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Concessão de liberdade provisória a acusado de atropelamento de casal

Concessão de liberdade provisória a acusado de atropelamento de casal

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O parecer a seguir trata de caso, ocorrido em Ponta Grossa (PR), de um atropelamento, que causou a morte de um casal de adolescentes, que foi objeto de noticiário da Rede Globo. Estando o réu preso há alguns meses, foi-lhe negado, por duas vezes, a liberdade provisória. Na terceira vez, o pedido foi analisado durante as férias forenses, pelo promotor substituto, que, através do parecer abaixo transcrito, entendeu viável a liberdade. Apontou uma excessiva pressão da imprensa sobre o acusado como causa da negação anterior do benefício. O juiz acatou o parecer e concedeu a liberdade provisória ao réu.

AUTOS Nº 94/99 - PEDIDO DE REV. DE P. PREVENTIVA

REQUERENTE : CLAUDINEI JOAQUIM DIAS RIBEIRO

          PARECER PELO MINISTÉRIO PÚBLICO


Meritíssimo Juiz

Requer, em pedido de fls. 55 a 63, CLAUDINEI JOAQUIM DIAS RIBEIRO, devidamente qualificado nos autos, reiterando pedido anterior por intermédio de novo defensor, lhe seja revogada prisão preventiva decretada em data de 29 de abril do corrente ano, alegando, em apertada síntese, que antes da denúncia e mesmo com prisão temporária decretada, apresentou-se espontaneamente à autoridade policial em 26 de abril, sendo recolhido ao cárcere onde encontra-se até hoje; que anterior pedido de revogação no mesmo sentido, foi denegado sob alegação de garantia da ordem pública. Afirma que não mais existem os motivos então mencionados como ensejadores da medida excepcional, bem como alega excesso de prazo na instrução. Ressalta tratar-se de réu primário, com bons antecedentes, emprego definido, residência fixa, demonstrando com sua conduta que não pretende furtar-se a aplicação da lei penal.

Compromete a comparecer a todos os atos do processo e não ausentar-se do distrito da culpa. Requer, ao final, seja revogada a prisão preventiva a que está submetido.

Vieram os autos para parecer.


Do alegado excesso de prazo

O primeiro prisma pelo qual deve ser observado o feito, é em relação ao alegado excesso de prazo.

Observa-se que o requerente encontra-se preso desde 26 de abril deste ano, portanto, há 87 dias, realmente importando tal prazo em excesso àquele traçado pela legislação adjetiva penal, como necessário e suficiente ao termino da instrução no rito ordinário.

Como a ação penal a que responde o requerente é de crime doloso contra a vida (a denúncia assim capitulou o crime), segue o feito o rito específico para tais crimes, que em sua primeira fase, em nada diferem do rito ordinário, sendo portanto, plenamente aplicável o prazo de 81 dias para seu encerramento.

Evidentemente que quando tais prazos são extrapolados em virtude de manobras protelatórias da defesa, insustentável a alegação de constrangimento ilegal por excesso de prazo, vez que aquela a determinante da superação de prazo.

Esse não é, contudo, o caso dos autos. Não se pode de maneira sincera debitar à defesa o tempo até aqui demandado na instrução da ação penal. Nada fez a atrasar o normal trâmite dos autos.

É de se observar, contudo, que apesar dos 87 (oitenta e sete) dias que encontra-se o réu encarcerado, já foram ouvidas as testemunhas arroladas com a denúncia, restando somente a oitiva dos testigos de defesa e a elaboração da reconstituição do crime, pretendida pela defesa, até que se possa encerrar definitivamente a instrução, com as alegações pelas partes e as providências e decisão que trata o artigo 407 do Código de Processo Penal.

Assim, em que pesem as ponderações do Doutor Defensor, e mesmo considerando-se que não houve contribuição da defesa para o tempo de encarceramento do réu, entendo, como a maioria das decisões dos Tribunais, que encontra-se superada a alegação de excesso de prazo, sendo exclusivamente da defesa o interesse nas provas a serem produzidas doravante.


Da alegação de estarem ausentes os
motivos ensejadores da custódia cautelar

Este, indubitavelmente, o ponto mais espinhoso do presente caso.

