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Fornecimento de medicamentos: um conflito de competência no Poder Judiciário

Fornecimento de medicamentos: um conflito de competência no Poder Judiciário

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RESUMO

O presente trabalho se propõe a analisar o conflito de competência nas ações de fornecimento de medicamentos no âmbito da Justiça Estadual e Justiça Federal. Inicialmente, parte-se de uma abordagem constitucional sobre o direito a saúde, bem como uma breve retrospectiva histórica. A saúde é um direito fundamental do ser humano e deve ser prestada de forma imediata, conforme estabelece de forma expressa o texto constitucional. Porém, com o advento da jurisdicionalização de medicamentos, surgem empecilhos no momento da concessão da medida pleiteada, ocorrendo assim, o problema da eficácia dos direitos fundamentais. O Poder Judiciário tem se manifestado de varias formas, dentre elas, declinado a competência para outra jurisdição. O enfoque principal se dá quanto à competência, em que se verifica o verdadeiro posicionamento dos magistrados no que concerne ao conflito de competência nas ações de fornecimento de medicamentos. Assim, será verificado o conflito de competência entre Justiça Estadual e Justiça Federal e entre Juizado Especial Federal e Vara Federal. A análise terá por base decisões do Tribunal de Justiça de Santa Catarina, do Tribunal Regional Federal da 4ª Região, bem como do Superior Tribunal de Justiça. Considerando-se que a saúde é o maior bem do ser humano, o presente estudo verificou a existência de lesão a preceitos fundamentais, principalmente no que diz respeito ao principio da integridade física e ao principio da dignidade da pessoa humana.

Palavras-chave: Direito a Saúde. Fornecimento de Medicamentos. Conflito de Competência no Poder Judiciário.


1 INTRODUÇÃO

O presente trabalho trata do conflito de competência nas ações de fornecimento de medicamentos. A pesquisa se justifica pela atualidade do tema, pois, no Brasil, os direitos sociais, dentre eles a saúde, devem ser garantidos a toda população. Em termos práticos, a escolha do tema visa ao esclarecimento quanto à forma pela qual vem sendo efetivada a atuação do Poder Judiciário no que tange o conflito de competência nas Ações de Medicamentos, direito este resguardado pela Constituição Federal de 1988 e pela Lei Ordinária nº 8.080, de 19 de setembro de 1990.

O objetivo principal deste trabalho é investigar através de pesquisa bibliográfica os conflitos de competência no Poder Judiciário envolvendo as ações de medicamentos. A pesquisa bibliográfica será realizada através de livros técnicos que fornecerão subsídios para uma base sólida consolidando e possibilitando a veracidade da pesquisa, bem como através de decisões do Tribunal de Justiça de Santa Catarina, do Tribunal Regional Federal da 4ª Região e do Superior Tribunal de Justiça.

Para tanto, o estudo está dividido em dois subtítulos. O primeiro trata do direito à saúde e sua positivação constitucional e o problema da eficácia do direito a medicamentos. O segundo subtítulo adentrará no conflito de competência nas ações de medicamentos. Será analisada a definição do conflito de competência, o posicionamento dos magistrados acerca do conflito de competência entre Justiça Federal e Justiça Estadual e entre Juizados Especiais Federais e Varas Federais.


2 DIREITO À SAÚDE

A saúde é um direito fundamental de grande importância para os indivíduos. Está inserido no ordenamento jurídico brasileiro, pois é fruto da evolução dos direitos humanos fundamentais. Os direitos humanos fundamentais surgiram como produto da fusão de várias fontes, desde as tradições de diversas civilizações, até a conjunção dos pensamentos filosófico-jurídicos, das ideias surgidas com o cristianismo e com o direito natural. Tais ideias eram voltadas para a necessidade de limitação e controle dos abusos de poder do próprio Estado e de suas autoridades constituídas e a consagração dos princípios básicos da igualdade e da legalidade como regentes do estado moderno e contemporâneo. (MORAES, 2000)

Levando-se em consideração a história, o direito fundamental individual teve sua consumação formal no Código de Hammurabi, quando foi expressamente previsto como direito comum a todo ser humano. Dentre os direitos estavam: a vida e a dignidade. Com a vinda da forte concepção do Cristianismo, que idealizava a igualdade de todos os homens, sem distinção de raça, cor, sexo ou credo, teve-se, portanto, a consagração dos direitos fundamentais, relacionados com a dignidade da pessoa humana. (MORAES, 2000)

A consagração normativa dos direitos humanos fundamentais aconteceu quando a Assembleia Nacional França promulgou a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão. Posteriormente, o grande marco dos direitos individuais foi estabelecido na Constituição Portuguesa de 1822, consagrando, dentre outros, os seguintes direitos: igualdade, liberdade, segurança. (MORAES, 2000)

No início do século XX, a Constituição Mexicana, passou a garantir direitos individuais com fortes tendências sociais, tal como a efetivação da educação e dos direitos trabalhistas. (MORAES, 2000)

Nesse sentido, os direitos sociais e econômicos, estão garantidos e reconhecidos ao lado dos direitos individuais, mas foi na Constituição de Weimar que exercera maior influência no constitucionalismo pós Primeira Guerra Mundial, gerando reflexos até na Constituição Brasileira de 1934. (AFONSO DA SILVA, 2005)

Em 1969, o Pacto de San José da Costa Rica, proclamou um regime de liberdade pessoal e justiça social, fundado no respeito aos direitos humanos essenciais, tais como direito à vida e direito à integridade pessoal. (MORAES, 2000)

O decreto nº 678, de 6 de novembro de 1992, promulgou a Convenção Americana sobre Direitos Humanos (Pacto de San José da Costa Rica). O Estado Brasileiro depositou a carta de adesão dessa Convenção em 25 de novembro de 1992. O principal objetivo é a plena efetivação dos direitos humanos fundamentais, sejam eles, individuais, sociais ou culturais.

