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Crime continuado no Código Penal Militar

derrogação da cumulatividade das penas

Crime continuado no Código Penal Militar: derrogação da cumulatividade das penas

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O Código Penal Militar estabelece para o crime continuado punição idêntica ao do concurso de crimes, ou seja, a soma das penas. A única diferença é a concessão a este último de uma causa de dimunuição da pena, a ser aplicada sobre a pena total já unificada. O Código Penal comum atribui aos crimes continuados a pena de um só dos crimes, se idênticas, ou a mais grave, se diversas, aumentada em qualquer caso de um sexto a dois terços. O julgado abaixo, em consonância com jurisprudência do STM, decide pela derrogação do dispositivo do CPM pela Constituição Federal de 1988, por conduzir a uma desproporcionalidade na individualização da pena, que se tornaria excessivamente severa.

PODER JUDICIÁRIO
JUSTIÇA MILITAR DA UNIÃO
3ª. AUDITORIA DA 3ª. CJM
SANTA MARIA / RS

          Processo nº 05 / 97 - 7
          Denunciado : XXXXXXXXX


SENTENÇA

          Vistos etc...

          O representante do Ministério Público Militar ofereceu denúncia em face de XXXXXXXX imputando-lhe a prática de fato definido no art. 303, por três vezes, à luz do art. 80, ambos do Código Penal Militar, conforme exordial de fls.02/06, "in verbis" :

          "Durante o ano de 1995, o ora denunciado, então Sargento Temporário do Exército Brasileiro, exercia as funções de Sargento de tiro do 1º Esquadrão de Carros de Combate, subunidade do 4º Regimento de Cavalaria Blindada (4º RCB), Organização Militar sediada na cidade de São Luiz Gonzaga/RS.

          Em meados daquele ano, exatamente na última semana do mês de outubro, deslocou-se até o Campo de Instruções de Rincão (São Borja/RS), juntamente com os demais integrantes de sua Organização Militar, a fim de, como Comandante de Carro de Combate, realizar o tiro de armas coletivas da Unidade Militar em que servia.

          Ao término de tal exercício de tiro recebeu a ordem de retornar ao aquartelamento, o que efetivamente fez, chefiando uma unidade militar, carregada com diversos materiais utilizados na prática de tiro real, dentre os quais dois cunhetes contendo 2.000 (dois mil) cartuchos de calibre 7,62 mm, tipo comum e traçante, os quais, quando da chegada na sede do aquartelamento, depositou na sala de tiro do 1º Esq. CC, sala esta que estava sob sua responsabilidade.

          Após a chegada dos demais participantes do exercício em campanha realizou o recolhimento da munição calibre 9mm, utilizada na segurança do exercício, devolvendo-a no Paiol da Unidade e prestando informações ao Oficial de Tiro do seu Esquadrão, ocasião em que percebeu que a munição que conduzira até a Organização Militar e que estava sob sua detenção, fora considerada como se tivesse sido utilizada no Tiro das Armas Coletivas, fato que o levou a apropriar-se da referida munição, escondendo-a sob diversos materiais, atrás de uma divisória existente naquela sala de tiro de sua subunidade.

          Ainda no mesmo ano de 1995, em época imprecisa, após a realização de um treinamento com soldados de seu Esquadrão, aproveitou que havia sobrado alguma munição de festim, calibre 7,62 mm , e, como o exercício era noturno e as sobras (estojos vazios, já detonados) que deveriam ser devolvidos ao paiol eram de difícil recolhimento, com grandes perdas, resolveu apropriar-se de uma caixa daquela munição, que estava sob sua responsabilidade, devido a sua função de Sargento de tiro, a qual, em oportunidade futura, levou para seu apartamento, localizado na cidade de São Luiz Gonzaga/RS, deixando-a escondida entre suas roupas até a apreensão da mesma. Conforme Auto de Busca e Apreensão de fl. 274.

          Já no ano de 1996, durante o mês de maio, ainda exercendo as funções de Sargento de tiro, o ora denunciado, quando da realização de um exercício de tiro real no aquartelamento, realizou uma nova subtração de munição, cerca de 400 (quatrocentos) cartuchos 7,62 mm, tipo traçante, utilizado para a realização da atividade militar, de modo a não despertar suspeitas, a munição que apropriara-se quando do exercício de armas coletivas e que mantivera escondida na sala de tiro de seu Esquadrão, tendo realizado tal procedimento mais algumas vezes no transcurso daquele ano, com o fito de ficar com munição de lote mais novo, que não ocasionasse problemas quando de sua detonação.

          Com a proximidade de seu licenciamento, marcado para agosto de 1996, retirou do aquartelamento toda a munição da qual se apropriara, aproveitando-se do fato de que os Sargentos não eram revistados na saída da Unidade, aos poucos, até uma construção abandonada, de propriedade de seu genitor, também localizada naquela cidade de São Luiz Gonzaga/RS.

          Após seu licenciamento, encontrando-se desempregado e com dívidas, situação comum em seu modo de viver desregrado, resolveu colocar em prática a idéia que norteou sua atividade criminosa: Efetuar a venda da munição que estava em seu poder. Concluiu, então, que seus possíveis "compradores" seriam elementos ligados ao narcotráfico, no estado do Rio de Janeiro, para onde deslocou-se, por duas vezes, uma durante o mês de outubro de 1996 e outra na data de 14 de novembro do mesmo ano, já com dois mil cartuchos 7, 62 mm, embalados em sacolas de viagem, de modo a não serem percebidas.

          Chegando naquele estado, em 15 de novembro, hospedou-se no Hotel Flumi, quarto 205, na cidade de Nova Iguaçu, às margens da Rodovia Dutra, na chamada "Baixada Fluminense", região conhecida pelo seu alto índice de criminalidade e ponto reconhecido de compra e venda de tóxicos, tendo alguns locais, verdadeiramente, controlados por traficantes. Naquele hotel solicitou que fosse acordado no início da manhã seguinte, tendo, por diversas vezes, saído do estabelecimento para telefonar, deslocando-se repetidamente até as margens da Rodovia Dutra, como se esperasse por alguém.

          À hora marcada, no raiar do dia 16 de novembro de 1996, como o hóspede não atendia aos repetidos chamados, o gerente do hotel solicitou a presença de policiais e, em sendo aberto o quarto ocupado pelo ex-Sgt. XXXXXXX, foi encontrada parcela da munição conduzida pelo mesmo, em um total de 1.480 (Hum mil quatrocentos e oitenta) cartuchos, apreendidos pela Polícia Civil carioca, restando apurado, a posteriori, que na madrugada anterior, o ora denunciado fora alvejado por três disparos de arma de fogo, efetuados por desconhecidos, provavelmente elementos ligados ao tráfico de drogas".

