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Critérios para a fixação do dano moral coletivo em caso de trabalho degradante e análogo à condição de escravo.

Aplicação do art. 23, incisos I e II, da Lei nº 8.884/94

Critérios para a fixação do dano moral coletivo em caso de trabalho degradante e análogo à condição de escravo. Aplicação do art. 23, incisos I e II, da Lei nº 8.884/94

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A proposta desse trabalho é adicionar mais um critério fundamentado na referência analógica do art. 23, incisos I e II, da Lei 8.884/94, a incidir tanto sobre a empresa como sobre os administradores direta ou indiretamente responsáveis pelas práticas violadoras da ordem jurídica.

INTRODUÇÃO

O estudo objetiva identificar critérios para a fixação do dano moral coletivo no caso de trabalho degradante e análogo a condição de escravo.

Embora a jurisprudência já tenha apontado diversos parâmetros como a natureza e extensão do dano; o grau de culpa do agente; o porte da empresa; o agravo imposto às vítimas; o caráter pedagógico do dano; a baliza do enriquecimento sem causa, dentre outros, a proposta desse trabalho é adicionar mais um critério fundamentado na referência analógica do art. 23, incisos I e II, da Lei 8.884/94, a incidir tanto sobre a empresa como sobre os administradores direta ou indiretamente responsáveis pelas práticas violadoras da ordem jurídica.

Buscar-se-á demonstrar uma proximidade da prática de trabalho degradante ou análogo a condição de escravo com as infrações à ordem econômica, capaz de permitir uma construção interpretativa que aponta para adoção dos critérios de penalidades às infrações a ordem econômica para a fixação do dano moral coletivo.

Essa construção interpretativa inicia por uma análise dos princípios constitucionais da atividade econômica, passa por um estudo dos efeitos econômicos da utilização de trabalho em condições degradantes ou análogo a condição de escravo e conclui por uma similaridade das racionalidades que informam a tutela do trabalho e a tutela da ordem econômica.


1. TRABALHO EM CONDIÇÕES DEGRADANTES COMO VIOLAÇÃO DA ORDEM ECONÔMICA

São recorrentes no texto constitucional os dispositivos consagradores da dignidade da pessoa humana, seja de forma expressa, seja de forma indireta, através da tutela de elementos necessários a uma existência digna do ser humano.

Contudo, um artigo em particular é relevante para os propósitos deste trabalho, o Art. 170, caput:

Art. 170. A ordem econômica, fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, tem por fim assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social, observados os seguintes princípios: (destacado)

Resta inconteste que a ordem econômica tem por fundamento a valorização do trabalho humano que tem por fim, assegurar uma existência digna, de acordo com os ditames da justiça social.

A utilização de trabalho degradante ou análogo a condição de escravo, de uma só vez, malfere este princípio de valorização do trabalho humano, inviabiliza a existência digna e está em total oposição aos ditames da justiça social. Logo, estamos diante de uma clara violação a ordem econômica.

Com efeito, trata-se de uma prática tão odiosa, incompatível com uma pletora de direitos e garantias fundamentais individuais e sociais de primeira grandeza que este aspecto de violação a ordem econômica tende a ficar eclipsado.

Na bela síntese de Marcello Ribeiro Silva:

Neste contexto, não é exagero afirmar que o trabalho análogo ao de escravo constitui a negação dos mais elementares direitos sociais trabalhistas, previstos no art. 7º da CF e na Lei n. 5.889/73; na violação das normas de segurança e saúde no trabalho rural, materializadas na NR 31; além de grave violação ao princípio da dignidade humana e ao direito fundamental de liberdade. [01]

Desta forma, mesmo que não seja sequer preciso configurar estas práticas como infrações à ordem econômica para encontrar uma miríade de fundamentos jurídicos e dispositivos que determinam o seu total expurgo da sociedade o estudo da questão sob esta angulação particular pode trazer novas perspectivas para o aprimoramento do combate às mesmas. Especialmente no tocante a fundamentação jurídica para a imposição de multas e penalidades robustas que efetivamente coíbam e desencorajem a adoção de tais práticas.

