. Assim, deixamos de analisar o passado, ou seja, o crime propriamente praticado, para nos restringirmos numa probabilidade, em condutas que podem vir a ocorrer.

Nesse contexto, a sociedade, arraigada por preconceitos tais, se fecha para o diferente de forma a excluí-lo de sua convivência passando a ter como meio de proteção a neutralização daqueles que não se adaptam às normas de comportamento por ela ditadas. Os "diferentes", supostamente, se apresentarão como um risco para sua tranqüilidade e, portanto, devem ser excluídos, não importando a forma como esta exclusão venha a ocorrer. Dessa maneira, o louco infrator não tem respeitados direitos mínimos como o direito à dignidade humana, à igualdade, o direito de ser diferente. O estigma da periculosidade, que passa a prover toda essa estrutura de medo, se apresenta agora como o fator que irá legitimar o confinamento muitas vezes eterno do louco infrator.

Percebe-se, portanto, que direitos para esta categoria de indivíduos parecem não existir. Estes, quando existem, são utilizados para serem de pronto excluídos em favor dos direitos daqueles que não têm que se submeter à "perigosa" convivência com os mesmos. O estereótipo criado para o doente mental infrator legitima apenas a violação de direitos e garantias mínimas, sob o disfarce de tratamento que o ajuste à vida social até que seja eliminada sua periculosidade, o que somente exprime um poder de punir arbitrário e ilimitado, cujo fim último se respalda apenas no alcance do controle daqueles tidos com indesejáveis.


6 CONTROLE SOCIAL: A Periculosidade COMO justificativa para a exclusão

O Direito Penal, tido como instrumento de controle social, possui como um de seus objetivos a manutenção da ordem e da segurança daqueles que vivem em sociedade. Assim, busca-se proteger determinados bens tidos como essenciais, sancionando condutas de todos aqueles que, lesando interesses ensejadores de tutela, descumpram as ordens impostas pelo sistema.

No entanto, o "castigo" despendido àqueles que cometem crime sem ter discernimento para entender o caráter ilícito de sua conduta, não se restringirá, quando em questão a aplicação das medidas de segurança, à culpa ou ao injusto típico efetivamente praticado pelo agente. Ao ser afetado pelo Direito Penal, o doente mental infrator será julgado por sua suposta periculosidade.

Ocorre, contudo, que além de não podermos aceitar a análise da periculosidade para fixarmos uma pena, como já delineado anteriormente, tal análise ainda é baseada em pressupostos subjetivos, em meras presunções. Abandonam-se, assim, critérios objetivos de julgamento para justificar, no risco, a reação penal.

O certo é que, por não se ajustar às regras sociais de comportamento, o louco infrator se apresenta como um indivíduo que carece de controle, sendo este realizado, de maneira ampla, através da aplicação de uma medida de segregação.

Por meio desses discursos estigmatizantes, o portador de sofrimento mental, pela condição de diferença que apresenta, passou a ser classificado como um indivíduo que não está apto a conviver com o restante da sociedade, não devendo esta, portanto, ter que se sujeitar a viver em constante medo em virtude dos "perigosos" que a aterrorizam e se apresentam como futuros descumpridores das normas de convivência.

Desse modo, o escopo para a aplicação da medida de segurança passa a ser o domínio daquele que pode colocar em risco a tranqüilidade social e servir, teoricamente, à prevenção especial de modo a buscar com sua aplicação atingir a ressocialização, a cura do doente mental infrator.

Ao se utilizar de um discurso jurídico baseado em presunções, em uma estigmatização que exclui, que segrega, que ostenta todo o preconceito existente, o Direito Penal passa a julgar o doente mental infrator com base apenas em sua enfermidade, segregando-o em instituições que, incumbidas de corrigir seus desvios, possibilitariam, em tese, o seu retorno ao meio social.

A ele, louco, inimigo, diferente, não é dada outra saída. Uma vez instaurado o incidente de insanidade mental e confirmada sua inimputabilidade, já possui destino certo. Será absolvido, por não ser considerado responsável por seu ato, mas, em contrapartida, por mais paradoxal que isso possa parecer, aplicar-se-lhe-á uma medida de segurança que, legitimada pelo parecer psiquiátrico em perícia previamente realizada, o submete a tratamento por prazo indeterminado, até que seja comprovada a cessação de sua periculosidade.