          A denúncia foi recebida por despacho de 06 de fevereiro de 1997 ( fl.421 )

          Regularmente citado o acusado (fl. 448v), em assentada de 26 de fevereiro de 1997 ocorreu a qualificação e o interrogatório ( fls. 457/458 ).

          Arroladas pelo Ministério Público Militar, seis testemunhas foram inquiridas ( fls. 501/502, 503, 555/556, 578/579, 614/616 e 664 ).

          Pela defesa foram arroladas três testemunhas, estas inquiridas às fls. 715/717.

          O MPM requereu a juntada do Laudo de Exame de Munição, este acostado às fls.727/728 e 735.

          A defesa nada requereu na forma do art. 427 do CPPM ( fl.744).

          Em alegações escritas, o representante do "Parquet" Militar requereu a procedência da inicial, adotada a tipificação disposta no art. 303, §2º, do CPM, enquanto que a defesa pugnou pela absolvição do acusado ( fls. 748/756 e 770/771).

          Após dois adiamentos (fls. 781 e 784), foi designado o dia 10 de fevereiro de 1997 para a sessão de julgamento.

          Através de contato telefônico, o acusado informou estar residindo em outro estado e por problemas financeiros não poderia estar presente à sessão designada, conforme certidão de fl. 786.

          Assim foi redesignada a data para o julgamento, esta definida para o dia 05 de março de 1998, sendo que nova ausência do acusado implicaria no julgamento à revelia ( fls. 786/787).

          Em plenário, com a presença do acusado, após a leitura das principais peças do processo, com a palavra, o Ilustre Promotor saudou os presentes e passou a minuciosa análise da prova colhida, pugnando, ao final, pela procedência da inicial. A defesa, saudando os presentes, iniciou sua sustentação rechaçando a pretensão ministerial, requerendo a desclassificação para o delito de furto qualificado.

          Em réplica e tréplica, as partes reafirmaram suas teses.

          Em seguida, o Conselho passou à deliberação.

          É o relatório.

          Trata-se de acusação formulada em face de Civil, ex-Sargento do Exército, imputando-lhe a prática do delito de peculato-furto, em forma continuada.

          Conformando o conjunto probatório temos a interrogatório do denunciado, laudos periciais e testemunhos.


Do interrogatório judicial

          O denunciado às fls. 81/82 declarou :

          "que servia no 4º RCB quando ocorreram os fatos descritos na inicial; que conhece algumas das testemunhas, nada tendo a alegar contra as mesmas; que não conhece as provas apuradas, não tendo sofrido nenhuma violência quando prestou depoimento na fase informativa; que entende que a imputação não é verdadeira; que está respondendo o presente processo em face de um "mal entendido"; que nunca foi processado nem na Justiça Comum nem na Justiça Militar; que estava num hospital no Rio de Janeiro, quando a munição foi encontrada num hotel na baixada fluminense; que realmente viajou ao Rio de Janeiro ficando hospedado no hotel Flumi, quarto nº 205; que estava no hospital porque foi baleado na rua, próximo ao hotel; que não sabe informar nada a respeito das munições descritas na denúncia; que reconhece como sendo sua a assinatura às fl. 87; que a munição encontrada na casa do Sgt. Maia, munição de festim, ficou em poder do acusado após um exercício de tiro; que o acusado só descobriu a munição, junto aos seus pertences, um dia antes de viajar para o Rio de Janeiro; que decidiu entregar a munição ao Sgt. Maia para que a mesma fosse devolvida ao Exército; que o procedimento de guardar a munição que sobrava dos exercícios para ser utilizada em exercícios posteriores era normal na unidade militar; que na época que prestou depoimento às fls. 73/87, falou algumas coisas que não era realidade, porque estava muito assustado; que viajou ao Rio de Janeiro para ir à formatura na ESIE de um amigo de nome Paulo Cesar Silva Machado; que tem certeza que foi o segurança do hotel Flumi a pessoa que colocou a munição no quarto onde o acusado estava hospedado; que o segurança tinha pedido ao acusado que o mesmo deixasse guardar algumas caixas em seu quarto para posteriormente um amigo vir pegar; que o acusado não sabia o que existia dentro das caixas; que exerceu a função de Sgt. de Tiro de agosto/94 a agosto/96; que não levou nenhuma munição nem armamento para o Rio de Janeiro; que além da munição de festim, acima citada, não guardou nenhuma munição como sobra de exercício de tiro; que não lembra o nome do segurança do hotel; que foi o segurança quem atirou no acusado, após uma discussão; que esta discussão foi por causa da munição que o segurança pediu para guardar no quarto do acusado; que o acusado ficou sabendo ao examinar o material que se tratava de munição e foi pedir para o segurança retirar o material de seu quarto; que deixou a munição de festim no guarda roupa do Sgt. Maia, sendo certo que o Sgt. não sabia dessa munição; que já morou junto com o Sgt. Maia, sabendo que a porta dos fundos ficava sempre encostada; que o referido Sgt. era amigo do acusado; que morou com o Sgt. enquanto estava servindo, ao dar baixa foi morar com sua mãe; que sabia que era proibido retirar munição da unidade militar sem autorização, mas quer esclarecer que a munição de festim foi retirada do quartel por engano já estava junto aos fardamentos e o acusado não notou quando pegou todos os seus pertences por ocasião da baixa; que a munição de festim estava armazenada em uma caixa lacrada; quer esclarecer que já possuia à época dos fatos residência própria, à rua Otomar Frederico Becker, nº 125, e tinha também várias propostas de emprego antes dos fatos, como por exemplo, na Serraria Bortolo; que a sua tia e seu tio também ficaram de arrumar emprego para o acusado; que à época dos fatos tinha uma dívida com o Major Mezzono, em virtude de um acidente de trânsito; que o referido oficial estava pressionando o acusado para receber o que lhe era devido; que o pai do acusado iria pagar a dívida; que pretendia ficar no Rio de Janeiro até a data da formatura do seu amigo, mais ou menos do dia 16 de novembro a 22 do mesmo mês; que levou para o Rio de Janeiro uma mochila com roupas; que foi para a rodoviária de carona, melhor esclarecendo, levou uma mochila pequena, uma sacola branca e outra mochila pequena, tudo com roupas; que na semana que viajou pegou uma mochila na casa de sua mãe e levou para a residência do Sgt. Maia; que esta mochila não foi utilizada na viagem; que não lembra o que continha nesta mochila; que para levar esta mochila pegou uma carona com a testemunha Jorge Olavo; que na véspera antes de viajar pernoitou na casa do Sgt. Maia; que nesta noite conversou com o Sgt. Maia; que deixou a munição de festim na casa do Sgt. Maia no dia em que viajou; quer esclarecer que não lembra se falou com o Sgt. Maia na noite anterior à viagem; que dormiu de quarta para quinta na casa do Sgt. Maia e na quinta de manhã foi até a sua residência e retornou à casa do Sargento e foi para a rodoviária; que encontrou o Sgt. quando estava indo para a rodoviária, na saída da casa do sargento; que apenas acenou para o sargento não chegando a conversar com o mesmo; que não chegou a arrumar emprego depois de ser lincenciado; que o pai do acusado, na época dos fatos morava em, Campo Grande-MS; que após ser licenciado o acusado procurou emprego; que o Major Mezzono, ao cobrar a dívida, falou com a mãe do acusado algumas palavras que deram a entender que se o acusado não pagasse a dívida o major iria estragar com a vida do acusado; que chegou a assinar uma nota promissória para o major; que deu um cheque pré-datado para o major; que a mãe do acusado disse para o major que iria vender um terreno para pagar a dívida; que o terreno está localizado na rua Barão da Passagem; que não lembra se a mochila que pegou na residência de sua mãe foi utilizada na viagem".


