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Ação coletiva de consumo contra aumentos abusivos em consórcio

Ação coletiva de consumo contra aumentos abusivos em consórcio

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Ação coletiva, impetrada pelo Ministério Público do Rio Grande do Sul, contra aumentos abusivos em prestações de consórcios administrados pela Sharp. Remetida por Alexandre Lipp João ([email protected]), promotor de Justiça em Porto Alegre (RS), um dos signatários da petição.

          EXMO. SR. DR. JUIZ DE DIREITO DA VARA CÍVEL DA COMARCA DE PORTO ALEGRE:

          DISTRIBUIÇÃO PREFERENCIAL A 15ª OU 16ª VARA CÍVEL - PROVIMENTO N.º 39/93-CGJ

          O MINISTÉRIO PÚBLICO, por intermédio da Promotoria de Justiça de Defesa do Consumidor, localizada na Rua Andrade Neves, 09, centro, nesta Capital, com base no incluso Inquérito Civil Público n.º 102/91, vem ajuizar AÇÃO COLETIVA DE CONSUMO contra SHARP – ADMINISTRAÇÃO DE CONSÓRCIOS S/C LTDA., CGC/MF n.º 44.388.429/0001-73, situada nesta Capital, na Av. Independência, 343, centro, e SHARP DO BRASIL S.A. – INDÚSTRIA E COMÉRCIO DE EQUIPAMENTOS ELETRÔNICOS, CGC/MF 04.171.567/0001-81, também localizada nesta Capital, na Av. Independência, 343, em razão dos fatos e fundamentos jurídicos que passa a expor:


1. DOS FATOS:

          A Promotoria de Justiça de Defesa do Consumidor do Ministério Público, a partir da reclamação feita pelo consumidor Doroteu Motta, instaurou inquérito civil público para investigar eventuais práticas comerciais abusivas cometidas pela SHARP – Administração de Consórcios.

          Segundo consta na reclamação, o consumidor, que fazia parte de dois grupos de consórcio, um televisor e um videocassete, insurgiu-se contra o considerável aumento das respectivas prestações, inclusive após o congelamento dos preços, ocorrido após fevereiro de 1991.

          Além disso, declarou o reclamante que: "... o valor do aparelho de acordo com o consórcio SHARP custa em média Cr$ 50.000,00 a Cr$ 60.000,00 mais cara que nas lojas. Como pode a fábrica vender mais caro que as lojas? Ou melhor, como podem as lojas venderem mais barato que a própria fábrica?" (fl. 02 do ICP - grifo nosso). A reclamação foi acompanhada por diversos documentos relativos às prestações pagas (fls. 3/4 do ICP).

          A seguir, foram recebidas outras reclamações análogas de vários consumidores, conforme quadro demonstrativo abaixo:

 

CONSUMIDOR – RECLAMANTE
Reclamação feita ao Ministério Público

Fls. do ICP

1

Maria Andrea Ferreira

5/13

............

............ ............ ............ ............

............

33

Marco Aurélio de Oliveira Francischini

227/233

 

CONSUMIDOR – RECLAMANTE
Reclamação feita ao Sistecon

Fls. do ICP

1

Armandir Maciel Silveira

275/279

............

............ ............ ............ ............

............

121

Renato José Riter Júnior

978/982

          Apenas para ressaltar o conteúdo das reclamações, cita-se o caso do consumidor Gilmar da Silva do Prado (fl. 14), que insurgiu-se contra o aumento das prestações do seu consórcio de videocassete, ou seja, sua prestação de fevereiro de 1991 era de Cr$ 4.383,24 e passou, em março/91, para Cr$ 6.943,03 e, em abril/91, para Cr$ 7.460,43.

          Segundo levantamento feito por esta Promotoria de Justiça (fls. 984/985 do ICP), os produtos e respectivos modelos, objeto das reclamações, são os seguintes:

Produto

Modelo

Videocassete

762; 794;962;994;799;857;1.094;1.062

Televisão

1.690;2.199;1.491;1.431;2.090;2.199; 2.095;1.631;2.035;1.691;2.035;1.691; 1.490;1.630.

Aparelho de som

SG 30B

Câmara de Vídeo

VL 170 e VL 170B

Forno Microondas

MW 615A e MW 620A

          Foi ouvido, nesta Promotoria de Justiça, o Sr. Eron Norberto Müller, então chefe de escritório da primeira requerida, que prestou esclarecimentos (fls. 170/172). Declarou que a Sharp Administração de Consórcios S/C Ltda. é empresa distinta da indústria Sharp, segunda requerida. Além disso, sua empresa, para estipular o preço do produto e o pagamento da prestação mensal, consulta de 10 a 15 lojas de Porto Alegre, calculando a média de cada produto que vigorará na Assembléia dos consorciados. Também relatou sobre autuação feita pela SUNAB.

          Posteriormente, a primeira requerida apresentou manifestação escrita, sustentando que sua função é restrita à captação popular, à administração de grupos e recursos de consórcio e, finalmente, à entrega do bem por conta e ordem dos consorciados. Além disso, mencionou que a empresa não vende bens móveis duráveis aos seus consorciados, daí porque apenas efetua pesquisa de mercado e, após, encontra revendedor em condição de efetuar a venda dos bens aos consorciados, pois o faturamento desses bens é feito diretamente pelo revendedor ao consorciado contemplado. Em suma, afirmou a Sharp que não infringiu a legislação que estabeleceu no país o congelamento de preços – Medida Provisória 295, de 31.01.91, pois os vendedores é que passaram a praticar preços maiores do que os anteriormente praticados (fls. 139/142).

          A SUNAB informou que a Sharp – Administração de Consórcios sofreu autuação por infração à alínea "A" do art. 11 da Lei Delegada nº 04/62, ou seja, por remarcação de preços (fls. 991/995).

          Atendendo solicitação desta Promotoria de Justiça (fl. 988), a então investigada apresentou inúmeros documentos relacionados aos grupos de consórcios, evolução dos preços a cada assembléia dos grupos mencionados, cópias de notas fiscais de bens faturados dos meses de março a julho de 1991 (fls. 997/1100).

          Após, por indicação do contador do Ministério Público (fls. 1102/1103), foram solicitados novos documentos (fls.1105/1192). O contador, então, apresentou seu laudo (fls. 1195/ 1199).

          Designada nova data para oitiva do representante legal da Sharp – Administradora de Consórcios, compareceu o advogado Edgard Aluizio Esquivel Millas, informando que ajuizara ação declaratória contra a União e a SUNAB, em razão das autuações sofridas, mas que o processo ainda não havia sido julgado em 1º grau. Também declarou "...que grande parte dos problemas verificados com os consumidores, em especial no ano de 1991, decorreu do grande volume de vendas e aceitação no mercado da modalidade (consórcio) sem a correspondente estrutura administrativa e técnica, além da rigidez da legislação que regulamentava a matéria, pois a chamada ‘carta de crédito’ somente foi instituída tempos depois." (fl. 1213).

