Este texto foi publicado no Jus no endereço https://jus.com.br/artigos/14904
Para ver outras publicações como esta, acesse https://jus.com.br

Fundamentos de segurança social

Fundamentos de segurança social

Publicado em . Elaborado em .

Este artigo busca oferecer uma nova perspectiva, em relação ao espectro da Insegurança, com ênfase na Insegurança Social - suas origens, suas manifestações, suas consequências e seus antídotos, com destaque para a Proteção Social.

INTRODUÇÃO

Já há algum tempo, vimos escrevendo artigos abordando a insegurança, com o propósito de trazer mais insumos para a discussão, que se faz absolutamente necessária, desse tão intrigante quanto angustiante tema. São frutos de percepções e de pesquisas elementares, não ancorados em embasamentos científicos, e jamais tiveram caráter sentencioso, dogmático.

Este artigo é resultado da extração de determinados pontos fulcrais de alguns trabalhos já publicados, que, ordenados, pressupõe-se, trarão consistentes informações para o debate, para a compreensão e, quiçá, para a fixação da estratégia de enfrentamento – através políticas públicas de Estado – a esse fenômeno, que fustiga todas e quaisquer nações e sociedades.

Se o conceito de doutrina é um conjunto permanente de princípios fundamentais conjunturalmente aceitos, é possível constatar-se a consolidação, aos poucos, da doutrina de Segurança Social que, sem preconceitos militófobos, se posiciona em paralelo à doutrina de Segurança Nacional.

Essencialmente, este artigo tem o propósito de oferecer uma nova perspectiva, em relação ao espectro da Insegurança, com ênfase na Insegurança Social, isto é, o que vem a ser esse fenômeno inerente ao ambiente social, suas origens, suas manifestações, suas consequências e seus antídotos, com destaque para a Proteção Social.

Aliás, já nos antecipando ao detalhamento que pretendemos trazer, entendemos correto dizer "doutrina de Proteção Social", vez que, conforme teremos condições de argumentar mais à frente, Segurança não é sinônimo de Proteção.


A SEGURANÇA

Convém abordar, preliminarmente, a SEGURANÇA, palavra que, há mais ou menos umas quatro décadas, vem trazendo, gradualmente, preocupações, ansiedades, angústia, tensões, inquietações, enfim, intranquilidade à população brasileira. Genericamente, as queixas são, dentre outras: "não há segurança; a violência está aumentando; a polícia não cumpre bem seu papel; os criminosos estão mais audaciosos".

Segurança tem sido discutida sob vários prismas: sociológico, psicológico, filosófico, do direito, da saúde, da economia, etc. Vamos mostrá-la sob nova perspectiva – a policiológica – discutindo sua antítese, a Insegurança e, também, a Violência. Para isso, um rápido retrospecto.

Até o final da década de 50, pouco se falou sobre Segurança. A partir daí, muita coisa começa a ser dita sobre um de seus ramos, a Segurança Nacional, em razão de intensa movimentação político-institucional ocorrida do início ao término da década de 60. No início da década de 70, dois fatos: o Milagre Econômico Brasileiro, em que se destaca a Segurança para o Desenvolvimento, e a explosão da violência urbana, quando as atenções se voltam para a Segurança Social, que, de forma restritiva, era chamada – e ainda o é - de Segurança Pública (às vezes, confundida com Seguridade Social, que a integra).

Até 80, as pesquisa e discussão eram intramuros, nas casernas. Estimuladas e sintonizadas com as Polícias Militares, as comunidades acadêmica e científica, motivadas, passam a pesquisar e debater o tema. Após a descoberta desse nicho e a identificação da importância de se bem entendê-lo e divulgá-lo, têm comparecido com excelentes contribuições.