Firmada esta noção inicial de que temos uma violação à ordem econômica constitucional, podemos proceder a uma análise infraconstitucional.

A Lei 8.884/94 é decorrente do comando constitucional inserto no Art. 173, § 4º e objetiva a prevenção e a repressão às infrações contra a ordem econômica. O Art. 20 da referida lei, aponta quais são os atos ilícitos à ordem econômica:

Art. 20. Constituem infração da ordem econômica, independentemente de culpa, os atos sob qualquer forma manifestados, que tenham por objeto ou possam produzir os seguintes efeitos, ainda que não sejam alcançados:

I - limitar, falsear ou de qualquer forma prejudicar a livre concorrência ou a livre iniciativa;

II - dominar mercado relevante de bens ou serviços;

III - aumentar arbitrariamente os lucros;

IV - exercer de forma abusiva posição dominante.

Com efeito, pode parecer inusitado tentar enquadrar a utilização de trabalho degradante como uma infração à ordem econômica, porém, a lógica de violação constitucional acima exposta também encontra enquadramento na legislação infraconstitucional.

Inicialmente, cumpre destacar que a preocupação em tutelar a ordem econômica e a concorrência levaram o legislador a adotar termos vagos que demandam uma interpretação ampliativa. Além disso, referencia-se a precisa lição de Ivo Gico Jr.:

... a expressão "os atos sob qualquer forma manifestados" informa de maneira clara e irrefutável a inexistência de requisito formal intrínseco para a caracterização de uma conduta como anticompetitiva, qualquer ato, independentemente da forma, pode ser considerado uma infração. [...] Além disso, o art. 20 deixa claro que, uma vez identificada uma ação do sujeito investigado, sua caracterização como infração independe da forma como o ato se materializou. [02]

Logo, a prática de adotar trabalho em condições degradantes, embora não se amolde ao estereótipo mais usual de uma infração a ordem econômica (preços predatórios, formação de cartéis, abuso de posição dominante no mercado, dentre outras práticas e estratégias empresariais ilícitas) pode sim configurar uma infração a ordem econômica. A forma do ato em si não importa, mas sim a sua potencialidade de ocasionar os efeitos danosos previstos nos incisos.

Já no primeiro inciso, podemos identificar um potencial efeito da adoção de trabalho em condições degradantes, quando há a previsão de "... qualquer forma prejudicar a livre concorrência ou iniciativa.".

Os princípios da livre iniciativa e da livre concorrência se traduzem em pautas normativas que devem orientar a atuação dos poderes públicos, de modo a estimular a concorrência que, do ponto de vista econômico, é necessária ao desenvolvimento social.

Os mercados onde exista uma concorrência efetiva interessam às sociedades e são os preconizados pela moldura axiológica constitucional, uma vez que geram competição e, por conseguinte, mantêm os preços próximos ao custo de produção, possibilitando, a um maior número de pessoas, o acesso ao que é produzido.

Desse modo, a concorrência efetiva, enquanto mecanismo de proteção ao consumo e ampliação de acesso aos produtos, é o valor salvaguardado em nível constitucional. Sintetiza bem Rachel Sztajn:

Mercados livres, atomizados e concorrenciais, ou de concorrência perfeita, em que a barganha entre ofertantes e adquirentes é comum, são o modelo ideal para troca econômica. Por serem atomizados, dificultam aumentos arbitrários de preços, manipulação da oferta e, segundo a teoria econômica, promovem o bem-estar social. [03]

Uma empresa, ao adotar práticas de trabalho degradante, não pagar integralmente os direitos trabalhistas, nem incorrer nos custos necessários ao fornecimento um ambiente de trabalho adequado, está a reduzir os custos de produção de uma forma ilícita. Essa redução repercute tanto no preço do produto como no lucro auferido pela empresa e possui efeitos prejudiciais sobre o mercado e a concorrência.

A liberdade de iniciativa, entendida como o direito de entrar, sair e permanecer no mercado é malferida numa análise dinâmica dos efeitos da adoção dessas práticas odiosas por empregadores.