Analisei sob vários prismas, até poder chegar a conclusão que exponho a seguir.

Trata-se, sem a menor dúvida, de caso rumoroso, devido a perda da vida de dois adolescentes que caminhavam durante a madrugada, pelas ruas desta urbe, e vieram a ser colhidos pelo automóvel que estava na posse do réu e que se imagina, era por ele conduzido.

A notícia do fato foi veiculada pelo canal de televisão a cabo local e pela Rede Globo, também local, em noticiários, formando uma imagem extremamente negativa do réu, mormente porque, o condutor do veículo, após atropelamento, não parou para prestar socorro, evadindo-se do local, somente sendo encontrado após investigações policiais que contaram com auxílio de denúncia anônima.

Somado a esses fatos, pesa contra o réu, ainda, que sendo ele funcionário de oficina de reparos em veículos, fez a recuperação dos danos sofridos pelo veículo, dificultando mais ainda a investigação.

Diversos comentários, surgidos logo após o fato, davam conta que o crime havia sido perpetrado em vingança contra as vítimas, vez que haveria envolvimento das mesmas ou uma delas com o "motorista do ômega bordô", isso, antes ainda da determinação do veículo e dos indícios de autoria em relação ao réu.

Portanto, indubitavelmente o crime, segundo a linha apontada pelo rumor popular da época, seria de um terrível homicídio doloso qualificado, praticado da maneira mais fria e abjeta que se possa imaginar.

Sem entrar no mérito das provas coligidas até aqui, mesmo porque este não é o momento oportuno, viu-se que tanto havia relacionamento entre o réu e as vítimas quanto era bordô o ômega. Vale dizer, os rumores não se confirmaram. Observou-se que as vítimas e o réu jamais se conheceram ou se encontraram antes do fatídico evento e o automóvel, na verdade é de cor azul.

Assim, por apego a verdade, admito que quando penso em qualquer ato em relação ao feito, logo me vem à mente, que trata-se de caso bastante noticiado em televisão, e imagino qualquer alteração no statu quo possa tornar-se notícia. Tal postura, porém, não pode ser adotada por operadores do direito.

Com tal diretriz, exposta no final do parágrafo anterior, passei a analisar o feito. Independentemente de preocupação com opinião pública, mas tão só preocupado com a Justiça e adequação legal do parecer.

É de ressaltar-se que como já se passaram meses desde o fato, este embora gravíssimo, vai perdendo a nitidez na opinião popular, que passa a substituir os acontecimentos pretéritos, (e já com uma resposta - ainda que provisória - dos órgãos de segurança e justiça, qual seja a prisão preventiva do indigitado autor) por novos acontecimentos de grande repercussão que se sucedem no contexto do cotidiano. Assim, outros crimes graves, conquistas ou desmandos políticos e/ou administrativos e inúmeros outros episódios vão tomando corpo nos noticiários e, logo em seguida, nos assuntos da população.

Do crime, alem da terrível conseqüência da aniquilação da vida de dois adolescentes, a indelével marca que resta na mente e na alma das famílias envolvidas.

Por um lado, e certamente que de maior dor, a dos pais e demais familiares dos jovens que foram vítimas do atropelamento. Tendo arrancados de seus convívios pessoas que eles amavam e depositavam suas esperanças e seus sonhos.

De outro lado, a família do réu, que também o tem afastado do convívio, sua noiva, grávida, que vivia a expectativa de um casamento que acabou não se realizando.

Conclui-se, portanto, que se usarmos de nossos sentimentos, torna-se tarefa humanamente impossível a tomada de uma posição no caso em tela. De qualquer lado que se analise, a dor é enorme.

Os adolescentes, morreram sem nada dever, eram pessoas queridas no meio em que conviviam. O réu, por seu turno, pelo que se apurou, é pessoa sem nenhuma mácula em seu passado, da mesma maneira admirado e apreciado em seu meio social.

Resta, portanto, a tarefa a ser desempenhada, afastando-se os sentimentos e aplicando-se, tecnicamente, as disposições legais cabíveis à espécie, como aliás, deve sempre proceder o operador do direito que pretenda ser imparcial.

