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Ação civil pública contra construção de shopping em imóvel tombado

(Hospital Matarazzo)

Ação civil pública contra construção de shopping em imóvel tombado. (Hospital Matarazzo)

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A ação civil pública a seguir, impetrada por associação de moradores do bairro Bela Vista, em São Paulo, visa a impedir a construção de um shopping center, flats e salas comerciais, ocupando parte do local onde atualmente fica o Hospital Matarazzo, imóvel tombado pelo Patrimônio Histórico Estadual. A petição foi elaborada pelo advogado Marcus Vinicius Gramegna, de São Paulo.

EXMO. SR. DR. JUIZ DE DIREITO DA VARA DA FAZENDA PÚBLICA DA CAPITAL.

          ASSOCIAÇÃO DE AMIGOS E MORADORES EM DEFESA DA QUALIDADE DE VIDA DA BELA VISTA, entidade civil sem fins lucrativos legalmente constituída desde 7 de agosto de 1998, (doc. 1) com sede nesta Capital, à rua dos Ingleses, nº 484, apto. 74, e COMITÊ "VEM PRO BEXIGA", entidade civil sem fins lucrativos legalmente constituída desde 8 de setembro de 1997, com sede nesta Capital, à rua dos Franceses, nº 101, ambas neste ato representadas por sua Presidente, Sra. Ângela M. O. Mello, brasileira, separada, empresária, portadora da cédula de identidade RG nº 4.659.317 (docs. 3/4), ambas por seu advogado infra assinado (docs. 5/6), vêm a presença de V. Exa. para, com fundamento nos dispositivos da Lei 7.347/85 propor a presente AÇÃO CIVIL PÚBLICA, com pedido urgente de ordem liminar contra a CAIXA DE PREVIDÊNCIA DOS FUNCIONÁRIOS DO BANCO DO BRASIL – PREVI, inscrita no CGC sob nº 33.754.482/0001, com sede no Município do Rio de Janeiro, à Praia do Flamengo, nº 78, CEP 22210-030; a PREFEITURA DO MUNICÍPIO DE SÃO PAULO, cujos procuradores, com poderes para receber citação, encontram-se à Av. Liberdade, 113; e contra o GOVERNO DO ESTADO DE SÃO PAULO, cujos procuradores, com poderes para receber citação, encontram-se à Av. São Luis, nº 99, 4º andar, pelas razões de fato e de direito a seguir elencadas:


DOS FATOS

A presente demanda versa sobre obras de construção de um "shopping center", um edifício de serviços, um edifício de "flats" e uma mudança parcial no uso das instalações do Hospital Humberto I, também denominado Hospital Matarazzo, localizado nesta Capital à alameda Rio Claro, 190, Bela Vista.

Referidas obras, apesar das gritantes, evidentes e gravíssimas ilegalidades de que estão revestidas (consoante será adiante demonstrado), foram absurdamente aprovadas pelo Conselho de Defesa do Patrimônio Histórico, Arqueológico, Artístico e Turístico do Estado - CONDEPHAAT, cuja consulta foi necessária em face do tombamento que recai sobre a área, e pela Prefeitura do Município de São Paulo, que estranhamente atestou a legalidade do empreendimento frente à legislação de uso e ocupação do solo do Município de São Paulo.

Diante disso, as autoras, levando em conta o evidente prejuízo à ambiência urbana e à qualidade de vida que as obras podem ocasionar, elaboraram abaixo assinado que contém mais de 4.000 (quatro mil) adesões (doc. 7). Também foi encaminhada representação à Promotoria de Habitação e Urbanismo do Ministério Público do Estado de São Paulo (doc. 8).

As ilegalidades que recaem sobre o empreendimento, tanto no que tange ao que se pretende demolir, que está protegido pelo tombamento, quanto pelo que se pretende construir, o que exige a observância das normas de uso e ocupação do solo, são facilmente perceptíveis e serão demonstradas uma a uma. Antes, porém, de tais considerações, faz-se necessário traçar brevemente o histórico do tombamento do Hospital Matarazzo e de seu "destombamento" efetuado pelo CONDEPHAAT. Desta descrição já ficarão evidentes algumas das inacreditáveis ilegalidades e arbitrariedades praticadas pelos réus.


DO TOMBAMENTO DO HOSPITAL MATARAZZO

Para a instrução da presente demanda, o arquiteto e urbanista Dr. Paulo Bastos, que à época do tombamento era membro do Conselho consultivo do CONDEPHAAT (posteriormente viria a presidir esse órgão) e teve participação direta no processo de tombamento do Hospital Matarazzo, elaborou substancioso e brilhante parecer, fartamente documentado (doc. 9), cujo teor as autoras requerem que seja considerado parte integrante das razões da presente exordial, onde narra detalhadamente o processo de tombamento do imóvel "sub examine".

Segundo o douto parecerista, a idéia de tombar o Hospital Matarazzo surgiu no ano de 1984, quando a Sociedade de Beneficência Hospital Matarazzo, então proprietária, tentou obter autorização para demolir o imóvel em questão e, nesse sentido, encaminhou ofício ao CONDEPHAAT com tal requerimento, datado de 20 de setembro de 1984 (doc. 2 do parecer do Dr. Paulo Bastos). A consulta àquele órgão foi legalmente necessária porque, de acordo com o art. 15 do Decreto-lei nº 149/69, todas as obras que se desejem realizar num raio de 300 (trezentos) metros de um imóvel tombado (o que a lei denomina de "área envoltória"), que possa comprometer a visibilidade daquele imóvel, necessitam de autorização prévia do CONDEPHAAT, e o Hospital Humberto I, embora à época não se encontrasse tombado, situa-se na área envoltória do Museu de Arte de São Paulo – MASP, há muito tempo tombado.

Referido pedido de aprovação de demolição foi analisado pelo Corpo técnico permanente do CONDEPHAAT e este manifestou-se contrariamente à demolição (doc. 3 do parecer do Dr. Paulo Bastos), apoiando-se, inclusive, em parecer técnico do Departamento de Patrimônio Histórico da Prefeitura do Município de São Paulo (doc. 4 do parecer do Dr. Paulo Bastos). De posse desses dois pareceres, o Conselho rejeitou o pedido de aprovação daquela demolição (doc. 5 do parecer do Dr. Paulo Bastos). Note V. Exa. que, à época, o Hospital Matarazzo ainda não estava tombado, e mesmo assim sua demolição já foi impedida pelo CONDEPHAAT, por razões de ordem técnica que adiante serão melhor explicitadas.

Inconformada com esse indeferimento, a Sociedade Beneficente "Hospital Matarazzo" reiterou o pedido de demolição (doc. 6 do parecer), tendo sido determinado ao insigne arquiteto Dr. Paulo Bastos que relatasse tal pedido (doc. 7 do parecer do Dr. Paulo Bastos). Nesse parecer (doc. 8 do parecer do Dr. Paulo Bastos), referido arquiteto opinou pela manutenção da decisão de indeferimento.

Por tais razões, num primeiro momento o imóvel ficou livre do risco de sofrer qualquer demolição. Todavia, analisando o conjunto histórico e cultural do imóvel, de fundamental importância para a memória urbana da cidade de São Paulo, chamou a atenção daquele órgão a fragilidade de proteção legal daquele conjunto arquitetônico (o CONDEPHAAT foi consultado apenas porque o imóvel estava na área envoltória do Masp), razão pela qual iniciou-se o processo de tombamento do Hospital Matarazzo, seguindo recomendação do diligente arquiteto Dr. Paulo Bastos, recomendação essa contida no parecer supra referido (doc. 8 do parecer do Dr. Paulo Bastos).

Portanto, em 15 de abril de 1985, o colegiado acatou o parecer do Dr. Paulo Bastos e deu abertura a um processo para análise do tombamento do Hospital Humberto I (doc. 9 do parecer do Dr. Paulo Bastos). Em data de 14/05/86, houve parecer favorável do órgão técnico do CONDEPHAAT.

Como Conselheiro Relator, em data de 19 de maio de 1986, o arquiteto Paulo Bastos emitiu parecer endossando tais conclusões e propondo a aprovação do mesmo, para que o Hospital Matarazzo fosse tombado, o que foi aprovado pelo conselho do CONDEPHAAT no mesmo dia (doc. 1 do parecer do Dr. Paulo Bastos).

De acordo com a Resolução de tombamento resultante de tal processo (doc. 9-A), os edifícios que compõem o Hospital Matarazzo sofreram três graus de proteção, a saber:

O grau de proteção 1, de preservação integral, admitindo apenas pequenas reformas, incidiu sobre a capela e a maternidade Condessa Filomena Matarazzo. O grau de proteção 2, de preservação das fachadas, coberturas e gabaritos, incidiu sobre diversos outros prédios do conjunto arquitetônico, e o Grau de Proteção 3, que preserva apenas e tão somente a volumetria dos edifícios sob os quais incide.