          Posteriormente, a investigada remeteu cópia de sentença prolatada pela 3ª Vara Federal e ementa de acórdão da 3ª Turma do TRF da 5ª Região (Pernambuco), cuja decisão corroborou entendimento da Sharp, eximindo-a da responsabilidade pelo aumento das prestações durante o período de congelamento de preço (fls. 1216/1226).

          Contudo, o entendimento recente da 3ª Vara Federal do Distrito Federal foi contrário à pretensão da Sharp – Administração de Consórcios, pois entendeu que a empresa, ora demandada, deveria ter se submetido às normas de congelamento de preço (fls. 1245/1253).

          Elaborou-se novo laudo contábil que ratificou as conclusões do laudo anterior e procedeu à atualização da diferença dos preços praticados pela Sharp Administração de Consórcios (fls. 1258/1262).

          Juntaram-se cópias da petição inicial da Sharp, contestação da SUNAB e da União Federal e laudo pericial do perito judicial, extraída da ação declaratória nº 91.28406-8 da 3ª Vara Federal do Distrito Federal (fls. 1266/1361).

          Assim, diante da existência de dano e prejuízo causado a inúmeros consumidores (consorciados) e a necessidade de buscar em juízo a devida reparação e porque a Sharp – Administradora de Consórcio entende, pela sua postura adotada, ter agido corretamente, não resta outra alternativa ao Ministério Público a não ser o ajuizamento da presente ação coletiva de consumo. Também ressalta-se que a Sharp – Administração de Consórcios entende que a Sharp do Brasil S.A. – Indústria e Comércio de Equipamentos Eletrônicos nenhuma ligação ou responsabilidade tem perante os consumidores, o que também motiva este órgão a ajuizar a vertente ação.


2. O DIREITO:

          2.1. O congelamento de preços decorrente de plano econômico. A Medida Provisória n.º 295/91 e a Lei n.º 8.178/91:

          Importante para o julgamento do presente feito o exame sobre a realidade econômica então introduzida no país, no início de 1991, por intermédio da Medida Provisória n.º 295, de 31.1.91.

          Pelo art. 1º ficou determinado que os "...preços de bens e serviços efetivamente praticados em 30 de janeiro de 1991 somente poderão ser majorados mediante prévia e expressa autorização do Ministério da Economia, Fazenda e Planejamento."

          Além disso, o art. 2º, inc. I, da mencionada Medida Provisória estabeleceu que a vedação à remarcação de preços de bens e serviços, estabelecida no art. 1º, estendeu-se à venda de bens para entrega futura.

          Também é relevante aduzir que o art. 16 estabeleceu taxativamente que a "...inobservância dos preceitos contidos nesta Medida Provisória sujeitará o infrator à aplicação das sanções previstas na legislação relativa à defesa da economia popular e à proteção contra abuso do poder econômico."

          Posteriormente, em 1º de março de 1991, o conteúdo da Medida Provisória nº 295 foi transformado na Lei nº 8.178, que ratificou os comandos legais já declinados, dentre outros.

          Portanto, a economia nacional, naquela ocasião, sofreria profundas modificações, todas direcionadas e objetivando um efetivo controle de preços de bens e serviços, os quais não poderiam sofrer livremente reajustes.

          Muito embora o plano econômico tenha sido, posteriormente, modificado, o que importa ao julgamento desta ação coletiva de consumo é a análise e a compreensão da conduta das requeridas durante o período em que vigorava o congelamento de preços e que, por conseguinte, gerou a expectativa de ser respeitado por todos.

          Saliente-se, entretanto, que o "Parquet" propõe a presente ação visando à proteção de todos que eventualmente tenham sido lesados pela conduta ilegal dos demandados, sendo meramente exemplificativo o rol apontado supra.

          Contudo, o que se percebe é que as requeridas não cumpriram a determinação legal de respeitar a realidade econômica prevista na citada lei, causando, assim, enorme desarmonia no mercado de consumo e equivalente prejuízo a inúmeros consumidores (consorciados), que tinham a expectativa de adquirirem bens móveis duráveis (televisores, aparelhos de som, forno de microondas) por preços estáveis, até porque os salários desses consumidores também estavam sujeitos ao congelamento imposto.

          2.2. A atividade e o modus operandi das requeridas. O desrespeito à Lei n.º 8.178/91:

          A requerida Sharp – Administração de Consórcios, procurando eximir-se da responsabilidade pelo aumento das prestações e dos bens entregues aos seus consorciados (consumidores), em face da introdução de nova política econômica de preços no país, alegou, de forma singela, que sua atividade resumia-se à administração dos grupos de consórcios e à entrega de bens decorrentes de contemplação pelos consorciados.

          Além disso, aduziu que apenas efetuava pesquisa de preços no mercado para a fixação do valor do bem e, por conseguinte, do valor da prestação mensal devida pelos consorciados.

          A Medida Provisória n.º 295, de 31 de janeiro de 1991, posteriormente transformada na Lei n.º 8.178/91, de 1º de março de 1991, prevê em seus artigos 1º e 2º:

          "Art. 1º. Os preços de bens e serviços efetivamente praticados em 30 de janeiro de 1991, somente poderão ser majorados mediante prévia e expressa autorização do Ministério da Economia, Fazenda e Planejamento.

          (...)

          Art. 2º. O disposto no art. 1º desta Lei aplica-se, também, aos contratos cujo objeto seja:

          I – a venda de bens para entrega futura; (...)".

          Outro aspecto relevante, que deve ser cuidadosamente enfrentado neste processo, diz respeito à sua alegação no sentido de que as empresa Sharp – Administração de Consórcios S/C Ltda. e a Sharp do Brasil S.A. – Indústria de Equipamentos Eletrônicos não se confundem e nada têm em comum.

          Ora, tal assertiva visa, justamente, criar uma aparência de que a fixação do preço dos produtos e das correspondentes prestações aos consorciados não tem qualquer relação com o preço desses mesmos produtos praticados pela Sharp do Brasil S.A. - Indústria e Comércio de Equipamentos Eletrônicos. Por tal razão, a Sharp – Administração de Consórcios é tão enfática ao tentar convencer a todos que os produtos tinham seus preços fixados a partir de resultado de pesquisa de mercado, junto às lojas que vendiam tais produtos, onde esses produtos eram adquiridos junto ao comércio varejista.

          A realidade, contudo, é completamente diversa e exatamente por isso é que merecem as requeridas ser condenadas, de forma solidária, nesta ação coletiva de consumo, a ressarcir todos os consumidores (consorciados) que flagrantemente sofreram prejuízos.

          A realidade da conduta das requeridas está plenamente demonstrada pela documentação constante no inquérito civil que instrui a presente ação. O próprio conteúdo das reclamações já é, por si só, suficiente para demonstrar que a requerida não tem coerência entre o que alega e o que efetivamente praticou.

          Em várias reclamações, os consumidores alegaram que os produtos recebidos, em razão de contemplação no consórcio, tinham preço muito superior aos preços praticados no comércio em geral. Isto em relação a produtos idênticos. Então, se a Sharp – Administração de Consórcios alega que seus preços são resultantes de pesquisa de mercado, algo deve estar errado!?