Primeiramente, é de se analisar a decisão que decretou a prisão preventiva do réu, ora requerente, decisão está encartada às fls. 140/141 dos autos de ação penal nº 137/99 ao qual este encontra-se em apenso.

Lá, foi justificada a prolação da decisão extrema, em face de necessidade de segregação cautelar do réu, para a garantia da ordem pública. Afirmou o seu subscritor, em determinado ponto que "a ordem pública foi e encontra-se ainda abalada com os fatos que vitimaram o casal de jovens...". Tal decisão data de 29 de abril deste ano. E, embora exista decisão do STF no sentido de que "A repercussão do crime ou clamor social não são justificativas para a prisão preventiva" (RT, 549/417), me parece, era bastante sustentável à época, quando acabava-se de descobrir o carro atropelador e seu possuidor.

Menos de um mês após o decreto dito acima, requer o então defensor do réu, sua revogação.

Novamente em sábia decisão, que acolhe posição expressa pelo Ministério Público, indefere o julgador o pleito, asseverando estarem presentes o clamor público que respaldou a prisão excepcional. Menciona na decisão, que o próprio defensor (da época) demonstrou receio em relação a integridade física do requerente.

Em relação ao então defensor, observa-se que talvez buscando dar mais dramaticidade aos fatos (se é que pudessem ser mais dramáticos que já são) acabou por criar uma aura de perigo à integridade do réu, que só roborou a manutenção do mesmo no cárcere. Em relação a esse profissional, achou por bem o réu em substitui-lo, hoje não mais atuando na defesa. De se destacar, ainda, que o próprio juiz que presidiu o interrogatório, diante das alegações do réu, determinou o encaminhamento de peças à Ordem dos Advogados do Brasil, para que se apurasse a lisura da conduta do causídico.

Assim, reitero que correta e sábia a decisão que decretou e, em seguida, manteve a prisão provisória do réu. Em sintonia com a realidade social da ocasião dos fatos.

Outro, entretanto, é o momento agora.

Com efeito, conforme já me expressei acima, se excluirmos as pessoas mais diretamente ligadas ao caso, as quais jamais o esquecerão, creio que poucos da sociedade local ainda preocupam-se diariamente em comentar o assunto e, certamente, o mesmo número encontra-se curioso em relação ao deslinde do caso.

De maneira que não posso imaginar, honestamente, que a ordem pública pudesse ser abalada, agora, com a liberdade do réu.

Se não há ameaça à ordem pública, como penso efetivamente não existir, não subsiste, por decorrência lógica, motivo autorizador da medida extrema.

Se na ocasião pretérita, se fez presente o requisito, andou bem o juiz então ao decretá-la, aplicou com acerto a disposição legal ao caso concreto que lhe foi apresentado, o que equivale a dizer, fez justiça. Agora, a justiça para sua consecução demanda caminho oposto.

Assim penso, diante do caráter totalmente excepcional de qualquer forma de prisão cautelar, que somente se justifica e se amolda, no ordenamento jurídico vigente em nosso país, quando fundamentada no poder geral de cautela do juiz, vale dizer, quando indispensável à eficiente prestação jurisdicional.

Sem que se façam presentes os requisitos genéricos das medidas acautelatórias, quais sejam o fumus boni iuris e o periculum in mora; sem a real e efetiva necessidade para o processo, a prisão preventiva seria, no dizer de Fernando Capez "uma execução da pena privativa de liberdade antes da condenação transitada em julgado, e, isto sim, violaria o princípio da presunção de inocência. Sim, porque se o sujeito está preso sem que haja necessidade cautelar, na verdade estará apenas cumprindo antecipadamente a futura e possível pena privativa de liberdade." (in Curso de Processo Penal, Ed. Saraiva, 2ª ed., pág. 224).

Assim, não mais presente o requisito alinhavado como autorizador pela decisão que decretou a medida, sua manutenção, apenas para se evitar uma possível notícia desagradável à opinião pública leiga, se é que os meios de comunicação ainda se importarão em veicular tal fato, seria flagrantemente ilegal.

Volto a mencionar, que adoto e expresso a presente opinião, por entende-la mais técnica, mais correta e mais justa.