DO "DESTOMBAMENTO" DO HOSPITAL MATARAZZO
E DA APROVAÇÃO DO EMPREENDIMENTO

referentes à possibilidade de revisão da decisão que decidiu pelo tombamento do complexo hospitalar denominado Hospital Humberto I"

Ora, que informações seriam essas? Na folha seguinte do processo, surge documento de lavra do conselho do CONDEPHAAT (doc. 13 do parecer do Dr. Paulo Bastos) no sentido de "rever" a resolução de tombamento de acordo com estudos "a serem desenvolvidos".

Ou seja, pasme V. Exa., a decisão de "rever" o processo de tombamento ocorreu sem qualquer estudo prévio, ao contrário da decisão de tombar o imóvel que, como visto, foi profundamente analisada. Como se não bastasse, foram indicados técnicos do CONDEPHAAT (doc. 14 do parecer do Dr. Paulo Bastos) para que, juntamente com o escritório do arquiteto Julio Neves, indicado pela Sociedade Beneficente Hospital Matarazzo (doc. 15 do parecer do Dr. Paulo Bastos), entrassem em "entendimentos técnicos necessários", a fim de que fosse elaborado "projeto de intervenção na área do Hospital". No mesmo dia (doc. 16 do parecer do Dr. Paulo Bastos), o Presidente do Condephaat determinou que fosse agendada um reunião entre os técnicos do CONDEPHAAT e o Escritório do arquiteto Julio Neves, por mais espantoso que isso possa parecer!!!!!

Portanto, do que se pode inferir dos documentos que integram o parecer do arquiteto Paulo Bastos, técnicos de um órgão público elaboraram parecer em conjunto com um escritório de arquitetura privado, o que evidentemente é uma promiscuidade inaceitável e manifestamente ilegal, uma vez que a motivação dos técnicos de um órgão público, ainda mais da importância do CONDEPHAAT, deve ser obviamente o interesse público, e um escritório de arquitetura privado evidentemente é guiado por outros interesses que, ainda que legítimos, não se confundem com os interesses da coletividade. Custa a crer que imoralidade e ilegalidade desse porte possam ocorrer em plena vigência do Estado de Direito.

Após tal procedimento, o "destombamento" foi aprovado, através da aprovação de um tal "plano de massas". Acerca dessa aprovação, o CONDEPHAAT enviou documentação ao Ministério Público (doc. 10), em resposta a requerimento formulado pelo Dr. Mario Augusto Vicente Malaquias, que atua em virtude da representação formulada pelas autoras, anteriormente referida. De acordo com tal documentação, confirma-se que em 19 de dezembro de 1994 foi indeferida proposta encaminhada pelo escritório técnico Júlio Neves de "liberação parcial" do tombamento do imóvel (doc. 11). Ainda segundo tal documentação, por mais incrível e estranho que possa parecer, na mesma data, o Conselho deliberou pela revisão da Resolução de Tombamento do Hospital Humberto I, conforme supra referido, sem que sejam mencionados quaisquer motivos e sem que seja feita a mais remota menção acerca das razões técnicas pelas quais entende o conselho que tal Resolução deveria ser revista!!!!!! (doc. 12).

Sempre mediante a provocação do Escritório técnico do Sr. Julio Neves, em 10 de abril de 1995 o CONDEPHAAT aprovou o tal "plano de massas", que, segundo consta, permitiria a "revisão parcial" do tombamento. Novamente não são explanadas razões técnicas em face do interesse público que justificariam tal revisão ou a aprovação do "plano de massas". (doc. 13).

Finalmente, em 11 de maio de 1998, o CONDEPHAAT aparentemente aprovou o projeto combatido nos presentes autos e, uma vez mais, não explanou qualquer razão, qualquer justificativa, qualquer motivo, qualquer conveniência ao interesse público de aprovação do empreendimento pretendido. (doc. 14) A única razão para a aprovação, certamente um tanto quanto irônica, para dizer o mínimo, é a de que o projeto poderia ser aprovado porque "atendia o plano de massas", plano de massas esse que foi aprovado a partir de requerimentos do mesmo escritório técnico que o responsável pelo empreendimento objeto dos presentes autos.

O projeto também tramitou no âmbito da Administração Municipal, para obtenção dos alvarás de aprovação e de execução da obra. Verificando-se tais documentos, constata-se a monstruosidade do projeto e a relutância na sua aprovação por parte de dignos funcionários públicos do município incumbidos apenas tecnicamente de analisar o projeto.

Assim, o processo administrativo municipal teve início com o requerimento do escritório técnico Júlio Neves, contratado pela Previ, para realizar "reforma com aumento de área e mudança parcial de uso das edificações destinadas a Hospital, Centro de compras (shopping center), edifício de serviços e flat service". Portanto, o que pretendem os réus é a construção no local de empreendimento imobiliário de tamanho descomunal (doc. 15).

Aqui há outro fato no mínimo curioso. O requerimento de aprovação do empreendimento pretendido recebeu despacho determinando o prosseguimento do processo administrativo em 15/05/96 (doc. 16), ou seja, após a aprovação, por parte do CONDEPHAAT, do "plano de massas" mas antes da aprovação, por parte do mesmo, do empreendimento em questão! Ora, porque os réus já encaminhavam pedido de aprovação de obra à Prefeitura antes mesmo de saber se o projeto seria aprovado pelo CONDEPHAAT? Tinham certeza da aprovação da obra no CONDEPHAAT?

Em 24/06/96, o Departamento de aprovações da Prefeitura proferiu despacho (doc. 17) determinando o cumprimento de várias providências aos pretendentes do empreendimento, demonstrando que havia constatado algumas ilegalidades que serão adiante esmiuçadas. Nesse despacho foi determinado que os réus apresentassem certidão de diretrizes da CET, para que fosse avaliado o impacto no tráfego da região, relatório de impacto de vizinhança, dentre diversas outras exigências, todas elas estribadas na lei.

Em 31/07/96, os interessados no empreendimento pretenderam cumprir o determinado no despacho supra mencionado, alegando que não seria o caso de realização de relatório de impacto de vizinhança e comprometendo-se a apresentar posteriormente a certidão de diretrizes da Secretaria Municipal de Transportes, dentre outras explicações que julgou pertinentes e oportunas (doc. 18). A Municipalidade, por sua vez, em franco descumprimento da legislação municipal (como adiante se verá) dispensou os interessados da apresentação de tal Relatório!!!!! (doc. 19).

Finalmente, a Certidão de Diretrizes da Secretaria Municipal de Transportes foi apresentada, em data de 5 de setembro de 1996 (doc. 20). Nessa certidão, que é inconclusiva, ou seja, nem aprova nem desaprova o empreendimento, está detalhado o projeto, e de sua leitura podemos perceber que pretende-se construir, no total, 165.523,96 m2 (cento e sessenta e cinco mil, quinhentos e vinte e três metros quadrados e noventa e seis centímetros), excluídas as áreas destinadas a estacionamento de veículos. De acordo com essa certidão de diretrizes, foi firmado termo de compromisso entre o pretendente da obra e a Prefeitura (doc. 21), onde a Previ comprometia-se a financiar pequenas alterações na estrutura viária próxima ao local, que segundo a Secretaria de Transportes seriam necessárias em virtude da magnitude do empreendimento.

Apesar de todas as ilegalidades, o projeto foi aprovado pela Municipalidade, tendo recebido o alvará de aprovação nº 670.099.896-4 (doc. 22). Porém, foi constatado pela Municipalidade que a Previ não cumpriu tudo o que foi determinado como condição para que o projeto pudesse ser executado (doc. 23), o que motivou a suspensão da licença para a obra. Vários requerimentos de revalidação do alvará, por parte da Previ, foram formulados, sendo que várias vezes tal revalidação foi indeferida (docs. 24/30). Todavia, o que tem levado a Prefeitura à não revalidação do alvará de aprovação e execução pretendidos são problemas de ordem técnica passíveis de serem sanados, e não propriamente as aberrações e ilegalidades que são apontadas nessa demanda, evidentemente não passíveis de saneamento.

Cumpre observar, ainda, que o CONDEPHAAT comunicou ao Ministério Público, ao responder a representação formulada pelo insigne e diligente Promotor da Habitação e Urbanismo, Dr. Mario Malaquias, o que segue (doc. 10 – já mencionado):

"Esclarecemos que para revisão da Resolução de Tombamento do Conjunto Hospitalar Humberto I, há necessidade de definição do detalhamento do projeto, que deverá ser desenvolvido pelos interessados já citados com supervisão deste órgão para posterior apreciação do Egrégio Colegiado. Face à ausência de decisão final do Conselho quanto à revisão, inexiste documento de homologação do Senhor Secretário da Cultura sobre a questão".