O discurso psiquiátrico, nesse sentido, irá se refletir diretamente no destino reservado ao louco infrator. Por meio dos exames realizados para a comprovação ou cessação de sua periculosidade, o saber psiquiátrico passa a conhecer o "paciente" e a exercer, em virtude disso, domínio sobre o caminho que deverá ser percorrido por ele durante o decorrer da duração de sua medida. Assim, quando da realização do exame, o inimputável é tomado como um estudo de caso e, portanto, passa a ser individualizado. A partir dessa individualização torna-se possível o conhecimento de sua anormalidade, de sua diferença, e em virtude dela o controle passa a ser exercido. [08] Isso porque:

O exame combina as técnicas da hierarquia que vigia e as da sanção que normaliza. É um controle normalizante, uma vigilância que permite qualificar, classificar e punir. Estabelece sobre os indivíduos uma visibilidade através da qual eles são diferenciados e sancionados. [...] Nele vêm-se reunir a cerimônia do poder e a forma da experiência, a demonstração da força e o estabelecimento da verdade. (FOUCAULT, 2001, p.154)

Vale aqui ressaltar que embora toda a sociedade já esteja predisposta a excluir o louco infrator por preconceitos arraigados em seu cerne, contribuindo o próprio ordenamento jurídico para essa exclusão, a periculosidade, além de não ser uma conseqüência ínsita ao transtorno mental, não é algo passível de definição e comprovação científica. Seu conceito é sempre subjetivo, se baseando, na maior parte dos casos, apenas num preconceito criado em torno do doente mental infrator, que faz presumir um determinado comportamento futuro. Nesse diapasão, Isaías Paim enfatiza que:

Ao perito compete esclarecer se o indivíduo inimputável é portador de periculosidade, mas este esclarecimento está à mercê de impressões subjetivas. Grande parte da tradição psiquiátrico-forense imperante em nosso meio fundamenta-se no pressuposto de que o doente mental é um indivíduo perigoso. A alegação de periculosidade de um doente mental que tenha praticado um ato delituoso é uma conjectura, mas não uma afirmação científica. Não existem meios objetivos, critérios científicos para avaliar a periculosidade de alguém. (PAIM, 1997, p. 518)

Ocorre, contudo, que em razão do comportamento diferenciado trazido pelo transtorno mental, a idéia de loucura não tem sido dissociada da de periculosidade. Em virtude disso, o louco infrator, pelo estado que o acomete, é tido como perigoso e, portanto, deve ser afastado, tratado, mesmo que esse tratamento seja vislumbrado apenas como forma de segregação.

Torna-se significativo observar, porém, que nem sempre uma doença mental poderá levar aquele que dela se acomete a praticar um mal ou gerar uma predisposição para a reiteração em práticas criminosas, pois "[...] nem sempre é possível estabelecer um nexo sintomático entre crime e perturbação mental". (PAIM, 1997, p.518). Tal generalização causa para o louco infrator uma redução nítida de direitos e garantias, tendo em vista que uma vez considerado "perigoso", necessita ser controlado, e essa necessidade de controle, ao invés de proporcionar um tratamento efetivo, vem sendo utilizada apenas como forma de punição ou exclusão daqueles indivíduos tidos como indesejáveis.

Ressalta-se ainda que, ao vincular a idéia de transtorno mental à idéia de periculosidade, aberta estará a possibilidade de jamais ver-se desprendido deste tipo de sanção aquele indivíduo portador de determinado tipo de doença mental incurável. Tal vinculação, portanto, contribui apenas para reforçar o estigma já criado em torno do louco infrator, fazendo com que sejam desrespeitados todos os direitos inerentes à sua qualidade de cidadão, de pessoa humana. A aversão ao diferente faz com que o rótulo da periculosidade justifique a segregação, o preconceito, o medo, e o afastamento definitivo do doente mental infrator do meio social.


7 A falência E A INCONSTITUCIONALIDADE do instituto

Como já posto, a medida de segurança justifica sua aplicação no tratamento terapêutico direcionado ao louco infrator com vistas a possibilitar sua reinserção no meio social. Ocorre, contudo, que as instituições hoje existentes como locais teoricamente propícios à realização desse fim não são capazes de alcançá-lo, seja por seu caráter estritamente fechado, seja pelo tratamento muitas vezes cruel despendido aos seus internos.

