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Reflexões acerca da responsabilidade civil parental por abandono afetivo

Reflexões acerca da responsabilidade civil parental por abandono afetivo

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Principais argumentos contrários à indenização por abandono afetivo parental, destacando a destituição do poder familiar como consequência jurídica.

Resumo: O presente estudo visa traçar, em síntese, os principais argumentos contrários à tese da possibilidade de fixação de indenização por dano moral em conseqüência do abandono afetivo na relação parental, à luz dos pressupostos gerais da responsabilidade civil. Aponta-se, como conseqüência jurídica, no âmbito do direito de família, a destituição do poder familiar em decorrência do abandono moral, com base no princípio da dignidade da pessoa humana.

Palavras-chave: Responsabilidade Civil. Abandono Afetivo. Impropriedade. Ausência dos pressupostos gerais de responsabilidade civil. Conseqüência jurídica do abandono afetivo. Destituição do poder familiar.

Sumário: 1 Introdução; 2 Reflexões sobre o tema da afetividade; 3 Conceito e pressupostos de responsabilidade civil em confronto com a tese da responsabilidade civil parental por abandono afetivo; 3.1 Da ilicitude da conduta; 3.2 Da conduta culposa; 3.3 Do abandono afetivo e do dano moral; 3.4 Do nexo de causalidade; 4 Repercussão jurídica do abandono afetivo parental: possibilidade de destituição do poder familiar; 5 Conclusão; 6 Referências Bibliográficas.


1. INTRODUÇÃO

Historicamente, desde a vigência da Constituição Italiana de 1948, o Código Civil daquele país, apesar de ainda funcionar como eixo do sistema privado, estabelecendo as principais normas de índole eminentemente privadas que disciplinam as relações jurídicas entre os indivíduos, passou a ser interpretado e ressignificado por normas constitucionais. Tal fenômeno, posteriormente denominado de constitucionalização do direito civil, ocorreu na Itália, pelo fato de que o Código Civil lá editado em 1942 o foi sob a égide de governo autoritário ou fascista que suprimia os direitos dos indivíduos em face do Estado, frontalmente oposto ao espírito democrático da nova ordem constitucional e dos direitos fundamentais.

Sobre o tema, explica Timm:

Na Itália, o fenômeno em tela tem a data de 1º de janeiro de 1948, com a entrada em vigor da sua nova Constituição e pode ser caracterizado como segue. Primeiro, o Código Civil deixou de constituir o centro geométrico de toda ordem jurídica constituída. O primado da legislação passou para a Constituição, ao lançar as bases de uma nova sociedade ideologicamente comprometida.A Constituição passou a regular não só a organização do Estado e a tutelar as liberdades públicas e os direitos políticos, mas também imiscuiu-se em institutos basilares da sociedade burguesa liberal, antes tratados exclusivamente nos Códigos, como o casamento, a propriedade, a liberdade econômica, etc., dando poderes a grupos intermediários, ou seja, que ficam entre a pessoa humana e o Estado e se constituem em organizações sociais onde o indivíduo exerce a sua personalidade. (2008, p.16).

A Constituição Federal do Brasil de 1988 elevou ao seu texto diversas relações de direito privado, como, por exemplo, a disciplina da propriedade privada que passa a ter função social (artigo 170, inciso III), proteção à imagem e indenização por dano moral (artigo 5º, inciso V), além de vários temas de direito de família (artigo 226).

Assim, surge no Brasil a chamada Escola de Direito Civil-Constitucional, conforme anota Sampaio Júnior:

Para os teóricos dessa escola, a Constituição da República de 1988 teria instaurado novos parâmetros hermenêuticos, que exigiriam da imediata adequação das normas vigentes à ordem constitucional. Entretanto, não se tratava apenas de uma análise do instituto da recepção da normas anteriores pelo novo regramento constitucional. Tratava-se, sim, de aplicar o Direito conforme o espírito da Constituição e com amparo na sua principiologia, centrada na dignidade da pessoa humana. Isto é, a validade do ordenamento infraconstitucional é condicionada à sua adequação aos princípios constitucionais, sendo juridicamente reconhecidas e tuteladas apenas aquelas normas que com ele guardem sintonia (2009, p.71).

Escrevendo sobre o tema da Constitucionalização do direito civil, menciona Dias:

Grande parte do direito civil está na Constituição, que acabou enlançando os temas sociais juridicamente relevantes para garantir-lhes efetividade. A intervenção do Estado nas relações de direito privado permite o revigoramento das instituições de direito civil e, diante do novo texto constitucional, forçoso ao intérprete redesenhar o tecido do direito civil à luz da nova Constituição. Essa é uma característica do chamado estado social, que intervém em setores da vida privada como forma de proteger o cidadão, postura impensável em um estado liberal que prestigia, antes e acima de tudo, a liberdade. O direito civil constitucionalizou-se, afastando-se da concepção individualista, tradicional e conservadora-elitista da época das codificações do século passado. Agora, qualquer norma jurídica de direito das famílias exige a presença de fundamento de validade constitucional. (2007, p. 36).

Em harmonia com o pensamento da citada doutrina brasileira civil-constitucional, liderada por autores como Gustavo Tepedino, alguns estudiosos do direito de família brasileiro, como Maria Berenice Dias (2008) e Ana Carolina Brochado Teixeira (2008), partem da idéia de que o estudo e interpretação das normas infraconstitucionais relativas ao direito de família contidos no Código Civil e legislação esparsa devam ser operacionalizados pela aplicação de vários subprincípios (afetos às relações de direito de família) derivados da dignidade da pessoa humana, que se expressa em um dos fundamentos da República Federativa do Brasil (artigo 1º, III, da Constituição Federal).

Essa doutrina cita, dentre outros, o princípio da não intervenção ou da liberdade do planejamento familiar, da igualdade dos filhos havidos ou não na constância do casamento, da igualdade entre cônjuges e companheiros, da igualdade no exercício do poder familiar, da solidariedade familiar, do melhor interesse da criança, da função social da família, e, finalmente, o princípio da afetividade (TEIXEIRA; RIBEIRO, 2008).

Sob o fundamento de que a afetividade é princípio de direito de família, como derivação implícita do princípio da solidariedade (artigo 3º, inciso I, da Constituição Federal) e da dignidade da pessoa humana, começaram a surgir provocações ao Poder Judiciário pleiteando indenizações por dano moral em casos em que há abandono afetivo de pais em relação aos seus filhos, diante do presumido dano moral e psíquico sofrido em decorrência da ausência ou desprezo do ascendente, sob o argumento que a obrigação daquele não se esgotaria no dever de sustento material, mas também no dever de afeto, conforme anota Gonçalves:

Algumas decisões de São Paulo, Minas Gerais e Rio Grande do Sul têm acolhido a pretensão de filhos que se dizem abandonados ou rejeitados pelos pais, sofrendo transtornos psíquicos em razão da fata de carinho e de afeto na infância e juventude. Não basta pagar a pensão alimentícia e fornecer os meios de subsistência dos filhos. Queixam-se estes do descaso, da indiferença e da rejeição dos pais, tendo alguns obtido o reconhecimento judicial do direito à indenização como compensação pelos danos morais, ao fundamento de que a educação abrange não somente a escolaridade, mas também a convivência familiar, o afeto, o amor, o carinho, devendo o descaso entre pais e filhos ser punido severamente por constituir abandono moral grave. (2007, pág. 699).

No Rio Grande do Sul, na cidade de Capão da Canoa, há registro de sentença oriunda do processo n.º 1.030.012.032-0, que reconheceu o direito à indenização de uma filha abandonada afetivamente pelo pai, fixando-se o valor do abandono em duzentos salários mínimos, conforme cita Castro:

A história é de uma jovem, fruto de um relacionamento sem sucesso, que desde seus primeiros anos relacionou-se com o genitor apenas em audiências. Apesar do comprometimento, inclusive em juízo, de estar presente durante a criação da filha, o pai jamais demonstrou qualquer afetividade pela criança, pouco se importando com a sua existência, dando-se satisfeito com a condenação à obrigação material (2010, p. 01).

Caso emblemático foi dirimido pelo Superior Tribunal de Justiça, ao julgar o Recurso Especial n.º 757.411-MG, j. 29-11-2005, que reformou decisão Tribunal de Justiça de Minas Gerais da 7ª Câmara Cível, na Apelação nº 408.550-5-BH, que havia fixado indenização de 200 salários mínimos ao pai, com fundamento de que a responsabilidade (pelo filho) não se pauta tão-somente no dever de alimentar, mas se insere no dever de possibilitar o desenvolvimento humano dos filhos, baseado no princípio da dignidade da pessoa humana.