2.1 DIREITO A SAÚDE E SUA PÓSITIVAÇÃO CONSTITUCIONAL

Os direitos fundamentais, desde seu reconhecimento formal nas Constituições passaram por diversas transformações, tanto no que diz respeito com seu conteúdo, quanto à sua titularidade, aplicabilidade, eficácia e efetivação. Os valores históricos se agregam ao desenvolvimento dos direitos fundamentais, surgindo a chamada teoria dimensional, ou seja, as dimensões dos direitos fundamentais, que se dividem em direitos de primeira, de segunda e de terceira dimensão. [01]

Os direitos de primeira dimensão encontram suas raízes na doutrina iluminista e jusnaturalista, segundo a qual, a finalidade do Estado consiste na realização da liberdade do indivíduo, bem como a revolução política do final do século XVIII que marcaram o início da positivação das reivindicações burguesas. (SARLET, 2001)

Os direitos fundamentais de primeira dimensão por se tratar especificamente de direitos do indivíduo frente ao Estado, são classificados como direitos de cunho negativo, uma vez que dirigidos a uma abstenção e não a uma conduta positiva por parte dos poderes públicos. Dentre os direitos de primeira dimensão estão, os direitos referente à liberdade, à propriedade, à vida e à igualdade perante a lei. (SARLET, 2001)

O impacto da industrialização e os graves problemas sociais e econômicos no decorrer do século XIX geraram amplos movimentos reivindicatórios e o reconhecimento progressivo atribuindo ao Estado comportamento ativo na realização da justiça social, propiciando ao indivíduo o direito de participar do bem estar social. (SARLET, 2001)

Para Bonavides (2008, p. 565), com o advento dos direitos fundamentais de segunda geração, foi descoberto também o aspecto objetivo, a garantia de valores e princípios, porém com um produto peculiar, a proteção das instituições, conforme explicita:

Os direitos sociais fizeram nascer a consciência de que tão importante quanto salvaguardar o indivíduo, conforme ocorreria na concepção clássica dos direitos da liberdade, era proteger a instituição, uma realidade social muito mais rica e aberta à participação criativa e à valoração da personalidade que o quadro tradicional da solidão individualista, onde se formara o culto liberal do homem abstrato e insulado, sem a densidade dos valores existenciais, aqueles que unicamente o social proporciona em toda plenitude.

Os diretos fundamentais de terceira dimensão, também denominados de direitos da fraternidade ou da solidariedade, desprendem-se da figura homem-indivíduo como seu titular. Destina-se à proteção de grupos humanos (família, povo, nação), ou seja, caracterizam-se como direitos de titularidade coletiva ou difusa. (SARLET, 2001)

As Constituições brasileiras sempre inscreveram uma declaração dos direitos do homem brasileiro e estrangeiro residentes no país. A Constituição do Império do Brasil, de 1824, foi a primeira no mundo, a subjetivar e positivar os direitos do homem, dando-lhes concreção jurídica efetiva. (AFONSO DA SILVA, 2005)

Os direitos de segunda dimensão foram embrionariamente tratados na Constituição de 1824, que ainda são caracterizados nos dias atuais, por outorgarem ao indivíduo direitos a prestações estatais, como a assistência social, saúde, educação e trabalho. Contudo, foram a partir do século XX nas Constituições do pós-guerra, que este novo direito acabará sendo consagrado. (SARLET, 2001)

A Constituição de 1891 não positivou o direito a saúde, apenas tratava de forma primária sobre a importância dos socorros públicos. Com a vinda da Constituição de 1934, essa metodologia modificou-se, não tratava especificamente do direito a saúde, porém admitia um termo mais amplo, trazia o direito à subsistência, elevando este a categoria de direito fundamental do indivíduo. Em um contexto social é sabido que já preconizava a preocupação do Ente Público com a saúde genericamente tratada em tal legislação. (AFONSO DA SILVA, 2005)

O marco histórico relacionado aos direitos fundamentais foi consagrado com o advento da Constituição Federal de 1988, que apresenta, em seu artigo 5º, caput, a inviolabilidade ao direito à vida, que na concepção de Moraes (2000, p.87) "o direito a vida é o mais fundamental de todos os direitos, pois o seu asseguramento impõe-se, pré-requisito à existência e exercício de todos os demais direitos". Assim, a Constituição Federal de 1988, assegura o direito à vida em duas fases, sendo uma delas o direito do ser humano de continuar vivo e, por conseguinte, o de ter uma vida digna quanto à subsistência. (MORAES, 2000)

O Estado, tendo que garantir a inviolabilidade do direito à vida, subsidiariamente, terá que garantir os meios pelo quais o ser humano tenha a efetiva proteção. Dessa forma, Moraes (2000, p. 87) entende que ao Estado cria duas obrigações:

[...] obrigação de cuidado a toda pessoa humana que não disponha de recursos suficientes e que seja incapaz de obtê-los por seus próprios meios;

[...] efetivação de órgãos competentes públicos ou privados, através de permissões, concessões ou convênios, para prestação de serviços públicos adequados que pretendam prevenir, diminuir ou extinguir as deficiências existentes para um nível mínimo de vida digna da pessoa humana. (itálico do autor)

A vida é o bem maior de todo ser humano e, consequentemente, a saúde vem atrelada a ela, pois a Lei Magna assegura em seu artigo 6º, caput, diversos direitos a prestações sociais, entre eles estão a educação, a saúde, o trabalho, a moradia, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância e a assistência aos desamparados.