Ora, afinal, o empreendimento foi ou não aprovado pelo CONDEPHAAT?, se não foi, como pode estar aprovado pela Municipalidade, que já expediu alvará de construção para o imóvel? Tais perguntas devem ser respondidas pelos réus! Evidente que, caso a Prefeitura do Município de São Paulo tenha concedido alvará de aprovação para o empreendimento pretendido sem que o mesmo estivesse aprovado pelo órgão de tombamento estadual, mais uma ilegalidade estará presente, e de natureza gravíssima.

De qualquer forma, de acordo com o projeto aprovado, haveria destruição parcial da Casa de Saúde Francisco Matarazzo, destruição parcial do núcleo original do Hospital Humberto I, destruição parcial da residência das irmãs, do ambulatório e das enfermarias (todos com nível de preservação P2, de acordo com a resolução de tombamento aprovada e supra referida) e destruição total da Cozinha, lavanderia, refeitório, da lanchonete, das lojas e do estacionamento (todos com nível de preservação P3).

Observando-se tal pretensão, fica evidente a afronta à Resolução de tombamento do próprio CONDEPHAAT, uma vez que o nível P2, como já mencionado, visa a preservação das fachadas e do gabarito, e o nível P3, por seu turno, visa a preservação da volumetria dos imóveis, e é fácil perceber que o empreendimento pretendido possui volume de construção bem maior do que o conjunto arquitetônico sob o qual incide o nível de preservação P3. O parecerista Dr. Paulo Bastos, no final de seu parecer, apresenta esquema gráfico mostrando a estrutura atual do complexo hospitalar e a feição que tal imóvel ganharia se fosse construída a obra pretendida, e tal esquema gráfico demonstra com clareza a afronta à Resolução de tombamento.

Feitas tais considerações, as ilegalidades que estão presentes no pretenso empreendimento serão abordadas nos tópicos seguintes, primeiro no que diz respeito ao "destombamento do imóvel", "destombamento" esse no qual se estriba a pretensão de demolição do conjunto arquitetônico do Hospital Matarazzo, e posteriormente serão analisadas as ilegalidades que estão presentes na obra que se pretende construir frente às normas de uso e ocupação do solo do Município de São Paulo.


DO DIREITO DA COLETIVIDADE AO TOMBAMENTO DO HOSPITAL MATARAZZO

O instituto do tombamento vem sendo considerado pela doutrina pátria majoritária como um ato administrativo vinculado, ou seja, uma vez presentes as razões de ordem técnica para que o tombamento ocorra, tal ato passa a ser um direito subjetivo da coletividade à preservação de sua memória histórica e cultural, direito subjetivo esse que impede o órgão responsável de omitir-se em proteger o patrimônio, não havendo qualquer dúvida acerca da possibilidade de controle jurisdicional acerca do cumprimento desse direito público subjetivo.

Nesse sentido, é contundente o magistério do Prof. Hely Lopes Meirelles(1):

"Quando o Poder executivo não toma as medidas necessárias para o tombamento de um bem que reconhecidamente deva ser protegido, em face de seu valor histórico ou paisagístico, a jurisprudência tem entendido que, mediante provocação do Ministério Público (ação civil pública) ou de cidadão (ação popular), o Judiciário pode determinar ao Executivo faça a proteção. De igual forma, a omissão administrativa em concluir o processo de tombamento afeta o direito de propriedade e lesa o patrimônio individual, justificando, assim, a sua anulação pelo Judiciário."

O eminente civilista Orlando Gomes preleciona no mesmo sentido(2):

"O Judiciário tem competência para decidir se a coisa tombada tem ou não valor histórico e artístico; na hipótese afirmativa, subsiste o tombamento, com as restrições que dele decorrem"

O Prof. Antonio A. Queiroz Teles, que elaborou monografia específica sobre o instituto jurídico do tombamento, leciona no mesmo diapasão, citando, inclusive, V. Acórdão do Egrégio STF para embasar sua conclusão. Eis suas palavras(3):

"Mas, se o poder público se atribui a obrigação de qualificar, através do parecer, o bem tombado de características que o tornem suscetível de ser tombado, também é evidente que "ao Judiciário, cabe decidir se o imóvel inscrito no Serviço do Patrimônio Histórico Artístico Nacional (IBPC) tem ou não valor histórico ou artístico, não se limitando a sua competência em verificar apenas se foram observadas as formalidades legais no processo de tombamento" (Julgado do STF, de 19.8.43, RDA 98/586)."

Pontes de Miranda também entende que(4):

"o ato estatal não é discricionário. Há o pressuposto de ter valor artístico, ou histórico, ou de beleza natural, o bem que se tomba como monumento ou documento protegido"

O administrativista José Cretela Junior, por sua vez, assim deixa consignado(5):

"Se o tombamento é decretado por motivo histórico, permanece o ato se a história, realmente, justifica a medida, mas o procedimento se anula se se prova que o bem nada tem de histórico. No caso o critério histórico limita o arbítrio do administrador, impedindo o desvio de poder, a arbitrariedade, a ilegalidade. Ultrapassado o mero exame da legalidade formal ou epidérmica, visível à primeira vista, o poder judiciário desde ao exame da legalidade substancial ou material"

Cite-se, ainda, o eminente Seabra Fagundes(6):

"É certo que essa matéria envolve a apreciação do mérito de atos administrativos (a valia dos bens sob aqueles aspectos), mas também ocorre apreciação do mérito nos casos em que, sendo tombado o bem, se impugnem medidas administrativas, sob o fundamento de que o prejudiquem. O que acontece é que o alargamento do controle jurisdicional, além do aspecto de legitimidade, resulta da vontade da lei, porquanto consequência necessária da ampliação do conceito de patrimônio para fins de propositura de ação popular".

Temos o magistério de Toshio Mukai(7):

"Ora, se é assim, se há um poder-dever da Administração no ato de tombamento, jamais esse ato pode ser discricionário; ao contrário, sendo vinculado esse ato, se um imóvel tiver valor histórico, natural ou artístico ou, ainda, arqueológico, não há como a autoridade deixar de tombá-lo, pois, constitucionalmente, pesa-lhe o dever de fazê-lo. Eis aí a natureza vinculativa do ato de tombamento".

Não podemos deixar de mencionar o magistério do Prof. Paulo Affonso Leme Machado, um dos juristas brasileiros que mais se debruçou sobre o estudo do tombamento(8):

"O conceito de arte, de estética, de história, de turismo e de paisagem deve ser somado ao conceito de valor desses bens e direitos. Essa junção e conceituação muitas vezes não será tarefa fácil, mas, nem por isso, o juiz poderá furtar-se a fazê-las. A prova documental, pericial e mesmo a prova testemunhal ajudarão para a devida prestação jurisdicional"

Por fim, temos talvez o mais contundente magistério acerca da possibilidade do Poder Judiciário determinar o tombamento de um bem quando estão evidenciadas razões técnicas para que o mesmo se realize, do Prof. José Eduardo Ramos Rodrigues:

"Ora, nem a Constituição, nem a lei determinam que esses bens tenham sido previamente reconhecidos como culturais pelo Poder Executivo para serem dignos de proteção do Poder Público. O valor cultural existe como característica intrínseca do bem, desde que reconhecido como portador de referência à identidade, à ação, à memória de algum grupo formador da sociedade brasileira (art. 216 da CF). Já a partir daí cabe ao Poder Público, em conjunto com a comunidade, protegê-lo (art. 216, § 1º)., mesmo que não tenha sido ainda tombado ou protegido formalmente, por algum outro instrumento jurídico. Portanto, é dever do Poder Público, seja da união, Estado ou Município, através do Poder executivo, Legislativo ou Judiciário, proteger os bens integrantes do patrimônio cultural através de quaisquer formas de acautelamento ou preservação (art. 216, § 1º), desde que tenham algum fundamento legal. (...). Com fundamento na lei 7.347/85 (Lei dos Interesses Difusos), pode ser ajuizada ação cautelar no sentido de sustar quaisquer atos que possam vir a causar a descaracterização de um bem não protegido enquanto estiver "sub judice". Na ação principal, através de perícia poderá o bem ser declarado protegido para sempre, mantidas as suas características, em virtude de seu valor cultural."