          Salienta-se que tal diferença elevada, inclusive, já considera o fato de que os consorciados pagam despesas de administração e fundo de reserva.

          A título de ilustração, para que a situação não passe despercebida, cita-se parte das reclamações dos consumidores abaixo:

          Doroteu Motta:

          "(...) o valor do aparelho de acordo com o consórcio SHARP custa em média Cr$ 50.000,00 a Cr$ 60.000,00 mais cara que nas lojas. Como pode a fábrica vender mais caro que as lojas? Ou melhor, como pode as lojas venderem mais barato que a própria fábrica?" fl. 02 – grifo nosso.

          Ari Francisco Rodrigues:

          "(...) O valor do consórcio tem aumentado desde janeiro conforme extratos em anexo. Inclusive o valor do bem no consórcio SHARP é mais alto que no comércio em geral.(...)" – fl. 73 – grifo nosso.

          Adiles da Rocha Nunes:

          "O que mais espanta o reclamante é que viu um anúncio do último modelo de vídeo cassete lançado pela SHARP no Jornal Zero Hora de 14.04.91, pág. 11, na loja MUSISOM por Cr$ 147.900,00, preço inferior ao contido no extrato demonstrativo de pagamento de consórcio. Pergunta o reclamante como pode a própria SHARP vender mais caro que uma loja? (...)" fl. 97 – grifo nosso.

          Marília Caon Gentil:

          "(...) que seu marido esteve na Sharp para pedir explicações e que disseram que o aumento se dá devido ao varejo que está aumentando, este é em S. Paulo – a loja que fornece para a Sharp está em S. Paulo, segundo a depoente o mesmo vídeo em POA está no valor de Cz$ 149.000,00 (Casas do Gravador) e segundo a Sharp este mesmo vídeo está sendo cobrado por eles Cr$ 153.450,00, conforme comprovantes anexos ..." fl. 103 – grifo nosso.

          Desta forma, uma situação muito curiosa foi constatada, ou seja, o fato de se encontrarem produtos Sharp à venda no comércio por preço inferior àquele praticado pela própria requerida.

          A justificativa da Sharp – Administração de Consórcios, que também pode ser considerada como justificativa da Sharp do Brasil S.A. – Indústria e Comércio de Equipamentos Eletrônicos, como já explanado anteriormente, não pode ser aceita, já que os produtos da marca Sharp eram obtidos e fornecidos aos consorciados contemplados pela própria Sharp do Brasil S.A., mediante intervenção de outra empresa do grupo, a ROC Representações e Operações Comerciais Ltda.

          Assim, embora pessoas jurídicas distintas, frente à realidade imposta no mercado de consumo, as empresas Sharp – Administração de Consórcios e a Sharp do Brasil S.A. – Indústria e Comércio de Equipamentos Eletrônicos, bem como a ROC Representações e Operações Comerciais Ltda. devem ser consideradas como integrantes de um mesmo grupo econômico. Basta, neste ponto, o exame dos contratos sociais de ambas as empresas para que se perceba que alguns dos sócios se confundem (fls. 174/188) e a conclusão do Sr. Perito Judicial na fl. 1353 do ICP.

          Aliás, é inaceitável, descabido e simplista o argumento de que a Sharp – Administração de Consórcios calculava o valor do bem e das respectivas prestações através de pesquisa de mercado, pois, na verdade, o produto era obtido diretamente da própria Sharp do Brasil S.A. – Indústria e Comércio de Equipamentos Eletrônicos, mediante a intermediação da ROC Representações e Operações Comerciais Ltda.

          Urge, então, que o Poder Judiciário aprecie a questão e dê uma resposta satisfatória a tal indevida e ilícita estratégia de mercado, reprovando tal prática abusiva, que foi levada a efeito com o flagrante intuito de descumprir o plano econômico então vigente (majoração de preços) e, em decorrência, obter vantagem indevida, em prejuízo dos milhares de consumidores–consorciados lesados.

          2.2.1. A efetiva origem e a entrega dos produtos Sharp aos consumidores – consorciados contemplados:

          Muito embora a Sharp – Administração de Consórcios afirme que inexiste qualquer relação com a Sharp do Brasil S.A. - Indústria e Comércio de Equipamentos Eletrônicos, sob o claro enfoque de defesa e proteção do consumidor, a questão é completamente diversa, conforme demonstram os documentos trazidos ao inquérito civil.

          Desde logo, é crucial deixar claro que o CDC estabelece alguns princípios e direitos básicos e essenciais que devem ser observados com muita atenção, até mesmo porque decorrem do texto constitucional, especialmente do art. 5º, inc. XXXII: "o Estado promoverá, na forma da lei, a defesa do consumidor;".

          Como decorrência, estabelece o CDC como um dos princípios basilares o reconhecimento da vulnerabilidade do consumidor no mercado de consumo (art. 4º, inc. I), a coibição e repressão eficientes de todos os abusos praticados (art. 4º, inc. VI) e, como direito básico, a efetiva prevenção e reparação de danos patrimoniais e morais, individuais, coletivos e difusos (art. 6º, inc. VI).

          Note-se que o legislador, a fim de instrumentalizar tais princípios e direitos, colocou à disposição dos consumidores a utilização do instituto da inversão do ônus da prova (art. 6º, inc. VIII) e a desconsideração da personalidade jurídica (art. 28), como formas de ser alcançado êxito efetivo na esfera de sua proteção, seja de forma preventiva ou mesmo reparadora.

          Conforme já foi dito no item anterior, as empresas requeridas, bem como a ROC Representações e Operações Comerciais Ltda., possuem identidade de alguns dos seus principais sócios (fls. 174 e ss. e 1353 do ICP). Ora, perante a sistemática de defesa do consumidor e diante da realidade do modus operandi da Sharp, tal situação, por si só, já é suficiente para afastar o singelo argumento de que a Sharp – Administração de Consórcios atuou apenas e tão-somente como administradora de grupos de consórcios.

          A realidade demonstra que, além de administrar os grupos de consórcio, as requeridas também estavam organizadas para fornecer aos consorciados os produtos fabricados pela própria Sharp, com a intermediação preponderante da ROC Representações e Operações Comerciais Ltda., também integrante do mesmo grupo econômico, o que importa em considerar tal operação como decorrente de uma estratégia utilizada para multiplicar e ter como certos milhares de negócios jurídicos de compra e venda de bens móveis.

          Assim, angariando consumidores para novos grupos de consórcio, a Sharp, por intermédio das requeridas, mantinha certa a sua produção, distribuição e comercialização de seus produtos.

          Claro que o consórcio dos produtos em questão era, como ainda é, modalidade satisfatória, benéfica e facilitadora de acesso aos consumidores. O que não se pode admitir e concordar é com os abusos praticados em decorrência dessa organizada e complexa rede de atividades, que culminava com a aquisição de produtos Sharp por um número cada vez maior de consumidores e por preço indevido.