Não vejo mais o perigo real de abalo a ordem pública e, de conseqüência, não vislumbro mais nenhum requisito autorizador da prisão preventiva.

Sim, pois contra o réu, nada mais recai que possibilite a prisão processual.

Trata-se, de tudo que se apurou, de pessoa honesta, radicada no distrito da culpa.

Sua atitude inicial de procurar se ocultar da polícia e da justiça, não se apresentando logo após o fato e reparando o carro, deve ser encarada com reservas sim, porém, não a ponto do por si só, defini-lo como uma pessoa que irá procurar obstar a aplicação da lei penal.

Para trazer uma certa compensação a essa atitude desleal inicial, vê-se que como bem asseverou o defensor, após a notícia do fato, apresentou-se esponte própria a autoridade policial, embora ciente de ter contra si decretada a prisão temporária.

O próprio juiz que proferiu a decisão mantenedora da prisão preventiva de fls. 52/54, quando aquela era necessária, afirma textualmente que: "inegável é, pelos documentos acostados a este pedido, que o cidadão ora em cárcere, mantém residência e domicílio no distrito da culpa, além de demonstrar sua primariedade também fez prova (através de xerox de declarações) que inexiste em seu comportamento social fatos desabonadores de sua conduta.

Se a afirmação é correta, então ela mesma é que serve, agora, de fundamento para a revogação da prisão preventiva.

Certamente que com o exercício de imaginação e formulação de diversas hipóteses, poderia se concluir de maneiras que viessem a tornar possível a manutenção da prisão provisória. Contudo, imaginação e suposição não são formas permitidas pela lei penal (substantiva ou adjetiva) para que se chegue a decisão em nenhum feito, mormente, em se tratando de liberdade de sujeito não condenado e que por princípio constitucional deve se presumir inocente.

O papel da Justiça é muito importante, ela não pode falhar em sua alta missão de julgar, com absoluta imparcialidade, os seus semelhantes. E a Justiça falhará, desacreditando-se perante a opinião pública, no dia em que deixar-se confundir com a própria opinião pública (embora leiga e pretérita, que queria na cadeia o autor do atropelamento); no dia em que se resignar a ser um mero instrumento realizador da opinião, nem sempre correta, dos veículos de comunicação.

Não quero dizer que tenha havido ou não intenção evidente do agente responsável pela tragédia, vez que não pretendo entrar, como já afirmei antes, no mérito da prova, nessa oportunidade, mas o que não se pode é manter uma prisão que agora já não é mais legal, pelo fato de que na época em que ocorreu o fato foi rumoroso e objeto de reportagens diversas.

Que o problema da violência no trânsito em nosso meio é gravíssimo e de conseqüências nefastas, disso ninguém tem dúvidas. Porém, em que irá contribuir a prisão ilegal de um jovem sem qualquer mácula em seu passado, por um fato que ainda não foi julgado?

Quer me parecer que ao contrário de acrescentar algo de positivo, tal prisão, somente iria levar mais um jovem, de maneira irremediável, à revolta contra a Justiça, ao questionamento dos valores estabelecidos como corretos e, conseqüentemente, ao quase certo ingresso definitivo na seara da delinqüência.

É fora de dúvida que agora mesmo, neste instante, encontra-se o réu encarcerado em uma cadeia com super-lotação, convivendo com inúmeros marginais já reiteradamente condenados pelos mais diversos delitos.

A essa realidade não posso me calar: não concordo!

Mesmo havendo a presença de requisitos legais em que a prisão seja autorizada pela norma processual, a situação fática de nossos ergástulos transforma qualquer prisão em ilegal, posto que afronta as mais comezinhas regras de dignidade humana do encarcerado, expondo-o a situações extremas e absurdas, nem mesmo imaginadas pela maior parte da população.

Em determinadas ocasiões o mal, se é que se pode assim afirmar, é necessário e justificável.

Não é assim, entretanto, no caso sub examen.

O réu do afamado caso presente - o sentimento do dever e a austeridade moral impõe seja dito - por tudo que foi trazido aos autos e, mormente, pelo contato pessoal mantido nas audiências e nas ocasiões em que visitei a cadeia (tenho atribuições junto a Corregedoria dos Presídios), não é portador dessa personalidade delinqüente, que produza mal maior à sociedade solto que a própria degeneração pessoal levada pelo encarceramento.