Inicialmente, cria-se uma barreira de entrada a novos competidores, uma vez que essa redução de custos com o trabalho gera para as empresas que dela se utilizam uma vantagem competitiva ilícita. Um novo agente no mercado que respeite a legislação trabalhista está em desvantagem de concorrência.

Outra barreira se forma a permanência no mercado, uma vez que a redução de custos com o trabalho é tão eficiente (por isso tão utilizada) que leva aos competidores lícitos e respeitosos da legislação laboral uma contínua defasagem frente aos competidores recorrem ao trabalho em condições degradantes.

A desobediência a normas legais e administrativas de regência de uma determinada atividade pode configurar infrações a ordem econômica. José Augusto de Souza Peres Filho, ao tratar de exemplos de infrações à ordem econômica, analisa com propriedade o caso do descumprimento da legislação sanitária, numa lógica que pode ser facilmente transportada para o caso do descumprimento de normas trabalhistas:

Quando o fornecedor está obrigado à observância de normas expedidas pelos órgãos oficiais competentes para colocar produto ou serviço no mercado, não poderá fazê-lo em desacordo com elas.

[...]

Tomemos, por exemplo, a legislação sanitária, que impõe a fornecedores dos mais diversos ramos, práticas de higiene e limpeza de empregados e instalações, que são onerosas (revestimentos específicos para pisos e paredes, instalações sanitárias adequadas, cozinhas dentro de determinados padrões, treinamento, capacitação e aperfeiçoamento de mão de obra etc.).

Ao tentar se enquadrar a essas normas, o fornecedor naturalmente, terá gastos (muitas vezes elevados), que deverão repercutir no preço dos seus produtos ou serviços, o que não ocorre quando o fornecedor desconsidera a legislação sanitária e coloca no mercado produtos ou serviços sem atender às exigências normativas específicas, obtendo uma vantagem ilícita sobre o seu concorrente que optou por cumprir a legislação e que teve que transferir para o consumidor os custos daí decorrentes, isso quando não teve retardada a abertura do empreendimento até cumprir integralmente as normas. [04]

Um argumento falacioso que se poderia levantar para defender que na realidade a ordem econômica não seria malferida é que os produtos, por serem mais baratos, são favoráveis ao consumidor. Independentemente do despautério ético que tal linha de argumentação constitui, ela também é equivocada do ponto de vista econômico, uma vez que o trabalho em tais condições não é sustentável e representa uma série de custos sociais (ausência de recolhimento de contribuições e encargos sociais devidos, aumento no número de acidentes de trabalho, aumento no número de aposentadorias por invalidez, dentre outros) que devem ser sopesados com essa pretensa "eficiência no preço".

Logo, resta inconteste que a adoção de práticas de trabalho em condições degradantes ou em condições análogas à de escravo não só pode representar como efetivamente representa efeitos lesivos à livre iniciativa e livre concorrência.

Dessa conclusão, é possível inferir uma diversidade de corolários. Por não ser o objeto primário deste estudo, indicaremos dois que reputamos interessantes, porém sem serem elaborados em maior extensão:

1. Os órgãos de fiscalização do trabalho podem efetivamente representar aos órgãos do sistema brasileiro de tutela da concorrência para que estes também investiguem, julguem e punam as empresas que utilizam trabalho em condições degradantes quanto ao prisma lesivo à livre iniciativa e concorrência desses atos;

2. O Ministério Público do Trabalho pode e deve atuar levando em consideração este aspecto. Trata-se de nova fundamentação que evidencia mais um aspecto lesivo dessas práticas aos direitos difusos da sociedade (direito a um mercado pautado pela livre iniciativa e concorrência).

Essa linha de raciocínio ora explicitada serve para lançar nova luz na proporcionalidade que deve reger a fixação do dano moral coletivo decorrente de situações de utilização de trabalho em condições degradantes ou em condições análogas à de escravo.

Reputa-se desnecessário incorrer nos debates sobre conceito, natureza, existência ou aplicabilidade do dano moral coletivo, vez que o mesmo é recorrente na praxe forense, em especial nos casos de trabalho em condições degradantes.

