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A (ir)responsabilidade penal da pessoa jurídica.

Enfoques comparado, doutrinário e legal

A (ir)responsabilidade penal da pessoa jurídica. Enfoques comparado, doutrinário e legal

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Sumário: 1. Considerações iniciais 2. Teorias sobre natureza jurídica das pessoas coletivas 2.1. Teorias da ficção 2.2 Teorias da realidade 3. Responsabilidade penal da pessoa jurídica em diversos países – enfoque legislativo 3.1. Inglaterra 3.2. Estados Unidos 3.3. França 3.4. Japão 3.5. América Latina 3.6. Alemanha 3.7. Suíça 3.8. Itália 3.9. Espanha 4. Incompatibilidades dogmáticas da responsabilidade penal da pessoa jurídica frente à teoria do delito 4.1. A incapacidade de ação 4.2. A incapacidade de culpabilidade 4.3. Princípio da personalidade da pena 5. A (ir)responsabilidade penal da pessoa jurídica na Constituição Federal de 1988 6. A (in)validade da Lei n. 9.605, de 12/02/98 (lei ambiental), no que concerne à responsabilidade penal da pessoa jurídica 7. Considerações finais 8. Bibliografia.


1. Considerações iniciais

A possibilidade da pessoa jurídica ser sujeito ativo no campo penal tem suscitado, ao longo de todo o século XX, inúmeros e acirrados debates. Basicamente, duas correntes antagônicas, e uma terceira via em formação, debatem a responsabilidade penal das pessoas jurídicas.

Nos países filiados ao sistema romano-germânico, que representam a esmagadora maioria, vige o princípio societas delinquere non potest, segundo o qual, é inadmissível a punibilidade penal dos entes coletivos, aplicando-se-lhes somente a punibilidade administrativa ou civil.

De outro lado, nos países anglo-saxões e naqueles que receberam suas influências, vige o princípio da common law, que admite a responsabilidade penal da pessoa jurídica. É bem verdade que esta orientação começa a conquistar espaço entre os países que adotam o sistema romano-germânico, como, por exemplo, a Holanda e, mais recentemente a França e a Dinamarca. Essa tendência se fortaleceu depois da Primeira Guerra Mundial por duas razões: o Estado passou a ser mais intervencionista, regulando a produção e distribuição de vários produtos e serviços; as empresas passaram a ser, em face do seu poderio resultante da formação de monopólios e oligopólios, as principais violadoras das normas estatais.

Uma terceira posição, hoje dominante na Alemanha e em outros países, adota posicionamento intermediário. Às pessoas jurídicas podem ser impostas sanções pela via do chamado direito penal administrativo ou contravenção à ordem. Estas se constituem em infrações de menor gravidade. Sua sanção não é uma multa penal (Geldstrafe), mas sim uma multa administrativa (Geldbusse); por essa via são punidas as infrações econômicas. Nestes casos não se indaga sobre a culpabilidade das empresas, utiliza-se, ao revés, de uma punição com um espírito mais pragmático.

Em 1988 a legislação brasileira passou por um período de transição constitucional inovando sob muitos aspectos, dentre eles pela incorporação das normas insertas nos arts. 173, § 5º e 225, § 3º, que para alguns juristas representou a consagração da responsabilidade da empresa em nosso ordenamento jurídico, inclusive com fundamento constitucional.

Para uma grande parte da doutrina, entretanto, a qual me filio, a questão da responsabilidade penal da pessoa jurídica encarta um série de obstáculos. Estes repousam, essencialmente, nos textos constitucionais e legais, bem como nos princípios da culpabilidade e individualização da pena.

Nestas sucintas anotações, abordaremos as teorias sobre a natureza jurídica das pessoas coletivas, o estágio atual da legislação de diversos países acerca da responsabilidade penal das mesmas, as incompatibilidades dogmáticas de tal responsabilidade frente à teoria do delito, a previsão da Constituição de 1988 sobre a (ir)responsabilidade penal do ente coletivo, bem como a (in)validade da Lei nº. 9.605/98.


2. Teorias sobre a natureza jurídica das pessoas coletivas

A indagação sobre os fundamentos que justificam a (ir)responsabilidade da pessoa jurídica obriga-nos ao retorno de uma discussão, em grande parte travada no século passado, que diz respeito à natureza jurídica das pessoas coletivas.

Os autores enumeram uma longa série de teorias que podem ser agrupadas em duas tendências: teorias da ficção da pessoa jurídica e teorias da realidade.

2.1. Teorias da ficção

As teorias de ficção consideram as pessoas jurídicas uma criação artificial da lei, carecendo de realidade; sua existência teria por escopo apenas facilitar determinadas funções.

Desenvolvida na Alemanha, essa teoria perdurou por certo tempo, sendo, para a maioria dos juristas do século XIX, o fundamento da noção de personalidade jurídica.

A concepção geral da ficção estabelecida por Savigny considera que cada direito supõe essencialmente um ser ao qual ele pertence. Segundo ele, somente o homem, por sua natureza, possui aptidão de ser sujeito de direito. Desta forma, ao lado do homem, único sujeito de direito, o legislador aceita a criação de uma outra pessoa jurídica, constituída em um grupamento de pessoas e bens.

Esta técnica da ficção atribui um meio jurídico para realizar um interesse geral e, para tanto, passou-se a aceitar que uma pessoa ficta fosse tratada como sendo uma pessoa real.

Por não exprimir a realidade das coisas, esta teoria foi bastante contestada, haja vista que de um lado requeria para o reconhecimento de um direito a exigência de um sujeito, e, de outro, reconhecia às pessoas jurídicas a possibilidade de possuírem certos direitos. Sendo assim, os homens seriam os verdadeiros sujeitos, sempre.

A teoria da ficção suscitou inúmeras críticas. Duguit, por exemplo, considerava que a personalidade de um grupamento é uma idéia abstrata sem qualquer utilidade prática. A existência do ente coletivo, para ele, decorre apenas da técnica jurídica de adequar um conjunto de vontades de um grupo de indivíduos a uma regra de direito.

2.2 Teorias da realidade

As teorias da realidade, cujos defensores mais conhecidos são Otto Gierke e Zitelman, admitem as pessoas jurídicas como entidades de existência indiscutível, distintas dos indivíduos que as compõem e caracterizadas por finalidades específicas.