No plano político, as discussões mais recentes e evidentes, sobre Segurança Nacional, envolvem a Estratégia Nacional de Defesa (END), cujo título, para fugir da cinquentenária Estratégia de Defesa Nacional esguiana, passou a ser gênero (corretamente, ainda que de sorrate), mas não contempla a espécie Segurança Social. Vale dizer, é estratégia nacional de defesa, porém, trata, apenas, da estratégia nacional de defesa nacional, sendo omissa em relação à estratégia nacional de defesa social. Além do mais, a END concentra muita atenção na Estratégia Militar de Defesa Nacional: "O Plano é focado em ações estratégicas de médio e longo prazo e objetiva modernizar a estrutura nacional de defesa, atuando em três eixos estruturantes: reorganização das Forças Armadas, reestruturação da indústria brasileira de material de defesa e política de composição dos efetivos das Forças Armadas." O aspecto militar é muito importante, porém, os demais – político, econômico e psicossocial – também o são e, num documento básico, conviria lhes serem feitas referências, ainda que minimamente.

Sobre a Segurança Social, destaque-se o Programa Nacional de Segurança Pública com Cidadania, do Ministério da Justiça, e seu título demagógico, como se a Segurança Pública (de forma simplista, guardando sinonímia com contenção criminal), até então, fora realizada sem cidadania: "O Programa Nacional de Segurança Pública com Cidadania (Pronasci) foi criado pelo Governo Federal com uma nova proposta para a segurança pública no Brasil. O objetivo: diminuir o índice de homicídio das regiões metropolitanas brasileiras. O Programa articula políticas de segurança com ações sociais; prioriza a prevenção e busca atingir as causas que levam à violência, sem abrir mão da repressão, quando necessário."

Em agosto de 2009, realizou-se, em Brasília, a 1ª CONSEG (Conferência Nacional de Segurança Pública), onde ficou absolutamente claro que, para "formulação de políticas públicas de recoesão social", a metodologia utilizada para o debate, em círculos concêntricos, do menor para o maior (comunidades, municípios, estados, União) foi extremamente válida. Contudo, visando à definição dos princípios e diretrizes, por votação, a metodologia mostrou-se inadequada, ao igualar votos de técnicos e de leigos.

Juntando-se alguns entendimentos vigentes e algumas proposições contidas no PRONASCI, vamos estabelecer a seguinte hipótese: A proteção da sociedade é contra o crime e realizada com segurança e cidadania.


NIVELANDO A LINGUAGEM

De início, é necessário nivelar-se a linguagem, isto é, que se tenha entendimento conceitual uniforme sobre determinados, basilares e destacados termos. São eles: Proteção, Ameaças, Vulnerabilidades, Defesa, Segurança, Insegurança, Violência.

Proteção social é um recurso interposto entre um agente ameaçador e um agente ameaçado, objetivando restringir vulnerabilidades no tecido social e mitigar a ameaças ao corpo social. Tem como fim a tranquilidade social, isto é, um estágio em que a sociedade estaria serena e confiante, num clima de convivência harmoniosa e pacífica, representando, assim, uma situação de bem-estar social. Há instrumentos e mecanismos de proteção.

Externamente, revestindo o organismo social, temos o tecido social, que são os instrumentos de proteção, conhecidos como instituições: Família, Igreja, Escola, Economia, Estado, Polícia.

Esgarçado o tecido social, ou na iminência de isso ocorrer e, ainda, antecipando-se ao surgimento de fendas por falhas institucionais, caracterizando uma vulnerabilidade, por onde podem penetrar ameaças ao corpo social, entram em cena os mecanismos de proteção, que são as DEFESAS, ações, atos concretos de eliminação ou mitigação de ameaças.

Para melhor desenvolvimento, convém dar um salto no passado. Voltemos à pré-história. É possível que o homem pré-histórico tenha percebido que sozinho, isoladamente ele não teria condições de se proteger contra as ameaças à preservação da vida e à perpetuação da espécie.

A solidariedade, portanto, deve ter surgido em face da necessidade de proteção mútua contra ameaças, originando a formação de famílias, grupos, tribos, clãs, comunidades, Nações, sociedades, Estado. Assim, dentre várias teorias de sua criação, mais uma: Ele surge para provimento da proteção, de si próprio e de seus integrantes, através ações de defesa.