O foco do estudo será no critério adotado para a fixação do mesmo à luz da linha de argumentação construída nesse tópico.


2. FIXAÇÃO DO DANO MORAL COLETIVO

Consoante a lição de Xisto Tiago de Medeiros, o dano moral (ou extrapatrimonial) consiste em lesão injusta a interesses não materiais, sem necessário equivalente econômico, embora reconhecidos como valores jurídicos tutelados. Os exemplos mais usuais são o bem-estar; a intimidade; a liberdade; a privacidade; além de outros direitos da personalidade. [05]

O dano moral coletivo, por sua vez, volta-se para valores e para um patrimônio imaterial de coletividades, como é o caso da utilização de trabalho em condições degradantes.

Novamente, cite-se o entendimento de Xisto Tiago, para quem:

A idéia e o reconhecimento do dano moral coletivo (lato sensu), bem como a necessidade de sua reparação, constituem mais uma evolução nos contínuos desdobramentos do sistema da responsabilidade civil, significando a ampliação do dano extrapatrimonial para um conceito não restrito ao mero sofrimento ou à dor pessoal, porém extensivo a toda modificação desvaliosa do espírito coletivo, ou seja, a qualquer ofensa aos valores fundamentais compartilhados pela coletividade, e que refletem o alcance da dignidade dos seus membros. [06]

O que se pretende chamar atenção neste estudo é que um de outros direitos difusos que também restam malferidos é o direito da coletividade a um mercado pautado pelos princípios da livre iniciativa e livre concorrência.

Observe-se que embora pouco citado, o Art. 219 da CF/88 declara expressamente que "[o] mercado interno integra o patrimônio nacional e será incentivado de modo a viabilizar o desenvolvimento cultural e sócio-econômico, o bem-estar da população...".

A partir desse contexto, podemos começar a tornar evidente o paralelismo sugerido na introdução.

A utilização de trabalho em condições degradantes ou condições análogas à de escravo viola valores e princípios fundamentais da ordem social, de forma que decorre dessa prática a necessidade de condenação em dano moral coletivo.

Essa forma de tutela, realizada usualmente pelo Ministério Público do Trabalho através de Ações Civis Públicas, obtém a condenação em dano moral coletivo, que, consoante a destinação da Lei de Ação Civil Pública, vai para fundos destinados a reparar os próprios danos.

Contudo, convém observar que a jurisprudência tem adotado parâmetros e critérios de fixação do dano moral coletivo que conduzem usualmente a valores aquém do que é postulado pelo MPT.

Não obstante serem em valores elevados estas condenações, elas podem ser repensadas em comparação com as penalidades impostas a infrações à ordem econômica. Observe-se o Art. 23 da Lei 8.884/94:

Art. 23. A prática de infração da ordem econômica sujeita os responsáveis às seguintes penas:

I - no caso de empresa, multa de um a trinta por cento do valor do faturamento bruto no seu último exercício, excluídos os impostos, a qual nunca será inferior à vantagem auferida, quando quantificável;

II - no caso de administrador, direta ou indiretamente responsável pela infração cometida por empresa, multa de dez a cinqüenta por cento do valor daquela aplicável à empresa, de responsabilidade pessoal e exclusiva ao administrador.

III - No caso das demais pessoas físicas ou jurídicas de direito público ou privado, bem como quaisquer associações de entidades ou pessoas constituídas de fato ou de direito, ainda que temporariamente, com ou sem personalidade jurídica, que não exerçam atividade empresarial, não sendo possível utilizar-se o critério do valor do faturamento bruto, a multa será de 6.000 (seis mil) a 6.000.000 (seis milhões) de Unidades Fiscais de Referência (Ufir), ou padrão superveniente.

Parágrafo único. Em caso de reincidência, as multas cominadas serão aplicadas em dobro.

Apesar de fugir ao objeto do presente estudo uma análise estatística dos valores das condenações de dano moral coletivo, embora fosse um estudo muito salutar para o debate jurídico, é fácil verificar que, na praxe forense, os valores estão muito aquém do parâmetro de 1 (um) a 30% (trinta por cento) do faturamento bruto anual das empresas infratoras.