Os objetivos destas teorias é afirmar e demonstrar a real existência de um ente coletivo, embora não signifique o reconhecimento de um grupamento com existência exatamente igual a uma pessoa física.

Conceberam-se cinco razões que vieram lastrear a existência das pessoas jurídicas. São elas: biológica, fisiológica, sociológica, institucional e técnica.

Para a primeira concepção, estabeleceu-se a idéia de que não é somente o homem o sujeito de direito. A pessoa jurídica forma uma realidade natural, resultante da existência de vários membros. Como uma pessoa física, a coletividade possui um conjunto de órgãos, cada qual com uma função própria, e, embora não sejam constituídas dos mesmos órgãos dos seres humanos, alguns de seus membros - pessoas físicas e independentes - representam seus órgãos.

Para Fausto Martin de Sanctis(1), "a comparação entre o grupamento e o corpo humano careceu de suficientes elementos a justificar o fenômeno da pessoa jurídica. Ao contrário dos seres humanos, os órgãos que integram as pessoas jurídicas possuem vida distinta, socialmente reconhecida."

Para a teoria fisiológica os indivíduos, ao se associarem, criam um novo ser, real e vivo, resultado da reunião de vários elementos, os quais resultam na formação de uma vontade una.

Os defensores da teoria sociológica, por sua vez, justificam a existência da personalidade jurídica das pessoas coletivas, tendo em vista sua existência objetiva. O grupamento possui suas bases a partir de sua origem e se revela, com isso, capaz de ter direitos e contrair obrigações. A noção de responsabilidade jurídica, para eles, repousa numa realidade social.

Já a teoria da instituição, desenvolvida por Harriou - uma das mais aceitas por nossos juristas, dentre eles a Professora Maria Helena Diniz - defende que "a personalidade jurídica constitui um atributo que a ordem jurídica estatal confere a entes que o merecem. Esta teoria desconsidera, contudo, o fato de que as pessoas de direito público ou os grupos naturais não se forma da vontade pura do grupamento, e a teoria da instituição faz da vontade geral a base da personalidade jurídica."(2)

Por fim, a concepção da realidade técnica, que também conta com vários seguidores no Brasil, sublinha que a idéia da vontade comum não se coloca no plano filosófico, mas, simplesmente, no plano jurídico. Afirma, ainda, Fausto Martin de Sanctis(3), citando Jellinek e Richier "que os atos que emprestamos aos grupamentos são, em realidade, os atos de vontade dos indivíduos e juridicamente os atos de vontade da coletividade. Uma pessoa jurídica pode adquirir a sua personalidade quando seus interesses distintos são assumidos pela organização, de molde a possibilitar a formação de uma vontade coletiva."


3. Responsabilidade penal das pessoas jurídicas em diversos países – enfoque legislativo

3.1. Inglaterra

A velha doutrina inglesa, influenciada pela doutrina da ficção, recusava a responsabilidade criminal das pessoas coletivas. A partir da Revolução Industrial e do crescente número de crimes cometidos através das grandes empresas, a jurisprudência passou a mudar sua orientação começando a aplicar sanções coletivas, primeiramente em virtude de infrações omissivas e, mais tarde, também, por atos comissivos.

Alguns fatores concorreram para tal mudança. Primeiramente uma razão de ordem processual: através do Sumary Jurisdiction Act de 1879, superou-se a exigência da presença pessoal do acusado para se fazer representar em juízo. Além disso, fez-se necessário impor uma regulamentação à atividade societária, também no aspecto penalístico, para coibir, pragmaticamente, algumas atividades ilícitas das corporações.

O quadro evolutivo somente se completou a partir de 1948 com o advento do Criminal Justice Act, responsável pelo estabelecimento da possibilidade de conversão das penas privativas de liberdade em penas pecuniárias. Atualmente, no direito inglês, as pessoas coletivas podem ser punidas por infrações mais leves (misdemeanours) ou por infrações mais graves (felonies), exceto por aqueles fatos que, pela própria natureza, não possam ser cometidos por uma corporação. As penas aplicáveis são pecuniárias, dissolução, apreensão e limitação de atividades.

3.2. Estados Unidos

No direito norte-americano, o princípio da responsabilidade criminal das corporações é ainda mais amplo do que na Inglaterra.

Em face do sistema federado americano, alguns Estados não adotam a orientação dominante no país, como é o caso do Estado de Indiana. Não obstante tal fato, a regra é a responsabilidade penal das corporações.

O direito americano admite a imputação das empresas nas infrações culposas, quando cometidas por um empregado no exercício de suas funções, mesmo que a empresa não tenha obtido proveito com o fato delituoso. Além disso, a corporação também será responsável quando o fato criminoso for cometido a título de dolo e se praticado por um executivo de nível médio.

A responsabilidade corporativa é tão ampla que atinge até mesmo os sindicatos, conforme já decidiu a Corte Suprema dos Estados Unidos, em 05.06.1922(4).

O Código Criminal Federal de 1988, nos parágrafos 1962 e 1963, também estabelece penas de multa para os agentes coletivos que, ao lado dos individuais, participarem direta ou indiretamente de atividades econômicas consideradas lesivas ao patrimônio público ou associadas ao crime organizado. Multa e inabilitações são as penas aplicadas pelo cometimento do delito.

Conforme Sérgio Salomão Shecaria(5), a tendência atual, no entanto, é de restringir a aplicação das penas a pessoas coletivas, partindo-se da idéia de que se trata, certamente, de uma reprovação penal duvidosa sob a ótica da realização da justiça, segundo exposição de motivos do próprio Código Penal Tipo.

3.3. França

Desde 1º de março de 1994, com a entrada em vigor do atual Código Penal, a França juntou-se ao rol dos países que expressamente admitem a responsabilidade penal das pessoas morais, sempre que o crime for cometido "par leur compte, par les organes ou représentants"(art. 121,2).

O supra citado dispositivo legal acolheu amplamente a responsabilidade penas das corporações, só excluindo de seu alcance as infrações cometidas por coletividades territoriais (comunas, departamentos, regiões, quando no exercício de atividades inerentes às funções entendidas como próprias do poder público) e o próprio Estado. Em contrapartida, todas as pessoas jurídicas são atingidas, incluindo sindicatos e associações, as sociedades civis e comerciais, os agrupamentos de interesses econômicos, as fundações clássicas e de empresas.