Posteriormente, passa a promover o progresso, através ações de desenvolvimento. Tanto a proteção quanto o progresso se referem ao país, à Nação e/ou ao grupo social. Então, temos a Proteção Nacional e a Proteção Social, vinculadas à Ordem Nacional e à Ordem Social, respectivamente. ORDEM são cláusulas que estabelecem a forma de estrutura e funcionamento do país e do grupo social, com responsabilidade de cumprimento seja pela área pública, seja pela área privada.

Para cumprir seu papel, o Estado detém Autoridade, capacidade de atuar na vontade de grupos e de indivíduos. Capacidade bipartida em Poder (capacidade de alterar a vontade de grupos e de indivíduos) e Força (capacidade de impor a vontade do Estado).


POLÍCIA

A seguir, são apresentadas seis perguntas para que os leitores respondam para si próprios, obviamente, antes de ler a resposta que se segue. Ao final, vamos checar o escore.

P - Um instrumento de proteção muito importante é a Polícia. Mas, afinal, o que é Polícia?

R - É um órgão, uma entidade estadual.

P - O que a Polícia faz?

R - Popularmente, "corre atrás de ladrão e prende bandido" ou, mais tecnicamente, previne e reprime crimes.

P - Quais e quantas polícias existem nos Estados, não considerando a Polícia Federal?

R - A Polícia Militar (PM) e a Polícia Civil (PC).

P - Qual a atuação de cada uma?

R - A PM faz a prevenção e a PC faz a repressão.

P - A que ramo pertencem?

R - A PM é a Polícia Administrativa é PC é a Polícia Judiciária.

P - Quem é a autoridade policial?

R - O Delegado de polícia.

Quem errou uma, duas, três, quatro, cinco perguntas? Espero que os leitores tenham errado todas. Sob nossa óptica, conjectura-se, todas estão erradas, ou, no mínimo, parcialmente incorretas. Polícia não é órgão estadual, é instituição, um sistema, uma atividade estatal. Não previne e reprime crimes, apenas. Participa do provimento da proteção. Polícia é um dos instrumentos de proteção social para fazer frente a ameaças sociais.

Duas Polícias? Equívoco! Há inúmeras polícias nos Estados. A proteção social é desenvolvida através estruturas de poder e de força. Há uma polícia (com o péssimo cognome de Polícia Militar - PM), que é a Força Estadual, e o Corpo de Bombeiros Militar (CBM), ambos de caráter militar.

Todas as demais polícias têm caráter civil. Portanto, é inadequado que a Polícia Judiciária Estadual tenha a denominação de Polícia Civil porque, exceto a PM e o CBM, todas as demais polícias são civis. Dizer que a PM é administrativa e a Civil é Judiciária é outro equívoco.

Há cinco ramos de Polícia: Administrativa, Ostensiva, Judiciária, de Desastres e a Penal, com o seguinte desdobramento: A Polícia Administrativa é a Polícia de normas, resoluções, portarias, fiscalização, sanções administrativas. A Polícia Ostensiva, a PM, quando trabalhando na contenção criminal, inibe vontades e obstaculiza oportunidades.

Fundamentalmente, a Polícia Militar, a Força Estadual, ora realiza trabalhos de Força de Defesa Social - onde se inserem, dentre outros, os trabalhos de contenção criminal – ora realiza trabalhos de Força Pública, garantindo o funcionamento dos poderes constituídos. A Polícia Judiciária é a polícia de investigação (de autoria e materialidade de delitos). A Polícia de Desastres (desastre, conforme a CODAR - Codificação de Desastres, Ameaças e Riscos), é o intrépido Corpo de Bombeiros Militar e a Defesa Civil e, ao final do ciclo completo de polícia, a emergente Polícia Penal - que, por ora, busca seu reconhecimento normativo - trabalhando na reintegração social, através da custódia e ressocialização.