O Superior Tribunal de Justiça reformou o acórdão, que dividiu as opiniões dos ministros. Ressaltando-se que apenas um ministro (Barros Monteiro), entendeu que o genitor tem o dever de assistir moral e afetivamente o filho, e só estaria desobrigado de pagar a indenização se comprovasse a ocorrência de motivo de força maior. Os outros ministros assim não entenderam, afirmando que o que a lei prevê como punição pelo abandono afetivo é a perda do poder familiar, devendo ser afastada a responsabilidade patrimonial. (GONÇALVES, 2007).

Em resumo, a decisão citada foi no sentido da inexistência de ato ilícito a ser indenizável em virtude do abandono afetivo, nos moldes do artigo 159 do Código Civil de 1916. Em suma, o Superior Tribunal de Justiça entendeu que o abandono afetivo não configura dano moral, conforme ementa do julgado:

RESPONSABILIDADE CIVIL. ABANDONO MORAL. REPARAÇÃO. DANOS MORAIS. IMPOSSIBILIDADE. A indenização por dano moral pressupõe a prática de ato ilícito, não rendendo ensejo à aplicabilidade da norma do artigo 159 do Código Civil de 1916 o abandono afetivo, incapaz de reparação pecuniária. 2. Recurso especial conhecido e provido", STJ, REsp n. 757411, 4ª T, Rel. Min. Fernando Gonçalves, julgado em 29/11/2005. Votou vencido o Ministro Barros Monteiro, que dele não conhecia. Os Ministros Aldir Passarinho Junior, Jorge Scartezzini e Cesar Asfor Rocha votaram com o Ministro relator. (TEIXEIRA; RIBEIRO, 2008, p. 40/41).

Recente decisão do Tribunal de Justiça de São Paulo inovou em relação ao mencionado entendimento do Superior Tribunal de Justiça relativo ao tema do abandono afetivo ao reconhecer o direito à indenização ao filho, em virtude da alegação de que seu pai o teria desprezado desde criança em virtude de uma deformidade física em sua orelha, o que teria lhe gerado angústia e dano psíquico. A decisão da 4ª Câmara de Direito Privado teve como base o entendimento do Desembargador Ênio Zuliani, relator do recurso, e a divergência do Desembargador Maia da Cunha. Segundo Zuliani o pai não teria sido solidário com o drama do filho, restringindo-se a cumprir a sentença da ação de alimentos, nada tendo feito para amenizar o drama pessoal vivido pelo filho em decorrência da má-formação da sua orelha. [1]

Somando-se à importância da análise da jurisprudência nacional que já enfrentou o tema, há notícia de que tramita na Câmara o Projeto de Lei 4294/08 de autoria do deputado Carlos Bezerra (PMDB-MT) que sujeita pais que abandonarem afetivamente seus filhos a pagamento de indenização por dano moral, propondo alteração no Código Civil. [2]

Com efeito, coloca-se como relevante a reflexão sobre a possibilidade ou não da atribuição de indenização civil pelo abandono afetivo parental.

Primeiramente, deve-se enfrentar a questão da natureza jurídica do afeto. Há de fato um dever jurídico de afeto dos pais em relação aos filhos? Trata-se de um ônus? Trata-se de mera obrigação moral?

Em um segundo aspecto, deve-se enfrentar a possibilidade em tese do preenchimento dos pressupostos gerais da responsabilidade civil, já que a matéria relativa ao direito de família avançaria sob os pilares do sistema geral do Código Civil, que permanece íntegro no sistema normativo. Logo, deve-se indagar: 1) qual o tipo de responsabilidade atribuída ao agente: subjetiva ou objetiva?; 2) o abandono afetivo configura dano moral por omissão?; 3) pode ser provado o dano psíquico sofrido pelo abandonado?; 4) Como provar o nexo de causalidade entre o abandono e o suposto dano psíquico?

Por último, ressalta-se o perigo da patrimonialização de questões de família e a crítica da utilização da responsabilidade civil punitiva, bem como a inutilidade de fixação dessa indenização do ponto de vista do restabelecimento ou surgimento do bom convívio entre aqueles ligados pelo vínculo de sangue, mas separados por fatores íntimos. Nesse aspecto, deve-se analisar a conveniência e oportunidade sociais da adoção da tese da reparabilidade civil por ausência de afeto nas relações parentais, inclusive levando-se em conta, em caso de menor, a doutrina da proteção integral e do melhor interesse da criança.


2. REFLEXÕES SOBRE O TEMA DA AFETIVIDADE

Pode-se afirmar que, segundo significativa corrente doutrinária, a afetividade, ou seja, o liame psicológico-emocional que une os indivíduos de um núcleo, seria o vínculo central e definidor da família contemporânea.

Tecendo considerações sobre o tema, Tartuce preleciona:

No que tange a relações familiares, a valorização do afeto remonta ao brilhante trabalho de João Batista Vilella, escrito no início da década de 1980, tratando da desbiologização da paternidade. Na essência, o trabalho procurava dizer que o vínculo familiar seria mais um vínculo de afeto do que um vínculo biológico. Assim, surgiria uma nova forma de parentesco civil – a parentalidade socioafetiva – baseada na posse de estado de filho.(In: TEIXEIRA; RIBEIRO, 2008, p. 48).

Para esse pensamento, a afetividade estaria caracterizada como verdadeiro princípio ou fundamento do direito de família moderno por ser o elemento principal na identificação dos laços familiares não formalizados pela estrutura tradicional do casamento, ou na caracterização dos vínculos de filiação, conforme preleciona umas das principais vozes sobre o tema, Maria Berenice Dias:

O novo modelo da família funda-se sobre os pilares da repersonalização, da afetividade, da pluralidade e do eudemonismo, impingindo nova roupagem axiológica ao direito de família. Agora, a tônica reside no indivíduo, e não mais nos bens ou coisas que guarnecem a relação familiar. A família-instituição foi substituída pela família-instrumento, ou seja, ela existe e contribui tanto para o desenvolvimento da personalidade de seus integrantes como para o crescimento e formação da própria sociedade, justificando, com isso, a sua proteção pelo Estado. ( 2007, pág. 41).

Acrescenta, ainda, a mesma autora:

Ao serem reconhecidas como entidade familiar merecedora da tutela jurídica as uniões estáveis, que se constituem sem o selo do casamento, tal significa que o afeto, que une e enlaça duas pessoas, adquiriu reconhecimento e inserção no sistema jurídico. Houve constitucionalização de um modelo de família eudemonista e igualitário, com maior espaço para o afeto e a realização individual. (2007, pág. 67).

Ganharia, assim, mais importância na caracterização da família o laço de união e amor do que propriamente o fator meramente genético.

Essa interpretação parte da idéia que a Constituição Federal do Brasil, ao prever a liberdade do planejamento familiar, em seu artigo 226, §7º, bem como a igualdade entre os filhos havidos ou não dentro da estrutura do casamento, no artigo 227, §6º, teria democratizado o conceito de família.

O que uniria primordialmente os indivíduos numa relação familiar deixaria de ser a estrutura formal e passaria a ser primordialmente o vínculo psicológico-afetivo. Tal afirmação parte da constatação princípio da igualdade e da liberdade, entre os diversos tipos de entidade familiar, seja a união estável, seja o casamento propriamente dito, seja a entidade monoparental, ou entidade homoafetiva, as quais devem merecer a mesma proteção jurídica estatal, o que se fundamentaria no princípio da dignidade da pessoa humana (art. 1º, III, da Constituição Federal).

Partindo-se desta premissa, lançada por parte da doutrina familiarista brasileira, na jurisprudência nacional a relação de afeto passou a ser utilizada como critério preponderante para solução de conflitos versando sobre filiação, invoncando-se, mais uma vez, o princípio da dignidade da pessoa humana.

É o que se extrai, por exemplo, da seguinte decisão:

NEGATÓRIA DE PATERNIDADE. ADOÇÃO À BRASILEIRA. CONFRONTO ENTRE A VERDADE BIOLÓGICA E A SOCIOAFETIVA. TUTELA DA DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA. PROCEDÊNCIA. DECISÃO REFORMADA. 1. A ação negatória de paternidade é imprescritível, na esteira do entendimento consagrado na Súmula 149/STF, já que a demanda versa sobre o estado da pessoa, que é a emanação do direito da personalidade. 2. No confronto entre a verdade biológica, atestada em exame de DNA, e a verdade socioafetiva, decorrente da adoção à brasileira (isto é, da situação de um casal ter registrado, com outro nome, menor, como se deles filho fosse) e que perdura por quase 40 anos, há de prevalecer à solução que melhor tutele a dignidade da pessoa humana. 3. A paternidade socioafetiva, estando baseada na tendência da personificação do direito civil, vê a família como instrumento de realização do ser humano; aniquilar a pessoa do apelante, apagando-lhe todo o histórico de vida e condição social, em razão de aspectos formais inerentes à irregular adoção à brasileira, não tutelaria a dignidade humana, nem faria justiça ao caso concreto, mas, ao contrário, por critérios meramente formais, proteger-se-iam as artimanhas, os ilícitos e as negligências utilizadas em benefício do próprio apelado

(TJPR, Apelação Cível 0108417-9, Rel. Des. Accácio Cambi, publicado em DJ 04/02/2002).