A idéia da sociedade coletiva com uma vontade própria, não sendo apenas um mito e se distinguindo da vontade individual de seus membros foi acolhida no plano teórico e está disposto no Código Civil. Essa vontade coletiva, concretizada pela vontade de sua assembléia geral ou de seu conselho de administração, gerência ou direção, é capaz de cometer ilícitos tanto quanto a pessoa individual.

Ainda de acordo com os ensinamentos de Sérgio Salomão Shecaira6(6), duas condições são necessárias para que se reconheça a responsabilidades das empresas: "que a infração seja cometida por um órgão ou representante da pessoa moral; que seja cometida por ‘sua conta’, entendida tal expressão como agir em seu interesse."

3.4. Japão

Em artigo titulado Societas delinquere potest – Revisão da legislação comparada e estado atual da doutrina, o Professor João Marcello de Araújo Júnior7(7) informa que até 1932, o Japão, por influência do direito europeu, que de regra entendia que a empresa não podia cometer crimes, consagrou uma espécie de responsabilidade vicariante, pois os diretores, representantes e gerentes eram punidos pelos atos ilícitos das empresas.

Pelo novo sistema, introduzido àquela época, o Act Preventing Escape of Capital to Foreign Countries, conhecido como Ryobatsu-Kitei, passou-se a punir tanto o autor, pessoa natural, quanto a própria empresa.

3.5. América Latina

Na América Latina a regra é a incriminação exclusiva da pessoa natural, abrindo-se exceção para o México e Cuba.

Este último país, "tem experiência peculiar com o Código de Defesa Social de 1936 que, partindo das teorias positivistas de Ferri e estabelecendo como pressuposto da pena a periculosidade e não a culpabilidade, impunha medidas de segurança às empresas. O art. 16 desse diploma normativo prevê que ‘as pessoas jurídicas poderão ser consideradas criminalmente responsáveis nos casos determinados neste código, ou em lei especiais, em razão das infrações cometidas dentro da própria esfera de ação das ditas pessoas jurídicas, quando forem levadas a cabo por sua representação, ou por acordo de seus associados, sem prejuízo da responsabilidade individual em que houverem incorrido os autores dos fatos puníveis.’"(8)

Por sua vez, o México, em seu Código Penal, no art. 11, prevê a possibilidade de, em caso de crime cometido por algum membro ou representante de pessoa jurídica, desde que sob amparo da representação social da empresa ou em seu benefício, decretar-se na sentença a suspensão do agrupamento ou sua dissolução, quando necessário para a segurança pública. Tal medida, pode ser entendida, de acordo com os ensinamentos de Shecaria, "como uma medida de caráter administrativo complementar, e não como uma plena responsabilidade da pessoa coletiva."(9)

3.6. Alemanha

Pela influência do direito alemão na moderna dogmática penal, mister se faz tecer maiores comentários acerca deste ordenamento jurídico.

Na Alemanha, as pessoas coletivas não podem ser objeto de sanções do tipo penal. Nem o Código Penal vigente, tampouco o Direito Penal Alemão como um todo conhecem penas que possam ser aplicadas às empresas. Vigora, pois, a regra societas delinquere non potest. As pessoas jurídicas, entretanto, podem ser atingidas pelo confisco especial dos ganhos obtidos com o delito, assim como pela perda dos producta et instrumenta sceleris (§§ 73 e 74, do Código Penal).

Como, para eles, as pessoas jurídicas atuam exclusivamente por intermédio de seus órgãos, às mesmas podem somente ser impostas sanções pela via do chamado direito penal administrativo ou contravenção à ordem. Estas são infrações de menor gravidade. Sua sanção não é a multa penal (Geldstrafe), mas sim uma multa administrativa (Geldbusse), aplicada para as infrações de trânsito e as econômicas.

O insigne penalista Luiz Regis Prado(10) noticia que o art. 30, da OWIG (Gesetz über Ordenungswidrigkeiten), de 1975, prevê a imposição de multa contravencional como sanção acessória à pessoa jurídica quando o autor, dotado de certa representatividade, praticar uma contravenção ou um delito, sempre e quando tenha conexão com a atividade da empresa.

Ainda conforme o mencionado Professor, o art. 130, da mesma lei, prescreve: "Quem, como proprietário ou titular de uma empresa, dolosa ou culposamente, omite-se em adotar as medidas de vigilância necessárias para evitar a realização de infrações cominadas com pena ou multa administrativa e vinculadas à atividade da empresa, será punível por contravenção, quando se praticar uma contravenção ou delito, no caso me que o exercício da vigilância devida pudesse evitar a contravenção ou delito". Essa disposição legal cria um dever de vigilância que dá origem a tipos de omissão pura.

Para Shecaria(11), a justificativa para adoção de tal sistema se firma na idéia segundo a qual não se pode aplicar uma sanção de natureza penal às empresas em face da inexistência de reprovação ético-social de uma coletividade. As multas, em tais casos, são desprovidas do significado social de reprovação e, portanto, valorativamente neutras.

Além das penas pecuniárias, os arts. 8o e 10, da lei sobre delinquência econômica, prevêem o confisco à pessoa jurídica de seus bens, dentre outras medidas. Apreensão de bens, restituição das vantagens e encerramento das empresas também são medidas encontradas para reprovação das empresas no direito alemão.

No processo vigora o princípio da oportunidade e não o da legalidade. A acusação é exercida pela autoridade administrativa e não pelo Ministério Público. Da decisão da autoridade administrativa cabe recurso para o tribunal administrativo regional.

3.7. Suíça

O Código Penal suíço de 1942, em seus arts. 172 e 326, nega a responsabilidade coletiva, afirmando que somente os representantes das empresas é que podem ser culpados por um fato delituoso.

No entanto, as soluções são diversas na órbita do direito de polícia, econômico e administrativo. Seguindo a orientação alemã, segundo a qual nesse campo a natureza da multa não corresponde a uma censura ética, mas meramente social, o direito suíço prevê a aplicação de multas ou sanções funcionais às empresas.