Chegamos ao cerne deste estudo, que está exatamente na comparação entre as penalidades impostas às infrações usuais a ordem econômica e as condenações a título de dano morais coletivos impostas em casos de utilização de trabalho em condições degradantes.

Colocando-se de lado o glamour que os grandes casos concorrenciais possuem, inflamado pela atenção que as questões econômicas e de investimento atraem, temos uma situação em que uma infração à ordem econômica, como a formação de um cartel, permitirá a condenação em valores muito mais elevados que uma grave violação ao preceito fundamental da dignidade humana que é o trabalho em condições degradantes que também é uma infração a ordem econômica (!).

Um argumento falacioso que poderia ser levantado para distinguir as duas situações é de que as ações movidas pelo MPT, por exemplo, já são acompanhadas de pedidos envolvendo o pagamento das verbas trabalhistas sonegadas. Observe-se que a reparação dos direitos individuais trabalhistas violados decorre dessas próprias violações individuais.

O dano moral coletivo volta-se, por sua vez, para a violação não só dessa consciência social-constitucional, como também da violação à ordem econômica (direito a um mercado pautado pela valorização do trabalho humano e de acordo com os princípios da livre iniciativa e livre concorrência) que esta prática enseja.

Até a presente data, este estudo não encontrou nenhum caso de trabalho em condições degradantes que também tivesse sido investigado em face de seu perfil concorrencial. Uma triste mensagem que se poderia inferir dessa situação é que os grandes atos ou estratégias de corporações são dignos da atenção dos órgãos de defesa da concorrência, porém atos violadores da dignidade dos trabalhadores que também ensejam efeitos concorrenciais não merecem a mesma atenção, porque são vistos apenas como questões trabalhistas.

Neste contexto, a condenação em danos morais coletivos ganha ainda mais relevância, pois vai se consubstanciar no único veículo possível para tutelar esses efeitos concorrenciais nocivos à sociedade, além da ofensa ao senso moral e ético da coletividade.

Sob a ótica aqui apresentada, as postulações do MPT, muitas vezes consideradas elevadas pela jurisprudência, muitas vezes, ficam aquém do próprio padrão estabelecido no caso de infrações à ordem econômica.

Logo, sugere-se uma releitura do papel do dano moral coletivo no caso de trabalho em condições degradantes ou em condições análogas à de escravo, uma vez que se trata talvez da forma mais vil de ofensa a dignidade humana e ao valor social do trabalho, nulificando o trabalhador, e, não só isso, também configura uma infração à ordem econômica.


3. EXTENSÃO SUBJETIVA E OBJETIVA DESSA FORMA PECULIAR DE INFRAÇÃO À ORDEM ECONÔMICA

Outro ponto relevante que deve ser colocado em discussão é a extensão subjetiva e objetiva desse tipo peculiar de infração à ordem econômica.

Primeiramente, por extensão subjetiva, entenda-se até quem, dentro da cadeia econômica ou produtiva de determinado bem ou serviço deve ser considerado como responsável pela infração consubstanciada pela utilização de trabalho em condições análogas à de escravo ou em condições degradantes.

Segundo, por extensão objetiva, entenda-se que tipo de condutas leva a ocorrência desse tipo de violação direta ou indiretamente. Com efeito, determinadas práticas comerciais podem efetivamente fomentar a utilização de práticas empresariais que redundam na utilização de trabalho em condições análogas à de escravo ou em condições degradantes.

Uma pequena digressão se faz necessária quanto à correta interpretação dos direitos em questão.

É desnecessário fundamentar a dignidade humana e o direito dos trabalhadores de serem tratados dignamente como direitos fundamentais. Contudo, é relevante destacar a dinâmica de um princípio de interpretação constitucional em particular, o princípio da máxima efetividade.

Segundo tal princípio, na interpretação das normas constitucionais, deve-se atribuir-lhes o sentido que lhes confira maior eficácia. Contudo, não é só a mera interpretação das normas que recebe influxo desse princípio. Com efeito, a própria conduta dos agentes públicos e as definições de políticas públicas, atividade legislativa e atuação judicial devem se pautar por um curso de ação que efetivamente garanta a máxima efetividade das normas constitucionais. Tais direitos não podem se transformar em promessas constitucionais inconsequentes, na lição do Ministro Celso de Mello.