Neste sentido, explica Queiroz:

É devido a tal mutabilidade conceitual que a filiação não pode ser entendida como fenômeno biogenético (biológico pelo parto e genético pela transmissão do código genético), mas, sim, como fenômeno cultural e prescrição jurídica. Nesse diapasão, os termos pai e genitor não redundam mais em sinônimos. Genitor é aquele que fornece o material genético e pai é aquele que detém o liame da filiação. As referidas figuras não podem ser confundidas pela ordem normativa, dada a distância que as separa no estágio atual da biotecnologia de reprodução humana e da configuração da paternidade. (In: TEIXEIRA; RIBEIRO, 2008, pág. 199).

Entretanto, muito embora haja afirmação por parte da doutrina que o princípio da afetividade seja extraído dos já mencionados princípios constitucionais, não há referência expressa a ele na legislação infraconstitucional brasileira.

É o que pondera a mesma doutrinadora acima referida:

O Código Civil também não utiliza a palavra afeto, ainda que, em alguns dispositivos, se possa entrever esse elemento para caracterizar situação merecedora de tutela. Invoca somente o laço de afetividade como elemento indicativo para a definição de guarda do filho quando da separação dos pais (CC 1584 parágrafo único). Ainda que com grande esforço se consiga visualizar na lei a elevação do afeto a valor jurídico, mister é reconhecer que tímido mostrou-se o legislador. (DIAS, 2007, pág. 68).

Há, inclusive, entre os estudiosos do direito de família brasileiro, quem teça críticas ao conceito de família fundado no afeto, conforme expõe Rocha:

Como se não bastasse o modo inapropriado com que o afeto tem sido invocado por parte da doutrina brasileira, o "afeto" não é um dado da realidade capaz de identificar a família nem mesmo em sentido filosófico-científico. Há realidades afetivas que extrapolam os limites da família e realidades não afetivas que se incluem no conceito de família. Exorbitam do conceito de família a mera amizade e o namoro. Faltam-lhes outros elementos que comparecem com freqüência na formação da família: estabilidade, intuito de formação de família, coabitação e dependência econômica. Há outras situações em que a socioafetividade se contrapõe ao sistema jurídico. O casamento gera família, independentemente da situação socioafetiva, por força do que dispõe a Constituição nos §§ 1º e 2º do artigo 226 ( 2009, p. 61).

E acrescenta o mesmo autor:

A constatação de que a ordem jurídica sobre a família e sua proteção não estão atreladas necessariamente aos fenômenos psíquicos, notadamente à existência de afeto, induz que este constitui apenas um dos elementos (um dos mais importantes) para a construção constitucionalmente adequada do conceito de "família". O conceito de "família", no entanto, é sociológico, como anotou Popper: A psicologia é uma ciência social visto depender, grandemente, nossos pensamentos e ações, de nossas condições sociais. Idéias como (a) imitação, (b) a linguagem, (c) a família, são obviamente idéias sociais; e está claro que a psicologia da aprendizagem e do pensamento e também, por exemplo, a psicanálise, não podem existir sem utilizar uma ou outra dessas idéias sociais. Portanto, a psicologia pressupõe idéias sociais, o que demonstra ser impossível explicar a sociedade exclusivamente em termos psicológicos ou reduzi-las à psicologia. Logo, não podemos considerar a psicologia como a base das ciências sociais. (2009, p. 64).

Ainda, sobre o tema do afeto, arremata Lisboa:

Afeição é um sentimento que se tem em relação a determinada pessoa ou algum bem. Afeiçoar-se significa identificar-se, ter afeto, amizade ou amor. Os membros de uma família, em sua maioria, possuem laços de afeição uns pelos outros. Entretanto, isso não é realidade absoluta. Há entidades familiares desgraçadas por inimizades capitais e por relacionamentos praticamente nulos. Ora, nenhuma pessoa pode ser compelida a afeiçoar-se a outra, pouco importando se há entre elas algum parentesco ou não. Bom seria se todos tivessem afeto uns pelos outros, cumprindo o mandamento bíblico e de outras religiões não cristãs. Todavia, a complexidade das relações interpessoais muitas vezes leva a situações que impedem ou mesmo enfraquecem esse nível de relacionamento. E não há qualquer poder temporal capaz de modificar esse quadro, compelindo uma pessoa a se afeiçoar a outra. (2008, pág. 25).

Pondera-se que a elevação da afetividade como verdadeiro princípio de direito de família, que encontra respaldo em grande parte da moderna doutrina familiarista nacional, não é tema pacífico, havendo críticas por ser o afeto tema relacionado à psicologia, não podendo ser o único critério para identificação dos modelos familiares, sendo abstrata tal tese unicamente baseada no princípio da dignidade da pessoa humana, princípio fundamental da República Federativa do Brasil, mas que se constitui em cláusula aberta, de difícil conceituação, conforme expõe Tavares:

[...] não se alcançará, no entanto, o que "efetivamente" é o âmbito de proteção da dignidade. Isso porque, segundo INGO WOLFANG SARLET, uma das principais dificuldades, todavia – e aqui recolhemos a lição de MICHAEL SACHS – reside no fato de que no caso da dignidade da pessoa, diversamente do que ocorre com as demais normas jusfundamentais, não se cuida de aspectos mais ou menos específicos da existência humana (integridade física, intimidade, vida, propriedade, etc), mas, sim, de uma qualidade tida como inerente a todo e qualquer ser humano, de tal sorte que a dignidade – como já restou evidenciado – passou a ser habitualmente definida como constituindo o valor próprio que identifica o ser humano como tal (2008, p. 537).


3. CONCEITO E PRESSUPOSTOS DE RESPONSABILIDADE CIVIL EM CONFRONTO COM A TESE DA RESPONSABILIDADE CIVIL PARENTAL POR ABANDONO AFETIVO

Antes de se enfrentar propriamente o problema proposto, qual seja a possibilidade de reparação civil por abandono afetivo parental, necessário se faz a conceituação de responsabilidade civil e suas hipóteses.

Eis a redação do artigo 927 do Código Civil brasileiro: "Aquele que, por ato ilícito (artigos 186 e 187) causar dano a outrem, fica obrigado a repará-lo." Considera-se como ato ilícito, "aquele que, por ação ou omissão voluntária, negligência ou imprudência, violar direito e causar dano a outrem, ainda que exclusivamente moral", bem como "o titular de um direito que, ao exercê-lo, excede manifestamente os limites impostos pelo seu fim econômico ou social, pela boa-fé ou pelos bons costumes", conforme artigos 186 e 187 do mesmo diploma legal.

Em resumo, a responsabilidade civil consiste na obrigação imposta àquele que praticou o ato ilícito de reparar o prejuízo sofrido por outrem. É o dever jurídico atribuído ao causador do dano de reparar a lesão suportada por terceiro, conforme ensina Gonçalves:

O instituto da responsabilidade civil é parte integrante do direito obrigacional, pois a principal conseqüência de um ato ilícito é a obrigação que acarreta, para o seu autor, de reparar um dano, obrigação esta de natureza pessoal, que se resolve em perdas e danos. Costuma-se conceituar "obrigação" como o vínculo jurídico que confere ao credor o direito de exigir do devedor o cumprimento de determinada prestação. A característica principal da obrigação consiste no direito conferido ao credor de exigir o adimplemento da prestação. É o patrimônio do devedor que responde por suas obrigações. As obrigações derivadas dos "atos ilícitos" são as que se constituem por meio de ações ou omissões culposas ou dolosas do agente, praticadas com infração a um dever de conduta e das quais resultam um dano a outrem. A obrigação que, em conseqüência, surge é a de indenizar ou ressarcir o prejuízo causado (2007, p. 02).

Sérgio Cavalieri Filho define o responsável como:

A pessoa que deve ressarcir o prejuízo decorrente da violação de um precedente dever jurídico. E assim é porque a responsabilidade pressupõe um dever jurídico preexistente, uma obrigação descumprida. Daí ser possível dizer que toda conduta humana que, violando dever jurídico originário, causa prejuízo a outrem é fonte geradora de responsabilidade civil (2009, pág. 02).