A jurisprudência e a doutrina sustentam a mesma visão, qual seja, a responsabilidade é somente pessoal. O Tribunal Federal, de acordo com informação colacionada por João Castro e Silva(12), segue a orientação conforme a qual, nesse domínio da responsabilidade, o interesse maior é a prevenção e não a repressão, motivo porque só se admitem sanções no plano do direito penal administrativo ou mera ordenação social.

3.8. Itália

A evolução da responsabilidade penal das pessoas coletivas na Itália tem sido delimitada pelo princípio constitucional da personalidade da responsabilidade penal, contido no art. 27 da Constituição, e sobejamente consagrado pela Corte Constitucional. Entretanto, o art. 197 do Código Penal prevê a responsabilidade subsidiária da empresa em relação à sanção pecuniária, porém, tal responsabilidade é de natureza civil.

Foi introduzido, neste país, em 1981, o Direito Penal Administrativo. E, a partir de 1990, foram criadas sanções administrativas, quase-penais, contra as empresas no campo da concorrência, do mercado de valores mobiliários e de audiovisuais.

3.9. Espanha

No Código Penal espanhol de 1995, a responsabilidade individual continua sendo a única fonte, tanto da pena, quanto da medida de segurança.

De um modo geral, o Título VI, do Livro I, no art. 129, define medidas que afetam as pessoas jurídicas, qualificando-as, porém, como consequências acessórias de ações individuais de pessoas naturais que integram a pessoa jurídica.

A repulsa, nas palavras de João Marcello de Araújo Júnior(13), que alguns juristas espanhóis sentem pela idéia de uma responsabilidade penal das empresas levou o legislador de 1995 a criar, no art. 31, do Código Penal, uma figura tortuosa de responsabilidade por fato de outrem, assim redigida: "El que actúe como administrador de hecho o de derecho de una persona jurídica, o en nombre o representación legal o voluntaria de outro, responderá personalemte, aunque non concurran en el las condiciones, cualidades o relaciones que la correspondiente figura de delito o falta requiera para poder ser sujeto activo del misto, si tales circunstancias se dan en la empresa o persona en cuyo nombre o representación obre."

Ainda segundo o supra citado autor, esse dispositivo legal não passa de um subterfúgio para excluir a responsabilidade penal da empresa, revelando o caráter pessoal da responsabilidade penal na Espanha. Para ele, o Código Penal espanhol preferiu consagrar uma forma de responsabilidade objetiva a admitir a responsabilidade da empresa.


4. Incompatibilidades dogmáticas da responsabilidade penal da pessoa jurídica frente à teoria do delito

A responsabilidade penal das pessoas jurídicas, do ponto de vista dogmático, apresenta, prima facie, inúmeros problemas, dentre os quais pode-se destacar, a falta de capacidade de ação no sentido estrito do Direito Penal, a incapacidade de culpabilidade e o princípio da personalidade da pena.

A seguir, analisaremos, neste limitado ensaio, alguns enfoques daquelas questões consideradas fundamentais no presente contexto.

4.1 A incapacidade de ação

O Direito penal contemporâneo estabelece que o único sujeito com capacidade de ação é o indivíduo. Pode-se dizer "que, no mundo social, só os seres humanos são capazes de ouvir e de entender as normas, portanto, só eles podem cometer crimes."(14)

A ação, como primeiro elemento estrutural do crime, é o comportamento voluntário conscientemente dirigido a um fim. Compõe-se de um comportamento exterior, de conteúdo psicológico, da representação ou antecipação mental do resultado pretendido, da escolha dos meios e a consideração dos efeitos concomitantes ou necessários e do movimento corporal dirigido a um fim proposto.

Cezar Roberto Bitencourt(15), em trabalho sobre o tema, lança a seguinte indagação: "Como sustentar-se que a pessoa jurídica, um ente abstrato, uma ficção normativa, destituída de sentidos e impulsos possa ter vontade e consciência? Como poderia uma abstração jurídica ter ‘representação’ ou ‘antecipação mental’ das conseqüências de sua ‘ação’?."

E arremata: "... a conduta (ação ou omissão) é produto exclusivo do homem. Juarez Tavares, seguindo essa linha, afirma que ‘a vontade eleva-se, pois, à condição de espinha dorsal da ação. Sem vontade não há ação, pois o homem não é capaz de cogitar de seus objetivos, se não se lhe reconhece o poder concreto de prever os limites de sua atuação. René Ariel Dotti destaca, com muita propriedade, que ‘o conceito de ação como atividade humana conscientemente dirigida a um fim vem sendo tranqüilamente aceito pela doutrina brasileira, o que implica no poder de decisão pessoal entre fazer ou não fazer alguma coisa, ou seja, num atributo inerente às pessoas naturais’. Com efeito, a capacidade de ação e de culpabilidade exige a presença de uma vontade, entendida como faculdade psíquica da pessoa individual, que somente o ser humano pode ter."

Assim, ressalta a evidência de que a pessoa coletiva não possui consciência e vontade – em sentido psicológico – exclusivos da pessoa física. Isto vale dizer: não é capaz de ser sujeito ativo do delito, pois sem estes dois elementos – consciência e vontade – é impossível falar-se, tecnicamente, em ação, que é o primeiro elemento estrutural do crime, ao menos, que se pretenda destruir o Direito Penal e partir, assumidamente, para a responsabilidade objetiva.

4.2. A incapacidade de culpabilidade

          Com a adoção da teoria normativa pura, operou-se a exclusão do dolo e da culpa da culpabilidade, sua posição original, para ingressar na tipicidade. O princípio da culpabilidade passou-se, desde então, a ser examinado em dois níveis: um na tipicidade e outro na culpabilidade.

Em nível de tipicidade, o princípio significa, nos dias atuais, que não existe conduta típica sem que se apresente o dolo, ou, ao menos, a culpa. Como vimos anteriormente, o resultado decorrente da conduta deve ingressar na vontade realizadora do agente para que seja penalmente relevante.

Tratando-se de culpabilidade, o princípio enuncia a impossibilidade de ser irrogada uma pena ao agente se não estão presentes seus três elementos constitutivos, quais sejam, imputabilidade, potencial consciência de ilicitude e exigibilidade de conduta diversa, posto que nullum crimen nulla poena sine culpabilidade.

A culpabilidade – como fundamento e limite da pena – é a reprovabilidade do fato antijurídico individual. Como juízo de censura pessoal pela realização do injusto típico, somente pode ser endereçada a uma pessoa humana (culpabilidade de vontade).