Delegado é autoridade policial, sim, porém, é necessário ficar explícito o complemento que identifica autoridade de qual polícia: Delegado de Polícia Judiciária, Delegado de Polícia de Meio-Ambiente, Delegado de Polícia de Transportes, Delegado de Polícia Fazendária, etc.

A intenção dessas perguntas foi demonstrar haver um entendimento popular, equivocado em relação ao que seria uma conceituação técnica.

Numa síntese, Polícia trabalha na prevenção, repressão e sustinência de ameaças, preservando a ordem social, sendo que a Força Estadual (a polícia de caráter militar) garante a ordem social e todas as demais polícias (que têm caráter civil) mantêm a ordem social.

Enfim, "Polícia é instituição/sistema/atividade estatal, de proteção social, estruturada em poder e força, que preserva a ordem social".


AMEAÇAS E VULNERABILIDADES

Falou-se em ameaças, mas, afinal, o que são ameaças? São adversidades (naturais) e antagonismos (humanos) que podem afetar a preservação da vida e a perpetuação da espécie. Têm origem nos choques do Homem x Homem, do Homem x Natureza e da Natureza x Homem. As ameaças físicas são os riscos e os perigos (risco iminente); as ameaças psicológicas são os receios e os medos (receios iminentes).

As ameaças têm o seguinte enquadramento: de natureza humana e não humana; reais e potenciais; previsíveis e imprevisíveis; controláveis e incontroláveis; controladas e incontroladas. Elas podem ser reunidas em cinco grupos, que chamamos de ameaças-tronco: exclusão social, criminalidade, desastres, desídias sociais e comoção social.

Vulnerabilidades são rupturas no tecido nacional ou no tecido social. Aqui, nos interessam as vulnerabilidades sociais, que são rupturas, brechas no tecido social, resultantes do desequilíbrio entre ameaças e instrumentos de proteção social.

Equacionados esses fatores, temos: se uma ameaça é maior que o(s) instrumento(s) de proteção, temos maior vulnerabilidade; se o(s) instrumento(s) de proteção é (são) maior(es) que uma ameaça, temos menor vulnerabilidade.

As vulnerabilidades podem ocorrer por inexistência ou insuficiência (aspecto quantitativo) e por deficiência ou ineficiência (aspecto qualitativo) de instrumentos de proteção.

Mecanismos de proteção são ações concretas, são as defesas (nacional e social) contra todas as ameaças.

A concepção de defesa é de Estado, mas, a realização é de responsabilidade de todos.


DEFESA SOCIAL

A Defesa Social é uma expressão ampla, que, aos poucos, vem sendo utilizada em lugar da restritiva Segurança Pública, quando utilizada como sinônimo de contenção criminal. A concepção inicial, antiga de Defesa Social vai até 1945 e se restringia à defesa da sociedade contra o crime, através repressão vigorosa. Consta que Platão já teria usado essa expressão com esse sentido.

Após surgimento da Nova Defesa Social, de Filipo Gramática e Marc Ancel, com a Escola do Neodefensivismo, em 45, o entendimento se ampliou um pouco. Isto é, a proteção da sociedade ainda se referia apenas contra o crime, porém, somaram-se duas ações: uma antes, a prevenção do crime, e outra depois, o tratamento do delinquente.

Atualmente, a novíssima defesa social pugna, em geral, pela defesa da sociedade contra todas e quaisquer ameaças, não apenas contra o crime, especificamente.

No espectro da Novíssima Defesa Social, visando à inteiração social (a utopia de um corpo social inclusivo), temos a defesa da evolução social e a defesa da seguridade social, que implicam em ações de polícia administrativa, controlando as vulnerabilidades e asseverando diretamente ações de desenvolvimento social.

Visando à salvaguarda social (a utopia do corpo social integrado), temos a defesa antiinfracional, a defesa antidesastres, a defesa antidesídias sociais, a defesa anticomoções sociais, que implicam em ações que mitiguem as ameaças e asseverem, indiretamente, a promoção do desenvolvimento social.