Das contradições no interrogatório judicial

          Notáveis as contradições no corpo do interrogatório, bem assim :

          No intuito de desconstituir a confissão lançada no IPM afirmou : "que na época que prestou depoimento às fls. 73/87, falou algumas coisas que não era realidade, porque estava muito assustado", ao passo que asseverou "não ter sofrido nenhuma violência quando prestou depoimento na fase informativa".

          Mesmo estando desempregado e com sérias dívidas, o acusado resolveu passar alguns dias no Rio de Janeiro: "que não chegou a arrumar emprego depois de ser licenciado...que viajou ao Rio de Janeiro para ir à formatura na ESIE de um amigo...que à época dos fatos tinha uma dívida com o Major Mezzono...que a mãe do acusado disse para o major que iria vender um terreno para pagar a dívida."

          Vacila ao referir-se ao número de mochilas utilizadas na viagem ao Rio de Janeiro: "que levou para o Rio uma mochila com roupas... melhor esclarecendo, levou uma mochila pequena, uma sacola branca e outra mochila pequena, tudo com roupas...que na semana que viajou pegou uma mochila na casa de sua mãe...que esta mochila não utilizada na viagem...que não se lembra se a mochila que pegou na residência de sua mãe foi utilizada na viagem".

          Mesmo sem conhecer o suposto segurança, o acusado permite que o mesmo deixe uma caixa em seu quarto,para depois afirmar que descobriu a munição e de imediato foi "pedir" ao misterioso segurança que a retirasse, vindo a receber um tiro: "que o acusado não lembra o nome do segurança...que o acusado não sabia o que existia dentro das caixas...que o acusado ficou sabendo ao examinar o material que se tratava de munição e foi pedir para o segurança retirar o material de seu quarto" - ressalte-se que esta munição, segundo laudo pericial acostado aos autos, é a mesma furtada da Unidade Militar.

          Quanto à munição de festim primeiro afirma: "que além da munição de festim, acima citada, não guardou nenhuma munição como sobra de tiro" para mais tarde apresentar a versão de que " a munição foi retirada do quartel por engano já que estava junto aos fardamentos e o acusado não notou quando pegou todos os seus pertences por ocasião da baixa".


Da prova testemunhal

          São bem conhecidos os debates e os estudos sobre o valor da prova testemunhal, atribuindo uns o seu fundamento à presunção da veracidade humana ( V. Malatesta, A Lógica das Provas em Matéria Criminal) enquanto outros, como Manzini, entendiam que tal presunção era contrária à realidade. Outros mais proclamaram a falência do testemunho, como BINET, STERN, CLAPAREDE, BORST, DUPRÊ , LIPMANN, conforme estudos resumidos por Juliano Moreira, que lhes juntou observações originais, como referiu Afrânio Peixoto, para quem o testemunho não valia a menor das provas substanciais ( Vide "Medicina Legal", vol. 2, 1.938, pg.160).

          Para Bentham, as testemunhas eram os ouvidos e os olhos da justiça, ponderando Pincherli " que os sentidos enganam a razão, com as aparências falsas .... de modo que aqueles olhos e aqueles ouvidos das testemunhas, com os quais, segundo a imagem de Bentham , o juiz contempla os crimes e ouve a voz dos réus, são muitas vezes, olhos que não vêem e ouvidos que não escutam, prerrogativa que o profeta referia ao povo de Jerusalém, mas que Giuriati declarou extensiva a todo o mundo " ( Vide Eduardo Espínola Filho, Código de Processo Penal Anotado, vol. 3, 1.955, pag. 75) .

          No entanto, como bem registra Eduardo Espínola Filho, a razão já estava com Floriam ( Delle Prove Penali, 2 - 1.926) , " sendo a prova testemunhal, no quadro das provas, a em que o processo penal se inspira mais copiosamente, pois o testemunho é o modo mais óbvio de recordar e reconstituir os acontecimentos humanos, é a prova em que a investigação judiciária se desenvolve com maior energia " , " quase nenhum processo pode desenvolver-se sem testemunhas; o processo concerne a um pedaço de vida vivida, um fragmento de vida social, um episódio da convivência humana, pelo que é natural, inevitável, seja representado mediante viva narrativa das pessoas " . É a prova testemunhal um dos meios que permitem ao juiz, a reconstituição dos fatos, revivendo as circunstâncias do caso.

          "In casu", a prova testemunhal é desfavorável à versão apresentada pelo acusado quando do seu interogatório, na fase judicial.