Poder-se-ia então, argumentar que o crime que se afigura imputável ao indiciado, seria, provavelmente o de homicídio qualificado, em sua forma tentada, sendo, portanto crime hediondo e incabível a liberdade provisória (Lei 8.072/90, art. 2º, inciso II).

A tal fato, resta lembrar que não foi ainda o réu pronunciado.

Rememore-se ainda, que incumbe ao aplicador do direito, atualmente, não agarrar-se à letra fria da lei, distanciando-se do caso concreto, daquilo que é verdadeiramente justo. Nesse sentido assinala AMÍLTON BUENO DE CARVALHO:

          "Aqui e agora está o jurista/juiz autorizado a ultrapassar a legalidade em nome do valor maior JUSTIÇA. Veja-se lições preciosas de: a) Luiz Fernando Coelho, em dois momentos: "Ao juiz, especialmente, não cabe aplicar a lei, mas fazer justiça" e "...a resistência às leis injustas deve começar pelos juizes, o segmento da sociedade que, em função de conquistas que obteve após muito trabalho e enfrentando muita incompreensão, transformou-se não somente no derradeiro refúgio das reivindicações sociais, mas no único setor realmente aparelhado para resistir aos desmandos e às tentativas autoritárias, o que aumenta muito a responsabilidade dos magistrados perante o povo" b) Tarso Genro; c) Elicio De Cresci Sobrinho, ao citar Radbruch: "quando as leis negam, conscientemente, a vontade de ser justo, falta às leis qualquer justificativa, e os juristas devem negar-lhes valor de normas jurídicas"; d) Dagoberto Romani: "Se as leis ofendem o direito, a lei moral, a justiça e os conceitos ético-sociais, são inválidas e devem ser repudiadas pelos juizes após cuidadosa e acurada interpretação";..."(1)

Ainda a respeito do tema, o Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, manifestou-se em decisão lapidar, sendo relator o Eminente Desembargador Moacir Danilo Rodrigues, da qual transcrevo um trecho a seguir: "Parte-se do pressuposto que a Justiça é uma concepção muito mais ampla do que a de lei" e mais adiante afirma: "Filiamo-nos a uma justiça formal ou a uma justiça substancial? No primeiro caso há sujeição à inércia ou a inabilidade do legislador. No segundo significamos os agentes precursores das grandes mudanças legais. Afinal, não são os juízes os indivíduos mais capacitados para a aferição da boa ou da má lei?"

          "O fato social é dinâmico. Justiça formal significa o último vagão de uma locomotiva. Quando o fato social ali chega, o faz como produto final. E o juiz que se atem apenas à justiça formal fica fora do grande processo de criação e transformação. Resta-lhe tão só a aplicação de uma regra jurídica, desconforme com a realidade."

"Ao contrário, acreditando e lutando por uma justiça substancial, disseca-se a frieza da lei injusta apontando ao legislador a necessidade de correção. As grandes conquistas do homem, consubstanciadas em leis justas e atuais, tiveram no desassombro interpretativo dos juízes seu fato gerador."

"Recorre-se mais uma vez a Denis Lloyd, que afirma: ‘Os juízes, como outros seres humanos, não podem se divorciar dos padrões de valor que estão implícitos na sociedade ou grupo a que pertencem, e nenhuma soma de imparcialidade conscienciosamente aplicada, ou ausência judicial de passionalismo, conseguirá eliminar a influência de fatores desse gênero. Se p. ex., considerarmos como, em tempos modernos, vários campos do direito foram gradualmente moldados por legislação judicial, num esforço para adapta-las às necessidades sentidas num novo tipo de sociedade industrial, voltada para o bem-estar social, perceberemos como pode avançar, de decisão em decisão, numa lenta e gradual progressão, no sentido de pôr em vigor um padrão alternado de valores."

O posicionamento adotado e expressado ao longo deste parecer, decorre da consciência da importância da atuação de cada um de nós, que de qualquer modo, intervimos no processo. Não poderia me calar e simplesmente concordar com a posição anteriormente adotada, por me ser mais cômodo, menos trabalhoso ou simplesmente pelo temor de vir a desagradar quem quer que seja (opinião pública, etc).