Destaca-se que com o advento da Constituição Federal de 1988, o direito à saúde deixou de ser vinculada a existência de doença. Antes do constitucionalismo moderno, o Estado somente agiria em caso de moléstia grave. Porém, o atual ordenamento jurídico brasileiro, devido à proteção dos direitos humanos, passou a entender que a saúde não é apenas um processo de cura, mais sim, um direito ao acesso à cura e a prevenção que todos os indivíduos detêm. (CARVALHO, 2007)

Para Duarte (1994, p. 173), o direito a saúde "integra o conceito de qualidade de vida, porque as pessoas em bom estado não são as que recebem bons cuidados médicos, mais sim aquelas que moram em casas salubres, comem uma comida sadia, em um meio que lhes permite dar à luz, crescer, trabalhar e morrer".

Assim, o direito à saúde, contido genericamente no art. 6º da Constituição Federal de 1988, pode ser visto como o atendimento médico, o atendimento hospitalar, o atendimento fisioterápico, a realização de exames, o tratamento necessário e eficaz e o acesso a medicamentos, direitos estes considerados fundamentais. Por conseguinte, o acesso a medicamentos é um direito fundamental, e tem eficácia imediata, conforme preceitua o art. 5º, parágrafo 1º da Constituição Federal de 1988.

Sobre o tema, Carvalho (2007, p. 275) assevera que "o acesso a medicamentos corresponde a um dos elementos para a completude do direito à saúde e como tal deve ser respeitado e colocado à disposição da sociedade [...]".

Tem-se a saúde regulamentada também no art. 196 da Constituição Federal de 1988, conforme segue:

Art. 196 - A saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação.

É oportuno destacar que a legislação pátria em seu art. 23, inciso II, afirma que, a União, o Estado e o Distrito Federal possuem competência comum para cuidar da saúde. Assim, entende-se que os entes da federação possuem competência concorrente para manter a devida proteção a saúde, pois o Sistema Único de Saúde é financiado com recursos tanto da União, quanto dos Estados e dos Municípios. Ressalta-se que os Municípios, por força do art. 30, inciso I, da Constituição Federal de 1988, também podem legislar sobre a saúde, por se tratar de assunto de inegável interesse local, até porque a execução dos serviços de saúde está, em grande parte, municipalizada. Neste sentido, devido à municipalização dos serviços de saúde e pelo fato de que o Município é a instância mais próxima do cidadão, este possui a tarefa de execução, proteção e defesa da saúde.

2.2 O PROBLEMA DA EFICÁCIA DO DIREITO A MEDICAMENTOS

Na permanente atualidade, o problema da eficácia do direito à medicamento, mas propriamente o problema da eficácia dos direitos sociais, está ligado com a aplicabilidade, a efetividade e a eficácia da norma regulamentadora. [02]

De acordo com o que dispõe o art. 5º, parágrafo 1º, da Constituição Federal de 1988, "As normas definidoras dos direitos e garantias fundamentais têm aplicação imediata", este dispositivo, a luz da legislação vigente, traz questões de relevante valor, pois o direito a saúde é um direito fundamental e deveria ter aplicabilidade imediata. Porém, a cada dia que passa, a sociedade encontra-se dependente de medicamentos. No Brasil, a demanda de medicamentos não supre o que é solicitado pela população e, muitas vezes, o que é receitado não se encontra na listagem de medicamentos essenciais fornecido pelo ente público. Pela precariedade da administração e pela necessidade do indivíduo, surge a jurisdicionalização dos medicamentos, ou seja, os indivíduos recorrem ao Poder Judiciário pelo fornecimento de medicamentos.

Contudo, a concessão de medicamentos tem sido realizada de forma deficitária. O Poder Judiciário fica dividido entre direitos fundamentais e o princípio da legalidade orçamentária. A deficiência no fornecimento de medicamentos impõe uma atitude ao Poder Judiciário com o propósito de garantir a eficácia dos direitos fundamentais.

É inquestionável que o direito de se pleitear a tutela jurisdicional, pode ser efetivado em qualquer órgão do Poder Judiciário, pois conforme o art. 198, caput e parágrafo 1º, da Constituição Federal, existe implicitamente a obrigação solidária dos entes públicos. Cabe ressaltar, que a responsabilidade solidária condiz com a possibilidade de o credor cobrar de todos ou de qualquer um dos devedores a dívida, conforme o art. 264 do Código Civil. (ORDACGY, 2009)

Nesse sentido, quando proposta uma ação objetivando o fornecimento de medicamentos, o beneficiário poderá ingressar tanto na Justiça Estadual quanto na Justiça Federal, pois o Sistema Único de Saúde abrange todos os entes federativos, não tendo como falar em quinhão de responsabilidade da União, do Estado, do Município e do Distrito Federal, no fornecimento gratuito de medicamento ou de tratamento médico. (ORDACGY, 2009)

Conforme Carvalho (2008, p. 124), "os rígidos padrões de dispensação adotados pelo Poder Executivo estão afastando, cada vez mais, os cidadãos do seu direito à saúde constitucionalmente assegurada".

Assim, caso um médico da rede pública prescreva um determinado tratamento para seu paciente, por entender ser este o mais adequado à sua enfermidade e não haja previsão de aplicação no protocolo clínico, o paciente ficará necessitando do medicamento, pois a rede pública não o fornecerá. Nesse momento, surge a necessidade de intervenção do Poder Judiciário para obrigar o Poder Executivo a cumprir sua missão constitucional de fornecer o medicamento prescrito, independentemente de qualquer previsão em portaria. (CARVALHO, 2008)

Assim, para solucionar a colisão de direitos é necessário analisar em cada caso concreto o princípio da proporcionalidade, que é o primeiro limite a concretização judicial do direito a saúde. Para Gandini (2008, 17) "[...] a proporcionalidade serve como critério de aferição da validade de limitações aos direitos fundamentais".