          Justamente porque houve flagrantes abusos com resultados negativos (prejuízos) é que, agora, o Ministério Público postula em juízo a devida reparação a esses consumidores.

          Retomando a questão, invoca-se a documentação acostada ao inquérito civil para demonstrar a existência de ligação entre a fabricante, montadora, intermediária e, até mesmo, transportadora(1) de produtos Sharp e a administradora de consórcios Sharp.

          Pede-se vênia ao ilustre Julgador para que proceda ao exame, em especial, dos documentos de fls. 381, 963, 1008/1014, 1023/1032, 1040/1048, 1053/1061, 1072/1080, 1089/1098 e 1140/1154, que representam notas fiscais (faturas) dos produtos entregues no domicílio dos consorciados, todas emitidas pela empresa ROC – REPRESENTAÇÕES E OPERAÇÕES COMERCIAIS LTDA. Igualmente em relação aos mesmos documentos, constantes nas fls. 1015, 1046, 1099, 1100, 1139, 1155/1159, emitidos por SHARP EQUIPAMENTOS ELETRÔNICOS. Esses documentos representam, por amostragem, a realidade das transações realizadas naquela ocasião.

          Sobre a empresa ROC – REPRESENTAÇÕES E OPERAÇÕES COMERCIAIS LTDA. basta dizer que foi responsável por 95% - noventa e cinco por cento de todas as vendas e entregas realizadas aos milhares e milhares de consumidores consorciados, e que seu sócio majoritário era o Sr. Mathias Machline, igualmente sócio majoritário das demais empresas Sharp, em especial a SHARP DO BRASIL S.A. – INDÚSTRIA DE EQUIPAMENTOS ELETRÔNICOS, conforme demonstrado no laudo pericial extraído dos autos da ação declaratória ajuizada pela Sharp contra a Sunab e União Federal (fls. 1352/1353 do ICP).

          2.2.2. A autuação da Sunab. A sentença recentemente prolatada pela 3ª Vara Federal do Distrito Federal, que julgou improcedente o pedido da Sharp na sua ação declaratória ajuizada contra a Sunab e a União Federal.

          A SUNAB, através da Delegacia no Estado do Rio Grande do Sul, procedeu à autuação da Sharp por infração ao art. 3º da Lei n.º 8.035/90 e art. 21 da Lei n.º 8.178/91, em face da remarcação de preços realizada durante o período de congelamento imposto por plano econômico então vigente no nosso país.

          Pelo que se verifica no inquérito civil, também em outros Estados houve autuação da Sharp pela Sunab. Em face dessas autuações, a requerida propôs ação declaratória visando ver reconhecida a inexistência de relação jurídica de venda e compra com seus consorciados e, com isto, eximir-se da própria multa decorrente da autuação da Sunab (fls. 1284/1286 do ICP).

          A sentença prolatada pelo Dr. Luiz Carlos Bettiol(2), Juiz da 3ª Vara Federal do Distrito Federal, é extremamente elucidativa acerca dos fatos ora em exame e, portanto, merece transcrição:

          "O mérito. O desate da lide não depende do reconhecimento de que a Autora, a SHARP Administradora de consórcios, tem personalidade jurídica diversa da SHARP DO BRASIL S. A. – Indústria de Equipamentos Eletrônicos, nem da aceitação de que esta mesma Autora, na condição de empresa que operacionaliza consórcio, está sujeita à fiscalização do Banco Central do Brasil.

          O que importa é que a SHARP Administradora de Consórcios sustenta que não está sujeita aos atos normativos que visem assegurar políticas de tabelamento de preços.

          A pretensão é descabida. É notório que as relações de consumo estão presentes nos mais diversos segmentos da atividade econômica. Vai das relações entre bancos e clientes a planos de seguro de saúde.

          Reconhecer a inexistência de relação jurídica nos moldes pretendidos pelo Consórcio SHARP, colocaria as relações de consumo em franca carência de normas protetivas, descurando a orientação constitucional que define a defesa do consumidor como sendo um dos princípios básicos da ordem econômica (CF, art. 170, V), não bastando a regulamentação e fiscalização do Banco Central, até porque o serviço prestado se consubstancia na entrega de mercadoria, cujo regramento destinado à proteção de quem o recebe não pode se exaurir numa legislação voltada a especificidades do mercado financeiro. A essa conclusão se chega sem adentrar na tortuosa, e desnecessária para os autos, questão sobre se os atos praticados pela Autora são ou não de mercancia.

          O colendo TRIBUNAL REGIONAL FEDERAL da 1ª REGIÃO decidiu que o inadimplemento de parte das prestações contratadas junto a consórcio tem seus efeitos regidos pelo art. 53 da Lei n. 8.078/90 (Código de Defesa do Consumidor), o que já se entremostrava muito claro no texto normativo:

          "CIVIL – COMPRA A PRAZO COM ALIENAÇÃO FIDUCIÁRIA – RESTITUIÇÃO DOS VALORES PAGOS – INAPLICABILIDADE DO DISPOSTO NO ART. 53, PARÁGRAFO 2°, DO CÓDIGO DO CONSUMIDOR – PREVALÊNCIA DO CONTIDO NO ART. 2° DO DECRETO-LEI 911/69.

          1. A restituição, mediante compensação, de que trata o parágrafo 2° do art. 53 da Lei 8.078/90 – Código de Defesa do Consumidor – aplica-se apenas à hipótese de aquisição de bens mediante consórcio, mas não aos casos de alienação fiduciária, que continua sujeita ao disposto no art. 2° do Decreto-Lei n. 911/69." (AC 96.14.5678-RO, 3ª Turma, Rel. p/ o acórdão o Juiz OSMAR TOGNOLO. DJ II, de 06.03.98, p. 203, grifos nossos)

          Do mesmo Tribunal:

          "SUNAB. CONGELAMENTO DE PREÇOS. CONSÓRCIO. CONTROLE DOS ATOS ADMINISTRATIVOS PELO JUDICIÁRIO. LIMITES.

          1. As empresas administradoras de consórcios também ficam sujeitas ao congelamento de preços baixado pela Lei n° 8178/91, não lhes sendo dado alterar os preços cobrados de seus consorciados com base em listagens fornecidas pelas indústrias.

          2. Cabe ao Judiciário o controle da legalidade dos atos da Administração Pública, mas não pode interferir o Poder Judiciário na autonomia administrativa dos órgãos públicos, impedindo-os de exercer as atribuições que lhe são impostas por lei.

          3. Apelo improvido." (AC n° 92.01.25433-4/MG. Rel. Juiz Nelson Gomes da Silva. DJ II de 29.04.93, grifei)

          Examinado o laudo pericial, lê-se às fls. 287:

          "QUESITO N° 14:

          Na hipótese da resposta ao quesito anterior ser afirmativa, houve alteração (ões) de preço (s) da empresa fornecedora em relação ao mesmo bem no período entre janeiro e maio de 1991?