Tenho certeza que o Doutor Promotor de Justiça que denunciou e ofereceu os pareceres pela manutenção da custódia, à época, agiu de acordo com aquilo que acreditava mais correto, bem assim o Magistrado que prolatou a decisão que ora se pretende ver revogada. Assim, este signatário, não poderia seguir outro caminho, senão aquele ditado pela sua própria consciência, respeitando posicionamentos eventualmente divergentes, porém, ousando discordar.

Não poderia um Promotor de Justiça ofertar argumentação contrária a seu ponto de vista, por comodismo e depois ficar em paz consigo mesmo.

Não podemos nós, os operadores do direito, olvidarmos que um dos princípios norteadores do Direito Penal moderno, juntamente com o princípio do fato, o princípio do ne bis in idem e o princípio da legalidade, é o princípio da igualdade, que não permite trate-se igualmente situações desiguais ou desigualmente situações iguais, princípio este que, aliás, foi mencionado com muito mais clareza que este limitado subscritor, pelo inigualável Ruy Barbosa em sua "Oração aos Moços".

Assim, nada justifica que se deva punir com mais ou menos rigor, ou até mesmo, forçar uma custódia legalmente indevida, porque um crime é (ou no caso presente - foi) objeto de atenção pela imprensa, especialmente a poderosa Rede Globo de Televisão.

A imprensa vem causando estragos até mesmo na elaboração de leis, de maneira que o legislador pátrio, no afã de satisfazer a opinião pública, produz diplomas que desestruturam aquele feixe legislativo, com todas as suas ramificações solidárias, que deve ser o ordenamento jurídico. Estamos observando cada dia mais, por conta disso, a desarmonia e a incongruência entre leis, um verdadeiro caos.

Sobre tal assunto, Rogério Schietti Machado Cruz, em artigo publicado recentemente no informativo jurídico "O Neófito" afirma que: "muitas leis penais neste país não nascem de prolongados e refletidos estudos sobre o que se pretende elevar à categoria de norma jurídica, mas, amiúde, seguem-se a uma bem escolhida pauta jornalística (geralmente da Rede Globo, ou a um acontecimento específico que, inobstante ser apenas a repetição de fatos já ocorridos e presentes na sociedade, revestem-se de um colorido especial..."

O que deve prevalecer ao profissional, sobre o natural repúdio que a prática criminosa causa nas pessoas de bem, mormente quando insistentemente comentadas pela imprensa, é a técnica de aplicação das normas jurídicas e a certeza de se estar agindo para a consecução da justiça, por isso a manifestação aqui posta.

Diante de todo o exposto, opino pela revogação da prisão preventiva do réu, ora requerente CLAUDINEI JOAQUIM DIAS RIBEIRO, podendo esta ser ainda decretada a qualquer tempo, caso surjam novas provas que demonstrem a sua necessidade.

Desta forma, em sendo acatado o parecer e concedida a liberdade provisória, requeiro seja determinado ao réu que cumpra, as seguintes condições, sob pena de revogação da liberdade provisória a este concedida:

a) não se ausentar da comarca sem prévia comunicação do juízo;

b) comparecer pessoalmente a juízo, a todos os atos em que for requisitado.

Ponta Grossa, 21 de julho de 1999

Silvio Couto Neto
Promotor de Justiça-designado


NOTA
  1. "Magistratura e Direito Alternativo", AMÍLTON BUENO DE CARVALHO, p. 92/93, Ed. Acadêmica, 1992.


Autor

  • Silvio Couto Neto

    Silvio Couto Neto

    Promotor de Justiça no Paraná. Ex-professor da Universidade Estadual de Ponta Grossa (UEPG), da Fundação Escola do Ministério Público do Paraná e da Escola da Magistratura do Paraná. Mestre em Ciências Sociais Aplicadas pela UEPG.

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Informações sobre o texto

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

COUTO NETO, Silvio. Concessão de liberdade provisória a acusado de atropelamento de casal. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 4, n. 35, 1 out. 1999. Disponível em: https://jus.com.br/pareceres/16285. Acesso em: 28 mar. 2024.