Os Manicômios Judiciários ou, após a reforma penal ocorrida em 1984, Hospitais de Custódia e Tratamento, vêm apenas denunciar a realidade desumana e excludente a qual se encontra exposto o doente mental infrator. Este, por sua condição de diferença, não pode ser submetido ao regime prisional comum, mas, em contrapartida, lhe é reservado o destino de ser inserido em instituição que, encoberta por funções hospitalares e terapêuticas, guarda em sua essência apenas a necessidade de segregar aqueles que supostamente representariam perigo para a sociedade.

Assim, não raro pode ser observado nesses estabelecimentos a utilização de choques elétricos, torturas e espancamentos para conter comportamentos agressivos do doente mental infrator, bem como a falta de profissionais especializados para o seu atendimento, o que desvirtua por completo a finalidade terapêutica e de reintegração social atribuída às medidas de segurança.

Outrossim, em razão do baixo preço de determinados tipos de medicamentos, ainda pode ser constatado nestas instituições a falta de medicação adequada para cada tipo específico de sofrimento mental, fazendo com que muitas vezes tratamentos padronizados, sejam aplicados a indivíduos que apresentam transtornos e necessidades diversas em relação a seus quadros clínicos. [09] Tais situações, juntamente com o caráter estritamente fechado dessas instituições, contribuem apenas para o agravamento do transtorno daqueles que nelas encontram-se inseridos, podendo ocasionar até mesmo a cronificação do quadro clínico do paciente judiciário. A mera institucionalização, portanto, não pode ser capaz de propiciar a ressocialização e cura do doente mental infrator.

De acordo com Erving Goffman, os hospitais psiquiátricos, por se apresentarem como espécie de instituições totais [10], tendem a gerar um processo de mortificação em relação a seus pacientes, que, sendo totalmente afastados do mundo externo e submetidos às regras internas da instituição, perdem sua própria identidade. Assim, esclarece Goffman que:

No mundo externo, o indivíduo pode manter objetos que se ligam aos seus sentimentos do eu – por exemplo, seu corpo, suas ações imediatas, seus pensamentos e alguns de seus bens – fora de contato com coisas estranhas e contaminadoras. No entanto, nas instituições totais esses territórios do eu são violados; a fronteira que o indivíduo estabelece entre seu ser e o ambiente é invadida e as encarnações do eu são profanadas. (GOFFMAN, 2001, p. 31).

Sucede, desse modo, o que o autor denomina de "mutilação do eu", o que tornaria impraticável a possibilidade de reinserção desses indivíduos no meio social.

Ocorre, contudo, que apesar das autoridades públicas assistirem a todo esse processo excludente e desumano ao qual encontra-se exposto o doente mental infrator nenhuma atitude, ou quase nenhuma, tem sido tomada para que mudanças na forma do tratamento destinado a tal indivíduo sejam realizadas.

Isto posto, necessário se faz acenar para a visível contradição existente entre a justificativa apresentada pelo Direito Penal ao intervir na esfera de liberdade do doente mental infrator e a realidade apresentada pelos estabelecimentos destinados a seu tratamento. A mera institucionalização destes indivíduos, via medida de segurança, não pode jamais ser capaz de alcançar o fim proposto pelo instituto. Assim, evidenciado está o caráter aflitivo ocultado por todo esse discurso terapêutico que, com vistas a uma suposta defesa social, serve apenas como subterfúgio para legitimar o poder punitivo estatal.

7.2 Falta de limites máximos para a aplicação da medida: prisão perpétua?

Neste contexto de vinculação da medida de segurança à periculosidade do doente mental infrator, imprescindível se torna trazer à baila acontecimento que não raro pôde ser observado no decorrer dos tempos: a utilização do instituto como meio de possibilitar a prisão perpétua.

O Código Penal brasileiro, em seu artigo 97, determina que a medida de segurança será aplicada por tempo indeterminado, devendo, após a fixação do seu prazo mínimo de duração estabelecido pelo juiz, ser realizada perícia médica para comprovação ou não da cessação da periculosidade do agente. Assim, uma vez internado, o louco infrator poderá nessa condição permanecer pelo resto de sua vida se não for comprovada a cessação do seu "estado perigoso".