Como explicita Guerra Filho (1989, p.75) primeiro jurista brasileiro a tratar sobre os requisitos do princípio da proporcionalidade, "[...] uma media será adequada se atinge o fim almejado, exigível, por causar o menor prejuízo possível e finalmente, proporcional em sentido estrito, se as vantagens que trará superarem as desvantagens".

A proporcionalidade, pelo critério da estrita necessidade, é capaz de evitar abusos que possam vir a ocorrer sob o fundamento do direito a saúde, pois se um determinado tratamento médico pode ser feito no Brasil, a baixo custo, violaria o princípio da proporcionalidade uma medida que determinasse que esse tratamento fosse feito no exterior, acarretando uma maior onerosidade para o Poder Público. (GANDINI, 2008)

Nesse sentido, conforme giza Gandini (2008, p.18):

O princípio da proporcionalidade não é útil apenas para verificar a validade material de atos do poder legislativo ou do poder executivo que limitem direitos fundamentais, mas também para, reflexivamente, verificar a própria legitimidade da decisão judicial, servindo, nesse ponto, como verdadeiro limite da atividade jurisdicional. O juiz, ao concretizar um direito fundamental, também deve estar ciente de que sua ordem deve ser adequada, necessária (não excessiva e proporcional em sentido estrito).

A assistência farmacêutica está compreendida no denominado mínimo existencial, ou seja, o Estado tem o dever de garantir direitos básicos, o que significa possibilidade de satisfação das necessidades essenciais, entre as quais a necessidade de se ter saúde. Opõe-se ao atendimento do mínimo existencial, a insuficiência dos recursos financeiros do estado para sua concretização. Essa insuficiência de recursos financeiros foi designada como reserva do possível. (GANDINI, 2008)

Portanto, o argumento de reserva do possível, somente deve ser acolhido se o Poder Público demonstrar suficientemente que a decisão causará mais danos do que vantagens à efetivação de direitos fundamentais, o que, em última análise implica numa ponderação, com base na proporcionalidade em sentido estrito, dos interesses em jogo. (GANDINI, 2008)


3 OS CONFLITOS DE COMPETÊNCIA NAS AÇÕES DE MEDICAMENTOS

A saúde, apesar de ser um direito fundamental, não tem sido garantida de forma plena. O Poder Judiciário tem posicionamento diferenciado, ora evidenciando a aplicação da garantia constitucional à saúde, ora enfatizando o princípio da legalidade orçamentária.

Com o advento da jurisdicionalização de medicamentos, surgem problemas quanto à competência de determinado juízo para a apreciação da tutela pleiteada. O Poder Judiciário, através de seus magistrados, tem se manifestado de várias formas, dentre elas, declinando a competência para outra jurisdição.

O conflito de competência está regulamento no art. 115, do Código de Processo Civil, podendo ser de natureza positiva ou de natureza negativa. O conflito positivo de competência acontece quando dois ou mais juízes (tanto de primeiro grau como de segundo grau) se declaram competentes para conhecer de determinada causa. O conflito negativo de competência ocorre quando dois ou mais juízes se consideram incompetentes para conhecer a causa suscitada.

O conflito de competência pode ocorrer em torno de um só processo ou em torno de processos conexos. Normalmente, o conflito positivo diz respeito à reunião de causas conexas em que discute qual é o juízo prevento. (DIDIER JÚNIOR, 2009)

Em torno de um só processo, Carneiro (2007, p. 286) exemplifica:

[...] se o juiz A se considera absolutamente incompetente, digamos que em razão da matéria, para conhecer da causa, remeterá o processo ao juiz B, indicando como sendo competente (CPC, art. 113, parágrafo 2º, in fine). Mas o juiz B, também dotado de "competência para julgar sua própria competência", poderá não aceitar tal entendimento, considerando competente (competência absoluta) o juiz A.

O conflito de competência nos casos de processos conexos pode ocorrer, em consequência da tramitação, em diferentes juízos, de dois ou mais processos, alegadamente relacionados por conexão ou continência. Assim, modificando-se a competência, a conexão provocará a reunião dos processos perante um só juízo, ou seja, perante o juízo cuja competência deverá prevalecer. (CARNEIRO, 2007)

Então, para o surgimento do conflito positivo, não é necessário que haja decisão expressa de um ou de ambos os juízes a respeito da própria competência e da incompetência de outro, basta que ambos os juízes pratiquem atos em causa idêntica, com reconhecimento implícito da própria competência, como se dá, por exemplo, quando o mesmo inventário é requerido perante dois juízes diferentes e ambos lhe derem curso. (THEODORO JÚNIOR, 2008)

Ocorrendo o conflito positivo, poderá o relator, de ofício, ou a requerimento das partes, determinar que seja sobrestado o processo. Mas, seja no conflito negativo, seja no positivo em que houver sobrestamento, caberá ao relator designar um dos juízes conflitantes para resolver, em caráter provisório, as medidas urgentes, conforme o art. 120, do Código de Processo Civil. (THEODORO JÚNIOR, 2008)

O conflito de competência positivo e o negativo podem ser suscitados por qualquer das partes, pelo Ministério Público ou pelo juiz, e, como se trata de uma verdadeira ação declaratória sobre competência, o juiz, no caso, torna-se autor da referida ação. (GRECO FILHO, 2008)

3.1 O CONFLITO DE COMPETÊNCIA ENTRE JUSTIÇA FEDERAL E JUSTIÇA ESTADUAL

O Sistema Único de Saúde (SUS) é financiado com recursos provenientes da União, dos Estados e dos Municípios, tendo como objetivo primordial, a eficácia do direito a saúde. A Constituição Federal de 1988 estabelece implicitamente, a responsabilidade solidária dos entes federativos. A responsabilidade solidária condiz com a possibilidade de se figurar, no pólo passiva da demanda, qualquer ente da federação, ou seja, União, Estado ou Município. Sendo assim, o demandante poderá ingressar com a ação de medicamentos, tanto na Justiça Estadual, como na Justiça Federal.

