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A possibilidade de alteração do regime de bens do casamento no novo Código Civil e as consequências no mercado imobiliário

A possibilidade de alteração do regime de bens do casamento no novo Código Civil e as consequências no mercado imobiliário

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O regime dos bens do casal é o complexo de normas que disciplina as relações econômicas entre marido e mulher durante o casamento. [01]

Desde 1977 o regime legal do casamento é o da comunhão parcial de bens, considerando-se a alteração imposta pela Lei do Divórcio (Lei nº. 6.515/77).

Neste regime, diferentemente do anterior da comunhão universal de bens, comunicam-se os bens adquiridos após a união, com esforço comum (aquestos), excluindo-se da comunhão os bens particulares, ou seja, os anteriores ao casamento, além daqueles provenientes de doação ou de herança, ainda que tais atos de liberalidade ocorram durante a união.

A alteração da legislação em relação ao regime legal se deve ao fato da própria evolução da sociedade, onde, atualmente, observa-se maior participação da mulher na subsistência do grupo familiar, sendo, pois, razoável que se dividam os aquestos, frutos da união conjugal. Ressalte-se que o último resquício da submissão da mulher ao chefe de família desapareceu com o princípio da igualdade jurídica integral entre os cônjuges, consagrado no art. 226 da Constituição da República.

Cumpre observar que o Código Civil de 1916 não previa a alteração do regime de bens do casamento, tendo como regra sua imutabilidade. Contudo, face à alteração das relações familiares, observam-se novidades no Código Civil de 2002 e na jurisprudência pátria, no sentido da flexibilização das regras impostas às entidades familiares, até porque a Constituição da República de 1988 protegeu novas espécies de grupos familiares.

Entre as novas famílias da CR/88 encontram-se a família monoparental do art. 226, §4º, formada por um dos pais e de sua respectiva prole, e a união estável que foi alçada ao status de entidade familiar no art. 226, §3º.

Ademais, o afeto se tornou a base de toda e qualquer relação familiar no novo Código Civil que, por exemplo, garante no parágrafo único do art. 1584 a guarda dos filhos, em hipótese de dissolução da sociedade conjugal, à pessoa com maior afetividade em relação ao menor.

Essas alterações da nova legislação fizeram surgir questionamentos na seara do Direito Imobiliário, no que concerne às relações envolvendo contratantes casados.

O art. 1.639, §2º do CC/02 dispõe que "é admissível a alteração do regime de bens, mediante autorização judicial em pedido motivado de ambos os cônjuges, apurada a procedência das razões invocadas e ressalvados os direitos de terceiros."

Portanto, como se trata de procedimento que exige a autorização judicial, não se pode alterar regime de bens com base na Lei nº. 11.441/07, que possibilitou a realização de inventário e partilha, separação e divórcio consensuais por via administrativa. Trata-se de ato judicial que depende de pedido assinado por ambos os cônjuges, cabendo ao juiz autorizá-lo ou negá-lo, em face das razões alegadas.

Se o juiz deferir o pedido de alteração do regime, determinará a expedição de mandado para a averbação da alteração junto ao Cartório do Registro Civil das Pessoas Naturais, onde se deu a celebração do casamento.

É mister salientar que parte da doutrina entende não ser possível a alteração do regime de bens dos casamentos realizados na vigência do Código Civil de 1916, face ao disposto no art. 2.039 do CC de 2002. Contudo, o Enunciado 260 da III Jornada de Direito Civil do STJ permite a alteração do regime de bens destes casamentos. Ademais, a jurisprudência pátria também se posiciona nesse sentido. [02]

No direito brasileiro vigora a regra da eficácia imediata da lei nova, respeitado o direito adquirido (art. 6º, da Lei de Introdução do Código Civil), segundo a formulação doutrinária de consideração dos fatos passados, pendentes e futuros (facta praeterita, pendentia, futura). A eficácia imediata da lei nova não alcança os fatos passados consumados, nem a parte já consumada dos fatos pendentes, em virtude da vedação de retroatividade máxima da norma. Alcança, pois, a parte posterior dos fatos pendentes e os fatos futuros. Nisso distingue-se a eficácia imediata (sobre o presente) do efeito retroativo (sobre o passad0). [03]

Portanto, mantém-se intocada a validade dos atos como foram constituídos segundo a lei antiga, e submete-se sua eficácia futura à lei nova, fórmula esta adotada pelo art. 2.035 do CC/02, também incidente sobre o casamento e respectivo regime de bens, por ser ato jurídico. [04]

Em relação à alteração de regime nos casamentos que adotaram a separação legal ou obrigatória de bens (art. 1.641, CC/02), o Enunciado 262 da III Jornada de Direito Civil do STJ afirma que tal alteração será possível, desde que superada a causa que impôs o regime, nas hipóteses dos incisos I e III do art. 1.641, do Código Civil. De acordo com esse entendimento, o STJ, no Resp 821.807-PR, 2006, julgou pedido de alteração do regime de separação obrigatória formulado por cônjuges que se casaram quando tinham 17 anos em 1998, tendo decidido por sua procedência, permanecendo os fatos e efeitos anteriores sob regência da lei antiga.