Também na jurisprudência majoritária dos nossos tribunais essa linha de orientação tem prevalecido, como no V. Acórdão do Egrégio Supremo Tribunal Federal que passamos a transcrever(9):

"Ao Judiciário cabe decidir se o imóvel inscrito no Serviço de Patrimônio Histórico e Artístico Nacional tem ou não valor histórico ou artístico, não se limitando a sua competência em verificar, apenas, se foram observadas as formalidades legais, no processo de tombamento"

O Egrégio Tribunal de Justiça do Paraná também teve oportunidade de consagrar esse irretocável entendimento(10):

"Em matéria de tombamento cabe ao Judiciário um duplo controle: da regularidade do processo administrativo e o controle de mérito referente à existência ou não de valor histórico ou artístico"

No Judiciário Paulista esse magistério é francamente acolhido, como no V. Acórdão abaixo transcrito, de lavra do saudoso Des. Alves Braga(11):

"É dever do Poder público preservar e não destruir a história viva das cidades. Em nome do progresso tudo tem sido destruído e as cidades paulistas perderam suas origens e foram completamente desfiguradas, pouco restando de seu passado. Povo sem memória é povo sem história. Povo sem História é povo sem alma."

Também em primeira instância tem prevalecido o mesmo entendimento, como na r. sentença do insigne magistrado da Comarca de Sertãozinho, Dr. Álvaro Luiz Valery Mirra, cuja ementa transcrevemos(12):

"Imóvel de relevante interesse histórico – Abstenção da realização de alterações, reformas ou demolições que descaracterizem o bem"

Diante de tais manifestações doutrinárias e jurisprudenciais, evidencia-se que, uma vez presentes os requisitos de ordem técnica para que determinado bem imóvel seja tombado, é mais do que legítimo que o Poder Judiciário faça valer seus efeitos, anulando, no caso em tela, o "destombamento" ilegal e arbitrariamente levado a cabo pelo CONDEPHAAT. Em outros termos, fica evidenciado (e nem mesmo poderia ser diferente) que, pelo regime jurídico nacional do instituto do tombamento, não é dado ao órgão tecnicamente responsável (e não politicamente responsável) tombar e destombar um bem ao seu bel prazer, sem que razões fundamentadas justifiquem tal decisão, ao sabor dos casuísmos e de interesses escusos.

Aliás, tais atos administrativos, absolutamente ilegais, devem sempre ser repelidos pelo poder Judiciário, ainda que se tratem de atos discricionários. Nesse sentido, o magistério do Prof. Celso Antonio Bandeira de Mello(13):

"O plexo de poderes depositados em mãos da Administração, ante o seu caráter serviente, instrumental, não é para ser manejado em quaisquer circunstâncias, para quaisquer fins ou por quaisquer formas. Pelo contrário, é previsto como utilizável perante certas circunstâncias, para alcançar determinados fins e através de especificadas formas. Daí que existe um completo entrosamento entre os diversos aspectos denominados "elementos" ou "requisitos" ou "pressupostos" do ato administrativo"

Ocorre que, no caso dos autos, as razões de ordem técnica para o tombamento são bastante robustas, foram profundamente discutidas e analisadas no processo do tombamento, sensibilizam a população, conforme visto no abaixo assinado de mais de 4.000 (quatro mil) assinaturas juntado aos autos e evidentemente não foram abaladas pelo "destombamento" do bem.

A simples descrição de todo o processo de tombamento, desde o seu início, efetuada nos tópicos anteriores da presente vestibular e melhor detalhado no parecer do Dr. Paulo Bastos, demonstra com clareza os motivos que levaram o CONDEPHAAT a, naquela época, tombar o Hospital Matarazzo, não sem antes diversos pareceres de profissionais de áreas de conhecimento distintos (historiadores, arquitetos, etc.) terem recomendado que o tombamento fosse efetivado.

No curso do processo de tombamento, a arquiteta Maria Lúcia Pinheiro Ramalho e as historiadoras Marly Rodrigues e Sonia de Deus Rodrigues apresentaram as razões técnicas pelas quais entendiam necessários o tombamento (doc. 10 do parecer do Dr. Paulo Bastos), que transcrevemos:

"Tendo em conta que o Hospital Matarazzo:

  • é um remanescente altamente representativo das instituições organizadas pela parcela mais significativa dos imigrantes fixados na cidade de São Paulo, os italianos;
  • exerceu papel de destaque no atendimento médico hospitalar da população trabalhadora da cidade, especialmente no período em que a assistência pública era deficitária;
  • desenvolveu uma qualidade de atendimento que o fez ser também procurado – em especial a maternidade – pela população de médio e alto poder aquisitivo;
  • destacou-se como espaço de formação profissional e de estudo da ciência médica;
  • teve papel pioneiro em algumas atividades hospitalares;

Torna-se evidente a importância histórica dessa instituição na cidade de São Paulo.

Outro aspecto a salientar é o valor ambiental intrínseco do conjunto de edifícios que compõem o Hospital Matarazzo – o único sítio de porte que escapou à verticalização pela Avenida Paulista na região em relação a seu entorno."

Portanto, valores ambientais, urbanísticos, culturais, arquitetônicos e históricos justificaram o ato de tombamento efetuado pelo CONDEPHAAT, sendo que a presença de tais valores foi amplamente debatida e corroborada por diversos profissionais. Poucas vezes se encontram imóveis com tantas razões para o tombamento quanto o Hospital Matarazzo, e poucas vezes um processo de tombamento é tão profundamente analisado e fundamentado como ocorre no caso em tela.

Em contrapartida a isso, o que temos? Quais as razões alegadas pelo CONDEPHAAT para o destombamento? Por que razões aprovou as obras em desacordo com a Resolução anterior? Por mais que se consultem os documentos acerca do processo de "destombamento", não se encontra nenhuma justificativa, por mais bisonha que fosse, para que o "destombamento" ocorresse.

Acerca desse ponto, e da exótica e estapafúrdia maneira com que foi conduzido o "processo de destombamento", pedimos vênia para transcrever as considerações do Dr. Paulo Bastos no seu parecer tantas vezes citado:

"Da mesma forma que são exigidos estudos e critérios consistentes para que se efetue qualquer tombamento e se estabeleça a regulamentação urbanística do entorno do bem tombado, no sentido de preservar sua visibilidade e ambiência, o mesmo deve ocorrer com o destombamento ou alterações significativas da concepção original de tombamento, procedimentos que requerem fundamentação ainda mais cuidadosa, posto que, como se sabe, a destruição parcial ou total do bem ou de sua ambiência acaba por assumir, quase sempre, um caráter de irreversibilidade do dano causado.

No caso analisado, o processo não contém nenhum elemento que indique porque o tombamento deveria ser revisto, quais os valores por ele reconhecidos que tenham desaparecido ou perdido significado, ou quais condições teriam sido por ele indevidamente estabelecidas."

Diante disso, é mais do que evidente que o ato pelo qual o CONDEPHAAT "destombou" o imóvel deve ser anulado, porque contrário ao que foi tecnicamente apurado, e o que foi tecnicamente apurado, como fartamente demonstrado, possui caráter vinculado para o CONDEPHAAT, não sendo lícito que tal órgão adote outra solução arbitrariamente.


DA AUSÊNCIA DE MOTIVO E DE MOTIVAÇÃO PARA
O "DESTOMBAMENTO" DO IMÓVEL - DESVIO DE FINALIDADE

Como corolário da ilegalidade apontada no tópico anterior, temos que o ato administrativo que "destombou" o imóvel em questão feriu requisitos básicos e elementares que devem nortear, num regime democrático, a edição de todo e qualquer ato administrativo.

Nesse sentido, os requisitos do "motivo" e da "motivação" do ato foram descumpridos. O Prof. Celso Antonio Bandeira de Mello define o que se deve entender por "motivo", no sentido jurídico do termo (e não qualquer motivo), que é requisito essencial do ato administrativo(14):

"Se a regra de direito enuncia que um dado ato pode (ou deve) ser produzido quando presente determinado motivo (isto é, uma dada situação de fato), resulta óbvio ser condição da lisura da providência adotada que efetivamente tenha ocorrido ou seja existente aquela situação pressuposta na norma a ser aplicada. Se o fato presumido pela lei não existe, sequer irrompe a competência para expedir o ato, pois as competências não são conferidas para serem exercidas a esmo. Os poderes administrativos são irrogados para que, em face de determinadas situações, o agente atue com vistas ao escopo legal. Donde o motivo é a demarcação dos pressupostos fáticos cuja ocorrência faz deflagrar em concreto a competência que o agente dispõe em abstrato"

Mais adiante, conclui o ilustre professor:

"Jamais seria de admitir que a autoridade pudesse expedir um ato sem motivo algum – pois isso seria a consagração da irracionalidade – ou que pudesse escolher qualquer motivo, fosse qual fosse, pois redundaria no mesmo absurdo da irracionalidade"

Ora, no caso dos autos, como visto, não houve qualquer alteração nas razões que levaram o CONDEPHAAT a tombar o imóvel. Com efeito, não perdeu o Hospital seu valor cultural, histórico, arquitetônico, ambiental e urbanístico, ou seja, não houve qualquer motivo, qualquer situação fática tão relevante quanto o tombamento que justificasse a autorização para a obra pretendida.