A imputabilidade – um dos elementos da culpabilidade - é a aptidão para ser culpável, é a capacidade de culpabilidade. "Pode-se afirmar, de uma forma genérica, que estará presente a culpabilidade, segundo o Direito Penal brasileiro, toda vez que o agente apresentar condições de normalidade e maturidade psíquica. Maturidade e alterações psíquicas são atributos exclusivos da pessoa natural e, por conseqüência, impossível de serem transladados para a pessoa fictícia. Enfim, a pessoa jurídica carece de maturidade e higidez mental, logo, é inimputável."(16)

Quanto ao segundo elemento da culpabilidade, não se pode exigir, por óbvio, que um empresa possa formar a "consciência da ilicitude" da atividade desenvolvida através de seus diretores ou prepostos. Escapa a moderna teoria do delito, consequentemente, um juízo de reprovabilidade em razão da conduta da referida empresa que, por exemplo, contarie a ordem jurídica.

Por fim, o terceiro elemento da culpabilidade – exigibilidade de conduta diversa ou de obediência ao direito - embora, em tese, possa ser exigido da pessoa jurídica, esbarra no caráter seqüencial desses elementos, posto que a exigibilidade de conduta diversa pressupõe tratar-se de agente imputável e de estar configurada a potencial consciência de ilicitude, impossível no caso do ente coletivo.

Demonstramos, portanto, a incapacidade de culpabilidade da pessoa jurídica, haja vista que a noção aceita é a da culpabilidade pelo fato individual, atribuída somente ao ser humano, importando num chamado Direito Penal do fato ou da culpa, evitando-se a chamada responsabilidade objetiva ou pelo evento.

4.3. Princípio da personalidade da pena

A Constituição de 1988, em seu artigo 5º, inciso XLX, dispõe que nenhuma pena passará da pessoa do condenado, consagrando o princípio da personalidade da pena e, como corolário lógico, o princípio da individualização da mesma. Os citados princípios determinam que a sanção penal recaia exclusivamente sobre os autores materiais do delito.

A condenação do ente coletivo pressupõe a penalização de todos os membros da corporação, autores materiais do delito e membros inocentes do grupo jurídico, representando, pois, uma flagrante violação aos princípios da personalidade e da individualização da pena.

Na verdade, o importante é a punição efetiva das pessoas naturais que se escondem através das pessoas coletivas e se utilizam de seu poder como instrumento para a prática delitiva. Já dizia Manoel Pedro Pimentel(17) que "raramente a pessoa jurídica tem um único responsável pela sua administração. E aquelas que se organizam para a prática do delito econômico obviamente nunca têm um só. Assim, a responsabilidade pela conduta da pessoa jurídica deve se projetar sobre as pessoas físicas que compões seus órgãos de administração."

Além do que, as idéias de retribuição, intimidação e reeducação – referentes à pena – não teriam sentido em relação às pessoas morais, bem como os fins de prevenção especial, por ser a empresa incapaz de sentir tais efeitos.

Como sabiamente afirmou Francisco Muñoz Conde(18), "a pena não pode ser dirigida, em sentido estrito, às pessoas jurídicas no lugar das pessoas físicas que atrás delas se encontram, porque conceitualmente implica uma ameaça psicológica de imposição de um mal para o caso de quem delinqüe e não se pode imaginar que a pessoa jurídica possa sentir o efeito de cominação psicológica alguma."


5. A (ir)responsabilidade penal da pessoa jurídica na Constituição Federal de 1988

Exista muita controvérsia na doutrina nacional sobre a questão no âmbito constitucional. Alguns entendem que continua em vigor o princípio societas delinquere non potest, não revogado, mas ratificado pela Carta de 1988. Outros, ao contrário, sustentam que efetivamente a mais recente Constituição brasileira desejou inovar e se adequar à tendência universal no sentido de responsabilizar penalmente a pessoa jurídica.

A Constituição de 1988, sobre o tema, declara:

"A lei, sem prejuízo da responsabilidade individual dos dirigentes da pessoa jurídica, estabelecerá a responsabilidade desta, sujeitando-a às punições compatíveis com sua natureza, nos atos praticados contra a ordem econômica e financeira e contra a economia popular" (art. 173, § 5º).

"As condutas e atividades consideradas lesivas ao meio ambiente sujeitarão os infratores, pessoas físicas ou jurídicas, a sanções penais e administrativas, independentemente da obrigação de reparar os danos causados"(art. 225, § 3º).

Como adeptos da responsabilidade penal das pessoas jurídicas, podemos citar: Paulo Affonso Leme Machado, Gilberto Passos de Freitas, Ivette Senise Ferreira, Sérgio Salomão Shecaria, Antônio Evaristo de Morais Filho, Fausto Martin de Sanctis, Walter Claudis Rothenburg(19), dentre outros ilustres.

Fausto Martin de Sanctis(20), ao defender seu ponto de vista, expõe que: "O legislador constitucional, atento às novas e complexas formas de manifestações sociais, mormente no que toca à criminalidade praticada sob o escudo das pessoas jurídicas, foi ao encontro da tendência universal de responsabilização criminal. Previu, nos dispositivos citados, a responsabilidade penal dos entes coletivos nos delitos praticados contra ordem econômica e financeira e contra a economia popular, bem como contra o meio ambiente."

Gilberto Passos de Freitas, ao comentar o art. 225, § 3º, afirma: "Diante desse dispositivo, tem-se que não há mais o que se discutir a respeito da viabilidade de tal responsabilização. No dizer da Professora Ivette Senise Ferreira, ‘designando como infratores ecológicos as pessoas físicas ou jurídicas o legislador,... abriu caminho para um novo posicionamento do direito penal do futuro, com a abolição do princípio ora vigente o qual societas delinquere non potest’".(21)

Além dos penalistas, grande parte dos constitucionalistas, também, reconhece a responsabilidade da empresa na Carta Política de 1988.

José Afonso da Silva defende que o disposto no art. 173, § 3º, prevê a possibilidade de responsabilização das pessoas jurídicas, independentemente de seus dirigentes, sujeitando-os às punições compatíveis com sua natureza, nos atos praticados contra a ordem econômica, tendo como um dos seus princípios a defesa do meio ambiente.