Atualmente, a liberdade de estruturação do regime de bens, para os nubentes, é total. Não impôs a lei a contenção da escolha apenas a um dos tipos previstos. Podem fundir tipos, com elementos ou partes de cada um; podem modificar ou repelir normas dispositivas de determinado tipo escolhido, restringindo ou ampliando seus efeitos; podem até criar outro regime não previsto na lei, desde que não constitua expropriação disfarçada de bens por um contra outro, ou ameaça a crédito de terceiro, ou fraude à lei, ou contrariedade aos bons costumes. Ressalte-se que as regras gerais aplicáveis a quaisquer regimes não podem ser derrogadas pelos nubentes. [05]

Ao contrário dos direitos brasileiro e francês, o direito alemão limita a liberdade dos nubentes à escolha dos tipos previstos na lei, sem poder modificá-los ou construir tipo novo. Segundo Schlüter, "vale o princípio da limitação dos tipos (numerus clausus dos tipos de regime de bens modelados na lei). Portanto, não pode ser acordado um regime de bens que não está previsto no Código Civil alemão, bem como não é permitido o surgimento de regime de bens mistos, nos quais elementos característicos dos diversos regimes de bens são misturados entre si." [06]

Contudo, apesar do princípio da liberdade de escolha e estruturação do regime de bens, não podem os nubentes submetê-lo à condição como, por exemplo, estabelecer no pacto antenupcial que o regime da separação vigorará, mas, sobrevindo filho, passará a ser o da comunhão universal. [07]

Problema maior reside no fato de se atingirem direitos de terceiros de boa-fé com a alteração do regime, hipótese, a princípio, levada em consideração para o indeferimento do pedido do casal, no art. 1.639, §2º, in fine, CC/02.

Cada entidade familiar possui infinitas relações de caráter econômico ao longo de sua existência. Por se tratarem de direitos patrimoniais, terceiros são os que estejam de boa-fé e possam ser atingidos em seus patrimônios ou créditos com a alteração do regime de bens.

Portanto, a mudança de regime de bens apenas valerá para o futuro, não prejudicando os atos jurídicos perfeitos. A mudança poderá alcançar os atos passados se o regime adotado, como por exemplo, a substituição da separação convencional pela comunhão parcial ou universal, beneficiar terceiro credor, pela ampliação das garantias patrimoniais. O que se proíbe é que a mudança de regime permita aos cônjuges agir fraudulentamente contra os interesses destes terceiros. [08]

Finalmente, não há prazo mínimo, após o casamento, para o requerimento da alteração do regime. O direito brasileiro difere do art. 1.397 do Código Civil francês que estabelece um prazo de dois anos após a celebração do matrimônio ou após a homologação da última mudança de regime.

A família é preservada pela Constituição da República, na forma prevista em seu artigo 226, tida como entidade núcleo da sociedade.

Nada impedirá que se permita a modificação do regime, para todos os casamentos. Note-se que o legislador, em outros momentos, como em relação à enfiteuse, revelou seu espírito de conservação de institutos, em confessada teleologia de preservação, não de extinção. Deixa, assim, para todos, entreaberta, a opção da modificação ou da preservação dos regimes havidos, quer em sentido estrito, quer em sentido lato. [09]


Notas

  1. LEITE, Eduardo de Oliveira. Direito Civil Aplicado, Direito de Família, São Paulo, Editora Revista dos Tribunais, 2005, vol. 5, p. 295.
  2. É possível alterar regime de bens de casamentos anteriores à vigência do Código Civil de 2002. (Apelação Cível 70006423891. Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul. 7ª Câmara Cível. Rel. Des. Sérgio Fernando de Vasconcellos Chaves. Julgada em 13.08.2003) (Boletim da AASP nº 2.400 - Ementário, pág. 870). Civil. Regime matrimonial de bens. Alteração judicial. Casamento ocorrido sob a égide do CC/1916 (Lei nº 3.071). Possibilidade. Art. 2.039 do CC/2002 (Lei nº 10.406). Correntes doutrinárias. Art. 1.639, §2º, c/c art. 2.035do CC/2002. Norma geral de aplicação imediata. (Recurso Especial 730.546-MG. Superior Tribunal de Justiça. 4ª Turma. Rel. Min. Jorge Scartezzini. Julgado em 23.08.2005).
  3. ROUBIER, Paul. Le droit transitoire: conflits dês lois dans Le temps, p. 177.
  4. LÔBO, Paulo. Direito Civil, Famílias, São Paulo, Editora Saraiva, 2009, p. 316.
  5. LÔBO, Paulo. Direito Civil, Famílias, São Paulo, Editora Saraiva, 2009, p. 295.
  6. LÔBO, Paulo. Direito Civil, Famílias, São Paulo, Editora Saraiva, 2009, p. 296.
  7. VELOSO, Zeno. Regimes Matrimoniais de Bens. Direito de Família Contemporâneo. Belo Horizonte, Editora Del Rey, 1997, p. 96.
  8. LÔBO, Paulo. Direito Civil, Famílias, São Paulo, Editora Saraiva, 2009, p. 299.
  9. AGHIARIAN, Hércules. Da Modificação do Regime de Bens. www.jusnavigandi.com.br

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Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

PEREIRA, Fabrícia Cristina Estrella Figueiredo. A possibilidade de alteração do regime de bens do casamento no novo Código Civil e as consequências no mercado imobiliário. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 15, n. 2555, 30 jun. 2010. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/15110. Acesso em: 28 mar. 2024.