Acerca dos fundamentos éticos da responsabilidade civil, Sampaio Júnior pondera:

Pode-se afirmar que a responsabilidade civil, tal como hoje desenvolvida, assenta-se sobre dois distintos fundamentos éticos: a sanção a uma conduta lesiva culposa, tratando-se da responsabilidade subjetiva, e no tocante à responsabilidade objetiva, a assunção dos riscos decorrentes de uma atividade que cria, para a coletividade, riscos superiores aos que normalmente seriam de se esperar de uma atividade cotidianamente exercida (2009, p. 23).

Portanto, a responsabilidade civil pode ser dividida em duas espécies: subjetiva e objetiva. A primeira espécie ocorre quando há necessidade de ser provada a culpa do agente causador do dano. Assim, para que se caracterize a subjetividade deverá haver necessariamente um dano, a comprovação de dolo ou culpa e o nexo causal entre o dano e a ação que o provocou.

Por seu turno, a responsabilidade será objetiva demonstrando-se apenas a causalidade entre o ato e o prejuízo causado, não havendo a necessidade de se comprovar a culpa ou dolo do agente. É também chamada de responsabilidade pelo risco, na qual "o exercício de uma atividade que possa representar um risco obriga por si só a indenizar os danos causados por ela" segundo Sílvio de Salvo Venosa (VENOSA, 2008, p. 15).

Depreende-se, assim, os pressupostos da responsabilidade civil extracontratual subjetiva: 1) ato ilícito; 2) conduta culposa; 3) dano; 4) nexo de Causalidade.

O tema da ilicitude será analisado mais a frente. Por conduta culposa entende-se a inexecução de um dever que o agente podia conhecer e observar. O terceiro requisito diz respeito ao dano ou lesão sofrida, já que sem a prova do dano ninguém pode ser responsabilizado. Segundo a melhor doutrina, o dano pode ser material ou simplesmente moral, ou seja, sem repercussão na órbita financeira do ofendido. (GONÇALVES, 2007).

O quarto pressuposto, o nexo de causalidade, é explicado como "a vinculação entre determinada ação ou omissão e o dano experimentado" (PELUSO, 2009).

Um pai que ostensivamente humilha seu filho, exteriorizando qualquer tipo de conduta vexatória, ao praticar uma conduta ativa, inegavelmente, em tese, cometeria ato ilícito passível de indenização por dano moral, assim como qualquer outra pessoa poderia ser responsabilizada. A questão que se coloca é outra. Da conduta meramente negligente do pai ou mãe em dar afeto ao filho, mesmo suprindo todas as suas necessidades materiais e intelectuais, através de conduta meramente omissiva, acarretaria um dano moral passível de ser indenizado?

O artigo 186 do Código Civil menciona o termo "ação ou omissão voluntária". E, em seguida, aponta as modalidades de culpa: imprudência e negligência.

A questão da possibilidade da reparação civil por abandono afetivo se baseia, em síntese, no argumento de que o dano psíquico sofrido pela prole desprezada pela conduta negligente do pai ou mãe configura, de fato, espécie de dano moral e ofensa a direito de personalidade do ofendido.

A questão é polêmica e divide opiniões na doutrina.

Sobre o tema vale transcrever a opinião do Desembargador Luiz Felipe Brasil Santos, citado por Castro, que anota:

A matéria (abandono afetivo) é polêmica e alcançar-se uma solução não prescinde do enfrentamento de um dos problemas mais instigantes da responsabilidade civil, qual seja, determinar quais danos extrapatrimoniais, dentre aqueles que ocorrem ordinariamente, são passíveis de reparação pecuniária. Isso porque a noção do que seja dano se altera com a dinâmica social, sendo ampliado a cada dia o conjunto dos eventos cuja repercussão é tirada daquilo que se considera inerente à existência humana e transferida ao autor do fato. Assim, situações anteriormente tidas como "fatos da vida", hoje são tratadas como danos que merecem atenção do Poder Judiciário, a exemplo do dano à imagem e à intimidade da pessoa (2010, p. 2).

Magdaleno (2006, p. 159) é adepto da possibilidade da responsabilização, expressando que o direito de dano é aplicável sim ao direito de família, tendo por fundamento o abuso de direito que prevê o artigo 187 do Código Civil e não o ato ilícito

Defendendo a conveniência de responsabilização civil por abandono afetivo, Giselda Maria Fernandes de Novaes Hironaka sustenta que:

[...] a indenização por abandono afetivo, se for utilizada com parcimônia e bom senso, sem ser transformada em verdadeiro altar de vaidades e vinganças ou em fonte de lucro fácil, poderá converter-se em instrumento de extrema importância para um direito de família mais consentâneo com a contemporaneidade, podendo desempenhar, inclusive, um importante papel pedagógico no seio das relações familiares (2007, pág. 16).

Sobre o tema, posiciona-se, ainda, Gonçalves:

A questão é delicada, devendo os juízes ser cautelosos na análise de cada caso, para evitar que o Poder Judiciário seja usado, por mágoa ou por outro sentimento menos nobre, como instrumento de vingança contra pais ausentes ou negligentes no trato com os filhos. Somente casos especiais, em que fique cabalmente demonstrada a influência negativa do descaso dos pais na formação e no desenvolvimento dos filhos, com rejeição pública e humilhante, justifica o pedido de indenização por danos morais. Simples desamor e falta de afeto não bastam. ( 2007, pág. 700).

Posicionando-se pela impossibilidade é Lopes (2006, p. 54): "Filio-me ao entendimento que a violação aos deveres familiares gera apenas as sanções no âmbito do direito de família, refletindo, evidentemente, no íntimo afetivo e psicológico da relação [...]."

Percebe-se, de plano, que mesmo a doutrina favorável à tese da reparabilidade do dano afetivo prega cautela e análise minuciosa dos casos levados à Justiça, a fim de evitar uma espécie de patrimonialização da falta do sentimento no seio das famílias, banalizando-se esse tipo de demanda.

Tais considerações doutrinárias a respeito da conveniência ou não de adoção da tese do dano afetivo abordam o tema no contexto da repercussão social da medida, preocupando-se com a questão já notória da industrialização do dano moral, bem como ressaltam a duvidosa função pedagógica de fixação de indenização ao causador do dano afetivo.

Além das pertinentes objeções de índole sociológica levantadas em relação à tese da reparabilidade do dano em razão do abandono afetivo, considerada em si uma conduta éticamente reprovável, deve-se enfrentar a problemática da presença dos requisitos de responsabilização civil.

3.1 DO ABANDONO AFETIVO PARENTAL E ILICITUDE

A primeira questão é saber se a conduta do pai que simplesmente despreza seu filho afetivamente, mesmo que o amparando com alimentos e necessidades materiais, contribuindo inclusive para seu estudo, configura ato ilícito.

Nos termos da legislação vigente, cabe aos pais o dever de sustento, educação e formação moral dos filhos menores. É o que dispõe o artigo 1634, inciso I, do Código Civil, segundo o qual: "Compete aos pais, quanto a pessoa dos filhos menores: I – Dirigir-lhes a criação e educação;". Já o Código Penal brasileiro reprime taxativamente a conduta do abandono material (artigo 244), bem como o abandono intelectual (artigo 246). [3]

Portanto, é expressa na lei a obrigação de sustento material e suporte moral e intelectual dos pais em relação aos filhos. A questão é saber se o abandono ou inexistência de afeto na relação parental constitui em obrigação jurídica, cujo descumprimento acarreta um ato ilícito.

Acerca da conceituação de ato ilícito ensina Venosa:

Por ato ilícito, entende-se aquele que promanam direta ou indiretamente da vontade e ocasionam efeitos jurídicos, mas contrários ao ordenamento. O ato de vontade, contudo, no campo da responsabilidade deve revestir-se de ilicitude. Melhor diremos que na ilicitude há, geralmente, uma cadeia ou sucessão de atos ilícitos, uma conduta culposa. Raramente, a ilicitude ocorrerá com um único ato. O ato ilícito traduz-se em um comportamento voluntário que transgride um dever. Como já analisamos, ontologicamente, o ilícito civil não difere do ilícito penal; a principal diferença reside na tipificação estrita deste último. Na responsabilidade subjetiva, o centro do exame é o ato ilícito. O dever de indenizar vai repousar justamente no exame de transgressão ao dever de conduta que constitui o ato ilícito. Como vimos, sua conceituação vem exposta no art. 186 (2008, p. 23).