          RESPOSTA N° 14:

          A alteração de preço havido correspondente dos aumentos de todo o mercado, inclusive de outra marca e outras procedências.

          No caso da Autora, os aumentos foram ditados não pelo fornecedor direto, mas pela indústria do produto".

          Eis o risco de se deixar a salvo da legislação referente às relações de consumo - e é em relação a elas que se encontra, por excelência, suporte adequado para a punição a descumprimento de cláusulas sobre preços - empresas que atuam nos moldes operacionais da Autora.

          Pouco vale para firmar tese do Consórcio SHARP a assertiva segundo a qual a empresa é apenas administradora de valores de terceiros, auferindo seu ganho em razão da cobrança de uma taxa de administração. O que conta, in casu, para os fins específicos da declaração que ora se pretende, é que não raro a Autora será confrontada com a necessidade de majorar preços (e tal já o fez, fls. 287) e aí inevitavelmente colidirá com a legislação que fixou o tabelamento ou congelamento de determinado produto, sendo-lhe irrecusável a punição, via exercício do poder polícia pela SUNAB ou qualquer outro órgão incumbido de diligenciar o cumprimento do preço.

          Não aproveita ao Consórcio alegar que haverá um instante em que o preço não se sustentará em pé, de tão defasado, pois se trata de dificuldade enfrentada pelos demais setores, o que só corrobora a tese da insuficiência de uma estrutura planificada de preços. Mas daí pretender a imunidade às regras punitivas...

          Bem ou mal, a jurisprudência cuidou de assentar a cogência das normas que implementaram os fracassados planos de estabilização.

          O conceito de consórcio, dado pela Portaria n. 190/89, não infirma as conclusões talhadas. A previsão de majoração de preços, com o conseqüente repasse para as contribuições (que, se somadas, descontando a taxa de administração, é o equivalente ao preço da mercadoria), só reforça a conclusão de que o sistema de consórcio contempla potencial carga de lesividade às normas de congelamento. Nem se argumente com a inviabilidade econômica, pois o mesmo se dá com quem, sob o mesmo regime, vende a preço inferior ao de custo.

          É interessante observar que o contrato de adesão firmado pelos consorciados é menos radical e mais razoável com o império da lei, ao admitir na cláusula oitava o credenciamento do valor do bem com base na tabela aprovada pelo órgão público competente. É bem verdade que neste caso daí pode resultar um favorecimento para o Consórcio que não pagará o preço com o ágio do mercado, mas sim o tabelado. Por que, então, a contraprestação perversa do reajuste nas prestações?

          Com efeito, não será possível decidir se há ou não relação jurídica contratual de venda e compra entre a Autora e seus consorciados. Estes sequer integraram a lide. Porém, pode-se dizer com segurança, e à vista das partes legalmente representadas nos autos, que existe relação jurídica que submete a Autora às normas de congelamento de preço. O desfecho haverá de ser o mesmo para os demais fragmentos do pedido: está a Autora sujeita ao congelamento nominal; está sujeita ao poder regulamentar do Estado e à fiscalização por seus órgãos, se, alterando prestações fixas, oscilar para mais o preço do bem oferecido pelo consórcio; este bem, no tocante a congelamento de preço, não merece tratamento diferenciado dos demais, de mesma natureza.

          (...)

          DISPOSITIVO

          Em face do exposto, a teor do art. 269, I, do CPC, julgo improcedente o pedido."

          Outro aspecto que merece extremo relevo é a conclusão do Sr. Perito Judicial, lançada nos autos dessa ação declaratória, apontando que os aumentos de preços verificados entre janeiro e maio de 1991 foram "ditados não pelo fornecedor direto, mas pela indústria do produto" (fl. 1354), o que vem confirmar as alegações contidas nesta petição inicial.

          Note-se que a requerida Sharp – Administração de Consórcios ainda auferiu vantagem indevida pela diferença a maior cobrada a título de taxa de administração, que incidiu sobre base de preço de produto majorada ilicitamente, o que deve ser levado em consideração para o julgamento da presente ação coletiva de consumo.

          Apenas para se ter uma idéia do montante de dinheiro e grande número de consumidores(3) envolvido nessa sistemática de negócio empreendido pelas requeridas, reporta-se o Ministério Público aos percentuais e valores apresentados pelo Sr. Perito Judicial, constante nas fls. 1341/1342 e 1356 do ICP.

          2.3. A responsabilidade objetiva e solidária das empresas Sharp – Administração de Consórcios S/C Ltda. e Sharp do Brasil S/A – Indústria e Comércio de Equipamentos Eletrônicos. A incidência das normas do CDC:

          Conforme já foi dito anteriormente, as empresas requeridas Sharp – Administração de Consórcios S/C Ltda. e a empresa Sharp do Brasil S/A – Indústria e Comércio de Equipamentos Eletrônicos possuem forte ligação de interesses, em face da identidade de sócios e da atuação conjunta demonstrada, o que permite concluir-se que ambas empresas integram um mesmo grupo econômico.

          Tais circunstâncias, por si só, evidenciam a responsabilidade civil das demandadas e o conseqüente dever de indenizar.

          Note-se que a argumentação da Sharp – Administração de Consórcios S/C Ltda. (4), no sentido de que há mera coincidência com a empresa Sharp do Brasil S/A – Indústria e Comércio de Equipamentos Eletrônicos pela utilização do mesmo nome fantasia SHARP, não é suficiente para afastar a real comunhão de interesses que existem entre ambas e, diante das normas do CDC, a responsabilidade solidária.

          Aliás, a própria Sharp – Administração de Consórcios S/C Ltda., na mesma petição inicial da sua ação declaratória, acaba indiretamente confirmando a existência dessa ligação com a empresa Sharp do Brasil S/A – Indústria e Comércio de Equipamentos Eletrônicos, a saber:

          "9. O fato da marca Sharp coincidir com o nome do consórcio, isto é, com a razão social da Autora, simplesmente decorre do fato de ter sido o consórcio organizado para a exclusiva aquisição dos produtos daquela marca.

          (...)

          11. De comum têm apenas o nome fantasia SHARP.

          (...) , admitida, apenas, uma ligação acionária indireta pelos interesses do consórcio em manter prioridade na compra dos produtos Sharp, ..." (este último grifo é nosso)".

          Pacífico na doutrina que todos os envolvidos na relação de consumo, no pólo do fornecedor, são objetiva e solidariamente responsáveis.

          Neste sentido Arruda Alvim, Thereza Alvim, Eduardo Arruda Alvim e James Marins(5):

          "Muito embora a expressão ‘sem culpa’ não conste expressamente dos arts. 18 a 25, todo o Sistema de Proteção do Consumidor, no que tange à responsabilização por vício do produto ou serviço, sob o prisma pragmático, somente é viável em face da responsabilidade independente de culpa. Ademais, os arts. 23 a 25 desta Seção III, em sua essência, procuram evitar que haja qualquer forma de atenuação ao rigor da responsabilidade aqui tratada.