Ocorre, contudo, que a Constituição Federal proíbe expressamente, em seu artigo 5º, XLVII, "b", a prisão perpétua. Por que justificar, então, sua utilização quando em questão o instituto em voga?

Há os que defendem que, pelo fato da medida de segurança possuir caráter estritamente preventivo, sendo dela afastada a idéia de castigo atribuída às penas para a realização de tratamento terapêutico, não caberia estabelecer prazo máximo para sua duração. Sua indeterminação se justificaria por seu próprio fim, ou seja, promover a defesa social em face daqueles que trazem em si uma perigosidade latente.

Com isso, fica elucidado que o estigma da periculosidade cria para o louco infrator uma condição de absoluta desvantagem em relação àqueles considerados imputáveis, na medida em que, para a proteção da sociedade permite-se até mesmo a desconsideração de direitos e garantias mínimas concedidas a todo e qualquer indivíduo em âmbito constitucional.

Desse modo, sob o pretexto do tratamento, legitima-se a aplicação de uma medida que por se diferenciar, em teoria, da pena provoca a exclusão eterna do doente mental infrator. Diz-se eterna porque até mesmo naqueles casos em que há a comprovação da cessação da periculosidade do paciente judiciário, fato que por si só deveria automaticamente impedir a continuação do suposto "tratamento", o indivíduo pode continuar tendo sua liberdade restringida.

Tal fato pode ser corroborado por Virgílio de Mattos (2006) que, ao abordar o assunto, demonstra não serem raros os casos em que a medida de segurança é mantida, apesar de comprovada por laudo psiquiátrico a cessação da periculosidade do doente mental infrator, simplesmente pelo fato do magistrado não estar convencido quanto a esta cessação. [11] Ora, se o saber psiquiátrico se manifesta no sentido de que o indivíduo está apto para o retorno ao convívio social, não há razões para que seja mantida a sua internação.

Neste instante, necessário se faz destacar que apesar da periculosidade ter se tornado o rótulo justificador de todo este processo de neutralização dos doentes mentais infratores, devemos considerar que a medida de segurança, por privar o indivíduo de sua liberdade, se apresenta como medida de caráter essencialmente aflitivo o que, portanto, não dá legitimidade ao Direito Penal para autorizar a custódia eterna daqueles que a este instituto encontram-se submetidos. Como acertadamente leciona Zaffaroni:

Não é constitucionalmente aceitável que, a título de tratamento, se estabeleça a possibilidade de uma privação de liberdade perpétua, como coerção penal. Se a lei não estabelece o limite máximo, é o intérprete quem tem a obrigação de fazê-lo.

Pelo menos, é mister reconhecer-se para as medidas de segurança o limite máximo da pena correspondente ao crime cometido, ou a que foi substituída, em razão da culpabilidade diminuída. (ZAFFARONI, 2008, p.733)

Ademais, a própria ausência de critérios objetivos para a aplicação das medidas de segurança, se baseando esta na periculosidade do agente, ou seja, na probabilidade de delinqüir, deveria ser utilizada como pressuposto limitador da intervenção do Estado na esfera de liberdade individual de qualquer cidadão, e não como justificativa para a imposição de uma medida que atualmente, apesar de todos os argumentos contrários, nada mais consegue ser do que uma pena com nome diferenciado. Ninguém pode ser punido simplesmente em razão de uma presunção, em razão daquilo que é ou representa.


8 PAI – PJ: a eficácia do tratamento que inclui

A par de todo esse processo de segregação e crueldade ao qual encontra-se submetido o louco infrator, foi criado no ano de 2000 e implementado em 2001, pelo Tribunal de Justiça de Minas Gerais, em parceira com o Centro Universitário Newton Paiva, o Programa Pólos Produtores de Cidadania da UFMG e a Escola Brasileira de Psicanálise, o "Programa de Atenção Interdisciplinar ao Paciente Judiciário Portador de Sofrimento Mental Infrator", que, por servir de exemplo às diversas práticas segregacionais existentes quando da aplicação das medidas de segurança, merece aqui ser exposto.

Como forma de prestar assistência ao portador de doença mental infrator, o PAI-PJ se orienta por práticas de inserção social, diferenciando seu trabalho das medidas seculares de contenção utilizadas comumente como forma de "tratar" o louco infrator, o que possibilita o resgate da sua cidadania e o seu reconhecimento como sujeito de direitos.