Neste ponto, incide o princípio constitucional da legalidade, previsto no artigo 5º, inciso II, da Constituição Federal, segundo o qual "ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa, senão em virtude de lei". Logo, se o ato ilícito passível de reparação é aquele contrário ao direito, não havendo previsão normativa do alcance e conteúdo mínimo da obrigação de dar afeto nem na Constituição Federal, nem na legislação infraconstitucional, não há como impor a responsabilidade civil parental por essa conduta, deixando-se ao arbítrio judicial a imposição de verdadeira pena civil a uma conduta não tipificada no sistema normativo, o que afrontaria os princípios democrático e da separação dos poderes (respectivamente nos artigos 1º, caput, e 2º da Constituição Federal). É o que explica José Afonso da Silva:

O princípio da legalidade é nota essencial do Estado de Direito. É também, por conseguinte, um princípio basilar do Estado Democrático de Direito, como vimos, porquanto da essência do seu conceito subordinar-se à Constituição e fundar-se na legalidade democrática. [...] É nesse sentido que se deve entender a assertiva de que o Estado, ou o Poder Público, ou os administradores não podem exigir qualquer ação, nem impor qualquer abstenção, nem mandar tampouco proibir nada aos administrados, senão em virtude de lei. (2008, p.420).

Com efeito, refletindo sobre o abandono afetivo, ao que parece, tal conduta negativa por parte dos pais viola um dever moral com conseqüências jurídicas do que propriamente dever jurídico passível de ilicitude pelo descumprimento. Por esses motivos há extrema dificuldade no preenchimento dos pressupostos gerais de responsabilidade civil e patrimonialização da questão.

Caio Mário da Silva Pereira exprime bem a coincidência entre o preceito moral e a norma jurídica, nos seguintes termos:

Sendo ambos – moral e direito – normas de conduta, evidentemente têm um momento de incidência comum. Mas, analisados intrinsecamente, os respectivos princípios se diferenciam, quer em razão do campo de ação, quer no tocante à intensidade da sanção que acompanha a norma, quer no alcance ou efeitos desta. Moral e direito distinguem-se em que a primeira atua no foro íntimo e o segundo no foro exterior. Se a conduta do agente ofende apenas a regra moral, encontra reprovação na sua consciência, e pode atrair o desapreço dos seus concidadãos. Se a ação implica inobservância da norma jurídica, autoriza a mobilização do aparelho estatal, para recondução do infrator à linha de observância do preceito, ou para sua punição. Encarada do ângulo da intensidade, a norma jurídica é dotada de coercibilidade, que não está presente na regra moral, representando esta um estado subjetivo do agente, que pode ser adotado, ou que deve ser adotado voluntariamente, enquanto que a obediência ao preceito de direito é imposta coercitivamente pelo ordenamento jurídico. (2009, p. 9).

Na esteira desses argumentos está a opinião de Rodrigo da Cunha Pereira, que ao prefaciar a obra que analisa o Estatuto das Famílias, projeto de lei 2.285/2007, comenta com propriedade:

É preciso que as pessoas adultas, por elas mesmas, se responsabilizem pelas suas escolhas e desilusões amorosas, suas uniões e desuniões e o Estado intervenha menos na vida privada das pessoas. Poderia o Estado, através do Poder Judiciário, dizer quem é o culpado pelo fim de um casamento, por exemplo? Poderia o Estado, através do Poder Legislativo estabelecer regras para as uniões estáveis, e com isto aproximando-se cada vez mais do casamento e afastando conseqüentemente a possibilidade de uniões livres? Estas intervenções, embora bem intencionadas, perdem, cada vez mais terreno no Direito de Família. Todas estas questões estão, de certa forma, relacionadas com a essência do ser humano e as velhas reivindicações de liberdade, agora reencarnadas pela liberdade dos afetos, da solidariedade, da dignidade humana, enfim ao Desejo. (In: ALVES, 2010, p. 23).

Percebe-se, ainda, que o espírito da legislação relativa ao direito de família segue caminho inverso à excessiva intromissão do Estado na seara familiar, como ocorre pelo abandono do critério da culpa na separação judicial ou divórcio. Não pode o direito obrigar os cônjuges a prestar afeto na relação conjugal. A ausência deste implica na falência de fato da união, podendo ensejar a iniciativa da propositura da ação de separação ou divórcio com a conseqüência jurídica pertinente.

A ausência ou abandono afetivo na relação conjugal, analogicamente, não poderia ensejar direito à indenização por dano moral do cônjuge desprezado, já esse é um risco inerente das relações humanas. Não parece interesse do Estado perquirir sobre assunto tão íntimo da relação familiar, assim como é culpar alguém pela falta de amor nas relações de parentesco.

É em harmonia com tal pensamento, que anota Pinto:

Controvertida na doutrina é a questão relativa à possibilidade de reparação por dano moral no Direito de Família, especialmente nas hipóteses de separação judicial por descumprimento de alguns dos deveres do casamento. Regina Beatriz Tavares da Silva sustenta ser cabível a indenização quando houver dano ao consorte em razão de tal descumprimento, não se enquadrando nessa hipótese o simples desamor, pois falta de amor, por si só, não pode acarretar qualquer conseqüência jurídica, já que amar não é dever jurídico, inexistindo ato ilícito na falta de amor. (In: PELUSO, 2009, p. 1645).

Deve-se advertir que a patrimonialização da questão referente ao tema proposto, por indeterminação da ilicitude da conduta, corre o risco de gerar insegurança jurídica, ao atribuir indevida discricionariedade e sentimentalismo às decisões judiciais sobre a questão. Acerca do perigo da jurisprudência sentimental, citando o caso histórico de um tribuno francês, denominado de o bom juiz Magnaud (1889-1904), explica de forma brilhante Carlos Maximiliano, em sua lapidar obra Hermenêutica e Aplicação do Direito:

Imbuído de idéias humanitárias avançadas, o magistrado francês redigiu sentenças em estilo escorreito, lapidar, porém afastadas dos moldes comuns. Mostrava-se clemente e atencioso para os fracos e humildes, enérgico e severo com opulentos e poderosos. Nas suas mãos a lei variava segundo a classe, mentalidade religiosa ou inclinações políticas das pessoas submetidas à sua jurisdição. [...] O fenômeno Magnaud foi apenas retumbante manifestação de ideologia pessoal, atravessou o firmamento jurídico da Europa como um meteoro, da sua trajetória curta e brilhante não ficaram vestígios. Quando o magistrado se deixa guiar pelo sentimento, a lide degenera em loteria, ninguém sabe como cumprir a lei a coberto de condenações forenses (2007, p. 68)

3.2 DA CONDUTA CULPOSA

Como explicado, para configuração do dever de indenizar, primeiramente há de estar presente um dever jurídico, violado por uma conduta culposa. Isto porque o Código Civil é expresso no sentido de que a responsabilidade objetiva só é cabível nos casos especificados em lei ou quando a atividade normalmente desenvolvida pelo autor do dano implicar, por sua natureza, risco para os direitos de outrem (artigo 927, parágrafo único, do Código Civil).

Deduz-se que a conduta de quem não dá afeto ao filho é omissiva.

Acerca da relevância jurídica da omissão para responsabilidade civil, Cavalieri Filho preleciona:

A omissão, todavia, como pura atividade negativa, a rigor não pode gerar, física ou materialmente, o dano sofrido pelo lesado, porquanto do nada nada provém. Mas tem-se entendido que a omissão adquire relevância jurídica, e torna o omitente responsável, quando este tem o dever jurídico de agir, para praticar um ato para impedir o resultado, dever esse que pode advir da lei, do negócio jurídico ou de uma conduta anterior do próprio omitente, criando risco da ocorrência do resultado, devendo, por isso, agir para impedi-lo. (2009, pág. 24).

Ora, se a conduta omissiva configuradora do dano afetivo deve ser culposa, na modalidade de negligência, torna-se ademais subjetiva a sua configuração, já que a falta de afeto pode em tese ser justificada por inúmeros fatores íntimos e até pela provocação da outra parte que detém a guarda do menor. Mostra-se temerária a atribuição de culpa exclusiva a alguém pela falta de amor. A prova da conduta culposa configura-se de difícil ou impossível verificação, quase diabólica, já que mesmo no direito ou na ciência não há definição do que seja afeto, cujo conceito e amplitude apenas poderia ser dirimido pela psicologia.