Porém, no momento da concessão da medida pleiteada, o demandante se depara com o conflito de competência suscitado pela Justiça Estadual. O conflito de competência ocorre com a remessa do processo para a Justiça Federal. Os julgados utilizam como argumento de que o fornecimento de medicamentos aos necessitados é um direito a saúde e, por conseguinte, a obrigação é tanto da União, quanto dos Estados e quanto dos Municípios, caracterizando, assim, a responsabilidade solidária dos entes federativos.

O Tribunal de Justiça de Santa Catarina, sobre a responsabilidade solidária dos entes da federação, tem se manifestado sob o argumento de que o demandante pode optar pelo ente demandado, pois a responsabilidade solidária abrange a obrigação tanto da União, quanto do Estado e do Município. Porém, asseguram que não se excluem o chamamento ao processo dos demais credores.

O instituto do chamamento ao processo é um dos casos de intervenção de terceiros regulamentado pelo Código de Processo Civil, tem por principal objetivo ampliar o pólo passivo da relação processual, ou seja, o réu poderá chamar os devedores solidários para ser auxiliado na defesa. Trata-se de uma faculdade do demandado nos casos em que o autor intenta a ação contra apenas um dos responsáveis solidários. Nesse sentido, o chamamento ao processo dos demais credores responsáveis, foi instituído para beneficio do réu, e, não do autor. (CARNEIRO, 1998)

Assim, sendo cabível o chamamento de um terceiro ao processo, o procedimento adotado será remeter os autos para a Justiça Federal com o intuito de verificar a existência de interesse jurídico da União no processo, conforme a súmula nº 150 do Superior Tribunal de Justiça. [03] Outro argumento utilizado pelos magistrados está relacionada a edição da súmula nº 23 do Tribunal de Justiça de Santa Catarina, que teve sua publicação no Diário de Justiça do Estado nº 622, p. 01, de 10 de fevereiro de 2009, conforme segue:

Nas ações aforadas em desfavor do Estado e/ou dos Municípios para obtenção de medicamentos, afigura-se plausível o pedido de chamamento ao processo da União Federal pelos coobrigados, o que torna, de rigor, a remessa do feito à Justiça Federal, órgão jurisdicional competente para apreciação do incidente processual.

A justificativa utilizada pelo grupo de Câmaras de Direito Público do Estado de Santa Catarina, na edição da súmula referida, está pautada no reconhecimento da solidariedade passiva dos entes da federação, nas ações de fornecimento de medicamentos. Abre-se um leque de opções para a escolha da parte passiva, no entanto, esta prerrogativa do cidadão não impede que um dos entes públicos promova o chamamento ao processo de um dos coobrigados, já que o objetivo do chamamento ao processo é conferir a cada devedor solidário o que lhe é cabível, conforme o art. 77, inciso III, do Código de Processo Civil.

Nesse sentido, o chamamento ao processo de um dos entes da federação é visto sob a égide do litisconsórcio passivo necessário, ou seja, existe a necessidade do efetivo chamamento ao processo de um dos coobrigados por se ter caracterizada a responsabilidade solidária. Em contrapartida, existe a divergência quanto ao litisconsórcio passivo facultativo entre União, Estado e Município.

Cita-se, por exemplo, trecho do voto do Juiz Federal Zenildo Bodnar, nos autos do recurso de sentença cível nº 2006.72.50.008178-2, com publicação eletrônica em 03, de agosto de 2009, in verbis:

[...] Na sentença restou consignado que: Trata-se de ação originariamente proposta na Justiça Estadual em que a parte autora pretende que o Município de São José/SC seja condenado a fornecer-lhe os medicamentos prescritos para o tratamento de sua saúde. Deferido o pedido de tutela antecipada, o Município de São José chamou ao processo o Estado de Santa Catarina e a União Federal, razão pela qual aquele juízo estadual remeteu os autos à Justiça Federal para que fosse o incidente resolvido, no que diz respeito à participação da União na lide. Considerando o conteúdo do provimento jurisdicional, resta claro que a parte autora escolheu (litisconsórcio facultativo), apenas o Município de São José para figurar no pólo passivo da demanda. Em conclusão: considerando que a demanda foi direcionada em desfavor apenas do Município, falta competência à Justiça Federal para processar e julgar este feito. Deve a sentença, embora por motivo diverso, ser mantida na integralidade.

O relator, em sua fundamentação, em homenagem ao entendimento consolidado nas turmas recursais de Santa Catarina, decidiu pela facultatividade do litisconsórcio, ou seja, a parte pode escolher o ente demandado.

Cita precedentes aprovados nas últimas sessões, conforme segue:

PROCESSUAL CIVIL E ADMINISTRATIVO. FORNECIMENTO DE MEDICAMENTOS PELO SUS. RESPONSABILIDADE SOLIDÁRIA DA UNIÃO, ESTADO-MEMBRO E MUNICÍPIO. LEGITIMIDADE PASSIVA AD CAUSAM.