          No art. 34, do Código de Proteção e Defesa do Consumidor, porém, já não há mais que se falar em possibilidade de prova pelo fornecedor de produto ou serviço, no sentido de ficar patente não ter agido com culpa ou negligência, eximindo-se de responsabilidade, eis que se trata de responsabilidade solidária, podendo a culpa só ser invocada por quem tiver ressarcido danos por inteiro, em ação que vier a promover contra o outro responsável, ação essa disciplinada pelo direito comum."

          Na mesma linha é o comentário de Antonio Herman Benjamin(6):

          "RESPONSABILIDADE SOLIDÁRIA DO FORNECEDOR PELOS ATOS DOS PREPOSTOS - este dispositivo legal é da mais alta relevância. Não são poucos os casos em que o consumidor lesado fica totalmente impossibilitado de acionar o fornecedor - beneficiário de um comportamento inadequado de um de seus vendedores - sob o argumento de que estes não estavam sob sua autoridade, tratando-se de meros representantes autônomos.

          Agora, a voz do representante, mesmo o autônomo, é a voz do fornecedor e, por isso mesmo, o obriga."

          Paulo Luiz Neto Lôbo(7) igualmente aborda o tema:

          "No sistema do Código de Defesa do Consumidor, prevalece a solidariedade passiva de todos os que participam da cadeia econômica de produção, circulação e distribuição dos produtos ou de prestação de serviços. São todos fornecedores solidários.

          (...)

          A solidariedade passiva de qualquer fornecedor, integrante da cadeia econômica responsável pela colocação do produto ou do serviço no mercado, é ampla, porque alcança até mesmo os prepostos ou representantes autônomos."

          "É da natureza da responsabilidade solidária que a ação proposta pelo consumidor contra um dos fornecedores (p. ex., o comerciante) não o inibe de acionar outro (p. ex., o fabricante)."

          Importante o entendimento de Nelson Nery Júnior(8):

          "Os contratos de consumo podem dar ensejo a três tipos de responsabilidade se inadimplidos: a) responsabilidade pré-contratual; b) responsabilidade contratual; c) responsabilidade pós-contratual.

          (...)

          O dever de indenizar pode derivar, também, do contrato de consumo já concluído entre fornecedor e consumidor. Essa responsabilidade contratual tem fundamento no art. 6º, nº VI, do Código, que garante ao consumidor o direito à efetiva prevenção e reparação dos danos ..." (grifo nosso).

          Cláudia Lima Marques(9) também enfrenta a matéria da seguinte forma:

          "Hoje, mais do que nunca a culpa é noção insuficiente como geradora da responsabilidade civil. As barreiras entre as responsabilidades de origem contratual e extracontratual estão cada vez mais fluidas, de modo que mesmo os franceses, apegados ao seu sistema de estreita separação entre elas e de não cumulação de pretensões originárias de áreas diferentes (principe du non-cumul), tiveram de criar em matéria de defesa do consumidor um terceiro caminho, uma responsabilidade per si mista. Procura-se uma unidade teórica da responsabilidade, não mais baseada na culpa como noção transcendente, procura-se um outro fundamento unitário, mesmo reconhecendo a necessária dualidade técnica que existe entre a responsabilidade de origem contratual e extracontratual."

          Válidas as transcrições feitas, pois são aplicáveis ao caso sub judice, na medida em que é fundamental a realização de interpretação sistemática em situações como a presente, conjugando o artigo 4º, inciso I (princípio da vulnerabilidade do consumidor), artigo 7º, parágrafo único, art. 25, parágrafo 1º, artigos 18, "caput" e 20, e, principalmente, o artigo 34, todos do CDC.

          Esta a única maneira de evitar a individualização do prejuízo indevidamente na pessoa do consumidor, procurando repassar os riscos dos agentes produtivos para a sociedade como um todo, por intermédio do mecanismo de preços, tarefa esta de interesse público e de relevância social realizada pelo CDC.

          Face à solidariedade prevista em lei, conforme já exposto, a presente ação dirige-se apenas às requeridas, deixando-se de demandar contra a ROC – Representações e Operações Ltda., pois, na verdade, todas são integrantes de um mesmo grupo econômico.


3. O reconhecimento da vulnerabilidade e hipossuficiência dos
consumidores – consorciados. O cabimento da inversão do ônus da prova:

          O sistema de proteção e defesa do consumidor, estabelecido pelo CDC, tem como um dos seus pilares o reconhecimento da sua vulnerabilidade no mercado de consumo. Inquestionável tal premissa, aliás normatizada pelo art. 4º, inc. I, do CDC, o que afasta qualquer controvérsia sobre o tema.

          A par do princípio da vulnerabilidade, o sistema do CDC também prevê regras para tornar efetiva a proteção e defesa do consumidor. Daí porque é presumível a sua hipossuficiência, inclusive, com a possibilidade de o Magistrado inverter o ônus da prova, nos termos e condições previstas no art. 6º, inc. VIII, do CDC.

          No caso ora submetido à apreciação judicial, há inteira razão de ser invertido o ônus da prova, pois as requeridas é quem detêm grande parte das informações e documentos que possam ser necessários e úteis à plena satisfação da pretensão dos consumidores lesados.

          A própria relação de consorciados, inclusive daqueles que foram contemplados, do preço dos produtos, dos reajustes aplicados, dentre outras informações, devem ser prestadas pelas requeridas.

          E mais, a negativa de aumentos indevidos durante o período de congelamento de preços, a negativa de existência de relação entre as empresas requeridas, bem como entre elas e a ROC, com o intuito de constituir uma cadeia complexa, estruturada e organizada para fazer chegar aos consumidores (consorciados) produtos da marca Sharp por preços praticados pela Sharp do Brasil S.A. – Indústria e Comércio de Equipamentos Eletrônicos, acima daqueles praticados antes do congelamento e, inclusive, acima do preço praticado pelo comércio varejista em geral, configuram claramente lesão a direitos e interesses dos consumidores coletivamente considerados.

          O ônus da prova destas questões deve ser atribuído às rés, como forma de facilitar a defesa do direito dos consumidores, já que o inquérito civil fornece elementos para apontar a existência de dano aos consumidores pelas práticas abusivas adotadas pelas requeridas, já expostas e demonstradas ao longo desta petição inicial.

          E, sobre o tema, o entendimento de Antônio Herman de Vasconcellos Benjamin(10) é pertinente:

          "O consumidor é, reconhecidamente, um ser vulnerável no mercado de consumo (art. 4°, I). Só que, entre todos os que são vulneráveis, há outros cuja vulnerabilidade é superior à média. São os consumidores ignorantes e de pouco conhecimento, de idade pequena ou avançada, de saúde frágil, bem como aqueles cuja posição social não lhes permita avaliar com adequação o produto ou serviço que estão adquirindo. Em resumo: são os consumidores hipossuficientes."