          A testemunha Jorge Olavo Amaral dos Santos, em depoimento de fls. 501/502 afirmou ter dado uma carona para o acusado, no dia da viagem " que na ocasião em que entrara no seu carro XXXXXXX portava uma sacola preta grande, ao que parece de nylon e uma outra sacola de supermercado onde havia uma caixa de papelão pequena...que dali se dirigiram até a residência da genitora do acusado, onde o mesmo disse que iria pegar algumas roupas e outras coisas para a viagem que faria para Campo Grande/MS, a fim de visitar o seu pai que estava doente...após uns 15 minutos, XXXXXXX saiu de uma construção existente ao lado da casa de sua mãe carregando uma sacola verde de pano muito pesada, colocando-a no porta-malas do carro...para em seguida aparecer um senhor moreno carregando uma sacola preta, também cheia que pela dificuldade de carregar, demonstrava estar muito pesada, a qual também foi posta no porta-malas, ocasião em que o depoente, estranhando o peso da sacola, pois XXXXXXX dissera que buscaria apenas roupas, perguntou se as mesmas continham chumbo, respondendo XXXXXX que era quase o mesmo; que dali o levou até o local onde residia o Sgt. Maia onde o mesmo retirou a sacola do carro; que em momento algum XXXXXXX falou sobre a viagem que faria ao Rio de Janeiro".

          Vejamos o depoimento do 3º Sgt. Ex. Mayer - o mesmo Sgt. Maia citado anteriormente - fl. 503 :

          "que o depoente e o ora acusado moravam juntos de agosto de 1995 a setembro de 1996, aproximadamente...que houve um período em que o ora acusado trabalhava na função de Sgt. de tiro...que XXXXXX nunca disse ao depoente que iria guardar munição no apartamento em que moravam juntos, como também não disse ter apanhado sobras de munição...que em determinado dia, ao que se recorda no mês de out/96, encontrou-se com o ora acusado, na calçada defronte ao prédio onde residia, ocasião em que XXXXXXX relatou que iria viajar p/ Campo Grande/ MS, a fim de visitar seu pai, tendo pedido ao depoente que cuidasse uma caminhonete Pampa azul na qual pegaria uma carona até a rodoviária, pois precisava primeiro comprar algumas coisas no supermercado; logo a seguir, XXXXXXX voltou com duas mochilas, ao que se recorda uma de cor neutra, cinza ou preta, que colocou no bagageiro da caminhonete, para logo em seguida se despedir do depoente e seguir viagem".

          Assim percebe-se que o acusado nada falou com o Sgt. Mayer sobre a munição de festim, bem como as mochilas estavam na casa ao lado da residência da genitora do denunciado e que este mentiu ao dizer que iria para Campo Grande/MS visitar o pai doente.

          Os depoimentos de fls. 555/556 e 578/579 confirmam que o Sgt de tiro recebia as munições e deveria devolver as sobras.

          Em igual sentido o testemunho do 1º Ten. Humberto Buarque Galvão Júnior, colhido às fls. 614/616.

          A testemunha Alceri Luiz Schiavini, funcionário do Hotel Flumi, afirmou que " o acusado transportava uma mochila às costas, não sabendo precisar se pesada ou não, e mais dois embrulhos às mãos, que lhe pareceram pesados vez que obrigavam a que o acusado parasse de quando em quando para um breve descanso...que presenciou a abertura do apartamento utilizado pelo acusado e, em prosseguimento, de duas caixas de papelão onde foi encontrado munição de fuzil".

          As testemunhas arroladas pela defesa nada acrescentaram sobre o fato ( fls. 715/717).


Da prova pericial

          O laudos periciais de fls. 727/728 e 735 definem ser a munição pertencente à carga do Exército, cujo valor está estimado em R$ 896,35 (oitocentos e noventa e seis reais e trinta e cinco centavos).

          A correpondência do material recuperado com o material furtado encontra-se demonstrada às fls. 758/768.


Da confissão

          O Juiz criminal aprecia as provas colhidas à luz do "livre convencimento motivado", assim é que avalia o conjunto probatório produzido e revela na decisão a importância e a validade de cada prova no seu juízo de certeza acerca dos fatos.

          O livre convencimento concede ao magistrado a possibilidade de decidir, lastreado em qualquer das provas, conforme sua compatibilidade com o restante material probante contido nos autos. Assim passado o nefasto período da prova tarifada, no qual cada prova tinha um valor específico, pode-se, hodiernamente, aferir o valor de prova de acordo com sua credibilidade.

          Uma decisão pode se basear em prova colhida no inquérito policial, desde que corroborada por outros elementos hauridos durante a instrução criminal. Na confissão de autoria "vale não pelo lugar em que é prestada mas pela força de convencimento que nela se contém" pelo que a confissão extrajudicial não deve ser desprezada quando se harmoniza e se ajusta à prova colhida em juízo , sob o crivo do contraditório.

          A Jurisprudência é pacífica ao conferir maior credibilidade à confissão extrajudicial que à retratação em Juízo, desde que a primeira esteja de acordo com as demais provas e circunstâncias dos autos, e a segunda, totalmente inverossímil e desgarrada do conjunto probatório.

          Nas palavras do Mestre Espínola Filho, in Código de Processo Penal, 3º vol., p.52, " ...o termo de confissão permanece nos autos e, procedendo à livre apreciação da prova, no seu conjunto, o Juiz, para formar a sua íntima convicção, aferirá, cuidadosa e conscientemente, o valor que tem as declarações do réu, ao aceitar a realidade da acusação e, depois, ao repeli-la, retratando-se."

          A confissão extrajudicial pode ser retratada , no entanto, é necessário que o confitente esclareça seus motivos e que indique provas do alegado. Dessa forma, o réu pode retratar-se, porém não basta a simples negação, quando as demais provas lhe são desfavoráveis.

          Afinal, a simples retratação em juízo sem ressonância nos autos não invalida a confissão feita no inquérito policial Forçosa a conclusão de que a confissão extrajudicial, isolada, não constitui prova suficiente para a condenação e, mesmo a confissão em juízo, à míngua de outras provas, deve ser analisada com sérias reservas, vez que pode ser fruto de ingerências externas, tais como, ameaças ou uma tentativa de encobrir o verdadeiro autor do fato típico.

          Em verdade, a confissão extrajudicial por não sofrer o crivo do contraditório, não pode ser considerada como um prova válida, tão somente um elemento de convicção do magistrado, que, se condena, assim o faz à luz do restante conjunto probatório e não sobre a base de uma confissão isolada.

          Assim a manifestação juspretoriana:

          "A confissão prestada no I.P.M., desde que corroborada por todas as circunstâncias apuradas em relação ao crime, prova a autoria" ( STM - Ap. nº 34.648/SP - Rel. Min. João Romeiro Neto).