1. Recurso em que se discute a legitimidade passiva da União Federal e do Município em ação ajuizada apenas contra o Estado de Santa Catarina.

2. A União, os Estados e os Municípios têm competência solidária para realização do direito à saúde. Por se tratar de obrigação solidária, é possível exigir-se a prestação de qualquer um ou de todos os entes federativos. A escolha cabe à parte-autora.

3. É facultativo o litisconsórcio passivo entre União, Estado e Município.

4. Recurso inominado provido para anular a sentença, excluir a União do pólo passivo e remeter os autos à Justiça Estadual. (Recurso Inominado Contra Sentença, Processo nº 2008.72.52.003283-9, Juiz Federal Relator: Andrei Pitten Velloso, 1ª Turma Recursal de SC, 29 de abril de 2009)

Em recente decisão, o Tribunal de Justiça de Santa Catarina, nos autos da Apelação Cível nº 2009.025427-7, de Jaguaruna, posiciona-se, acerca do litisconsórcio passivo facultativo, conforme segue:

[...] Ocorrendo obrigação solidária das três esferas governamentais da Federação, quanto à garantia de proteção à saúde dos cidadãos, a obrigação de fornecer tratamentos médicos necessários e adequados poderá ser exigida de um ou de todos os entes, como no caso dos autos, do Estado de Santa Catarina. O chamamento de terceiro ao processo, em face da solidariedade da obrigação (CPC, art. 77, III), pressupõe a continuidade da tramitação do feito perante o mesmo órgão jurisdicional competente, não se podendo incluir pessoa que, pelo privilégio de foro, faça deslocar a jurisdição. Assim, proposta a ação contra o Estado de Santa Catarina, perante a Justiça Estadual, não cabe o chamamento da União ao processo, ante a impossibilidade de deslocamento da jurisdição. [...] (Apelação Cível nº 2009.025427-7, de Jaguaruna, Relator: Jaime Ramos, 4ª Câmara de Direito Público, Florianópolis, 28 de agosto de 2009)

Diante dos julgados analisados, fica evidenciada a pacificação quanto à responsabilidade solidária de todos os entes da federação em que o fundamento utilizado pelos magistrados possui seu respaldo no art. 198, caput e parágrafo 1º e no art. 23, inciso II, da Constituição Federal de 1988. Em suma, sendo o Sistema Único de Saúde composto pela União, Estados e Municípios, qualquer dessas entidades tem legitimidade ad causam para figurar no pólo passivo da demanda.

Porém, os julgados divergem quanto ao litisconsórcio passivo dos entes federativos. Duas concepções podem ser apontadas, a primeira que enfatiza a obrigatoriedade do litisconsórcio necessário passivo. Sendo assim, nas ações aforadas em desfavor do Município ou Estado para a obtenção de medicamentos é plausível o pedido de chamamento ao processo da União pelos coobrigados, o que torna de rigor, a remessa do feito à Justiça Federal para verificar se existe interesse jurídico da União, conforme súmula nº 23 do Tribunal de Justiça de Santa Catarina e súmula nº 150 do Superior Tribunal de Justiça.

A segunda concepção adota a facultividade do litisconsórcio passivo no qual caberá a parte demandante a escolha do ente federativo por se tratar de responsabilidade solidária, ou seja, a demandante poderá exigir a obrigação de cada um dos entes públicos de forma isolada. Outro argumento utilizado é com relação ao chamamento de terceiro no processo que pressupõe a continuidade da tramitação do feito perante o mesmo órgão jurisdicional competente não podendo deslocar a jurisdição. Assim, por exemplo, proposta a ação perante a Justiça Estadual, contra o Estado de Santa Catarina, não cabe o chamamento da União ao processo, ante a impossibilidade de deslocar a jurisdição. Nesse sentido, a Justiça Federal não terá competência para processar e julgar os conflitos nas ações de medicamentos ante a impossibilidade de chamamento ao processo.

3.2 O CONFLITO DE COMPETÊNCIA ENTRE JUIZADOS ESPECIAIS FEDERAIS E VARAS FEDERAIS

A Lei nº 10.259, de 12 de julho de 2001, utilizou-se, preponderantemente, do critério quantitativo na definição da competência dos Juizados Especiais Federais, erigindo o valor de 60 salários mínimos como patamar de alçada, enquanto as matérias de cognição são estabelecidas por exclusão. (FIGUEIRA JÚNIOR, 2006)

Nestes termos, a competência dos Juizados Especiais Federais é fixada em razão do valor da causa, isso quer dizer, que só poderá ser proposta ação que não ultrapasse o valor fixado em Lei. Entretanto, nem toda causa que se encontre dentro desse limite, poderá ser proposta nos Juizados Especial Federal, isto porque há causas que, ainda que sejam de pequeno valor, são consideradas pela Lei nº 10.259/01 como causas cíveis de grande complexidade. É competente o Juizado Especial Cível Federal apenas para as pequenas causas de menor complexidade. (CÂMARA, 2008)

Para Figueira Júnior (2006, p. 85) a questão da menor complexidade que inspira o legislador constituinte e infraconstitucional diz respeito:

[...] à necessária adequação e harmonia que deverá sempre haver entre o instrumento e a relação de direito material conflituosa, objeto da cognição, e, por conseguinte, à produção de provas mais simplificadas.