Observe-se que para fins de políticas de repressão ao trabalho análogo ao de escravo ou em condições degradantes, é necessário levar em consideração uma importante assimetria de informações.

Os agentes econômicos de determinado segmento econômico possuem muito mais informação sobre o seu processo produtivo do que os órgãos de fiscalização, ou seja, podem avaliar com muito mais propriedade se uma determinada etapa produtiva está tendo um custo compatível com a adoção dos padrões mínimos relativos ao trabalho decente.

A título de exemplo, uma usina de cana-de-açúcar possui melhores condições e um custo menor de obtenção da informação de que o custo da cana que recebe é suficiente para que se possa inferir que foram respeitados padrões mínimos de trabalho dos trabalhadores rurais ou não.

É bastante plausível que a usina tenha pelo menos potencial ciência de que está comprando um insumo que tem seu preço artificialmente determinado para baixo, em virtude de um ativo descumprimento da legislação trabalhista. Mais ainda, tal entidade está ativamente – e conscientemente em muitos casos – beneficiando-se de tal infração à ordem econômica.

Logo, percebe-se que ocorre a extensão subjetiva da infração para englobar outros agentes da cadeia econômico-produtiva.

Quanto aos efeitos dessa extensão, são decorrência lógica: 1) responsabilidade solidária pelo dano moral coletivo; 2) simplificação do ônus da prova dos órgãos de fiscalização (basta demonstrar que pela posição na cadeia econômica e pela assimetria informacional, o agente econômico deveria ter ciência da infração no momento anterior da cadeia).

Além disso, negar tais efeitos seria ir de encontro ao princípio da máxima efetividade, especialmente em uma questão tão nuclear que é a dignidade humana.

Passando-se a análise da extensão objetiva, verifica-se que determinadas condutas ou práticas empresariais podem fomentar a ocorrência e recorrência do trabalho em condições análogas à de escravo ou em condições degradantes.

Práticas indiretas, como simplesmente fazer vista grossa para os insumos adquiridos a preços que indicam potencial descumprimento de normas trabalhistas já é um elemento de grande fomento das infrações.

Não somente práticas passivas, mas práticas aparentemente lícitas podem criar estímulos para a ocorrência desse tipo de infração. Um exemplo ilustrativo: imagine-se que uma usina de cana-de-açúcar compre a cana de diversas fazendas ou produtores. É comum que a usina estimule a competição entre seus fornecedores, para que possa maximizar seu lucro.

As formas para estimular podem ser as mais diversas: definir volumes de compras de cada fornecedor, indicações de faixas de preços aos quais se dispõe a comprar, benesses para os melhores fornecedores, etc.

Os fornecedores, por sua vez, para conseguir uma vantagem competitiva, podem ver-se incentivados a descumprir normas trabalhistas, algo que não necessariamente afeta a qualidade de seus produtos e depende de efetiva e eficiente fiscalização para ter alguma consequência negativa.

Logo, ainda com o princípio da máxima efetividade dos direitos fundamentais em mente, há um imperativo lógico que determina, por exemplo, a necessária atuação do Ministério Público do Trabalho, para coibir tais práticas dos agentes econômicos em etapa mais a frente da cadeia produtivo-econômica.

O Ministério Público do Trabalho, a título de ilustração, poderia mover uma Ação Civil Pública, não somente em face de um fazendeiro de cana que se vale de trabalho em condições análogas à de escravo ou em condições degradantes, mas em face da própria usina de cana que não denunciou tais práticas quando tinha ciência ou poderia inferir a ocorrência de tais violações, ou para que a mesma não adote práticas em face de seus fornecedores que venha a estimular a redução desmedida de custos (especialmente no aspecto laboral).


CONCLUSÃO

O estudo buscou fazer uma releitura dos efeitos econômicos da utilização de trabalho em condições degradantes ou em condições análogas à de escravo, de modo se verificar que a prática indubitavelmente configura uma ofensa à ordem econômica.