Justamente por causa dessa ausência de motivos, houve ausência de motivação na decisão que autorizou a obra, ou seja, não houve exteriorização de motivo algum, por mais estapafúrdio que fosse. Citamos novamente o magistério do Prof. Celso Antonio Bandeira de Mello(15):

"A autoridade necessita referir não apenas a base legal em que se quer estribada mas também nos fatos ou circunstâncias sobre os quais se apóia e, quando houver discrição, a relação de pertinência lógica entre seu supedâneo fático e a medida tomada, de maneira a se poder compreender sua idoneidade para lograr a finalidade legal. A motivação é, pois a justificativa do ato".

Com visto, portanto, no caso dos autos, em nenhum momento as autoridades públicas preocupam-se em dar uma satisfação para os interessados, em nenhum momento se preocupam em explicitar as razões pelas quais autorizaram a realização de obra que destrói patrimônio tombado de inegável interesse público por seu caráter histórico, ambiental, urbanístico, arquitetônico e cultural. Mecanicamente, transformando o CONDEPHAAT em órgão meramente homologatório de desmandos e de arbitrariedades, aprovam a obra e, mais do que isso, determinam aos técnicos do órgão, altamente qualificados, que elaborem "estudos em conjunto" com representantes de interesses privados, numa promiscuidade entre o interesse público e o interesse privado sem precedentes. Trata-se, assim, de um caso clássico, de um caso acadêmico, de desvio de finalidade, por ausência de motivo e de motivação do ato administrativo.

Acerca do desvio de finalidade, ou também denominado desvio de poder, temos o magistério de Hely Lopes Meirelles(16):

"O desvio de finalidade ou de poder verifica-se quando a autoridade, embora atuando nos limites de sua competência, pratica o ato por motivos ou com fins diversos dos objetivados pela lei ou exigidos pelo interesse público. O desvio de finalidade ou de poder é, assim, a violação ideológica da lei, ou, por outras palavras, a violação moral da lei, colimando o administrador público fins não queridos pelo legislador, ou utilizando motivos e meios imorais para a prática de um ato administrativo aparentemente legal. "

Mais adiante, com mais contundência ainda, conclui o saudoso Professor:

"O ato praticado com desvio de finalidade – como todo ato ilícito ou imoral – ou é consumado às escondidas ou se apresenta disfarçado sob o capuz da legalidade e do interesse público. Diante disso, há que ser surpreendido e identificado por indícios e circunstâncias que revelem a distorção do fim legal, substituído habilidosamente por um fim ilegal ou imoral não desejado pelo legislador. (...). Dentre os elementos indiciários de desvio de finalidade está a falta de motivo, ou a discordância dos motivos com o ato praticado"

Ora, é exatamente isso o que ocorre no caso dos autos. Todavia, o Prof. Hely Lopes Meirelles fala em "indícios" de desvio de finalidade. No caso vertente, existem diversos e inquestionáveis indícios, sendo eles: a falta de motivo para o "destombamento" do imóvel em questão, a falta de motivação, a aprovação de "revisão" do tombamento sem qualquer estudo técnico que embasasse tal decisão, o imoral conluio entre técnicos de um órgão público e de uma entidade privada na elaboração de um "plano de massas" conjunto, em evidente afastamento do interesse público, a aprovação da obra pela Municipalidade supostamente sem a aprovação do empreendimento pelo CONDEPHAAT, etc.

Por essas razões, repita-se, estamos diante de um exemplo clássico de desvio de finalidade. Mesmo que os réus aleguem que não possuíam intenção escusa alguma de praticar o desvio de poder, ainda assim o mesmo está inegavelmente configurado, uma vez que a intenção do agente de cumprir a lei corretamente ou não é absolutamente irrelevante. Para ilustrar tal afirmação, recorremos novamente ao magistério do nunca assaz citado Prof. Celso Antonio Bandeira de Melo(17):

"No desvio de poder o agente, ao manipular um plexo de poderes, evade-se do escopo que lhe é próprio, ou seja, extravia-se da finalidade cabível em face da regra em que se calça. Em suma: o ato maculado deste vício direciona-se a um resultado diverso daquele ao qual teria de aportar ante o objetivo da norma habilitante. Há, então, um desvirtuamento do poder, pois o Poder Público, como de outra feita averbamos, falseia, deliberadamente ou não, como intuitos subalternos ou não, aquele seu dever de operar o estrito cumprimento do que se configuraria, ante o sentido da norma aplicanda, como o objetivo, pois o que importa não é se o agente pretendeu ou não discrepar da finalidade legal, mas se efetivamente dela discrepou."

É evidente, comezinho e gritante a falta de motivo e de motivação para a emanação do ato administrativo do CONDEPHAAT que aprovou a obra pretendida no Hospital Matarazzo, e também por essa razão tal ato deve ser anulado. Mas, como se não bastasse a aberração da aprovação do destombamento do imóvel em questão, no qual pretende se estribar a obra pretendida, há diversas ilegalidades na aprovação do empreendimento, tal e qual desejam os réus. É o que veremos nos tópicos seguintes.


DA AUSÊNCIA DE ESTUDO PRÉVIO DE IMPACTO AMBIENTAL
E DE RELATÓRIO DE IMPACTO DE VIZINHANÇA

Diz o art. 225, da Constituição Federal:

"Art. 225. Todos tem direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial a sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder Público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações

§ 1º - Para assegurar a efetividade desse direito, incumbe ao Poder Público:

IV - exigir, na forma da lei, para instalação de atividade potencialmente causadora de significativa degradação do meio ambiente, estudo prévio de impacto ambiental, a que se dará publicidade."

Em comentário a esse dispositivo constitucional, a doutrina é uníssona em reconhecer que a única exigência para que exista a necessidade de realização do Estudo Prévio de Impacto Ambiental é que exista o potencial de degradação significativa ao meio ambiente. Nesse sentido, o magistério de Paulo Affonso Leme Machado(18):

"Analisar previamente a possibilidade de ocorrer uma dano significativo para o meio ambiente deixou de ser uma faculdade para o Poder público, após a Constituição Federal de 1988. Se houver necessidade de uma autorização ou licença do Poder público e houver probabilidade de prejuízo significativo de degradação ambiental, inafastável o "estudo prévio de impacto ambiental". Importa salientar que esse dever é para o Poder Público que licencia ou autoriza. Portanto, se o Município autorizar e ou licenciar uma obra ou uma atividade que possa provocar dano significativo ao meio ambiente, está obrigado a instaurar o procedimento e do EPIA, sob pena de nulidade da autorização ou da licença."

O insigne doutrinador, certamente o jurista brasileiro que mais se debruçou sobre o instituto jurídico do Estudo Prévio de Impacto Ambiental, ressalta que a obrigação de realizar tal estudo é dos três níveis de governo, conforme o caso concreto. Transcrevemos(19):

"Não há como transferir responsabilidades administrativas. A Constituição Federal fez bem em não atribuir a qualquer dos três níveis de governo a responsabilidade pelo EPIA. O Poder Público que quiser ou for obrigado a intervir, tem o dever de buscar a prevenção."

O dispositivo constitucional em exame é parcialmente regulamentado pela Resolução 001 de 23 de janeiro de 1986 do Conselho Nacional do Meio Ambiente - CONAMA, que expediu tal Resolução autorizada pelo Decreto Federal nº 88.351/83. Tal diploma legal, todavia, não esgota todos os casos em que deve ser realizado o Estudo Prévio de Impacto Ambiental. Quem esclarece é o Prof. José Afonso da Silva(20):

"Essa enumeração casuística é puramente exemplificativa, nem poderia ser diferente, porque a Constituição não admite limitação taxativa dos casos de estudo de impacto ambiental. Qualquer que seja a obra ou a atividade, pública ou particular, que possa apresentar riscos de degradação significativa do meio ambiente fica sujeita à sua prévia elaboração."

Ora, no caso em tela, não resta dúvidas da necessidade de realização de um estudo prévio de impacto ambiental, dado que é evidente que a obra é de porte bastante considerável (trata-se, de um projeto que envolve a construção de shopping center, apartamentos de "flats", de um edifício de serviços e de um Hospital), em área densamente urbanizada, já saturada e carente de áreas verdes e de horizontalidade nas construções. Tal empreendimento sem dúvida provocará diversas mudanças negativas e justamente por isso implicará em significativa perda da qualidade de vida dos moradores da região, afetando uma área extensa e importante da cidade.