INSEGURANÇA

Para falar de Insegurança é necessário voltarmos à Segurança. Durante muito tempo ela foi citada como sinônimo de proteção, como sendo algo que se oferece, algo que se produz.

Hoje, começa a consolidar-se o entendimento de que segurança não é sinônimo de proteção. Ser protegido não significa estar em segurança. Segurança é consequência da proteção. Segurança é um ambiente que se instala em decorrência da proteção.

Para que esse ambiente se instale, há necessidade de concomitância de dois aspectos: o primeiro, aspecto objetivo, onde não há vulnerabilidades no tecido social e, ainda, não há ameaças ao organismo social; o segundo, tem que haver a crença de que isso está ocorrendo.

Contudo, não podemos nos esquecer de dois fatores que influenciam nas vulnerabilidades e nas ameaças: o inopinado (de repente, imprevisto) e o imponderável (não se pode avaliar amplitude e intensidade).

Podemos, assim, afirmar categoricamente que não existe o ambiente de segurança total, plena, absoluta. Na verdade, esse ambiente é uma utopia que, paradoxalmente, devemos perseguir.

Vive-se, portanto, em um ambiente de insegurança. Não apenas em São Paulo, Rio de Janeiro, Minas Gerais, enfim, no Brasil, mas, em qualquer lugar do mundo.

Cada país, cada localidade tem uma matriz de insegurança. Pode ser o terrorismo, a miséria, a fome, os desastres, a interrupção de serviços essenciais, a guerrilha, etc.


A VIOLÊNCIA

E no Brasil, qual é a matriz de insegurança?

No Brasil é a Violência, bipartida em Violência da Exclusão Social e Violência da Criminalidade. Como produto da exclusão social, surgem os marginalizados, os que estão à margem dos direitos sociais e, com eles, devemos trabalhar o moral. Em relação à violência da criminalidade, surgem os marginais, os que estão à margem dos deveres sociais e com eles trabalha-se a Moral.

A Violência da Exclusão Social pode ser medida pela vulnerabilidade socioeconômica, gerando crises nos sistema de moradia, seguridade, fome, miséria, educação, transporte, saneamento, desemprego, desocupação, remuneração, concentração de renda. Já a Violência da Criminalidade pode ser medida pela vulnerabilidade civil, gerando anti-cidadania e anti-societania.

A violência começa a ser visível em nosso país quando a população urbana ultrapassa a população rural, em 1972, em razão do Milagre Brasileiro, que gerou o fenômeno do êxodo rural. A migração desordenada trouxe a explosão demográfica, que gerou marginalização nas grandes cidades, provocando crises sociais que, em alguns casos, deram causa à marginalidade.

Hoje, a grande ameaça continua a ser a Violência Urbana, expressão cunhada pela mídia brasileira para designar a nova roupagem, violenta, da velha questão criminal.

Ela pode ser vista sob três ângulos: O primeiro é o índice de violência – I.V. (relação entre o número de crimes violentos e a população subdividida em grupos de 10.000 hab.).

Esse índice tem se mostrado pouco confiável, em razão de não mensurar o aspecto subjetivo, isto é, a crença na redução da criminalidade.

É possível que, em algum lugar, em razão da queda do número de ocorrências, esteja sendo alardeada redução no índice de violência.

Isso, efetivamente, pode estar ocorrendo ou, o que seria ruim, o número de ocorrências pode não estar caindo, mas, o número de registros de ocorrências, sim. Nesse caso, há um I.V. sendo comemorado, porém, é irreal e, pior, a sensação de insegurança está aumentando e não está sendo considerada, contabilizada corretamente.

A evolução (ou involução) dos homicídios seria um indicador bastante confiável.

É de se considerar que quase metade dos crimes tem o ingrediente drogas e/ou armas. Sem eles, certamente, o índice de violência cairia para patamares socialmente toleráveis.

Infelizmente, a espiral da violência está sendo alimentada de dentro de alguns estabelecimentos penais, também.