É o que explica Rocha, criticando o conceito de família fundado no afeto:

Um dado da bibliografia jurídica ligada à "teoria do afeto" surpreende: a ausência de considerações sobre o conceito de "afeto". Uma maior ênfase no conteúdo teórico do "afeto" era de se esperar numa doutrina que pretende tê-lo como núcleo do direito de família. A necessidade de estudar o significado de "afeto" torna-se ainda maior se se tem em conta a ambivalência do termo: na linguagem comum, afeto é sinônimo de carinho, simpatia, amizade, ternura, amor; na Filosofia e na Psicologia, contudo, possui significado bem diferente: é sinônimo de sentimento, emoção, paixão. A essa última acepção é a que corresponde à etimologia da palavra: "afeto" provém do latim affectus e se formou da preposição ad (para) mais o verbo facere (fazer). Ou seja, "fazer para", "influenciar", "afetar". "Afeto" designa, pois, algo que sofre influência de outro ser. (2009, p. 61).

E arremata o mesmo autor:

Enquanto o "afeto" da linguagem natural tem conotação positiva, referindo-se aos mais nobres sentimentos humanos, o "afeto" da linguagem filosófico-científica designa todas as afeições, todos os sentimentos, os mais elevados e os mais baixos. Incluem-se na noção de "afeto", no sentido filosófico-científico, o ódio, a inveja, o rancor e todos os sentimentos moralmente repudiados. (...) Uma vez que no sentido filosófico-científico "afeto" tem consonância com "sentimento", o Direito não pode ser chamado a protegê-lo incondicionalmente, uma vez que muitas de suas manifestações contrariam os valores fundamentais da ordem jurídica. Além disso, o Direito somente regula a conduta humana exteriorizada. (2009, p. 61).

Portanto, pode-se inferir que o direito não pode através da fixação de uma indenização punir uma conduta que nem mesmo se exteriorizou, no caso da simples omissão de afeto, considerando-a ilícita, já que ostenta grau de incerteza e subjetividade, já que não há conceituação jurídica da obrigação ou dever de afeto, passível de gerar indenização pelo descumprimento.

3.3 DO ABANDONO AFETIVO E DO DANO MORAL;

O terceiro ponto a ser enfrentado é a existência de dano. Como se expôs, o principal fundamento da tese da possibilidade de reparação pelo abandono afetivo parental é que tal conduta espelha espécie de dano moral.

A possibilidade de reparação do dano moral é prevista tanto na Constituição (art. 5º, incisos V e X), como no artigo 186 do Código Civil. Por dano moral, entende-se toda ofensa a direito de personalidade ou à dignidade humana. Não se confunde com o dano patrimonial, mas diz respeito à lesão de outros aspectos do direito da pessoa, não aferíveis economicamente, como, por exemplo, a honra, a imagem, seu nome, enfim todos os caracteres que se refiram ao aspecto personalíssimo do indivíduo. No dizer de uma das maiores autoridades sobre o tema, Sérgio Cavalieri Filho, o dano pode ser a direitos da personalidade que não estão diretamente vinculados à sua dignidade, possuindo, portanto, duplo aspecto:

À luz da Constituição vigente, podemos conceituar o dano moral por dois aspectos distintos. Em sentido estrito, dano moral é violação do direito à dignidade. E foi justamente por considerar a inviolabilidade da intimidade, da vida privada, da honra e da imagem corolário da dignidade que a Constituição inseriu em seu artigo 5º, V e X, a plena reparação do dano moral. Este, pois, o novo enfoque constitucional pelo qual deve ser examinado o dano moral, que já começou a ser assimilado pelo Judiciário, conforme se constata do aresto a seguir transcrito: "Qualquer agressão à dignidade pessoal lesiona a honra, constitui dano moral e é por isso indenizável. Valores como a liberdade, a inteligência, o trabalho, a honestidade, aceitos pelo homem comum, formam a realidade axiológica a que todos estamos sujeitos. Ofensa a tais postulados exige compensação indenizatória.

Ap. Cível 40.541, rel. Des. Xavier Vieira, ins ADCOAS 144.719" (2009, p. 80).

A aceitação da possibilidade de reparação do dano moral foi inicialmente muito controvertida, passando por fases: inicialmente pela da irreparabilidade, sob o argumento de que era impossível se aferir a dor, e, atualmente, pacificamente pela possibilidade de cumulação com a indenização por danos materiais.

Depreende-se dos ensinamentos sobre a configuração do dano moral que este decorre de um ato ou conduta que provoca um ato ilícito ofensivo a direito da personalidade da vítima ou à sua própria dignidade, tendo a indenização função de trazer satisfação ou paz de espírito ao ofendido, pelo reconhecimento judicial da ilicitude, e de certa forma punindo o ofensor.

Sabe-se que para configuração do dano moral, conforme a mais moderna e pacífica doutrina, é dispensável a prova do sofrimento, já que o dano se presume de uma conduta ilícita ofensiva à dignidade ou aos direitos de personalidade do ofendido. Ou seja, se há uma conduta ofensiva ao nome de um indivíduo, como sua inclusão indevida nos cadastros de inadimplentes, com publicidade, não é preciso ao ofendido provar seu sofrimento, basta apontar a conduta, que presumivelmente lhe acarretou prejuízo moral.

A fixação da indenização para reprimir a conduta lesiva atinge sua finalidade que é dar ao ofendido não a restituição material da ofensa dirigida, o que seria impossível no mundo dos fatos, mas a satisfação de que foi reconhecido o ato como ilícito e retribuído ao ofensor o mal causado, conforme preleciona Sampaio Júnior:

Diante dessas considerações, talvez se possa realmente confirmar que o pretium Dolores deixou de ser o fundamento da responsabilidade por danos morais. Não mais se paga o preço da dor, pois sequer importa que de fato exista essa dor. O que releva é sancionar uma conduta antiética. E, se possível, coibir aquela conduta.( 2009, p. 99).

Percebe-se que a reparação por dano moral decorre de condutas ilícitas que ofendem bens jurídicos tutelados pelo Estado, em que pode ser exigido respeito a esses bens.

O amor e o afeto, ao contrário, são sentimentos humanos, que não podem ser exigidos, de forma a que seu inadimplemento gere direito à indenização. Na verdade, ontologicamente, não são obrigações, mas deveres morais e éticos a que a lei comina pelo descumprimento também a mesma reprimenda, qual seja o afastamento do vínculo jurídico parental. Na verdade, o abandono afetivo não pode ser indenizado por não ter cunho obrigacional, por constituir o afeto um sentimento humano.

Pereira (2009), ao traz o conceito de obrigação como "o vínculo jurídico em virtude do qual uma pessoa pode exigir de outra prestação economicamente apreciável". Assinala, ainda, o mesmo autor que um dos elementos de toda obrigação é que o objeto, isto é, a prestação exigível pelo credor, seja determinada ou determinável:

O que não é possível, sob pena de equiparar-se à falta de objeto e, pois, de ineficácia da obrigação, é a indeterminação definitiva, que importa na própria negação do vínculo, por ausência de objetivação. Quando o objeto é indeterminável, ou pela sua natureza, ou porque circunstâncias especiais obstam à determinação, não há obrigação válida (2009, p. 21).

Em relação aos direitos de personalidade, a lei comina sanção pelo descumprimento da obrigação geral de respeito (artigo 12 do Código Civil), passíveis de reparação pecuniária em decorrência do dano moral. Pode-se exigir, por exemplo, o respeito à imagem, à honra, ao nome. Na maioria das vezes o direito impõe um non facere, isto é, uma abstenção de conduta para que não sejam violados esses bens jurídicos, que se desrespeitados geram o direito a uma indenização para compensar o prejuízo moral suportado pela vítima.

A tese da indenizabilidade do dano afetivo sustenta a possibilidade de que o Estado exija uma obrigação de fazer ou entregar um sentimento por parte do indivíduo, cujo conceito é indeterminado, fluído e impreciso. Parece pertencer à seara da psicologia o estudo do desenvolvimento da personalidade do indivíduo, bem como da repercussão da boa ou má criação dos filhos, razão pela qual suposto dano por abandono afetivo não pode ser presumido

No caso em tela existiria um comportamento omissivo, com reprovação ética e moral, com outras repercussões jurídicas, como a definição de guarda, causa de suspensão ou destituição de poder familiar, mas que não constitui isoladamente uma ofensa passível de reparação através de indenização. A sutileza da diferenciação repousa no fato que se trata de omissão de afeto, um comportamento contínuo de índole íntima e negativa.

Para certa parcela da doutrina a responsabilidade civil teria como função precípua restabelecer uma situação da vida abalada. No dizer de Venosa:

Os princípios da responsabilidade civil buscam restaurar um equilíbrio patrimonial e moral violado. Um prejuízo ou dano não reparado é um fator de inquietação social. Os ordenamentos contemporâneos buscam alargar cada vez mais o dever de indenizar, alcançando novos horizontes, a fim de cada vez menos restem danos irressarcidos. É claro que esse é um desiderato ideal que a complexidade da vida contemporânea coloca sempre em xeque. Os danos que devem ser reparados são aqueles de índole jurídica, embora possam ter conteúdo também de cunho moral, religioso, social, ético, etc., somente merecendo reparação do dano as transgressões dentro dos princípios obrigacionais.(2008, p. 01/2).