A lei 10.259/2001 admite expressamente a possibilidade de realização de provas técnicas através de laudos periciais, conforme o art. 12 da referida Lei, o que por si só representa a existência de lides de maior complexidade probatória. (FIGUEIRA JÚNIOR, 2006)

Nesse sentido, o demandante poderá ingressar com ação objetivando a concessão do fornecimento de medicamentos no Juizado Especial Federal desde que o valor da causa não ultrapasse 60 salários mínimos. No entanto, no momento da concessão da medida pleiteada, o demandante se depara com o conflito de competência suscitado pelo Juizado Especial Federal. Um dos argumentos utilizado pelo magistrado, no momento de suscitar o conflito, diz respeito à complexidade da causa. Contudo, os julgados do Superior Tribunal de Justiça preconizam que as ações provenientes de medicamento têm por base a fixação da competência pelo valor da causa, competência esta absoluta, e que, a eventual complexidade da causa não afasta a competência do Juizado Especial Federal. O conflito de competência ocorre com a remessa do processo para o Superior Tribunal de Justiça.

O Superior Tribunal de Justiça, sobre o conflito de competência no âmbito da Justiça Federal, tem se posicionado com base na súmula nº 348, que assim prevê: "Compete ao Superior Tribunal de Justiça decidir os conflitos de competência entre Juizado Especial Federal e Juízo Federal, ainda que da mesma seção judiciária."

Assim, o processo será remetido para o Superior Tribunal de Justiça com o fim de se verificar qual o órgão competente para a apreciação da tutela, incidindo assim, a regra contida no art. 105, inciso I, alínea "d", da Constituição Federal.

Acerca do assunto, apresenta-se o voto do Ministro Castro Meira:

CONFLITO DE COMPETÊNCIA. AÇÃO PARA FORNECIMENTO DE MEDICAMENTOS. VALOR DA CAUSA INFERIOR A 60 SALÁRIOS MÍNIMOS. ART. 3º, CAPUT, DA LEI Nº 10.259/01. LITISCONSÓRCIO FACULTATIVO. COMPLEXIDADE DA CAUSA. COMPETÊNCIA DO JUÍZO ESPECIAL FEDERAL. (Conflito de Competência nº 103.771 - SC - 2009/0038242-6, Relator: Ministro Castro Meira, Brasília 23 de março de 2009)

Na fundamentação do acórdão, o Ministro Castro Meira explicita que o conflito de competência entre um Juiz de Juizados Especial Federal e um Juiz Federal é um conflito entre juízes não vinculados ao mesmo Tribunal, incidindo a regra do art. 105, inciso I, alínea "d" da Constituição Federal de 1988. Daí se extrai o fundamento da súmula 348. Ressalta que compete a este Tribunal Superior dirimir os conflitos de competência instaurados entre Juízo Comum Federal e Juízo de Juizado Especial Federal, pois esse último se vincula apenas administrativamente ao respectivo Tribunal Regional Federal, estando os provimentos jurisdicionais proferidos pelos órgãos julgadores do Juizado Especial sujeitos à revisão por parte da Turma Recursal.

Nesse sentido, para que seja determinada a competência do Juizado Especial Federal o valor da causa deve ser inferior a 60 salários mínimos, conforme o art. 3, caput, da Lei nº 10.259/01.

Contudo, o Ministro Castro Meira, sobre conflito de competência, afirma:

Assim, a competência estabelecida pela Lei nº 10.259/01 tem natureza absoluta e, em matéria cível, obedece, como regra geral, à do valor da causa, sendo desinfluente o grau de complexidade da demanda ou o fato de ser necessária a realização de perícia técnica. Ante o exposto, conheço do conflito de competência para declarar competente o Juízo Federal do Juizado Especial Cível da Seção Judiciária do Estado de Santa Catarina, o suscitado. (Conflito de Competência nº 103.771 - SC - 2009/0038242-6, Relator: Ministro Castro Meira, Brasília, 23 de março de 2009)

Fica evidenciado o entendimento predominante de que cabe ao Superior Tribunal de Justiça decidir sobre o conflito de competência entre Juizado Especial Federal e Vara Federal.

O Superior Tribunal de Justiça tem se manifestado sobre o presente conflito no sentido de que, ocorrendo conflito de competência entre Juizado Especial Federal e Vara Federal, em que o valor da causa não seja superior a 60 salários mínimos, a competência para a solução do litígio, será do Juizado Especial Federal, visto sua natureza absoluta. Argumenta-se, também, que não se afasta a competência do Juizado Especial Federal em virtude de litisconsórcio passivo de entidades não sujeitas a Juizado Especial Federal (Município e Estado) ou pelo fato de ser necessária a realização de perícia técnica. Ressalta-se que a realização de perícia técnica não induz a complexidade da causa.

Assim, verifica-se que no conflito de competência entre Juizados Especiais Federais e Varas Federais há uma predominância maior na solução do caso concreto, pois os magistrados vêm se posicionando que em face da natureza absoluta do valor da causa no Juizado Especial Federal, caberá ao mesmo, julgar e processar o litígio.

O mesmo não acontece quando há o conflito de competência entre Justiça Federal e Justiça Estadual, em que, existem duas correntes divergentes, a primeira reconhece a responsabilidade solidária dos entes da federação, porém admite o chamamento ao processo dos demais devedores solidários, litisconsórcio necessário. Já a segunda corrente, reconhece também a responsabilidade solidária, contudo não admite o chamamento ao processo dos demais credores solidários, pelo fato de que, tal instituto não poderá deslocar o processo para outra jurisdição, além de afirmarem que cabe a parte autora a escolha do ente que figurará no pólo passivo da demanda, litisconsórcio passivo facultativo.