Tanto para o citado autor, como para Shecaria(22), os dois dispositivos da Carta Magna invocados no início deste capítulo têm entre si uma articulação orgânica, que impedem possam ser examinados separadamente, por estarem no âmbito do mesmo contexto.

Diversa não é a opinião de Celso Ribeiro Bastos, Ives Gandra Martins e Pinto Ferreira(23).

De outro lado, como adeptos da irresponsabilidade penal das pessoas jurídicas, temos: René Ariel Dotti24(24), Luiz Vicente Cernicchiaro(25), Cezar Roberto Bitencourt(26), Antônio Claúdio Mariz de Oliveira [27], Luiz Regis Prado(28), José Carlos de Oliveira Robaldo(29), William Terra de Oliveira(30), dentre vários.

Para eles, a Constituição de forma alguma consagrou a responsabilidade penal da pessoa jurídica. Os argumentos são vários, oscilando da interpretação literal do texto constitucional à de ordem teleológico-sistemática.

Luiz Regis Prado(31), ao analisar o art. 225, § 3º, da Constituição Federal, aduz que o dispositivo em tela refere-se, claramente, a conduta/atividade, e, em seqüência, a pessoas físicas ou jurídicas. Dessa forma, vislumbra-se que o próprio legislador procurou fazer a devida distinção, através da correlação significativa mencionada. E, continua, afirmando que "nada obstante, mesmo que – ad argumentandum – o dizer constitucional fosse em outro sentido – numa interpretação gramatical (a menos recomendada) diversa -, não poderia ser aceito. Não há dúvida que a idéia deve prevalecer sobre o invólucro verbal."

Para José Carlos de Oliveira Robaldo(32), a responsabilidade penal das pessoas coletivas peca por dois motivos: primeiro porque fere o Direito Penal mínimo, posto que está se atribuindo ao Direito Penal uma tarefa que não é sua; segundo porque o Direito Penal se fundamenta na culpabilidade, cuja conduta, pedra angular da teoria geral do delito, somente é atribuível ao homem.

Luiz Vicente Cernicchiaro(33), por seu turno, entende que os arts. 173, § 5º e 225, § 3º, devem ser interpretados teleologicamente e considerados dentre de um contexto sistêmico maior, sob pena de se perder a congruência e visão de conjunto em relação a outros dispositivos constitucionais. Para ele, ao menos dois princípios básicos do direito penal, insertos na Constituição, seriam atingidos se houvesse a responsabilidade penal da empresa, quais sejam, o princípio da culpabilidade e o da responsabilidade pessoal; "haveria, pois, ofensa à idéia de que sem culpabilidade não existe pena, dogma de segurança individual, garantido pelo sistema penal brasileiro e haurido do Iluminismo; além disso, a pena passaria da pessoa do condenado, atingindo terceiros que não houvessem praticado qualquer conduta delituosa, ou que nem mesmo tivesse dado alguma contribuição nesse sentido."

Com efeito, pensamos que uma sociedade comercial e um homem são entes distintos em sua estrutura, haja vista que a conduta humana não tem seu equivalente no ato jurídico da pessoa jurídica, sendo a imputabilidade jurídico-penal uma qualidade inerente aos seres humanos.

Ora, a capacidade de ação, de culpabilidade e de pena, que analisamos en passant, exige a presença de uma vontade, entendida como faculdade psíquica da pessoa individual, inexistente na pessoa jurídica, mero ente ao qual o direito atribui capacidade para outros fins distintos dos penais. Além do mais, a pessoa jurídica não é intimidável pela certeza da aplicação de penas, e não pode ser ressocializada através da sanção.

Reforçando a tese que a Carta Magna de 1988 não adotou o princípio societas delinquere potest, encontramos nos Comentários à Constituição, na questão criminal dos grupamentos, a revelação de Antônio Evaristo Moraes Filho(34) que, ao proceder uma pesquisa sobre a origem do dispositivo 173, § 5º, na Comissão de Sistematização, descobriu que a sua redação original previa o seguinte: "lei, sem prejuízo da responsabilidade individual dos integrantes da pessoa jurídica, estabelecerá a responsabilidade criminal desta."

Não resta dúvida, pois, que a mudança de texto do legislador significou a exclusão da responsabilidade criminal dos entes jurídicos.

Tendo em vista os entendimentos esposados, chegamos à conclusão que, no tocante a responsabilidade penal da pessoa jurídica à luz da Constituição Federal de 1988:

  1. a responsabilidade pessoal dos dirigentes não se confunde com a responsabilidade da pessoa coletiva;
  2. a Carta Magna não dotou o ente moral de responsabilidade penal; ao contrário, condicionou a sua responsabilidade à aplicação de sanções compatíveis com a sua natureza;
  3. a responsabilidade penal continua a ser pessoal (art. 5º, inciso XLX).

6. A (in)validade da Lei n. 9.605, de 12/02/98 (lei ambiental),
no que concerne à responsabilidade penal da pessoa jurídica

Como dito acima, entendemos que a Constituição de 1988 não consagrou a possibilidade de ser imputada às empresas a prática de condutas tipificadas como crimes. Sendo assim, tal texto legal encontra-se eivado de inconstitucionalidade. No entanto, iremos analisar, de forma objetiva, as disposições contidas na Lei n. 9.605, de 12/02/98 (lei ambiental), no que concerne à responsabilidade penal da pessoa jurídica.

O caput do art. 3º, do diploma legal em apreço, diz:

"As pessoas jurídicas serão responsabilizadas administrativa, civil e penalmente conforme o disposto nesta Lei, nos casos em que a infração seja cometida por decisão de seu representante legal ou contratual, ou de seu órgão colegiado, no interesse ou benefício da sua entidade."

Segundo o texto legal, a responsabilidade penal das pessoas jurídicas não exclui das pessoas físicas, autoras, co-autoras ou partícipes do mesmo fato, o que, segundo Shecaria(35), demonstra a adoção de dupla imputação.

O legislador ambiental adotou três modalidades de pena. Consagrou a pena de multa, as restritivas de direitos e a prestação de serviços à comunidade. Nestas duas últimas criou diferentes espécies.

Fazendo nossas as palavras de Cezar Roberto Bitencourt(36), merece uma análise especial a desajeitada, inadequada e equivocada Lei n. 9.605/98.