Se tal estudo fosse elaborado, assim como o Relatório de Impacto de Vizinhança, ficaria evidente a inadequação da obra. Algumas das consequências negativas são ressaltadas pelo Dr. Paulo Bastos em seu parecer que analisou tecnicamente as plantas do empreendimento. Transcreve-se:

"A manutenção do padrão de ocupação horizontal existente na quadra prevista no tombamento, será posta de lado, com a implantação de um edifício de 117m de altura para a Alameda Rio Claro e 124m em relação à rua Itapeva, com projeção em planta de cerca de 23x54m, seccionando visualmente a quadra e, portanto, liquidando com a qualidade ambiental atualmente oferecida nela e em seu entorno pela ausência de verticalização, apagando um dos últimos testemunhos da urbanização original da região da Av. Paulista e, com a soma do volume do shopping, reduzindo os edifícios integralmente tombados a elementos absolutamente secundários e os demais a meros apêndices.

Os espaços existentes no terreno são absolutamente insuficientes para suportar esse amontoado de volumes que, se executados, acabariam por retirar qualquer sentido na preservação dos elementos sobreviventes, pelo resultado grotesco que acarretarão.

          Se esta forma de tratamento dos bens culturais for aceita, ignorando inclusive recomendações das cartas internacionais de preservação, não haverá futuro para a preservação em São Paulo, da mesma maneira que se se aceitasse sem combate a metástase, por encará-la como processo natural inevitável, não haveria organismo vivo que pudesse a ela sobreviver".

No que tange ao Relatório de Impacto de Vizinhança (RIVI), deveria o mesmo ser realizado para instruir o pedido de aprovação da obra junto à SEHAB (Secretaria de Habitação), de acordo com o art. 1º do Decreto Municipal nº 34.713 de 30 de novembro de 1994, com a nova redação que lhe deu o Decreto nº 36. 613, de 6 de dezembro de 1996 (doc. 31).

Não se pode deixar de asseverar que, assim como a Resolução Conama não tem o condão de esgotar taxativamente todas as hipóteses em que deve ser realizado o Estudo Prévio de Impacto Ambiental, o Decreto Municipal em apreço não possui caráter taxativo também. Além disso, o Decreto Municipal é pouco abrangente, porque considera apenas a volumetria das edificações, desconsiderando outros elementos como trânsito gerado, ruídos, áreas verdes etc, elementos esses que inequivocamente influem na maior ou menor degradação ambiental de determinado local. Por fim, deve-se mencionar que o Decreto "sub examine", mesmo no que tange à volumetria das edificações, é extremamente permissivo. De qualquer forma, diz o art. 1º, inciso III do Decreto Municipal em questão:

"art. 1º - São considerados como de significativo impacto ambiental ou de infra-estrutura urbana os projetos de iniciativa pública ou privada, referentes à implantação de obras de empreendimentos cujo uso e área de construção computável estejam enquadrados nos seguintes parâmetros:

III – Serviços/comércio – igual ou superior a 60.000 m2 (sessenta mil metros quadrados).

Considerando-se apenas a área que de acordo com a legislação é considerada computável para cálculo dos índices urbanísticos, o empreendimento está projetado para possuir uma área construída de 95.967,93m2 (noventa e cinco mil, novecentos e sessenta e sete metros quadrados e noventa e três centímetros), portanto em área muito superior ao previsto no Decreto Municipal.

Por tais razões causa espanto que, quando a Prefeitura determinou aos réus que apresentassem tal estudo (doc. 17 – já mencionado), os mesmos tenham apresentado a esdrúxula resposta que abaixo transcrevemos (doc. 18 – já mencionado).

"Os projetos em análise não tem as características que possam definí-los como "Empreendimento de Impacto ambiental ou de Infra Estrutura Urbana", conforme dispõe o Decreto 34.713/94, tendo em vista que as obras projetadas constituem 02 (dois) conjuntos autônomos de edificações a serem reformadas ou construídas em áreas independentes, com acessos de pedestres e veículos exclusivos e usos totalmente diferenciados entre si.

Os empreendimentos deverão ser analisados individualmente, no que diz respeito à interferência de cada um deles com o meio físico e urbano do entorno, classificado o primeiro desses empreendimentos, destinado à comércio e serviços (C 2.3 e S 2.1) no item III do Artigo 1º do referido Decreto, e o segundo, destinado a instalações hospitalares (E 3.3) com edificação complementar para acompanhantes (R 2.2), no item II do citado artigo do mesmo Decreto.

Dessa forma, como as interferências de cada um dos conjuntos de edificações com as vizinhanças imediatas e do entorno, não atingem os índices estabelecidos no Decreto nº 34.713/94, os empreendimentos projetados não se caracterizam como sendo de impacto ambiental ou urbano, estando, consequentemente, isentos das exigências de apresentação de Relatório de Impacto de vizinhança."

Trata-se de resposta que demonstra grande imaginação. O mais espantoso é que essas razões foram aceitas pela Prefeitura, que aprovou o projeto sem o Relatório de Impacto de Vizinhança.

Ora, por primeiro, é óbvio, ululante e evidente que, para efeito de análise do impacto ambiental que será ocasionado, o empreendimento deve ser analisado em conjunto. Apenas um shopping center causaria um determinado impacto ambiental no que diz respeito à paisagem urbana, ao trânsito gerado, aos ruídos, à proteção histórica, à visibilidade dos bens tombados, etc. Apenas um edifício também causaria um determinado impacto, mas é comezinho que um shopping center mais um hospital, mais um centro de compras, mais um conjunto de flats causa o impacto do total do empreendimento. Os ruídos, o trânsito, o prejuízo para a paisagem urbana e o prejuízo para a memória paulistana serão somados por todos esses empreendimentos, e por essa razão os mesmos devem ser somados para efeitos de valaiação impacto ambiental negativo.

Entendimento diferente tornaria ineficaz todos os instrumentos de prévio controle de impactos ambientais negativos, como os Estudos Prévios de Impacto Ambiental e os Relatórios de Impacto à Vizinhança. Toda a sorte de burla e de descumprimento de tais diplomas seriam possíveis, desde que realizado em doses homeopáticas. Qualquer empreendimento de qualquer tamanho poderia ser efetuado, desde que em etapas de construção separadas, nunca superiores a 60.000 m2 (sessenta mil metros quadrados), no caso de empreendimentos destinados a comércio e a serviços. O mais incrível é que essa esdrúxula explicação tenha sido acolhida pela Municipalidade.

Mas não é só.

Mesmo que se levasse a sério o entendimento de que os empreendimentos pudessem ser analisados isoladamente, para efeitos do cálculo da área construída do empreendimento, levando-se em conta apenas a área computável, teríamos que somar a área do shopping center com a área dos escritórios, porque comporiam o mesmo conjunto arquitetônico (como sugerem os próprios réus, na resposta acima transcrita). A área computável do "shopping center" é de 31.934,18 m2 (trinta e um mil, novecentos e trinta e quatro metros quadrados e dezoito centímetros), de acordo com a certidão de diretrizes da Secretaria Municipal de Transportes (doc. 20 – já mencionado). De acordo com a mesma tabela, a área construída dos escritórios, se o empreendimento vingasse, seria de 28.064,82 m2 (vinte e oito mil, sessenta e quatro metros quadrados e oitenta e dois centímetros). Dando-se acolhida ao exótico entendimento da Previ, através do escritório técnico que contratou, somaríamos os dois (como, aliás, sugerido pela ré), e teríamos a área de 59.999,00 m2 (cinquenta e nove mil, novecentos e noventa e nove metros quadrados), ou seja, apenas 1 (um) metro quadrado a menos do que o mínimo legal previsto para a realização de Relatório de Impacto de Vizinhança!

Ora, mesmo que o absurdo de pretender analisar as construções do empreendimento separadamente fossem minimamente razoáveis, o que se admite apenas por amor aos debates, não se pode dizer, em sã consciência, que um empreendimento de 60.000 m2 (sessenta mil metros quadrados), causa degradação ambiental significativa e um empreendimento de 59.999 m2 (cinquenta e nove mil, novecentos e noventa e nove metros quadrados) não causa! Assim, se ocorre degradação significativa do meio ambiente, no mínimo o Estudo Prévio de Impacto Ambiental deve ser providenciado, uma vez que a legislação não é taxativa em descrever as hipóteses de necessidade de tal estudo, como visto acima.

Diante disso, é evidente que a Prefeitura deveria exigir o Relatório de Impacto de Vizinhança e/ou o Estudo de Impacto Ambiental, donde configura-se mais uma ilegalidade.