Por meio de uma equipe interdisciplinar, composta por psicólogos, assistentes sociais, jurídicos e estagiários, o Programa chama para si a responsabilidade de oferecer os subsídios necessários à autoridade judicial quando da aplicação das medidas de segurança. Desse modo, naqueles processos em que sejam instaurados incidentes de insanidade mental e determinado, pelo juiz criminal, a intervenção do PAI-PJ, este apresentará projeto clínico capaz de propiciar a modulação individual da medida, estabelecendo assim a forma de tratamento mais adequada de acordo com as peculiaridades de cada caso. [12]

Desfaz-se, desta forma, a lógica "pena de reclusão-internação". Cada caso será averiguado conforme as particularidades do indivíduo, com o escopo de conjugar tratamento, responsabilidade e inserção social. A internação somente ocorrerá naqueles casos que demandem intervenção de crise, sendo esta realizada não em Hospitais de Custódia e Tratamento ou em Manicômios Judiciários, mas na própria Rede Pública de Saúde. Evita-se, com isso, a mera institucionalização do louco infrator, possibilitando a este indivíduo um tratamento eficaz e efetivo.

Nesse sentido, interessante observar que o PAI-PJ, ao utilizar este método de tratamento, acaba proporcionando ao louco infrator uma intervenção clínica equivalente àquela realizada quando em questão o doente mental que não comente nenhum tipo de injusto, já que o "paciente infrator" terá o seu quadro clínico acompanhado pela própria Rede Pública de Saúde.

Como forma de evitar a reincidência em condutas criminosas, o doente mental infrator será convocado a responder psicologicamente por seu ato, a construir uma reflexão sobre sua prática "irresponsável". Como bem dispõe Fernanda Otoni de Barros:

Mesmo que no momento do ato não sabia o que fazia, construir um saber sobre as condições de seu ato, mesmo que depois do crime, constitui uma forma de responder por sua ação no espaço público e mais do que isso, promove-se por esse ato a construção de um saber que serve de orientação, o orienta sobre o fora de sentido, fora da lei. [13]

O que se observa através do trabalho realizado pelo Programa, é que no momento em que o Direito Penal retira a responsabilidade do doente mental infrator pelo ato cometido, simplesmente segregando-o em estabelecimentos que se dizem propícios à realização de um tratamento, não dá ao mesmo a possibilidade de vir trazer suas razões, de entender o sentido do seu ato, o que afasta sua implicação com o mesmo e torna mais dificultosa sua inserção no meio social.

Nicole Fumian Signorelli, ao abordar o assunto atesta que:

Torna-se importante garantir ao "louco infrator" a possibilidade de responder por seus atos, sendo esta uma forma de viabilizar a sua reinserção social. Mas para que isso se faça possível, é preciso escutá-lo, apreender sua posição frente ao ato, ao tratamento e à medida. Deve ser permitido que responda de seu lugar, que apresente suas razões e construa suas medidas. (SIGNORELLI, 2001, p.123).

Durante esse processo de tratamento e responsabilização o paciente recebe do PAI-PJ todo o acompanhamento terapêutico necessário durante o decorrer do processo criminal, sendo primordial o envolvimento de sua família neste instante. Para tal, o Programa presta o auxílio necessário aos familiares do doente mental infrator, seja por meio de atendimentos individuais ou através do encontro de grupos de familiares, orientando-os sobre a necessidade de sua participação nas diversas etapas do tratamento, tanto no sentido de observação da evolução ou estabilização do quadro clínico do paciente, quanto no sentido de apresentar-lhes as saídas existentes na hipótese de ocorrência de crises que demandem uma maior intervenção.

O processo de inserção será assim desenvolvido, sendo sempre privilegiado o tratamento realizado em meio aberto. Para aqueles pacientes submetidos à internação, e que ainda não se sentem seguros o suficiente para encarar sozinhos, quando do recebimento de alta, a realidade da saída, ainda utiliza o Programa um método denominado de "liberdade vigiada". Dessa forma, segundo Barros:

Um estagiário de Psicologia, determinado pelo juiz, passa a acompanhar o cidadão pela cidade. Realizam a transição, fazem a ponte. A saída do regime de internação se faz acompanhar de uma certa contenção simbólica [...], substituindo a contenção dos muros pela contenção da lei que o AT encarca. Em um dado momento, este cidadão acompanhado atravessa a ponte e ganha a cidade, o paciente ascende à posição de cidadão, conta com seu próprio saber na sua circulação pelo mundo da vida, responde de forma razoável ordem estabelecida, partilhando regras, definindo seu itinerário. [14]