Para o supracitado Professor, "a simples introdução no ordenamento jurídico de uma norma prevendo a responsabilidade penal da pessoa jurídica não será solução, enquanto não se determinar previamente os pressupostos de dita responsabilidade.

          O reconhecimento da pessoa jurídica como destinatária da norma penal supõe, antes de tudo, a aceitação dos princípios de imputação penal, como fez, por exemplo, o atual Código Penal francês de 1992, em seu art. 121, ao introduzir a responsabilidade penal da pessoa jurídica. Com efeito, a recepção legal deve ser a culminação de todo um processo, onde devem estar muito claros os pressupostos de aceitação da pessoa jurídica como sujeito de direito penal e os respectivos pressupostos dessa imputação, para não se consagrara uma indesejável responsabilidade objetiva. Desafortunadamente, não houve, no nosso ordenamento jurídico, aquela prévia preparação que, como acabamos de afirmar, fez o ordenamento jurídico francês."

De fato, na França tomou-se o cuidado de adaptar-se de modo expresso essa espécie de responsabilidade no âmbito do sistema tradicional. A denominada Lei de Adaptação (Lei 92-1336/92) alterou inúmeros textos legais para torná-los coerentes com o novo Código Penal, contendo, inclusive, normas de cunho processual, no intuito de um harmonização sistêmica.

Ademais, a lei francesa proclama o princípio da especialidade, o que somente torna possível a deflagração de processo penal contra a pessoa jurídica quando estiver tal responsabilidade prevista explicitamente no tipo legal de delito. Definem-se, assim, de modo taxativo, quais as infrações penais passíveis de serem imputadas à pessoa coletiva.

Embora inspirado pelo modelo adotado pelo Código Penal francês de 1994, que acabamos de comentar, o legislador pátrio de 1998 fez exatamente o oposto, pois de forma simplista, limitou-se a enunciar a responsabilidade penal da pessoa jurídica, cominando-lhe penas, sem lograr, contudo, instituí-la completamente.

Luiz Regis Prado(37), comentando o tema, afirma que a Lei n. 9.605/98 não é passível de aplicação concreta e imediata, "pois falta-lhe instrumentos hábeis e indispensáveis para consecução de tal desiderato. Não há como, em termos lógico-jurídicos, romper princípio fundamental como o da irresponsabilidade criminal da pessoa jurídica, ancorado solidamente no sistema de responsabilidade penal, restrito e especial, inclusive com regras processuais próprias.

E continua o autor, agora em artigo publicado no Boletim do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais – IBCrim, n. 70, de setembro de 1998: "Com efeito, o legislador de 1998 é pródigo no emprego de conceitos amplos e indeterminados – permeados, em grande parte, por impropriedades lingüísticas, técnicas e lógicas -, o que contrasta com o imperativo inafastável de clareza, precisão e certeza na descrição das condutas típicas. Nessa trilha, é de acentuar-se que a previsão de modalidade culposa para a conduta ancorada no art. 40 – causar dano direto ou indireto a unidade de conservação – denota sensível enfraquecimento da função de garantia do tipo penal, já que a noção de dano indireto culposo é altamente nebulosa. De semelhante, a incriminação prevista no art. 68 vale-se de termos imprecisos, conferindo ao intérprete vasta margem de discricionariedade (o que se entende por ‘obrigação de relevante interesse ambiental’?)."

Portanto, no nosso entendimento, a Lei n. 9.605, de 12/02/98 (lei ambiental), em relação à responsabilidade penal da pessoa jurídica, está eivada por vícios materiais de inconstitucionalidade, pelas violações às mais elementares diretrizes constitucionais, quais sejam:

  1. princípios da legalidade dos delitos e das penas (art. 5º, inciso XXXIX, da CF e art. 1º, do CP), sobretudo na sua vertente taxatividade/determinação, em vários tipos penais albergados no diploma legal em comento;
  2. a disposição contida no caput do art. 3º, desta lei, constitui exemplo claro de responsabilidade penal objetiva, incompatível com os rígidos ditames dos princípios constitucionais da personalidade das penas, da culpabilidade, da intervenção mínima, entre outros, que regem o ordenamento jurídico pátrio.

7. Considerações finais

Na realidade dos nossos dias, grande parte dos delitos da chamada macro-criminalidade ou macro-delinqüência – infrações contra as relações de consumo, ordem tributária, ordem econômica e financeira, meio ambiente, entre outras – são cometidos através de pessoas jurídicas.

Tendo em vista esse dado crescente, afora os países da Common Law que tradicionalmente adotam a responsabilidade da empresa, vimos que muitos países, de filiação romano-germânica, vêm admitindo à incorporação em seus ordenamentos jurídicos de princípios excepcionais à regra geral da responsabilidade individual, como é o caso da Holanda e, mais recentemente, da França.

Em face daquilo que se discutiu no corpo deste trabalho, chegamos a algumas conclusões, já formuladas anteriormente, quais sejam:

  1. a pessoa coletiva não possui consciência e vontade – em sentido psicológico – exclusivos da pessoa física. Isto vale dizer: não é capaz de ser sujeito ativo do delito, pois sem estes dois elementos – consciência e vontade – é impossível se falar, tecnicamente, em ação, que é o primeiro elemento estrutural do crime;
  2. a incapacidade de culpabilidade da pessoa jurídica, haja vista que a noção aceita é a da culpabilidade pelo fato individual, atribuída somente ao ser humano, importa num chamado Direito Penal do fato ou da culpa, evitando-se a chamada responsabilidade objetiva ou pelo evento;
  3. a condenação do ente coletivo pressupõe a penalização de todos os membros da corporação, autores materiais do delito e membros inocentes do grupo jurídico, representando, pois, uma flagrante violação aos princípios da personalidade e da individualização da pena;
  4. no que toca à pena, as idéias de retribuição, intimidação e reeducação não teriam sentido em relação às pessoas morais, bem como os fins de prevenção especial, uma vez que a empresa é incapaz de sentir tais efeitos;
  5. a responsabilidade pessoal dos dirigentes não se confunde com a responsabilidade da pessoa coletiva;
  6. a Carta Magna não dotou o ente moral de responsabilidade penal; ao contrário, condicionou a sua responsabilidade à aplicação de sanções compatíveis com a sua natureza;
  7. a responsabilidade penal continua a ser pessoal (art. 5º, inciso XLX);
  8. a Lei n. 9.605/98 (lei ambiental) está eivada por vícios materiais de insconstitucionalidade, pelas violações às mais elementares diretrizes constitucionais, como os princípios da legalidade dos delitos e das penas (art. 5º, inciso XXXIX, da CF e art. 1º, do CP), sobretudo na sua vertente taxatividade/determinação, em vários tipos penais albergados no diploma legal em comento;
  9. a disposição contida no caput do art. 3º, desta lei, constitui exemplo claro de responsabilidade penal objetiva, incompatível com os rígidos ditames dos princípios constitucionais da personalidade das penas, da culpabilidade, da intervenção mínima, entre outros, que regem o ordenamento jurídico pátrio.