O DECRETO MUNICIPAL Nº 36.255/96 – CASUÍSMO E NOVO DESVIO DE FINALIDADE

A Prefeitura do Município de São Paulo, ao aprovar a obra, além de ter cometido a ilegalidade de não exigir o Estudo Prévio de Impacto Ambiental e/ou o Relatório de Impacto de Vizinhança, comete outra fragorosa ilegalidade ao aprovar a obra em franca, nítida e inquestionável afronta à legislação municipal de zoneamento, afronta essa que tenta-se disfarçar através de decreto nitidamente casuístico.

Aliás, a legislação de zoneamento incidente sobre o imóvel é toda ela, também, voltada para a preservação do patrimônio histórico e cultural do local. Com efeito, de acordo com o mapa em anexo, o complexo hospitalar Matarazzo recebeu a classificação legal de Z8-200 (doc. 32). As Z8-200 foram instituídas pela lei municipal nº 8.328/75 (doc. 33), com o objetivo de "proteger os imóveis e logradouros considerados de importância para a identificação da memória cultural da cidade".

O art. 2º da Lei municipal em apreço, com a redação que lhe foi conferida pelo art. 18 da Lei nº 9.725/84 (doc. 34) é do seguinte teor:

"art. 2º - Na zona de uso especial Z8-200, os remembramentos de lotes, desmembramentos de glebas ou desdobros de lotes, as demolições, reformas, ampliações, reconstruções ou novas edificações, bem como o corte de vegetação de porte arbóreo, ficam sujeitos à prévia autorização da Secretaria Municipal do Planejamento, tendo em vista a preservação das características urbanas e ambientais existentes.

§ 1º - Os pedidos referentes ao disposto nesse artigo serão apreciados e decididos no prazo de 90 (noventa) dias, pela Secretaria Municipal de Planejamento, a qual ouvirá a Secretaria Municipal de Cultura e, quando necessário, para os fins de direito, o Conselho do Patrimônio Histórico, Arqueológico, Artístico e Turístico do Estado.

§ 2º - As normas para a apreciação dos casos que se enquadrem neste artigo serão baixadas por ato do executivo"

Esses, portanto, os contornos básicos do zoneamento para as áreas definidas como Z8-200, zona de uso na qual enquadram-se os imóveis que possuem relevância para a preservação da memória histórica da cidade de São Paulo. Esse dispositivo legal deixa claro que, para os imóveis com tal classificação, no caso de qualquer obra deve ser consultado o CONDEPHAAT, e portanto, caso esse órgão não tenha aprovado o empreendimento, como afirmou ao Ministério Público, ao contrário do que comunicou à Prefeitura, quando disse tê-lo aprovado, estaremos diante de mais uma escandalosa ilegalidade.

Para regulamentar essa lei, nos termos do que determina o § 2º do dispositivo legal supra transcrito, foi editado pelo Poder Executivo o Decreto Municipal nº 19.835/84 (doc. 35) que, para os imóveis localizados na zonas de uso Z8-200 criou, em seu art. 1º, três níveis de preservação (semelhantes ao que contém a Resolução de Tombamento). Transcreve-se:

"Art. 1º - A preservação dos imóveis enquadrados na zona de uso Z8-200, instituída pela Lei 8.328, de 2 de dezembro de 1975, deverá atender aos níveis a seguir definidos:

I – Nível de preservação 1 (P1): para edifícios cuja arquitetura deva ser preservada, tanto externa quanto internamente, sendo admitidos reparos, sem modificação da forma, vãos, estrutura e material utilizado, relativos a:

.......................................

II – Nível de preservação 2 (P2): para edifícios cuja arquitetura externa deva ser preservada, admitidos os reparos externos relacionados no item I, podendo ser objeto de reformas internas compatíveis com a preservação externa;

III – Nível de preservação 3 (P3): para imóveis que são objeto de restrições especiais quanto ao gabarito de altura e recuos, quando necessárias á preservação da volumetria dos conjuntos arquitetônicos classificados como P1 e P2"

Pois bem. Em 16 de agosto de 1991, portanto após o tombamento do CONDEPHAAT no caso em tela, foi editado o Decreto Municipal 30.027/91 (doc. 36), específico para a área em questão que, em seu anexo único, classificou os diversos imóveis do complexo hospitalar de acordo com os níveis de preservação P1, P2 e P3. Especialmente para os imóveis com nível de preservação P3, que é a classificação que recebem os imóveis que se pretende demolir para a realização do empreendimento, foi estabelecido o seguinte:

"3. Edifícios classificados como P3:

a. Alameda Rio Claro, nº 190 (S9,Q15,L23), Rua São Carlos do Pinhal, s/nº, Rua Itapeva, s/nº, todas as edificações excluídas as classificadas como P1 e P2 nos itens 1 e 2;

I – Nos imóveis classificados como P3 e constantes do item 3ª, os usos permitidos são os da zona circundante, o coeficiente de aproveitamento máximo atingido será o determinado pela fórmula constante do artigo 7º da Lei nº 8.848/79, a taxa de ocupação máxima 25% e os recuos, de todas as divisas, 10,00m (dez) metros; a arborização existente deverá ser mantida e preservada."

Ora, dessa forma, se tal Decreto estivesse em vigor, obviamente o empreendimento pretendido não poderia ser efetivado, uma vez que é nítida a sua afronta aos índices urbanísticos ali estabelecidos. Todavia, por mais estupor que tal informação possa provocar, em 31 de julho de 1996, portanto após ter sido aprovado o "plano de massas" elaborado em conjunto pelos técnicos do CONDEPHAAT e pelo escritório técnico privado contratado pela ré, vale dizer, após já terem sido aclaradas as intenções e iniciadas as movimentações dos réus de aprovar empreendimento no local contrário ao tombamento, foi editado o Decreto Municipal 36.255/96 (doc. 37), alterando o texto do Decreto Municipal 30.027/91, sendo que o novo anexo único de tal Decreto, no que tange aos imóveis que devem obedecer o nível de preservação P3, passou a ter a seguinte estapafúrdia redação, lembrando que tal Decreto é específico para o conjunto ee imóveis situados à Alameda Rio Claro, nº 190.:

"3. Edifícios classificados como P3:

a) Alameda Rio Claro, nº 190 (S9,Q15,L31 e 32, Rua São Carlos do Pinhal, s/nº, Rua Itapeva, s/nº, todas as edificações excluídas as classificadas como P1 e P2, nos itens 1 e 2;

4. Nos lotes contidos na zona objeto do presente, inclusive onde estão localizados os edifícios classificados como P3, poderão ser aplicados todos os índices e as características de uso e ocupação do solo estabelecidos para a zona de uso contígua mais permissiva"

          Portanto, o que temos é que, após os réus terem manifestado de forma clara a intenção de realizar e de aprovar o empreendimento em questão, o Decreto Municipal 36.255/96 alterou o Decreto Municipal 30.027/91 para retirar do mesmo qualquer exigência de redução do potencial construtivo, retirar o limite de taxa de ocupação em 25%, retirar a exigência de recuo de 10m em todas as divisas e deixar de preservar legalmente a vegetação do local, passando a permitir sua derrubada!!!!!

Assim, com base no Decreto nº 30.027/91, o empreendimento pretendido era ilegal mas, como base no ridículo e aberrante Decreto Municipal 36.255/96, o incômodo, nocivo, arbitrário, ilegal, egoístico e absurdo empreendimento teria, em tese, se tornado legal!!!!!

E os motivos para a expedição para tal Decreto? E as razões que o justificam em face do interesse público? Novamente, não há qualquer justificativa para a expedição do mesmo. Aliás, esse Decreto Municipal possui dois únicos "considerando", sendo que o primeiro apenas menciona o Decreto anterior, e o segundo diz:

"Considerando que as edificações hospitalares possuem características próprias, que reclamam alterações físicas para se adequarem as necessidades funcionais, decreta"

Ora, seja lá o que isso signifique, é evidente que a redação truncada, que chega às raias do incompreensível, de tal "considerando", bem como a falta de lógica do mesmo, maculam de nulidade por falta de motivo e de motivação o Decreto Municipal em questão, uma vez que esse esquisito texto não pode ser considerado apto a cumprir as exigências constitucionais de motivo e de motivação dos atos administrativos, e o Decreto Municipal induvidosamente é um ato administrativo como outro qualquer.

Novamente, portanto, estamos diante de outro exemplo clássico, outro caso acadêmico, de desvio de finalidade, ou desvio de poder, devendo ser aplicados os mesmos princípios jurídicos ressaltados pela doutrina e já colacionados na vertente vestibular no tópico acerca do desvio de finalidade do CONDEPHAAT, não havendo outra solução que não a anulação de tal Decreto Municipal.