Inseri-los no convívio social, esta tem sido a tarefa desempenhada pelo PAI-PJ. Aqui, o risco é assumido, a segregação cede lugar para o tratamento, o estigma da periculosidade é desmascarado e ao louco infrator é dada a possibilidade de ter respeitado direito que o Direito Penal parece lhe ter retirado: de ser tratado como sujeito de direitos, como cidadão, e não apenas como mero objeto de intervenção.


9 CONCLUSÃO

O que temos percebido ao longo dos tempos, é que o Direito Penal, ao se utilizar do discurso do tratamento quando da aplicação de uma medida de segurança ao portador de doença mental infrator, tem por fim apenas afastar da sociedade aquela categoria de indivíduos que sempre se mostrou indesejável em razão do seu comportamento desviante e "perigoso".

O portador de sofrimento mental, ao ter para si prolatada sentença absolutória, porém, com vistas à aplicação de uma medida de segurança, tem tido seu destino assim traçado: é segregado em Hospitais de Custódia e Tratamento podendo por lá permanecer por toda a eternidade, não sendo raras as ocasiões em que tal acontecimento pode ser observado. Como já abordado anteriormente, a realidade das instituições hoje destinadas a receber estes indivíduos nos anuncia a constante falta de medicamentos adequados para cada tipo de enfermidade apresentada, de profissionais especializados, o que acaba provocando a cronificação do quadro clínico do paciente não sendo alcançada, assim, sua cura, motivo que acaba dando ensejo a uma custódia eterna.

Assim sendo, percebe-se que embora os anseios teoricamente anunciados pelo instituto sejam os de tratamento, a medida de segurança, do modo como vem sendo aplicada, não passa de uma pena, sem limites, que tem por objetivo único a exclusão do louco infrator do meio social, o que se torna inadmissível face à adoção de um Direito Penal de ato e não de autor.

Para que a manutenção do instituto, portanto, se torne legítima e compatível com as garantias e direitos fundamentais constitucionalmente enunciados, necessário que se adote novas formas de tratamentos psicoterapêuticos e sociais que possibilitem ao doente mental infrator sua efetiva reinserção na sociedade. Dessa forma, deve-se desconstruir a idéia da utilização de internações em meio fechado como regra, pois esta nada mais pode oferecer além de uma resposta à incessante busca pela defesa social.

Para que haja um efetivo tratamento, e não apenas uma pena disfarçada de tratamento, que hoje é o que temos na maioria absoluta dos casos, necessário se faz a utilização de um método multidisciplinar, tal qual o utilizado pelo PAI-PJ, que conjugue, na apreciação dos casos, o saber jurídico, psiquiátrico e psicológico, analisando-se em cada um deles, de acordo com cada anomalia apresentada, qual a melhor medida a ser aplicada. A lógica "pena de reclusão-internação", portanto, não pode, de maneira alguma, se adequar a estas necessidades.

Além disso, deve também ser afastada a possibilidade de decisão do juiz acerca da manutenção de uma medida de tal monta quando demonstrado através de laudo psiquiátrico a cessação da periculosidade do agente. Perigo aqui não deve jamais ser confundido com doença. O que deve ser buscado, através do tratamento, é a estabilização do quadro clínico do paciente, pois embora em alguns casos a cura seja algo possível de se alcançar, em outros essa possibilidade não existe.

Portanto, se não possui a capacidade de entender o caráter ilícito de sua conduta, sendo, assim, inculpável, não deve o louco infrator ser submetido a uma espécie de punição penal simplesmente pela enfermidade mental que apresenta. Apesar de toda estigmatização criada em torno do doente mental infrator, doença mental não é sinônimo de perigo, embora seja esta a lógica usualmente utilizada quando em questão a aplicação do instituto. Não é por ser diferente que o portador de doença mental é perigoso. Portanto, o fato deste vir a cometer um injusto penal, não pode gerar uma previsão absoluta de que este, por ter cometido ato tipificado como crime, voltará a delinqüir, ou será capaz de provocar um mal para si ou para a sociedade. O risco de ataque a bem jurídico, assim como é assumido em relação aos indivíduos considerados imputáveis, deverá sê-lo também em relação àqueles considerados inimputáveis, pois este faz parte da própria natureza humana, não tendo o Direito Penal legitimidade para utilizar o seu poder punitivo de forma essencialmente retributiva em relação a condutas futuras que, sem nenhum argumento científico, não passam de julgamentos preconceituosos e estigmatizantes que visam apenas a exclusão do "diferente".