          "Provas colhidas na fase de inquérito. É pacífico o entendimento jurisprudencial no sentido de que, sendo o conjunto probatório coerente com as declarações prestadas no inquérito, onde o réu admitiu sua participação no crime, mesmo que este se retrate durante a instrução criminal, pode o Juiz valer-se dos elementos informativos colhidos naquela fase, em harmonia com outras provas obtidas para, então, concluir-se pela responsabilidade penal do acusado. Decisão Unânime" ( STM - Ap. nº 47.452-8 / RJ - Rel. Min. Ten. Brig. do Ar Cherubim Rosa Filho).

          A seródia retratação do denunciado não invalida a confissão efetuada no IPM, esta lançada com detalhes que encontram perfeita compatibilidade com as demais provas colhidas na fase judicial.


Da adequação típica

          Inteira razão assiste ao MPM ao sustentar a acusação na implementação da conduta descrita no art. 303, §2º, do Código Penal Militar.

          O denominado "Peculato-Furto" nada mais é do que o furto cometido pelo militar, valendo-se de sua condição perante a Administração Militar.

          O acusado exercia as funções de Sgt. de Tiro e aproveitando-se de tal situação subtraiu as munições referidas na inicial.

          Sobre as funções do Sgt. de Tiro valiosa a informação de fl. 735, lançada pelo Ten. Cel. José Marcos Falcão de Souza - Comandante do 4º RCB, "in verbis":

          "Não existe documento regulamentar que liste as normas, atribuições e responsabilidades do "Sargento de Tiro da Unidade ou Subunidade". As mesmas decorrem de práticas consuetudinárias e louvam-se, no que for aplicável, nas atribuições do Oficial de Munições e Manutenção de armamento, previstas no art. 33 do Regimento Interno e dos Serviços Gerais (RISG). Não obstante, cito também como orientação a respeito nota de aula da Escola de Sargentos das armas, cujo extrato acosto ao presente expediente.

          Nesse contexto, são atribuições do "Sargento de Tiro de Subunidade":

     1. Confeccionar os Pedidos de Tiro da Subunidade;
     2. Confeccionar os Borrões de Tiro da Subunidade;
     3. Auxiliar na condução da instrução de Tiro da Subunidade;
     4. Participar ao Cmt. Subunidade o número de tiros dados por arma;
     5. Coordenar a confecção de alvos para emprego na instrução de tiro da Subunidade;
     6. Restituir ao Oficial de Munições da Unidade os estojos vazios e a munição não consumida após cada instrução de tiro realizada".

          Bem assim, ao aproveitar-se da função que lhe facilitava o acesso às munições para promover as subtrações, o acusado cometeu conduta típica definida no art. 303, §2º, do Código Penal Militar.

          De específico, trago à colação julgados do Colendo Superior Tribunal Militar :

          "Peculato-Furto. Art. 303, §2º, do CPM. Caracteriza-se o Peculato-Furto quando o agente, embora não tenha a posse ou detenção da "res furtiva", vale-se, para a subtração, da facilidade proporcionada pela condição de militar. "In casu", o livre acesso à reserva de armamentos, para receber e devolver armas, já propiciado por tal condição, foi ainda mais facilitado pela circunstância de o agente estar designado para missão fora do quartel que o autorizava a receber arma. Recurso do MPM provido parcialmente. Decisão Unânime" ( STM - Ap. nº 44.584-6 - Rel. Min. Paulo César Cataldo ).

          "Peculato-Furto.Desclassificação impossível. Configura-se a hipótese do art. 303, §2º, do CPM, quando o agente se apropria de bem público, valendo-se da facilidade que lhe proporciona a qualidade de militar. Impossibilidade de desclassificação para o crime de furto. Decisão Unânime. ( STM - Ap. nº 47.146-4 - Rel. Min. Antônio Carlos de Nogueira).

          Bem delimitados pois a autoria e materialidade em sua correta adequação típica.


Do crime continuado

          O crime continuado define-se pelo dolo de execução descontinuada, valendo-se da mesma ocasião, ou no dizer de Von Weber, um dolo dirigido à realização descontínua de um resultado total.

          Segundo Àlvaro Mayrink da Costa :

          "O crime continuado é uma ficção jurídica imposta pela necessidade de tratar mais benignamente o autor de diversas infrações concorrentes... a culpabilidade diminuída é o fundamento teórico dogmático do instituto, conservando-lhe o caráter de benignidade, destinado a ensejar uma justa punição e, finalisticamente, ligado à individualização da pena ( "Crime Militar", ed. Rio, 1978, pg. 224).

          O acusado, por três vezes, subtraiu munição, conforme sua confissão no IPM e a prova testemunhal colhida em juízo.

          Para tanto, valeu-se das mesmas condições de tempo, lugar e maneira de agir, o que dá azo ao reconhecimento do crime continuado.


Da aplicação nos moldes definidos no CPM

          I) Da injustiça e da desproprocionalidade

          O crime continuado é uma forma especial de concurso de crimes cujo reconhecimento depende da existência de dois ou mais crimes que dadas as condições de tempo, lugar e maneira de execução são considerados, por uma ficção jurídica, como um crime único.

          Eis a norma conforme o Código Penal Militar :

          "Art. 80 - Aplica-se a regra do artigo anterior, quando o agente, mediante mais de uma ação ou omissão, pratica dois ou mais crimes da mesma espécie e, pelas condições de tempo, lugar, maneira de execução e outras semelhantes, devem os subsequentes ser considerados como continuação do primeiro".

          A norma do artigo anterior dispõe : " quando o agente, mediante uma só ou mais de uma ação ou omissão, pratica dois ou mais crimes, idênticos ou não, as penas privativas de liberdade devem ser unificadas. Se as penas são da mesma espécie, a pena única é a soma de todas; se, de espécies diferentes, a pena única é a mais grave, mas com aumento correspondente à metade do tempo das menos graves, ressalvado o disposto no art, 58."

          Mais ainda :

          "Art. 81, §1º - A pena unificada pode ser diminuída de um sexto a um quarto, no caso de unidade de ação ou omissão, ou de crime continuado".

          Essa causa de diminuição de pena revela uma tentativa de individualização da pena, porém foge ao princípio da proporcionalidade, dado que determina a soma de todas as penas e só depois aplica a referida diminuição, ou seja, só tenta a adequação quando o "mal" já está feito, ou seja, uma pena excessivamente severa.

          Sobre o assunto, relembro o Min. Paulo César Cataldo que lucidamente ponderou "às vezes a pena pode ser pior do que o crime".