Assim, a exemplo do "destombamento" do imóvel, o Decreto Municipal 36.255/96 deve ser anulado, revalidando-se, respectivamente, a Resolução de tombamento do CONDEPHAAT elaborada para a área e o Decreto Municipal 30.027/91, respectivamente. É óbvio que, se considerados vigentes tais diplomas legais (o que "data maxima venia, se impõe) a conclusão de ilegalidade do empreendimento pretendido frente a tais normas refluirá cristalina.


DA MEDIDA LIMINAR

Em face de tudo o que foi argüido, resta bastante óbvio que estão presentes os requisitos do "fumus boni juris" e do "periculum em mora" que autorizam a concessão da medida liminar pleiteada. De fato, o "fumus boni juris" está evidenciado pelo direito da coletividade à preservação de sua memória histórica, cultural, arquitetônica, ambiental e urbanística através do tombamento, direito esse largamente reconhecido pela doutrina. Além disso, há nítido desvio de poder contido no "destombamento" dos bens que se visa proteger com a presente demanda, há ausência de estudo prévio de impacto ambiental e/ou de relatório de impacto de vizinhança quando a degradação significativa é evidente e há manifesto desvio de finalidade presente na edição do Decreto Municipal nº 36.255 de 31 de julho de 1996, que modificou o regime jurídico urbanístico do zoneamento incidente no local apenas para favorecer o empreendimento combatido.

Ainda em favor do "fumus boni juris", diga-se que todas essas ilegalidades são facilmente verificáveis de plano e que há parecer substancioso e fartamente instruído do Dr. Paulo Bastos, ex-conselheiro e ex-presidente do CONDEPHAAT, que demonstra clara e nitidamente a gravidade e inconveniência ambiental, urbanística, histórica e cultural do empreendimento pretendido, ficando patente a contrariedade dos desmotivados atos que o autorizam em relação ao interesse público e ao bom senso.

O "periculum em mora", por sua vez, também é evidente. Caso a demolição dos bens tombados tenha início, tornar-se-á difícil e onerosa a reposição do "status quo ante", podendo mesmo ocorrer que não haja condições de recuperação do patrimônio tombado, e há informações seguras de que a Previ pretende iniciar a demolição em qualquer momento.

Dessa forma, são os termos da presente para respeitosamente requerer a V. Exa. se digne conceder medida liminar, com fulcro no art. 12 da Lei 7.347/85, a fim de que seja determinada a obrigação de não fazer consistente na não demolição de nenhum dos prédios localizados à alameda Rio Claro, nº 190, bem como a paralisação imediata de demolição que eventualmente venha a ter início, com a expedição urgente e imediata de Carta Precatória para a cidade do Rio de Janeiro a fim de que a citação e a intimação sejam realizadas, fornecendo as autoras os meios necessários para cumprimento de tal Carta Precatória.


DO PEDIDO

Diante do exposto, e de tudo o mais o que dos presentes autos consta, são os termos da presente para respeitosamente requerer a V. Exa.:

- fique declarada a importância ambiental, urbanística, histórica, arquitetônica e cultural do complexo Hospitalar situado na alameda Rio Claro, 190, Bela Vista, nesta Capital, bem como fique declarada como plena e integralmente em vigor a Resolução de Tombamento do CONDEPHAAT nº 29, de 30 de julho de 1986;

- seja anulado todo o processo de revisão do tombamento do bem em questão, anulando-se inclusive o "plano de massas" aprovado pelo CONDEPHAAT e anulando-se também eventuais documentos de aprovação do empreendimento pretendido emitidos pelo CONDEPHAAT;

- seja anulado o ato administrativo consubstanciado no Decreto Municipal nº 36.255 de 31 de julho de 1996;

- seja anulado o alvará de aprovação nº 670.099.896-4, bem como seja determinada a obrigação de não fazer aos Poderes públicos réus, consistente na não emissão de nenhum outro alvará, licença ou autorização para o empreendimento pretendido;

- seja a "Previ" condenada na obrigação de não de fazer, consistente na proibição de promover qualquer demolição ou construção no imóvel de sua propriedade sito à alameda Rio Claro, nº 190, bem como na obrigação de fazer, consistente na reposição integral do "status quo ante" na hipótese de ter início qualquer demolição ou construção no local;

- no caso da demolição e/ou da construção ter início, sejam condenados solidariamente os requeridos no pagamento de indenização por danos ambientais, cujo montante, que deverá ser arbitrado pelo prudente e elevando critério de V. Exa., nos termos do art. 286,II do Código de Processo Civil, reverterá para o fundo de defesa do meio ambiente a que faz referência o art. 13 da Lei 7.347/85, sem prejuízo da punição civil, criminal e administrativa dos agentes públicos e privados responsáveis;

  1. com fulcro no art. 12 da Lei 7.347/85, a concessão urgente e imediata de medida liminar, "inaudita altera partes", nos termos supra requeridos, com a imposição de multa diária em caso de descumprimento da mesma, no montante de R$ 10.000,00 (dez mil reais);
  2. a citação dos requeridos para que, em querendo, acompanhem os termos da presente demanda;
  3. a intimação da Promotoria do Meio Ambiente do Ministério Público do Estado de São Paulo para que atue no presente feito na condição de "custus legis";
  4. ao final, seja a presente julgada totalmente procedente, a fim de que:
  5. sejam condenados os requeridos no pagamento de custas processuais, honorários advocatícios e demais cominações legais;
  6. seja determinada a extração de cópias da presente demanda a serem enviadas ao Ministério Público para a apuração de eventual crime ambiental, conforme os tipos penais previstos nos arts. 62 e 63 da Lei Federal nº 9.605/98 (Lei dos Crimes Ambientais).

Protestando-se provar o alegado por todos os meios de prova em direito admitidos, dá-se à causa, para efeitos meramente fiscais, o valor de R$ 10.000,00 (dez mil reais), asseverando que as autoras estão isentas do pagamento de custas processuais, nos termos do art. 18 da Lei 7.347/85.-

Termos em que,

P. Deferimento.

São Paulo, 6 de novembro de 1999.

pp. Marcus Vinicius Gramegna
- OAB/SP 130.376 -


NOTAS

  1. MEIRELLES, Hely Lopes – "Direito Administrativo Brasileiro", 22ª dd., Malheiros, p. 496
  2. GOMES, Orlando – "Direitos Reais", 8ª ed., Rio de janeiro, Forense, 1983, p. 116
  3. TELLES, Antonio A. Queiroz – "Tombamento e seu Regime Jurídico", RT, p. 75
  4. MIRANDA, Pontes – "Comentários à constituição de 1967, t. 4, p.369
  5. CRETELLA JÚNIOR, Josè – "Regime Jurídico do Tombamento", RDA, 112:66-7
  6. FAGUNDES, Seabra – "O controle dos atos admininstrativos pelo Poder Judiciário", 4ª ed., Rio de janeiro, Forense, 1967, p. 32
  7. MUKAI, Toshio – "Direito e Legislação Urbanística no Brasil, Saraiva, p. 158
  8. LEME MACHADO, Paulo Affonso . "Ação Civil Pública e Tombamento", RT, 1986, pp. 15/16
  9. STF - AC 7.377-DF, RDA 2:124
  10. TJPR, RDP, 68: 246
  11. RJTJESP-Lex 136/44
  12. in Revista de Direito Ambiental, vol. 1, RT, p. 219 (2ª Vara de Sertãozinho, proc. 308/92)
  13. BANDEIRA DE MELLO, Celso Antonio "Discricionariedade e Controle Jurisdicional", Malheiros, p. 85
  14. BANDEIRA DE MELLO, Celso Antonio, op. cit. p. 86
  15. BANDEIRA DE MELLO, Celso Antonio, op. cit. p. 99
  16. MEIRELLES, Hely Lopes, "Direito Administrativo Brasileiro", 22ª ed, Malheiros, p. 96
  17. BANDEIRA DE MELLO, Celso Antonio, "Curso de Direito Administrativo, 11ª ed. Malheiros, p. 648
  18. LEME MACHADO, Paulo Affonso, "Estudos de Direito Ambiental", 1ª ed.,Malheiros, p. 146/147
  19. LEME MACHADO, Paulo Affonso, op. cit., p. 147
  20. SILVA, José Afonso, "Direito Constitucional Ambiental", 2ª ed., Malheiros, p. 199


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Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

GRAMEGNA, Marcus Vinicius. Ação civil pública contra construção de shopping em imóvel tombado. (Hospital Matarazzo). Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 4, n. 36, 1 nov. 1999. Disponível em: https://jus.com.br/peticoes/16016. Acesso em: 24 abr. 2024.