Criminosos cumprindo penas e, em tese, sendo preparados pelo Estado para o retorno ao convívio social pleno, planejam e coordenam ações delituosas, de comparsas em liberdade, destruindo patrimônios, valores e pessoas. E debilitando o organismo social.

Se grandes ameaças à sociedade têm origem dentro das prisões, isso se dá, quase na totalidade, por inação governamental nas áreas administrativa, logística e operacional, gerando débeis condições para realização da custódia e da ressocialização, o que exige correções profissionais.


SISTEMA POLICIAL

Atualmente, não se pode falar que há um sistema policial. O trabalho policial é realizado estanquemente, falta coordenação. Uma Secretaria de Salvaguarda Social poderia ser a solução. As Secretarias de Defesa Social, recém-criadas, mostram-se um exagero na denominação, por não cuidarem da inteiração social, a cargo de outras Secretarias, que realizam seu mister embasadas em poder de polícia peculiar à responsabilidade, à missão de cada uma.

Havendo sistema e coordenação, a inócua discussão de integração, fusão, unificação de polícias, seria sepultada de vez. Necessitamos de colaboração recíproca, interação policial, que não é o mesmo que integração.

Além do mais, fala-se em fusão da PM com a PC, porque a grande ameaça, hoje, é a criminalidade. Se amanhã a grande ameaça for, por exemplo, um desastre, vamos fundir a Força Estadual com o Corpo de Bombeiros? Mas, essa fusão já ocorreu e não deu certo!... Os corpos de bombeiros foram sucateados, pois, as verbas eram para comprar somente radiopatrulhas. Atualmente autônomo, o Corpo de Bombeiros é uma instituição competente, produtiva de que nos orgulhamos. E se tivermos uma grave epidemia de dengue, de "gripe suína", alguém vai sugerir fusão da Força Estadual com a Polícia Sanitária?

Com os modernos recursos tecnológicos, fala-se com o mundo. Não é necessário que instituições policiais compartilhem a mesma planta física. Insiste-se que se deve propugnar pela interação policial, através de um efetivo sistema de defesa social.

De passagem, um lembrete: inteiração, integração e interação são situações distintas que, às vezes, erroneamente, são empregadas como sinônimas.


SÍNDROME DE VIOLÊNCIA URBANA

Outro aspecto a ser considerado é a Síndrome de Violência Urbana ou Neurose de Próxima Vítima. Há casos esdrúxulos, como a disputa contábil, quando uma pessoa se "vangloria" de que já foi assaltada mais vezes que a outra, ou de indivíduos que não mais dirigem, com receio de ser assaltado, ou, ainda, aqueles que não vão a Nova York, com medo de estar em um avião que vai ser explodido.

Há pessoas que sofrem com a ilusão de isotopia, isto é, a sensação de que se está no lugar onde ocorre a violência, ou que, logo, logo, essa violência chegará ao local onde se vive. Se, morador de uma cidade no sul, ouve que em uma cidade do norte houve fuga de presos, imediatamente corre para fechar portas e janelas.

Como viver em um ambiente de insegurança? Com precaução e informação. Qualquer que seja o local onde se esteja, há precauções mínimas a serem tomadas que, repetidas, tornam-se um saudável hábito.

E, aqui, o terceiro aspecto, a informação. Mas, a informação sobre a violência é deficiente! De fato, sobre a violência, constata-se haver muita notícia (sensacionalista) e pouca informação. A informação sobre a violência não é qualificada, não orienta, não forma, não educa.

A mídia, também, poderia se envolver mais, participar mais.

Somos campeões de violência e, paradoxalmente, também somos campeões no combate à AIDS. É que, no segundo caso, há informação de qualidade, há campanhas efetivas que motivam pessoas e comunidades a se engajarem nesse esforço. Some-se a isso o fato de a pesquisa sobre a violência ser bastante incipiente, o que não ocorre em relação à AIDS.


EXCLUSÃO SOCIAL

Quanto à violência da exclusão social, a efetividade de seu combate é discutível (aceitas as premissas de que eficiência é a capacidade de produzir um resultado, eficácia é a capacidade de produzir um resultado com qualidade e efetividade é a capacidade de produzir um resultado com qualidade e objetividade).