Além dessas conclusões, parece-nos inegável que a admissão da responsabilidade penal das pessoas jurídicas guarda "uma função meramente simbólica, pois ela atua sobre os imaginário dos atores que fazem parte do sistema (ao Estado fica a satisfação de haver feito algo e ao povo a impressão que os problemas estão sob controle). Essa tendência pode ser traduzida pela criação de novos tipos penais, o aumento das penas existentes, assim como a derrogação de princípios gerais ou a proposta de derrogação de dogmas, como o da pessoa jurídica."(38) (grifos nossos)

Reconhecemos a necessidade de um combate mais eficaz em relação à criminalidade moderna, por isso, adotamos a sugestão de Winfried Hassemer(39) de criar um novo Direito, ao qual denomina de Direito de intervenção - meio termo entre o Direito Penal e Direito Administrativo - que não aplique as pesadas sanções de Direito Penal, mas que seja eficaz e possa ter, ao mesmo tempo, garantias menores que as do Direito Penal tradicional.

Enquanto no plano legislativo não é implantada a teoria de Hassemer, a vigência do princípio societas delinquere non potest, de valor político relevante, não obsta ou inviabiliza a necessária aplicação de medidas sancionatórias extra-penais (administrativas ou civis) às pessoas jurídicas, notoriamente em um Direito Penal de ultima ratio e de natureza fragmentária.

Por fim, rematando o assunto, devemos sempre ter em mente que o Direito Penal não pode, a nenhum título e sob nenhum pretexto, abrir mão das conquistas históricas consubstanciadas nas suas garantias fundamentais, razão maior para o nosso posicionamento contrário à responsabilização penal da pessoa jurídica.


8. Nota

  1. Sanctis, Fausto Martin de - Responsabilidade penal da pessoa jurídica, São Paulo: Saraiva, 1999, p.09.
  2. Idem, p. 10.
  3. Ib idem, p. 10.
  4. Valeur, Robert, La responsabilité pénale des personnes morales dans les droit français et anglo-américains, Paris: Marcel Giardi, 1931, p. 231, apud Shecaira, Sérgio Salomão, op. cit., p. 50.
  5. Op. cit., p. 51.
  6. p. cit., p. 57.
  7. n Gomes, Luiz Flávio – Coordenação, Responsabilidade penal da pessoa jurídica e medidas provisórias e direito penal, São Paulo: Revista dos Tribunais, 1999, p. 85.
  8. hecaria, Sérgio Salomão, op. cit., p. 59.
  9. p. cit., p. 61.
  10. In Direito penal ambiental, São Paulo: Revista dos Tribunais, 1992, p. 88 e 89.
  11. Op. cit., p. 61.
  12. Apud Shecaria, Sérgio Salomão, op. cit., p. 63.
  13. Op. cit., p. 86.
  14. Toledo, Francisco de Assis, Princípios básicos de Direito Penal, 4 ed., São Paulo: Saraiva, 1990, p. 91.
  15. Op. cit., p. 60.
  16. Bitencourt, Cezar Roberto, op. cit., p. 63.
  17. Apud Prado, Luiz Regis, op. cit., p. 146.
  18. Apud idem, p. 145.
  19. A pessoa jurídica criminosa, Revista dos Tribunais n. 717, p. 362.
  20. 15 Op. cit., p. 64.
  21. A tutela penal do meio ambiente, in Dano ambiental, prevenção, reparação e repressão, São Paulo: Revista dos Tribunais, 1993, p. 314 apud Shecaria, Sérgio Salomão, op. cit., p. 116.
  22. Op. cit., p. 115.
  23. Ib idem, p. 115.
  24. Revista Brasileira de Ciências Criminais, n. 11, p. 187-190.
  25. Boletim do IBCrim – Instituto Brasileiro de Ciências Criminais n. 65.
  26. Reflexões sobre a responsabilidade penal da pessoa jurídica, in Gomes, Luiz Flávio – Coordenação, Responsabilidade penal da pessoa jurídica e medidas provisórias e direito penal, São Paulo: Revista dos Tribunais, 1999, p. 51-71.
  27. Revista Brasileira de Ciências Criminais, n. 11, p. 97-98.
  28. Curso de direito penal brasileiro, parte geral, São Paulo: Revista dos Tribunais, 1999, p. 142-151.
  29. A responsabilidade da pessoa jurídica: Direito Penal na contramão da história, in Gomes, Luiz Flávio – Coordenação, Responsabilidade penal da pessoa jurídica e medidas provisórias e direito penal, São Paulo: Revista dos Tribunais, 1999, p. 95-103.
  30. Responsabilidade penal da pessoa jurídica e sistemas de imputação, in Gomes, Luiz Flávio, op. cit., p. 160-173.
  31. Op. cit., p. 147.
  32. Op. cit., p.100.
  33. Op.cit.
  34. Apud Sanctis, Fausto Martin, op. cit., p. 60.
  35. Op. cit., p. 127.
  36. Op. cit., p. 70.
  37. Op. cit., p. 149.
  38. Oliveira, William Terra, in op. cit., p. 170.
  39. Apud Bitencourt, Cezar Roberto, in op. cit., p. 71.

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Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

SOUZA, Keity Mara Ferreira de. A (ir)responsabilidade penal da pessoa jurídica. Enfoques comparado, doutrinário e legal. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 5, n. 46, 1 out. 2000. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/1716. Acesso em: 28 mar. 2024.