          O injusto e desproporcional tratamento dispensado pelo CPM quanto se trata do crime continuado é também assistemático, vez que a nova parte geral do Código Penal Comum ( Lei nº 7.209/84), repetindo a anterior, manda aplicar ao crime continuado a pena de um só dos crimes se idênticas, ou a mais grave, se diversas, aumentada em qualquer caso de um sexto a dois terços (art.71). E o Código Penal Militar, anterior de 1944, também assim dispunha (art. 66, §2º)".

          Sobre a utilidade social da pena, trago à colação ensinamento do ilustre Min. Ernani Sátyro :

          "A pena é um instrumento de defesa do organismo social, não de devolução do mal recebido".

          Cabe ao magistrado ter em mira um ideal superior de justiça, considerando todos os elementos que informam a vida do homem e sociedade.

          Afinal, "toda ciência que se limita aos textos de um livro e despreza as realidades é ferida de esterilidade". Pretender que o Direito não seja dinâmico é contrariar a própria evolução humana, em constante mutação.

          Bem define Enneccerus : "o Direito constitui apenas um fragmento da nossa cultura geral, que é particular e inseparavelmente ligada às correntes de idéias e necessidades éticas e econômicas". Nesse raciocínio, as mudanças sociais e econômicas constituem o fundamento de toda a evolução jurídica, deve pois a norma refletir em suas disposições toda a evolução social. Assim, tal posicionamento não conduz ao arbítrio do juiz, atento aos ditames da lei, que em si já contém um princípio de justiça, porém há casos em que a interpretação mais justa exige que o aplicador busque elementos na sociedade, afinal o justo se define na atualidade de cada momento.

          Bem assim a manifestação da mais alta Corte Castrense :

          "Receptação. Crime Continuado. Civil, que, em três oportunidades, adquire armas furtadas do Exército Brasileiro. Reconhecimento da continuidade delitiva, o que impõe a consideração dos atos subsequentes como continuação do primeiro e, em conseqüência, a aplicação da pena como se fosse o delito único, embora perpetrado parceladamente; aplicação, para a fixação de reprimenda, de critério inspirado na previsão ínsita no Código Penal para a apenação de crimes continuados, afastada, pois, a drasticidade do preceituado no diploma substantivo castrense sobre a matéria; impossibilidade de o Poder Judiciário, na unicidade de sua atuação e no seu papel de aplicador sistemático do ordenamento jurídico, chancelar a diversidade da lei diante de hipótese verdadeiramente iguais, o que ocorreria caso se aplicasse, "in casu", a previsão ínsita no CPM sobre o crime continuado nos estritos limites de sua literalidade; apenação que resultou exagerada, cabível, pois, a sua redução; decisão por maioria" (STM - Ap. nº 47.161-1/PA - Rel. Min. Gen. Ex. Antônio Joaquim Soares Moreira).

          Em termos de continuidade delituosa, compreensão estritamente técnica da matéria torna quase impossível, na generalidade dos casos, unificação de penas, levando ao exagero punitivo que a ficção da continuidade procura evitar; necessária uma apreciação casuísta com justas a uma justa individualização das reprimendas.

          Não se trata de criar soluções para cada caso, mas que em cada caso se aplique o direito em toda a sua extensão, operação esta que exige conhecimento apurado, mas, sobretudo, bom-senso e ponderação do intérprete da norma. Assim, quando a lei não atende aos anseios sociais, o intérprete deve buscar nos princípios gerais do Direito a melhor solução para o acomodamento da sociedade.

          Não nos esqueçamos de que o Direito é um meio e o fim almejado é o bem-estar e a paz pública, dessa forma as normas escritas devem ser objeto de constante observação para aferição de sua adequação às transformações sociais, a fim de que se faça da lei, verdadeiro instrumento de justiça.

          Porém, ocorrendo dúvida entre o legal e o justo, não tenhamos dúvida em optarmos pelo último, por certo, haverá de existir um princípio jurídico que sustente tal opção, relembremos o valioso conselho de Portalis, inserto no Discurso Preliminar do Projeto do Código de Napoleão : "Apodere-se a jurisprudência, dos interesses que a lei não satisfez, proteja-os e, por meio de ensaios contínuos, faça-os prevalecer".

          A tanto, novamente reproduz-se julgados do Colendo STM, altaneira corte, reconhecida por seu espírito democrático e senso de justiça :

          "Peculato com continuidade delitiva. O atendimento literal do pedido do MPM conduziria o Julgador à aplicação de pena extremamente severa: 12 anos de reclusão. Fatores de ordem humanitária, neste caso especialíssimo, levam a Corte à aceitação do quantum da pena fixada na Sentença, na forma estabelecida ( STM - Ap. nº 47.339-4/RJ - Rel. Min. Aldo Fagundes).

          Vale a ponderação: interpretar é descobrir o sentido e o alcance da norma, segundo Caldara "pode-se procurar e definir a significação de conceitos e intenções, fatos e indícios; porque tudo se interpreta; inclusive o silêncio".

          Por mais clara que seja uma norma, ela requer sempre interpretação. Necessário pois, compreender a norma na plenitude de seus fins sociais, a fim de determinar o sentido de cada um de seus dispositivos.

          A finalidade da norma é sempre preservar um valor, assim ao seu descumprimento associa-se a figura da sanção como forma de impedir a ocorrência do desvalor. O real sentido da lei é aferido quando observarmos o contexto social e normativo na qual aquela encontra-se inserida.

          Neste diapasão, a boa hermenêutica indica a pesquisa sistemática do ordenamento jurídico, para a mais correta aplicação da lei, afinal, já não se admitia em Roma que o juiz decidisse tendo em mira apenas uma parte da lei, cumpria examinar a norma em conjunto: "é contra o Direito julgar ou emitir parecer, tendo diante dos olhos, ao invés da lei em conjunto, só uma parte da mesma".

          Não basta pois, escolher um artigo para interpretar sem ter-se a visão global da lei em todos seus aspectos, buscando-se uma avaliação quanto ao valor eleito e a finalidade almejada.

          Entendendo-se, genericamente, o bem-estar e a paz pública como finalidades primeiras da norma, necessária a aferição do valor para aplicação daquela. Por certo, a valoração é, essencialmente, bipolar, define-se entre duas situações : presença e ausência; belo e feio... justo e injusto.