          José Geraldo Brito Filomeno(11) também discorre sobre a matéria, a saber:

          "No âmbito de tutela especial do consumidor, efetivamente, é ele sem dúvida a parte mais fraca, vulnerável, se tiver em contra que os detentores dos meios de produção é que detêm todo o controle do mercado, ou seja, sobre o que produzir, como produzir e para quem produzir, sem falar-se na fixação de suas margens de lucro."

          A previsão de inversão do ônus da prova, como forma de restabelecer a igualdade material entre as partes e facilitar o acesso à Justiça do consumidor vulnerável, também encontra franco respaldo na jurisprudência:

          "Ônus da prova segundo o Código de Defesa do Consumidor. Suficiência da verossimilhança do alegado para transferir ao prestador de serviços o encargo probatório (Lei n. 8078/90, arts. 6°, VIII, e 14, § 3°). Sentença confirmada."

          TJRS, AC 593133416, 6ª C. Civ., Relator Desembargador Adroaldo Furtado Fabrício, j. 1993, in Código de Defesa do Consumidor e sua interpretação jurisprudencial. Luiz Antônio Rizzartto Nunes, Saraiva, p. 346 .

          Também abordando o tema, escreve Nelson Nery Júnior(12):

          "Todo e qualquer meio de prova permitido em direito pode ser utilizado nas ações propostas com base no Código.

          A regra geral sobre o ônus da prova é aquela do artigo 333 do CPC. Entretanto, nas hipóteses descritas no artigo 6°, VIII, do Código, poderá o Juiz inverter o ônus da prova em favor do consumidor, carreando-o ao fornecedor de produtos ou serviços. Essa inversão se dá "ope judicis" e não "ope leges", devendo o Juiz pautar-se pelas máximas de experiência para inverter ou não o ônus da prova.

          Como a inversão do ônus da prova se encontra ligada à idéia de facilitação da defesa do consumidor em juízo, a hipossuficiência de que fala o artigo 6°, VIII, respeita tanto à dificuldade econômica quanto à técnica do consumidor em poder desincumbir-se de provar os fatos constitutivos de seu direito.

          A inversão do ônus da prova pode ocorrer em qualquer ação ajuizada com fundamento no Código, inclusive nas de indenização por fato do serviço dos profissionais liberais, cuja responsabilidade é subjetiva e aferível mediante culpa (artigo 14 parágrafo 4°).

          Em que momento e como deverá proceder o magistrado se for o caso de em tese, inversão da prova?

          O Juiz, ao receber os autos para proferir sentença, verificando que seria o caso de inverter o ônus da prova em favor do consumidor, não poderá baixar os autos em diligência e determinar que o fornecedor faça a prova, pois o momento processual dessa prova já terá sido ultrapassado. Portanto, caberá ao fornecedor agir no sentido de procurar demonstrar a inexistência do alegado direito do consumidor, bem como a existência de circunstâncias extintivas, impeditivas ou modificativas do direito do consumidor, caso pretenda vencer a demanda.

          As regras sobre a distribuição do ônus da prova são regras de juízo, de sorte que caberá ao Juiz, quando do julgamento da causa, agir de acordo com o procedimento autorizador, do artigo 6°, VIII.

          Elas orientam o magistrado quando há um "non liquet" em matéria de fato.

          Caso haja nos autos prova dos fatos constitutivos do direito do autor, normalmente o Juiz deverá julgar a demanda a favor deste. Quando estes fatos não estiverem provados, cumprirá ao Juiz verificar se o consumidor é hipossuficiente ou se suas alegações fáticas são verossímeis. Em caso afirmativo, deverá verificar se o fornecedor fez a prova que elide os fatos constitutivos do direito do consumidor. Na ausência dessa prova (non liquet) julgará a favor do consumidor.

          Nada impede, entretanto, que o magistrado o faça já na oportunidade da preparação para a fase instrutória (saneamento do processo), alvitrando a possibilidade de haver inversão do ônus da prova, de sorte a alertar o fornecedor que deve desincumbir-se do referido ônus sob pena de ficar em situação de desvantagem processual quando do julgamento da causa".

          Por fim, ainda convém invocar a lição do Desembargador Tupinambá Miguel Castro do Nascimento(13):

          "Direitos básicos, nas relações de consumo, são aqueles subjetivados na pessoa do consumidor e indicados no art. 6° da lei protetiva pertinente (...)

          Pelo Código de Processo Civil, art. 333, o ônus da prova cabe ao autor, relativamente ao fato constitutivo de seu direito, e ao réu, em relação à existência de fato impeditivo, modificativo ou extintivo do direito do autor. Estas duas regras garantem que, contestando o réu a ocorrência dos fatos, negando-os, toda a responsabilidade da prova fica com o autor que, não provados os fatos alegados com suficiência, terá a ação julgada improcedente. Afigura-se difícil, nas relações de consumo, o consumidor pré-constituir uma prova acerca de seus direitos, para apresentá-la posteriormente, mesmo porque, no momento do negócio, o consumidor está em sua completa boa-fé. Esta compreensão demonstra que, pelas normas do Código de Processo Civil, dificilmente o consumidor ajuizaria ação com razoáveis possibilidades de vencer a demanda.

          O Código de Consumidor facilitou, consideravelmente, a defesa dos seus direitos. Adotou a figura da possibilidade de inversão do ônus probatório. Quando os fatos alegados pelo consumidor forem verossímeis ou quando o consumidor for hipossuficiente, o ônus da prova passa a ser do fornecedor-réu, que terá que provar que a alegação do consumidor não é verdadeira. Inverte-se o ônus da prova para se igualarem as partes diante do processo. Mas deve ficar claro que o juiz está autorizado a se utilizar deste critério em duas situações: quando o consumidor for economicamente hipossuficiente ou quando a alegação for verossímil, complementando o art. 6°, VIII, do Código, "segundo as regras ordinárias de experiência".

          A verossimilhança deve estar envolvida pela praesumptio hominis. Esta é alcançada pelas experiências anteriores de vida que, se acumulando, levanta certas conclusões. WASHINGTON DE BARROS MONTEIRO (Curso de Direito Civil, Parte Geral, p. 271, Saraiva, 5ª, 1996) diz que "a presunção hominis, ou presunção comum, não resulta de lei, fundando-se, porém, na experiência da vida, que permite ao juiz formar a própria convicção".

          Portanto, verifica-se que o critério de hipossuficiência, previsto no CDC, leva em consideração a carência do consumidor sobre aspectos técnicos, não apenas a carência econômica.

          Assim, a inversão do ônus da prova não é ato discricionário do Juiz, porque tratado como direito básico. Sempre que o consumidor provar sua hipossuficiência ou indicar a semelhança com a verdade, o Juiz deve inverter o ônus da prova. Neste passo, é incontroverso que o Ministério Público está, por previsão constitucional, a representar incontáveis consumidores hipossuficientes, além de estar baseado em informações concretas, inclusive com subsídios fornecidos por decisão judicial do Distrito Federal acerca da presunção de abusividade nos preços praticados pelas requeridas, conforme já exaustivamente abordado.