Ao louco deve ser garantida, portanto, a possibilidade de retorno à sociedade, através da utilização de um tratamento efetivo e eficaz em termos práticos, realizado em meio aberto, quando excluída sua culpabilidade em razão de doença mental. A internação, desse modo, deverá se restringir aos casos de crise, que demandem necessariamente uma intervenção mais drástica. Dessa forma, excluída estará a possibilidade do Direito Penal se utilizar de critérios meramente subjetivos, como é o da periculosidade, para intervir eternamente na esfera de liberdade do louco infrator.


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Notas

  1. BRUNO, Aníbal. Direito penal, parte geral, tomo 3:pena e medida de segurança. 4.ed. Rio de Janeiro, Forense, 1984, p .256.
  2. ALVIM, Rui Carlos Machado. Uma pequena história das medidas de segurança. São Paulo: IBCCRIM, 1997, p.17.
  3. FERRARI, Eduardo Reale. Medidas de segurança e direito penal no estado democrático de direito. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2001, p.19.
  4. PERES, M.F.T. e NERY FILHO, A. A doença mental no direito penal brasileiro: inimputabilidade, irresponsabilidade, periculosidade e medida de segurança. História, Ciências, Saúde – Manguinhos, Rio de Janeiro, vol.9(2): 335-55 maio-ago, 2002, p. 338.
  5. FERRARI, Eduardo Reale. Medidas de segurança e direito penal no estado democrático de direito. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2001, p. 35.
  6. BRUNO, Aníbal. Direito penal, parte geral, tomo 3: pena e medida de segurança. 4.ed. Rio de Janeiro, Forense, 1984, p.315-336.
  7. WEIGERT, Mariana de Assis Brasil e. O discurso psiquiátrico na imposição e execução das medidas de segurança. Revista de estudos criminais. Porto Alegre: Notadez v .6, n. 21 (jan./mar.2006), p.141.
  8. FOUCAULT, Michel. Vigiar e Punir: nascimento da prisão.24.ed. Petrópolis, Vozes, 2001, p.157.
  9. MATTOS, Virgílio de. Trem de doido: o direito penal e a psiquiatria de mãos dadas. Belo Horizonte: Una Editora, 1999, p. 92.
  10. Ao conceituar as instituições totais Erving Goffman as apresenta como aqueles locais de "[...] residência e trabalho onde um grande número de indivíduos com situação semelhante, separados da sociedade mais ampla por considerável período de tempo, levam uma vida fechada e administrada".
  11. MATTOS, Virgílio. Crime e psiquiatria: uma saída: preliminares para a desconstrução das medidas de segurança. Rio de Janeiro: Revan, 2006, p.120-123.
  12. Nesse sentido, interessante a leitura da cartilha do Programa de Atenção Integral ao Louco Infrator, disponível em < http://www.tjmg.jus.br/corregedoria/pai_pj/cartilha_final.pdf>, que esclarece de forma pormenorizada a forma como este trabalho vem sendo atualmente desenvolvido pelo PAI-PJ em Minas Gerais.
  13. BARROS, Fernanda Otoni de. Um programa de atenção ao louco infrator. Disponível em <http://carceraria.tempsite.ws/fotos/fotos/admin/formacoes/4e8330439b0d639375735e5aef645e6c.doc >. Acesso em: 26/03/2010.
  14. BARROS, Fernanda Otoni de. Um programa de atenção ao louco infrator. Disponível em <http://carceraria.tempsite.ws/fotos/fotos/admin/formacoes/4e8330439b0d639375735e5aef645e6c.doc >. Acesso em: 26/03/2010.

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PAULA, Francine Machado de. Medidas de segurança. A impossibilidade de manutenção do instituto face à sua vinculação ao pressuposto da periculosidade. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 15, n. 2471, 7 abr. 2010. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/14617. Acesso em: 26 abr. 2024.