          Porém, relembremos o Ministro Carlos Maximiliano : "deve o intérprete, acima de tudo, desconfiar de si, pesar bem as razões pró e contra, e verificar, esmeradamente, se é a verdadeira justiça, ou são idéias preconcebidas que o inclinam neste ou naquele sentido. Esteja vigilante o magistrado, a fim de não sobrepor, sem o perceber, de boa fé, o seu parecer pessoal à consciência jurídica da coletividade".

          No entanto, essa preocupação não deve conduzir à uma aplicação fria da lei. A antiga parêmia - "faça-se justiça, ainda que o mundo pereça" - não prevalece, pois o direito visa harmonizar as relações intersubjetivas através de norma de conduta gerais e abstratas formuladas de acordo com os anseios de cada corpo social.

          O direito, nas palavras de Celso, é " a arte do bem e da equidade", deve-se pois, indicar a justiça de cada caso, sempre interpretando o texto legal às realidades e às exigências da vida moderna.

          A aplicação do frio e inerte preceito normativo ao caso concreto, pulsante porque atual, exige extremado senso de justiça do julgador, afinal "o Direito prevê e provê; logo não é indiferente à realidade. Faça-se justiça; porém salve-se o mundo, e o homem de bem que no mesmo se agita, labora, produz". Faça-se pois, a justiça a seu tempo e na medida exata das aspirações do homem, origem e fim do direito.

          Assim, outro não poderia ser o posicionamento do Superior Tribunal Militar :

          "A Legislação Penal Castrense, ao determinar o somatório das penas, nos casos de crime continuado, faz vista grossa ao instituto quando penaliza o mesmo igual ao concurso de crimes. A pena deve ser proporcional ao delito praticado. A desproporcionalidade da pena a torna injusta e não responde aos anseios da verdadeira Justiça" ( STM - Embargos nº 47.339-8/RJ - Rel. Min. Olympio Pereira da Silva Júnior).

          Afinal, no sentir de Stammler : "Sumo direito é suma injustiça. O juiz muito rígido na administração da justiça ofende a prudente intenção do legislador e incomoda os povos".

          II -Da não-receptação pela C.R. / 88

          É da norma constitucional :

          "a lei regulará a individualização da pena" (art. 5º, XLVI)

          No tocante à aplicação da pena, o CPM trata igualmente o Concurso de Crimes e o Crime Continuado, só deferindo a este último uma causa de diminuição, somente após a soma de todas as penas, situação que vulnera a norma constitucional da individualização da pena, bem como o princípio da proporcionalidade, quando da atuação estatal.

          No mesmo diapasão dos julgados da mais alta Corte Castrense, o tratamento do crime continuado, nos moldes definidos pelo CPM, é desumano e desproporcional. E justamente por ser desproporcional não consegue a referida norma atender o princípio constitucional referente à individualização da pena.

          A isonomia de tratamento no processo é decorrência de princípio constitucional ( art. 5º, caput, da Lex Legum), consubstanciado no amplo direito de defesa, no contraditório, na individualização da pena.

          A certificação do direito exige uma sintonia apurada do julgador com os avanços sociais e, sobretudo, atenção aos novos anseios que surgem numa sociedade em constante mutação.

          Ao juiz, ensinava Aristóteles, compete restabelecer a igualdade: "ò dé dicastes epanisoi"; pois de uma linha cortada em partes desiguais, separa o juiz o pedaço que excede, ligando-o ao pedaço menor, para que ambos se igualem ( "Ética à Nicômaco, V, 4, 25).

          O Juiz, como condutor da relação processual, assume a condição de terceiro desinteressado, não porque dotado de absoluta imparcialidade, que deriva da suprema sabedoria e isenção suprema, e sim por se configurar - o magistério é de Calmom de Passos - estranho à relação que deve disciplinar como magistrado. Porém o juiz não é, exatamente, um terceiro desinteressado, pois, interessa-lhe a causa da Justiça .

          Nesta busca, não queremos o arbítrio do magistrado. Pretende-se, entretanto, quando a lei não ordene com uma certeza imperativa, que o juiz possa marchar com seu tempo, possa levar em conta os costumes e usos que se criam, idéias que evoluem, necessidades que reclamam uma solução de justiça.

          Vale ressaltar, que a tanto não implica na aceitação da liberdade extrema do julgador, pois deve ater-se às leis e aos fatos, porém não nos esqueçamos que na dúvida entre o direito e justiça, não há como hesitar em definir-se pelo justo. Mantida a igualdade material e processual, cabe ao juiz "dar a cada um o que lhe pertence", simplesmente definindo o justo conforme as leis e a prova colhida nos autos.

          Adverte Henkel, "o direito não é meramente um plano ou proposta de comportamento, mas sim exigência de determinadas condutas ( "Introducción a la filosofia del derecho, Taurus, Madrid, 1968, pp. 152 e 160).

          De resto, não se pode olvidar que "um direito", isto é, um direito desarmado, desprovido da possibilidade de dirigir e executar atos de força contra aqueles que não cumprem suas prescrições, só poderia ser um direito simplesmente pensado ou projetado, ou melhor, um direito derrogado, ou seja, em todos esses casos, um não-direito ( "Derecho, Desobediência y Justicia, Ed. Edeval, Valparaiso, 1992, p. 113).

          A força e a necessidade do Direito é distribuir justiça no intuito de manter a paz social. A tanto espera-se um ordenamento jurídico consentâneo com as necessidades de seu tempo e magistrados imbuídos na causa da Justiça, razão e sentido de nossas condutas.

          Toda norma, segundo Canotilho, aspira à credibilidade como ordem justa, no sentido de que estabelece estruturas básicas de justiça assentes na força consensual e compromissória dos atos de domínio.

          Com a edição de uma nova Constituição inaugura-se uma nova ordem jurídica, agora sustentada nos novéis princípios e normas advindos da nova Carta. Por certo, desnecessária a renovação de todo o ordenamento jurídico, porém as normas antigas para continuarem válidas hão de manter uma relação de compatibilidade com a Lex legum, do contrário, não serão recebidas pelo novo sistema constitucional.

          Dessa forma, com o advento da Constituição da República de 1988, a norma inserta nos art. 80 e 81, referentes ao crime continuado, não encontram sustentáculo de validade de esteio jurídico, vez que conflitantes com a norma maior, dado que não fornecem critério seguro e justo para a individualização da pena, violando assim os princípios da isonomia e da proporcionalidade da ação estatal, não sendo pois recebidas pela nova ordem constitucional.