4 CONCLUSÕES

A saúde é um direito fundamental de grande importância para os indivíduos. Está inserido no ordenamento jurídico brasileiro, pois é fruto da evolução dos direitos humanos fundamentais. Nesse contexto, a saúde deve ser garantida a toda população, cabendo ao Estado, ao Município e a União promover políticas públicas para tornar a saúde acessível a todos. Assim, a saúde, um direito universal, deve ser prestada de forma rápida e continua e o seu acesso não deve ser dificultado, nem deve ser passível de exclusão social, pois a dignidade da pessoa humana e a integridade da pessoa física são princípios fundamentais presentes na Lei Magna.

Contudo, num país como o Brasil, em que o Poder Executivo descumpre rotineiramente seus deveres, buscam-se, no Poder Judiciário, soluções que não são encontradas nos demais Poderes, ou seja, a saúde, por se tratar de um direito subjetivo do indivíduo, e, com a deficiência no fornecimento de medicamentos, impõe uma atitude ao Poder Judiciário com o propósito de garantir a eficácia dos direitos fundamentais.

Por esse motivo, entende-se que a Justiça Brasileira possui o poder de optar pelo consentimento da tutela pleiteada, pois conforme regulamentado na Lei Ordinária nº 8.080, de 19 de setembro de 1990, a saúde é um direito fundamental do ser humano, devendo o Estado promover condições indispensáveis ao seu pleno exercício. Assim, o fornecimento a medicamentos, corresponde a um dos elementos para a completude do direito a saúde, e como tal, deve ser respeitado e colocado a disposição da sociedade, pois pelo atual ordenamento jurídico brasileiro, a saúde é um direito ao acesso a cura e a prevenção.

Com a possibilidade de se pleitear em juízo um direito resguardado constitucionalmente, surgem problemas quanto à competência de determinado juízo para a apreciação da tutela pleiteada. O Poder Judiciário, através de seus magistrados, tem se manifestado de várias formas, dentre elas, declinando a competência para outra jurisdição.

O conflito de competência nas ações de medicamentos tem natureza declaratória negativa. Conforme conceituado no Código de Processo Civil, o conflito negativo de competência ocorre quando dois ou mais juízes se declaram incompetentes para conhecer a causa suscitada, declinando assim, a competência para outra jurisdição.

Os conflitos de competência suscitados pelo Poder Judiciário têm inviabilizado o acesso à efetiva tutela jurisdicional. Os magistrados se prendem a meras questões processuais, deixando de lado o mérito propriamente dito. O Poder Judiciário, no momento de suscitar o conflito, analisa apenas questões de interesse processual, questões de direito interno, em contrapartida, esquecem que o direito a saúde é um direito fundamental do ser humano que está devidamente regulamentado na Constituição Federal de 1988 e deve ser prestado de forma imediata.

Diante disso, observa-se que o conflito de competência suscitado pelo Poder Judiciário deve ser adotado com cautela. Caso contrário violará princípios constitucionais básicos e impedirá a efetivação da justiça social.


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Notas

  1. No atual cenário dos direitos humanos fundamentais, é importante lembrar que não só existem os direitos de primeira, de segunda e de terceira dimensão, mais sim, direitos fundamentais de quarta e quinta dimensão. Sarlet (2001, p.55) apresenta a posição do notável Prof. Paulo Bonavides que destaca também os direitos humanos fundamentais de quarta e quinta dimensão. Os direitos de quarta dimensão representam o resultado da globalização dos direitos fundamentais, no sentido de uma universalização no plano institucional que corresponde à derradeira fase de institucionalização do Estado Social. Para o ilustre constitucionalista, esta quarta dimensão é composta pelos direitos à democracia (no caso democracia direta) e à informação, assim como pelo direito ao pluralismo. Já a quinta dimensão dos direitos fundamentais está relacionada com a paz no âmbito na normatividade jurídica, ou seja, a dignidade jurídica da paz deriva do reconhecimento universal. Para o ilustríssimo Prof. Paulo Bonavides o direito à paz é um direito impetrado na qualidade de direito universal do ser humano, em uma dimensão perpétua, em sua feição agregativa de solidariedade, em seu plano harmonizador de todas etnias, de todas as culturas, de todos os sistemas, de todas as crenças que a fé e a dignidade do homem propugnam, reivindicam, concretizam e legitimam.
  2. De acordo com a concepção clássica do ilustre publicista pátrio José Afonso da Silva (1998, p. 55-6) "é pertinente a distinção entre os conceitos de efetividade, eficácia e aplicabilidade da norma regulamentadora. Explicita que é nítida a conexão entre ambos os conceitos, porém deve-se distinguir entre a eficácia social da norma e a eficácia jurídica. A eficácia social da norma condiz com sua real obediência e aplicação no plano dos fatos, já a eficácia jurídica designa a qualidade de produzir, em maior ou menor grau, efeitos jurídicos ao regular, desde logo, as situações, relações e comportamentos nela indicados; nesse sentido a eficácia diz respeito à aplicabilidade, exigibilidade ou executoriedade da norma, como possibilidade de sua aplicação jurídica. Possibilidade e não efetividade, pois a distinção pode se fazer pelo fato de que uma norma pode perfeitamente possuir eficácia jurídica (como por exemplo, o de revogar normas anteriores), mas não alcançar a efetividade, isto é, não ser socialmente eficaz, caso não for cumprida no plano social."
  3. Súmula nº 150 do STJ: "Compete à Justiça Federal decidir sobre a existência de interesse jurídico que justifique a presença, no processo, da União, suas autarquias ou empresas públicas".

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Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

SILVA, Jerusa Rode da; MACHADO, Natália Gaspar. Fornecimento de medicamentos: um conflito de competência no Poder Judiciário. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 15, n. 2477, 13 abr. 2010. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/14678. Acesso em: 28 mar. 2024.