Discutível porque as políticas sociais são, apenas, de governo (ou de partido), quando deveriam ser de Estado, o que lhes garantiria, minimamente, a continuidade.

Alguns programas são bons, sob a ótica de transferência de renda, mas, pecam ao nada exigirem em contrapartida.

Outra questão diz respeito à distopia social ou funcionamento anômalo de órgãos sociais, observadas na ausência ou mau funcionamento de agências governamentais que deveriam contribuir, principalmente, para a evolução social.

Um exemplo de boa iniciativa é a ventilação de favelas, através de arruamento e verticalização.


O CÍRCULO VICIOSO DA VIOLÊNCIA

Há manifestações de violência em um perverso círculo vicioso, que demonstra a pouca efetividade das ações.

A origem estaria em políticas sociais descontínuas e/ou inadequadas, em razão de seus objetivos ou serem tímidos, que, quando alcançados, sempre se apresentaram como paliativos, ou serem arrojados demais, o que não lhes garante a plena consolidação.

Esse erro faz persistir e aumentar a marginalização, além de ensejar o florescimento de subculturas, em ambientes onde há prevalência de regras e valores comunitários, localizados, em detrimento de regras e valores sociais, de caráter geral. Surgem, em decorrência, e não apenas ali, os desvios de conduta, as infrações administrativas, as contravenções, a permissividade, dando origem a uma marginalidade emergente. À maior frequência e incidência de crimes, soma-se o ingrediente da crueldade.

Em razão de anacronismos – de leis, de ritos e de rotinas, da processualística penal – reina uma sensação de impunidade entre os marginais, que, então, se organizam em quadrilhas, com seus bem estruturados sistemas de informação, planejamento, operações, administração e logística.

Há muitas notícias, mas poucas informações, que são decodificadas como estímulo, pelos iniciantes no crime, ou provocam indignação e revolta na sociedade civil. Esta se mobiliza, cobra correções, atitudes e soluções dos políticos. A sociedade política se agita, cria comissões, aprova e executa projetos de políticas sociais. Quase sempre inadequadas, inexequíveis e inaceitáveis por serem políticas de governo e/ou de partido, quando deveriam ser de Estado. Enfim, inexatas! O ciclo perverso se reinicia, por absoluta falta de efetividade.


VIOLÊNCIA, PROBLEMA POLICIAL?

Durante certo tempo, os organismos policiais mais visíveis foram criticados, taxados de incompetentes por não suportarem a avalanche da violência, ao realizarem seu trabalho de contenção (prevenção e repressão) criminal. (Ainda, de passagem, embora o desempenho das polícias administrativas seja de fundamental importância, não recebe críticas, por não ter rosto, por ser realizado, quase na totalidade, em gabinetes).

Posteriormente, foi aceita a tese de que a violência é menos um problema policial que um grave e complexo problema social, com a aceitação do argumento de que órgãos policiais ostensivos e/ou judiciários não atuam nas causas nem nos efeitos da violência. Essas instituições trabalham na Causalidade, no vértice de causas e efeitos, isto é, para onde fluem causas e refluem os efeitos.

Um grande equívoco, então, em relação ao estudo da violência foi desfeito com a mudança de foco. Se, até então, a preocupação era com "o quê" está acontecendo (no gênero-ameaças, ênfase para a espécie-crime), constatou-se surgimento de uma corrente que começa a se preocupar com o "porquê" (exame de vulnerabilidade) está acontecendo.


INSERÇÃO SOCIAL

A pesquisa chegou à inserção social, o preparo para a convivência harmoniosa e pacífica, e à reinserção social, o trabalho de correção de desvios sociais.

O processo da inserção social compreende a inclusão social (onde se dá a conhecer e se estimula a prática de direitos sociais) e a integração social (onde se dá a conhecer e se estimula a prática de deveres sociais). Já o processo da reinserção social se dá através da reinclusão social (reconhecimento de direitos sociais) e da reintegração social (reimplementação de deveres sociais).