Partindo da premissa empírica de que tais questões não chegam a ser abordadas pelos órgãos de defesa da concorrência, torna-se ainda mais relevante a função processual da condenação em danos morais coletivos. Trata-se de veículo de tutela não só do senso moral e ético social que deve espelhar os valores constitucionais, mas também de tutela dos efeitos deletérios ao mercado, livre concorrência e livre iniciativa.

Sugere-se como critério para a fixação do dano moral coletivo o Art. 23, incisos I e II, da Lei 8.884/94, ou seja, de 1% (um por cento) a 30% (trinta por cento) do faturamento anual bruto da empresa no seu último exercício, excluídos os impostos. Tal valor não deverá ainda ser inferior à vantagem auferida, quando quantificável.

Particularmente, a vantagem auferida é minimamente o próprio valor sonegado dos trabalhadores e dos custos com a realização de um meio ambiente laboral adequado.

Não obstante, tal critério possa parecer excessivo para alguns, convém lembrar que se trata de um critério legal adotado para casos de defesa da ordem econômica. Infere-se, portanto, que é um critério que a lei reputa adequado para reparar não só as infrações, como para desestimular práticas anticoncorrênciais.

Desta forma, se o malferimento dos princípios da livre iniciativa e livre concorrência permite tal rigor, a verdadeira desproporcionalidade e ausência de razoabilidade está na utilização de padrão mais brando para casos de infração aos mesmos princípios que cumulam violações ao valor social do trabalho e à dignidade humana.


BIBLIOGRAFIA

GICO JUNIOR, Ivo Teixeira. Cartel – Teoria Unificada da Colusão. São Paulo: Lex Editora S.A. 2007.

MEDEIROS, Xisto Tiago de. Dano moral coletivo, São Paulo, LTr, 2004. P. 54.

PERES FILHO, José Augusto de Souza. Paradigma constitucional brasileiro da livre concorrência e da defesa do consumidor face às estruturas de poder no mercado. Dissertação de Mestrado. Universidade Federal do Rio Grande do Norte. Natal. Rio Grande do Norte. 2008. p. 77.

SILVA, Marcello Ribeiro. O Trabalho Escravo Contemporâneo Rural no Contexto da Função Social. Revista do Ministério Público do Trabalho. Brasília, ano XIX, n. 37, março/2009.

SZTAJN, Rachel. Teoria Jurídica da Empresa: atividade empresária e mercados. São Paulo: Atlas, 2004. P. 47.


Notas

  1. SILVA, Marcello Ribeiro. O Trabalho Escravo Contemporâneo Rural no Contexto da Função Social. Revista do Ministério Público do Trabalho. Brasília, ano XIX, n. 37, março/2009.
  2. GICO JUNIOR, Ivo Teixeira. Cartel – Teoria Unificada da Colusão. São Paulo: Lex Editora S.A. 2007. P. 127-128.
  3. SZTAJN, Rachel. Teoria Jurídica da Empresa: atividade empresária e mercados. São Paulo: Atlas, 2004. P. 47.
  4. PERES FILHO, José Augusto de Souza. Paradigma constitucional brasileiro da livre concorrência e da defesa do consumidor face às estruturas de poder no mercado. Dissertação de Mestrado. Universidade Federal do Rio Grande do Norte. Natal. Rio Grande do Norte. 2008. p. 77.
  5. MEDEIROS, Xisto Tiago de. Dano moral coletivo, São Paulo, LTr, 2004. P. 54.
  6. MEDEIROS, Xisto Tiago de. Dano moral coletivo, São Paulo, LTr, 2004. P. 126.

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Informações sobre o texto

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

ROCHA, Afonso de Paula Pinheiro. Critérios para a fixação do dano moral coletivo em caso de trabalho degradante e análogo à condição de escravo. Aplicação do art. 23, incisos I e II, da Lei nº 8.884/94. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 15, n. 2562, 7 jul. 2010. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/16943. Acesso em: 28 mar. 2024.