Ao se fixar indenização por abandono afetivo, isto é, pela conduta omissiva de um pai ou mãe que não dá amor a seu filho, o direito, através do Poder Judiciário, reprimiria um comportamento reprovável do ponto de vista moral, mas, questionável, se tal ingerência estatal atenderia ao melhor interesse da família, qual seja a estimulação da própria retomada do vínculo afetivo, já que para condutas personalíssimas atinentes a um fazer, dado ao seu caráter de infungibilidade e tendo em vista a liberdade individual, a única solução seria conversão em perdas e danos.

Destaque-se que existe parcela significativa da doutrina criticando a responsabilidade civil punitiva ou do punitive damage, segundo explica Sampaio Júnior:

Há forte rejeição da doutrina pátria à indenização punitiva, por vezes denominada pedagógica, sendo que o dispositivo do Projeto do Código de Defesa do Consumidor prevendo a sua introdução no âmbito das relações de consumo foi vetado por inadequado à nossa sistemática jurídica. Objeta-se que o Direito Civil não tem a função de punir o ofensor. A responsabilidade civil se assenta na idéia de amparar a vítima, ressarcindo-lhe o dano sofrido. Assim, a punição a uma conduta não ética ficaria a cargo do Direito Penal ou do Direito Administrativo, sem o que se subverteria a regra de que não há crime sem prévia lei que o defina. Sacrificar-se-ia a segurança em nome de uma conduta ética pouco palpável. (2009, p. 100).

Questionável, ainda, do ponto de vista constitucional (artigo 227 da Constituição Federal), seguindo a doutrina da proteção integral, prevista no artigo 1º do ECA, no caso de abandono afetivo de menores, se a fixação de pena pecuniária ao pai, atenderia ao melhor interesse da criança e do adolescente, dado que o processo que visa a indenização poderá ser palco de discussões e maior abalo psíquico à criança e ao adolescente que lembrará do conflito por toda a vida.

Desnecessário mencionar que não há como se adotar o regime de cumprimento forçado (executivo) das obrigações de fazer previsto no Código de Processo Civil em seu artigo 632 e seguintes, já que não se poderia aferir o cumprimento ou não da obrigação de dar amor, devido à fluidez do conceito e indeterminação probatória, assim como seria a fixação de multa diária pelo descumprimento da obrigação de dar amor.

A doutrina e jurisprudência da responsabilidade civil evoluiu, portanto, da irresponsabilidade por dano imaterial ou moral para aceitação incontroversa, nos dias atuais, dessa modalidade de reparação, com previsão expressa na Constituição Federal e no Código Civil. No entanto, razoável que não pode a teoria da responsabilidade civil ir ao outro extremo de tentar reparar condutas não exteriorizadas, como o sentimento ou o pensamento, sob o fundamento de ofensa ao princípio aberto da dignidade da pessoa humana, que se tornou panacéia para todos os apetites ideológicos não satisfeitos (ROCHA, 2009).

3.4 DO NEXO DE CAUSALIDADE

O quarto aspecto diz respeito ao nexo de causalidade entre a conduta do pai ou mãe que nega afeto ao filho e o dano causado. Segundo Neves, o nexo de causalidade pode ser conceituado como:

[...] a relação que se estabelece entre o ato (por ação ou omissão) do devedor e o dano experimentado pelo credor. Evidentemente, para que se verifique o dever de indenizar, deve estar presente essa relação de causa e efeito – o nexo de causalidade – entre o fato gerador e o dano (2009, p. 335).

A conduta de não prestar afeto na relação parental configuraria apenas uma omissão. Sobre a questão da causalidade da omissão, ensina Cavalieri Filho que:

[...] a omissão adquire relevância causal porque a norma lhe empresta esse sopro vital, impondo ao sujeito um determinado comportamento. Quando não houver esse dever jurídico de agir, a omissão não terá relevância causal e, conseqüentemente, nem jurídica. (2009, pág. 63).

No caso do abanono afetivo, mesmo que, em tese, se admita o abalo psíquico, o nexo de causalidade entre a conduta do ofensor e o dano mostrar-se-ia de improvável constatação já que outros fatores poderiam ter concorrido para a ofensa, dentre os quais pode ser citada a denominada síndrome da alienação parental, conforme explicação de sítio da internet específico sobre o assunto:

Síndrome de Alienação Parental (SAP), também conhecida pela sigla em inglês PAS, é o termo proposto por Richard Gardner [3] em 1985 para a situação em que a mãe ou o pai de uma criança a treina para romper os laços afetivos com o outro genitor, criando fortes sentimentos de ansiedade e temor em relação ao outro genitor. Os casos mais freqüentes da Síndrome da Alienação Parental estão associados a situações onde a ruptura da vida conjugal gera, em um dos genitores, uma tendência vingativa muito grande. Quando este não consegue elaborar adequadamente o luto da separação, desencadeia um processo de destruição, vingança, desmoralização e descrédito do ex-cônjuge. Neste processo vingativo, o filho é utilizado como instrumento da agressividade direcionada ao parceiro. [4]

Ainda, acerca do nexo de causalidade, Venosa explica que:

Na identificação do nexo causal, há duas questões a serem analisadas. Primeiramente, existe a dificuldade em sua prova; a seguir, apresenta-se a problemática da identificação do fato que constitui a verdadeira causa do dano, principalmente quando este decorre de causas múltiplas. Nem sempre há condições de estabelecer da causa direta do fato, sua causa eficiente. (2008, p. 48)

E cabe ao demandante o ônus da prova no que diz respeito ao nexo de causalidade, conforme ensina o mesmo autor, citando Pereira:

[...] é estabelecer, em face do direito positivo, que houve uma violação de direito alheio e um dano, e que existe um nexo causal, ainda que presumido, entre uma e outro. Ao juiz cumpre decidir com base nas provas que ao demandante incumbe produzir (2008, p. 49).

Infere-se, assim, que prova do nexo de causalidade entre a conduta do suposto ofensor no caso do abandono afetivo parental e o alegado dano, na maioria da vezes, será controvertida, pela oposição de outros fatores, o que levaria ao magistrado a apenas um juízo de probabilidade da real causa do abalo psíquico, o que poderia gerar insegurança jurídica, conforme assevera Neves:

A verdade é que não existe uma uniformidade no tratamento dos Tribunais acerca do nexo causal. Muitas vezes não será possível ter a certeza absoluta do liame causal, sendo necessário, nestes casos, recorrer-se à experiência e à probabilidade (2009, p. 339).


4. REPERCUSSÃO JURÍDICA DO ABANDONO AFETIVO PARENTAL: POSSILIDADE DE DESTITUIÇÃO DO PODER FAMÍLIAR

Deduz-se do sistema normativo que o abandono ou a inexistência de sentimento dos pais em relação aos filhos constitui conduta contrária aos valores éticos prestigiados pelo direito, tanto é verdade que o Código Civil, ainda que em poucas ocasiões aborda as hipóteses em que a afetividade influencia, como na fixação de guarda dos filhos, ou no caso da destituição ou suspensão do poder familiar. É o que dispõe o artigo 1638, II, do Código Civil, que expressamente diz que perderá o poder familiar o pai ou mãe que deixar o filho em abandono. Também é o que prescreve o artigo 24 do Estatuto da Criança e do Adolescente.

Neste diapasão, já decidiu o Tribunal de Justiça de Minas Gerais:

Direito de Família. Destituição do poder familiar. Abandono do filho. Demonstração nos autos. Recurso improvido. O poder familiar dos pais é ônus que a sociedade organizada a eles atribui, em virtude da circunstância da parentalidade, no interesse dos filhos. O exercício do múnus não é livre, mas necessário no interesse de outrem. A perda do poder familiar é definitiva, devendo ser observado para sua decretação, por sua gravidade que o fato que a ensejar seja de tal magnitude que ponha em perigo permanente a segurança e a dignidade do filho.

(TJMG, Ap. cível n. 1.0132.06.003134-2/001, rel. Carreira Machado, j. 11.11.2008, DJ 26.11.2008).

Assim, a interpretação teleológica, ou seja, de acordo com a finalidade da expressão "abandono" prevista no mencionado artigo 1638, II, do Código Civil, faz crer que a cessação do carinho ou ausência total deste dos pais em relação aos filhos não pode dar ensejo à reprimenda pecuniária, mas a outra solução jurídica, de natureza diversa, atentando-se ao princípio do melhor interesse da criança e do adolescente (artigo 227, caput, da Constituição Federal e artigo 1º do Estatuto da Criança e do Adolescente), que é a destituição do poder familiar dentro da seara do direito de família, no caso da questão envolver a ausência de afeto em relação a menores.