4. Do pedido:

          4.1. No mérito, requer a integral procedência da presente ação coletiva de consumo, para que as requeridas sejam condenadas nos seguintes termos:

          a) ao pagamento, de maneira solidária, de indenização, da forma mais ampla possível aos consumidores consorciados, que não quitaram ou que não receberam seu produto ou produtos naquele período em que vigorou o congelamento de preços, da importância indevidamente acrescida ou reajustada pelas requeridas, levando-se em consideração o disposto no art. 1º da Lei n. 8.178/91;

          b) ao pagamento de indenização, de maneira solidária, e da forma mais ampla possível aos consumidores consorciados, que tenham, durante o período em que vigorou o congelamento de preços, quitado suas prestações do consórcio e recebido seu produto ou produtos, da importância correspondente à diferença dos valores indevidamente cobrados pela remarcação ou reajuste;

          c) ao pagamento, de maneira solidária, aos consumidores (consorciados) das importâncias indevidamente cobradas a título de FUNDO DE RESERVA e TAXA DE ADMINISTRAÇÃO, os quais foram computados sobre base de cálculo incorreta, pois os preços levados em consideração para tal fim já estavam ilegalmente majorados ou remarcados pelas requeridas;

          d) A condenação, nos pedidos "a", "b" e "c", deve contemplar danos morais (individuais e coletivos) e deve corresponder ao dobro (art. 42, parágrafo único, do CDC) da importância indevidamente acrescida ou reajustada pelas requeridas, a fim de que o provimento jurisdicional concretize sanção pedagógica fundamental, objetivando evitar que aconteçam problemas semelhantes;

          e) ao pagamento, de maneira solidária, de correção monetária e juros às importâncias devidas aos consumidores consorciados pelo acolhimento dos pedidos "a", "b" e "c" acima, contados desde a data em foram cobrados ou exigidos esses aumentos indevidos (a partir de cada prestação mensal exigida ou do valor total do produto para os consumidores que tenham quitado seus consórcios na ocasião em vigorou o período de congelamento de preços);

          f) requer, ainda, que as demandadas sejam condenadas, de maneira solidária, a publicar a parte dispositiva do decisum, no caso de procedência do pedido, em três jornais de grande circulação do Estado, por cinco dias intercalados, sem exclusão da edição de domingo, com dimensões de 20cm X 20cm, o que visa atender o direito de informação dos consumidores e o ressarcimento do dano moral coletivo. Note-se que este pedido de publicação tem como fundamental objetivo propiciar que os consumidores lesados tenham ciência da condenação das requeridas e possam buscar em juízo o valor que lhes é devido. A publicação deverá ser precedida da seguinte mensagem introdutória: "A Sharp do Brasil S.A. – Indústria e Comércio de Equipamentos Eletrônicos e a Sharp – Administração de Consórcios S/C Ltda. foram condenadas em ação coletiva de consumo ajuizada pela Promotoria de Justiça de Defesa do Consumidor do Ministério Público, que tramitou na [...] Vara Cível de Porto Alegre, nestes termos: [...]".

          g) a condenação das requeridas à obrigação de fazer, consistente em remeter a todos os consumidores consorciados correspondência, com o devido aviso de recebimento, informando eventual decisão final de procedência do presente feito, bem como sobre as importâncias individuais que venham a ser computadas na futura liquidação coletiva;

          h) a condenação das requeridas ao pagamento das despesas decorrentes de realização de perícia na fase liquidatória, objetivando viabilizar a execução dos direitos eventualmente devidos, sob pena de não se concretizarem os comandos jurisdicionais de efetiva devolução do numerário;

          i) requer a fixação de multa pecuniária diária, equivalente a 10.000 UFIR’s, ou índice legal que venha a substituir este, para o caso de as requeridas descumprirem a sentença em relação aos itens "f" e "g" do pedido.

          4.2. Dos requerimentos:

          a) Requer o Ministério Público a citação das requeridas para, querendo, oferecer resposta, no prazo legal, sob pena de confissão da matéria fática e revelia;

          b) Requer, a publicação do edital a que alude o art. 94 do CDC, para que os interessados possam intervir no processo como litisconsortes;

          c) Requer, ainda, o Parquet, a condenação das requeridas aos ônus da sucumbência, salvo honorários advocatícios;

          d) Requer a produção de todos os meios de prova em direito admitidos e, desde já, postula a inversão do ônus da prova, nos termos do art. 6º, inc. VIII, do CDC.

          Dá-se à causa o valor de alçada.

          Porto Alegre, 22 de outubro de 1999.

Paulo Valério Dal Pai Moraes,
Promotor de Justiça.

Alexandre Lipp João,
Promotor de Justiça.

Alcindo Luz Bastos da Silva Filho,
Promotor de Justiça.


NOTAS

  1. Veja-se as notas fiscais fatura de fls. 1155/1159 do ICP, onde consta expressamente "Sharp Transportes".
  2. Fls. 1246/1253 do ICP – cópias da sentença prolatada na proc. nº 91.0028406-8 da Seção Judiciária da Justiça Federal do Distrito Federal.
  3. A Sharp – Administração de Consórcios S/C Ltda., no período compreendido entre janeiro e maio de 1991, administrou, respectivamente, 20.419, 20.566, 21.233, 21.188 e 22.011 grupos de consórcio. Em relação ao número de pessoas, o resultado é ainda mais impressionante: jan/91: 715.325; fev/91: 713.449; mar/91: 753.980; abr/91: 763.148; e mai/91: 804.416.
  4. Conforme argumento elencado pelo item 11 da petição inicial da Sharp – Administração de Consórcios S/C Ltda. na ação declaratória já mencionada, e constante na fl. 1170 do ICP.
  5. Código do Consumidor Comentado, Editora Revista dos Tribunais, 2ª edição, p. 143 e 196.
  6. Código Brasileiro de Defesa do Consumidor, Editora Forense Universitária, 4ª edição, p. 186.
  7. Revista de Direito do Consumidor, RT, vol. 14, p. 39 e 40.
  8. Código Brasileiro de Defesa do Consumidor, Editora Forense Universitária, 4ª edição, p. 320.
  9. In "Contratos no Código de Defesa do Consumidor", Ed. Revista dos Tribunais, 3ª Ed., p. 577/578.
  10. Código Brasileiro de Defesa do Consumidor. Ed. Forense Universitária, 4ª edição, pg. 243.
  11. Código Brasileiro de Defesa do Consumidor. Ed. Forense Universitária, 4ª edição, pg. 44.
  12. Revista de Direito do Consumidor, Ed. RT, vol. 1, p. 217/218.
  13. Comentários ao Código do Consumidor (Lei 8078 de 11 de setembro de 1990), AIDE Editora, 1991.


Informações sobre o texto

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

JOÃO, Alexandre Lipp; MORAES, Paulo Valério Dal Pai et al. Ação coletiva de consumo contra aumentos abusivos em consórcio. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 5, n. 40, 1 mar. 2000. Disponível em: https://jus.com.br/peticoes/16027. Acesso em: 28 mar. 2024.