Em razão da própria dinâmica da vida, o trabalho de inserção social é realizado simultaneamente com o trabalho de reinserção social que, por sua vez, somente é efetuado quando a inserção social se processa com falhas.

Nota-se que atitudes de inclusão e de reinclusão social têm tido sucesso, reduzindo a violência da exclusão social, porém, integração social e reintegração social se apresentam, hoje, como setores de vulnerabilidades, pois a violência da criminalidade tem índices socialmente intoleráveis.

Ficou claro, também, que não há interdependência da violência da criminalidade e a violência da exclusão social. Vale dizer, nem todo marginal é marginalizado e nem todo marginalizado é marginal ou, no popular, nem todo pobre é criminoso, nem todo criminoso é pobre. Eventualmente, pode haver interligação, decorrente de fator correlato (ambiente, distopia, aliciamento, etc.).

Face a ênfase que vem sendo dada aos mecanismos de defesa, verifica-se incremento no esforço da mitigação de ameaças, que, porém, particularmente em relação ao crime, ratifica-se, não vem conseguindo reduzi-lo a níveis toleráveis.

Possivelmente isso se deve à flagrante depreciação dos trabalhos de integração e reintegração sociais, realizados pelos instrumentos de proteção, provocando surgimento de vulnerabilidades, fragilizando a proteção social.

Essa desconceituação pode estar sendo a causa do atual enfraquecimento dos referenciais sociais estabelecidos, ensejando a que a violência passe a ser considerada, no momento, um fenômeno sociopolítico. É que, examinando o acordo social (fugindo da polêmica do pacto e do contrato social), verifica-se a existência de duas premissas básicas:

Há uma ordem social (conjunto de cláusulas sobre a estrutura e funcionamento do grupo social) e um caráter social (elenco de valores a serem respeitados e de regras a serem obedecidas).

Observa-se que esse acordo não vem sendo observado correta e plenamente, o que se constitui em uma grave vulnerabilidade civil. E, o mais grave, acobertados pelo manto de algumas instituições – que fazem a blindagem do organismo social, fixando o sacrossanto conteúdo da ordem e do caráter sociais – alguns de seus integrantes não se vexam em se locupletar, ainda que sendo os primeiros a descumprir o acordo social.

No geral, portanto, constata-se que a minimização (o ideal seria a correção) desse fenômeno sociopolítico, que é a violência no Brasil, exige providências políticas de base – políticas de Estado – reforçando os combalidos alicerces morais da sociedade brasileira.

No particular, governo e sociedade terão de unir forças para tapar fendas morais, por onde penetra a inquietante violência da criminalidade. É provável que seja muito importante a participação de assistentes sociais, para atuar a curto prazo, e de educadores, para atuar a curto, médio e longo prazos.


COMO REVERTER ESSE CICLO?

Para reverter este ciclo, é necessária uma atuação implacável em três grandes frentes: fortalecimento das instituições, que implica, necessariamente, em readquirir a credibilidade e recuperar a confiabilidade da população; correção de desvios dos referenciais sociais, o que implica em rever a preparação para o convívio social, sendo, principalmente – não seria exagero dizer – uma questão de Educação; engajamento social (governo e sociedade civil) para que as políticas públicas sejam de Estado e que as distopias sociais sejam minimizadas até serem eliminadas.


CONCLUSÃO

Ao final, acredita-se que a hipótese inicialmente apresentada pode ser melhorada, alterada para: A efetividade na proteção social é alcançada mediante controle de vulnerabilidades, mitigação de ameaças, exercício da cidadania (em seu sentido restritivo, de exercício de direitos) e entronização da societania (no sentido de conhecimento e prática de direitos e de deveres sociais).


Autor


Informações sobre o texto

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

MEIRELES, Amauri. Fundamentos de segurança social. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 15, n. 2517, 23 maio 2010. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/14904. Acesso em: 28 mar. 2024.