O princípio do melhor interesse da criança pode ser reconhecido implicitamente tanto no artigo 1º do Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei 8.069/90), como nos artigos 1583 e 1584 do Código Civil brasileiro, que dispõem que nos casos de separação ou divórcio a guarda dos filhos menores será atribuída a quem tiver melhor condições de exercê-la. Independentemente de quem tenha tido culpa na separação, atenta-se primordialmente para o melhor interesse do menor envolvido e sua proteção integral.

Neste sentido, encontra-se a já mencionada decisão exarada no Recurso Especial n.º 757.411/MG, do Superior Tribunal de Justiça:

No caso de abandono ou do descumprimento injustificado do dever de sustento, guarda e educação dos filhos, porém, a legislação prevê como punição a perda do poder familiar, antigo pátrio-poder, tanto no Estatuto da Criança e do Adolescente, art. 24, quanto no Código Civil, art. 1638, inciso II. Assim, o ordenamento jurídico, com a determinação da perda do poder familiar, a mais grave pena civil a ser imputada a um pai, já se encarrega da função punitiva e, principalmente, dissuasória, mostrando eficientemente aos indivíduos que o Direito e a sociedade não se compadecem com a conduta do abandono, com o que cai por terra a justificativa mais pungente dos que defendem a indenização pelo abandono moral. Por outro lado, é preciso levar em conta que, muitas vezes, aquele que fica com a guarda isolada da criança transfere a ela os sentimentos de ódio e vingança nutridos contra o ex-companheiro, sem olvidar ainda a questão de que a indenização pode não atender exatamente o sofrimento do menor, mas também a ambição financeira daquele que foi preterido no relacionamento amoroso.

Portanto, pode-se deduzir que o abandono afetivo configura uma conduta moralmente reprovável, com repercussão jurídica prevista, aferível pela realização de estudos sociais dentro de eventual e adequada demanda de destituição do poder familiar.

Esse é, inclusive, o entendimento da Ministra Ellen Gracie do STF que, enfrentando a questão aqui proposta, não conheceu de recurso extraordinário n. 567.164, que versava sobre a responsabilidade civil por abandono afetivo, no qual se alegava ofensa aos artigos 1º e 5º, incisos V e X, e artigo 229 da Constituição Federal. O recurso combatia a decisão do Superior Tribunal de Justiça que deu provimento a recurso especial pela inviabilidade do reconhecimento de indenização por danos morais decorrente de abandono afetivo, com fundamento no artigo 159 do Código Civil de 1916.

Em seu parecer, asseverou a Ministra:

O apelo extremo é inviável, pois esta Corte fixou o entendimento segundo o qual a análise sobre a indenização por danos morais limita-se ao âmbito de interpretação de matéria infraconstitucional, inatacável por recurso extraordinário. Conforme o ato contestado, a legislação pertinente prevê punição específica, ou seja, perda do poder familiar, nos casos de abandono do dever de guarda e educação dos filhos. [5]

O arquivamento do Recurso Extraordinário se deu com fundamento na impossibilidade de análise dos fatos e das provas contidas nos autos do pedido de reparação pecuniária por abandono moral, bem como da legislação infraconstitucional que disciplina a matéria (Código Civil e Estatuto da Criança e do Adolescente). Para a Ministra, "o caso não tem lugar nesta via recursal considerados, respectivamente, o óbice da Súmula 279, do STF, e a natureza reflexa ou indireta de eventual ofensa ao texto constitucional". Cita ainda a relatora o parecer da Procuradoria Geral da República, que segundo o Código Civil e o Estatuto da Criança e do Adolescente, eventual lesão à Constituição Federal, se existente, ocorreria de forma reflexa e demandaria a reavaliação do contexto fático, o que, também, seria incompatível com a via eleita.


5. CONCLUSÃO

No Estado Democrático de direito vigora o princípio da legalidade (artigo 5º, inciso II, da Constituição Federal). Logo, cabe à lei proibir as condutas contrárias ao direito, aplicando sanção anteriormente prevista. No que tange ao abandono afetivo, que diz respeito a um comportamento moralmente reprovável, o legislador se limitou a estabelecer consequências afetas às questões familiares, não trazendo, mesmo implicitamente, nenhum dispositivo que possibilitasse a interpretação de que se deve patrimonializar tal situação.

A grande dificuldade de aceitação da tese da reparabilidade do dano afetivo repousa no enfrentamento dos pressupostos gerais da responsabilidade civil, cuja configuração mostra-se comprometida pela dificuldade em se demonstrar juridicamente a ilicitude da conduta de não dar afeto, apenas omissiva, além de se provar o dano psíquico e o nexo de causalidade entre a conduta e tal lesão.

Quando há apenas uma conduta não exteriorizada, consistente em simples omissão de amor, não se pode configurar ato ilícito merecedor de indenização civil, por ausência do conteúdo e alcance normativo dessa conduta. Também, de plano, encontra-se dificuldade no preenchimento do segundo pressuposto de responsabilização, qual seja a existência de uma conduta culposa, pois a falta de afeto é conduta não exteriorizada, não podendo o direito regular ou intervir na ausência de sentimento, como não pode fazê-lo no pensamento. Ademais, para toda responsabilidade deve haver a prova de dano. Mesmo considerando-se que o dano moral é presumido, a ausência de afeto é conceito extremamente impreciso para embasar a responsabilidade civil, já que não figura como expressa violação a direito da personalidade expresso no sistema jurídico. Por fim, não há como se provar o nexo de causalidade entre a conduta do parente e o dano sofrido.

Daí, concluir-se que a fixação de indenização pelo abandono afetivo caracteriza ingerência indevida do Estado, ainda que com boas intenções, em assunto delicado, mas afeto somente à seara e contexto das relações familiares, que pode apenas atribuir solução jurídica pertinente a esse ramo, como a destituição do poder familiar, atentando-se não para o desvalor da conduta praticada, mas para o critério do melhor interesse da criança e do adolescente, em caso de menores, fundado no princípio da dignidade da pessoa humana.


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Notas

Art. 246. Deixar, sem justa causa, de prover à instrução primária de filho em idade escolar. Pena – detenção, de 15 (quinze) dias a 1(um) mês, ou multa.

  1. Retirado do site Consultor Jurídico, disponível em: <http://www.conjur.com.br/2010-jan-13/justica-sp-condena-pai-indenizar-filho-abandono-afetivo> Acesso em 8/02/2010.

  2. Disponível em: <http://ultimainstancia.uol.com.br> Acesso em 06 jan. 2010.

  3. Art. 244. Deixar, sem justa causa, de prover à subsistência do cônjuge, ou de filho menor de 18 (dezoito) anos ou inapto para o trabalho, ou de ascendente inválido ou maior de 60 (sessenta) anos, não lhes proporcionando os recursos necessários ou faltando ao pagamento de pensão alimentícia judicialmente acordada, fixada ou majorada, deixar sem justa causa, de socorrer descendente ou ascendente, gravemente enfermo. Pena – detenção, de 1(um) a 4 (quatro) anos, e multa, de uma a dez vezes o maior salário mínimo vigente no País. Nas mesmas penas incide quem, sendo solvente, frustra ou ilide, de qualquer modo, inclusive por abandono injustificado de emprego ou função, o pagamento de pensão alimentícia judicialmente acordada, fixada ou majorada.

  4. Disponível em: <http://www.alienacaoparental.com.br/o-que-e.> Acesso em 8 de fev. 2010.

  5. Disponível em: <www.stf.jus.br/portal/cms/verNoticiaDetalhe.asp?...108739 em Notícias STF: Ministra arquiva recurso sobre abandono afetivo por não existir ofensa direta à Constituição.> Acesso em 6 jan. 2009.


Abstract: This study aims to outline, in summary, the main arguments against the thesis of the possibility of setting compensation for moral damage as a result of emotional neglect on the parental relationship, in light of the general assumptions of liability. Suggest that the main settlement within the family law, the removal of family power due to moral abandonment, based on the principle of human dignity.

Key words: Liability. Early affective. Impropriety. Absence of general assumptions of liability. Legal Consequences of emotional neglect. Dismissal of family power.


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NASSRALLA, Samir Nicolau. Reflexões acerca da responsabilidade civil parental por abandono afetivo. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 15, n. 2577, 22 jul. 2010. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/17029. Acesso em: 28 mar. 2024.