          Com efeito, o Código Penal Militar editado em 1969 não teve seu art. 80 recebido pela nova ordem constitucional erigida em 1988.

          Na impossibilidade de manter-se um "vazio normativo" ante a inaplicabilidade das citadas normas, mormente por implicar prejuízo aos acusados, atentando-se aos princípios da isonomia e do "Favor rei", dá-se concretude à afirmação do Professor Giuseppe Sabatini, "em virtude da qual a posição do sujeito que deverá padecer uma limitação na própria esfera de sua liberdade jurídica "è favorita dall’ordinamento giuridico nel sendo che tal limitazione sai sempre la meno gravosa possibile nel regolamento degli opposti interessi", assim tal tarefa torna-se menos árdua ante a aplicação analógica do disposto no Código Penal Comum, em relação ao crime continuado, é da referida norma :

          "Art. 71. Quando o agente, mediante mais de uma ação ou omissão, pratica dois ou mais crimes da mesma espécie e, pelas condições de tempo, lugar, maneira de execução e outras semelhantes, devem os subsequentes ser havidos como continuação do primeiro, aplica-se-lhe a pena de um só dos crimes, se idênticas, ou a mais grave, se diversas, aumentada, em qualquer caso, de um sexto a dois terços".

          Assim, vez que não recepcionada pelo texto constitucional, nega-se aplicação à norma inserta nos arts. 80 e 81, do CPM, referentes ao crime continuado, e integrar por analogia, a situação analisada nos presentes autos, ao disposto no art. 71 do Código Penal Comum.


Da dosimetria da pena

          O denunciado ofendeu ao Patrimônio Militar; não apresenta personalidade voltada ao delito; laborou com alto grau de reprovação, mormente porque exercia o encargo de "Sargento de tiro" e por intentar destinar o objeto furtado para o submundo do crime; não registra antecedentes criminais; grande parte da munição furtada foi recuperada; revela profundo arrependimento pela conduta delituosa.

          Em sua trajetória de "ingênuo" metido a gato-mestre, travou contato com crime organizado, do qual resultou um grave ferimento na perna dado um tiro recebido.

          Ademais, o denunciado passou cerca de cinco meses em um presídio (fls. 390 e 633), fato que, objetivamente, será considerado para fins de detração penal, porém, subjetivamente há de ser considerado quando da fixação da pena base.

          Valiosa a questão levantada por Modermann: "quantos quilos de ferro serão necessários para a confecção de uma camisa de tecido ?".

          Bem assim a relação entre o delito e a pena. A pena não apaga a lesão, tampouco estabelece correta relação de correspondência com o evento lesivo, pois substancialmente diferentes.

          Deve-se punir porque pecou e para que não se volte a pecar, tudo em sua exata medida, pois a pena muito branda torna-se inócua ao reverso da pena muito severa que conduz à "morte civil" do agente.

          Assim, não esqueçamos que através da pena deve-se procurar resgatar o agente como elemento útil à sociedade.

          "In casu", o denunciado já está trabalhando, demonstrando seu reengajamento ao tecido social.

          Tudo bem sopesado, aplica-se a pena-base de 03 anos e 06 meses de reclusão. Levando-se em conta que, à época dos fatos, o agente era maior de 18 e menor de 21 anos de idade, na forma do art. 72, inc. I, do CPM, atenua-se a pena em 06 meses. Reconhecida a continuidade delitiva, nos moldes do Código Penal comum, dadas as três subtrações, aplica-se a majorante prevista no art. 71, CP, esta arbitrada em 1/3, delimitando-se a pena definitiva em 04 anos de reclusão.

          Posto isto, resolve o Conselho Permanente de Justiça para o Exército, por unanimidade de votos, julgar procedente, em parte, a denúncia e conseqüentemente, por maioria, CONDENAR o acusado XXXXXXXXX à pena de 04 (quatro) anos de reclusão, como incurso nas sanções do art. 303, §2º c/c art. 72, inc. I, ambos do Código Penal Militar, á luz do art. 71 do Código Penal Comum, este aplicado em integração analógica, dado o reconhecimento da não-recepção da norma ínsita no art. 80 do CPM, frente a Constituição da República de 1988.

          Reconhece-se, por unanimidade, o direito de recorrer em liberdade, vez que a certidão de fl. 710, não induz ao reconhecimento de maus antecedentes, conforme art. 527, do CPM c/c art. 76, §4º, da lei nº9099/95.

          O regime inicial de cumprimento será o aberto, nos termos do art. 33, §2º, alínea "c", do Código Penal Comum.

          Na execução da pena observar-se-á a detração prevista no art. 67 do Código Penal Militar.

          Anote-se. Registre-se. Comunique-se. Intime-se.

          Publicada em sessão. Partes intimadas.

          Sala das Sessões dos Conselhos de Justiça da 3ª Auditoria da 3ª Circunscrição Judiciária Militar, nesta Cidade de Santa Maria, Estado do Rio Grande do Sul, aos doze (12) dias do mês de março do ano de mil novecentos e noventa e oito (1998).

Ten. Cel. Cav. Cesar Henrique Pacheco Brandão
Presidente

(Voto Vencido: Pela condenação à pena de quatro anos de reclusão,
por cometimento de fato definido no art. 240, §5º, do CPM)

Cap. Art. Sidônio Lopes Filho
Juiz

1º Ten. Eng. Luis Henrique Santos Franco
Juiz

2º Ten. Com. Cláudio Canto dos Santos
Juiz

José Barroso Filho
Juiz-Auditor Substituto


Autor

  • José Barroso Filho

    José Barroso Filho

    magistrado da Justiça Militar da União, professor universitário, doutorando em Administração Pública pela Universidad Complutense de Madrid (Espanha), mestre em Direito pela UFBA, especialista em Direito Público pela UNIFACS, pós-graduado pela Escola Judicial Edésio Fernandes/MG e pela Escola de Formação de Magistrados/BA, conferencista da Escola de Administração do Exército (ESAEX), diretor científico do Centro de Cultura Jurídica da Bahia (CCJB), membro do Núcleo de Ação Social (CORDIS), ex-juiz de Direito em Minas Gerais e Pernambuco, ex-promotor de Justiça na Bahia

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Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

BARROSO FILHO, José. Crime continuado no Código Penal Militar: derrogação da cumulatividade das penas. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 4, n. 34, 1 ago. 1999. Disponível em: https://jus.com.br/jurisprudencia/16380. Acesso em: 29 mar. 2024.