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O art. 106 do Código Tributário Nacional e sua aplicabilidade em face do princípio da irretroatividade tributária.

Um breve estudo de suas hipóteses

O art. 106 do Código Tributário Nacional e sua aplicabilidade em face do princípio da irretroatividade tributária. Um breve estudo de suas hipóteses

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INTRODUÇÃO

É notória a condição de o Brasil estar fundado em um Estado de Direito, razão esta que corrobora o fato de a Constituição da República de 1988 estabelecer não apenas direitos, mas também obrigações a todas as partes envolvidas na consecução do bem estar social, a fim de dar guarida ao preceito contido no art. 3º da Carta política brasileira [01].

Isto posto, temos que o Estado, detentor do poder de império sobre os indivíduos, não se encontra em permanente situação de superioridade, vale dizer, o Estado possui limitações no seu âmbito de atuação, por força do disposto no texto maior promulgado pelo Poder Constituinte Originário através da Assembléia Nacional Constituinte.

Tais limitações se dão inclusive no que tange o Direito Tributário, como se pode depreender da leitura dos artigos 150 e seguintes da Constituição Federal, limitações essas expostas através de uma gama de princípios atinentes a proporcionar um sadio e harmonioso convívio entre o Estado (Fisco) e seus subordinados (contribuintes).

Entre estes princípios encontramos aquele que versa sobre a irretroatividade tributária, mais precisamente, elencado na aliena ‘a’ do inciso III, do art. 150 da Carta Magna brasileira, o qual dispõe que "sem prejuízo de outras garantias asseguradas ao contribuinte, é vedado à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios: (...) III- cobrar tributos: a) em relação a fatos geradores ocorridos antes do início da vigência da lei que os houver instituído ou aumentado; (...)."

O princípio da irretroatividade, verdadeiro "preceito universal", nas palavras de Hugo de Brito Machado, também está afeto de forma genérica no inciso XXXVI do art. 5º da Constituição brasileira [02], impedindo seja um tributo cobrado em face de fatos geradores havidos em período pretérito ao da égide da lei que os haja instituído ou majorado.

Trata-se de verdadeira garantia de segurança jurídica [03] de um direito subjetivo atinente ao contribuinte, parte mais fraca da relação de império a qual é submetido em razão do poder de tributar do Estado, com o escopo de assegurar certeza quanto a atos pretéritos praticados, direcionando a atuação da lei nova, seja ela mais gravosa, seja ela criadora de novos encargos ou ônus, para o futuro, isto é, de modo prospectivo.

Visa, portanto, o princípio ora em estudo, coibir quaisquer tipos de arbitrariedades oriundas do Estado, impedindo que, na lição de Roque Antonio Carrazza, referenciado por Camila Gomes Sávio, o Poder Legislativo edite leis retroativas, e via de consequência, provoque alteração nas condições básicas do Estado de Direito vigente, proporcionando, assim, a quebra da confiança

"(...) que as pessoas devem ter no Poder Público, (...) [pois, caso contrário], elas (...) não têm segurança, pois ficam a mercê, não só do direito vigente (o que é normal), mas também, de futuras e imprevisíveis decisões políticas, que se podem traduzir em regras retroativas. Se isso acontece, o Estado de Direito soçobra." [04]

Nesse sentido, Luciano Amaro, referenciado por Eduardo Sabbag, explicita que

"(...) versando sobre a irretroatividade tributária, ‘o que a Constituição pretende, obviamente, é vedar a aplicação da lei nova, que criou ou aumentou tributo, a fato pretérito, que, portanto, continua sendo não gerador de tributo, ou permanece como gerador de menor tributo, segundo a lei da época de sua ocorrência’. (...) ‘Lei tributária que eleja fatos do passado, como suporte fático da incidência de tributo antes não exigível (...) será inconstitucional, por ferir o princípio da irretroatividade da lei criadora ou majoradora do tributo’." [05]

Fundamentam a irretroatividade da lei além da segurança jurídica, o reconhecimento da existência de direitos individuais garantidos, bem como outorgar aos direitos protegidos o caráter de imutabilidade e a estabilidade das relações sociais.

É imperioso que a atuação do Fisco seja previsível, ou seja, não pode o contribuinte ser compelido de supedâneo a arcar com uma despesa (pagamento do tributo) a qual não detinha ou não podia deter o conhecimento de sua existência, de uma hora para outra. Assim, o pensamento de Roque Antonio Carrazza, também mencionado por Eduardo Sabbag, cujo pensamento elencamos in verbis

"(...) Em nome dessa previsibilidade, a lei que cria ou aumenta um tributo não pode alcançar fatos ocorridos antes de sua entrada em vigor. Sem esse penhor de confiança, toda a vida jurídica do contribuinte perigaria." [06]

Evidente está que o princípio da irretroatividade, em que pese não se confundirem, tem plena consonância de atuação com o princípio da anterioridade tributária, vale dizer, aquele é corolário de atuação deste, uma vez que o tributo criado ou majorado em um determinado ano fiscal somente poderá ser cobrado no exercício financeiro seguinte (1º de janeiro), observando-se o período mínimo de 90 (noventa) dias entre a publicação da referida lei e sua eficácia.

Em outras palavras, o princípio da irretroatividade tem o condão de impedir, seja o tributo cobrado em face daquelas situações vivenciadas no período de vacatio legis imposto pela anterioridade tributária, ou seja, entre a publicação da lei que criou ou majorou o tributo e sua real eficácia. Assim, assevera Eduardo Sabbag, para quem

"A regra, (...) é que, quanto às leis em geral, não lhes é dado abranger o passado, alcançando situações pretéritas. Se há atos a elas anteriores, devem ser eles regidos pela lei do tempo em que foram realizados, à luz do aforismo tempus regit actum, ou seja, o tempo rege o ato. Trata-se de regra geral oriunda do direito intertemporal, que sinaliza no sentido de que a lei tributária há de ser irretroativa. (...) quando houver situações em que a lei puder reportar-se a fatos pretéritos, modificando-lhe os efeitos jurídicos e elidindo a incidência da lei anterior, estar-se-á diante de casos de plena retroatividade da lei." [07]

Mesmo que gozando de efeito imediato, as leis que versem sobre matéria tributária, por tratarem-se de normas de ordem cogente, é que não há se falar, via de regra, na não observância do princípio da irretroatividade, uma vez estarmos diante de verdadeiro direito adquirido.

A aplicação da lei deve ser projetada para o futuro, e não para o passado, sob pena de, nas palavras de Eduardo Sabbag, se faça "ruir o Estado de Direito" [08], vigente, consubstanciando o pensamento de Sacha Calmon, para quem, de acordo com Sabbag, "a irretroatividade da lei fiscal, salvo quando interpretativa ou para beneficiar, é princípio geral de direito do Direito" [09].

Corroborando o exposto, Leandro Paulsen discorre em sua obra que

"Ao prescrever que os entes políticos não podem instituir tributos ‘em relação a fatos geradores ocorridos antes do início da vigência da lei que os houver instituído ou aumentado, o art. 150, III, ‘a,’, da CF estabelece uma garantia adicional em favor do contribuinte que extrapola a proteção ao direito adquirido e ao ato jurídico perfeito, assegurando-o contra exigências tributárias que tenham em consideração atos, fatos ou situações passadas relativamente aos quais já suportou ou suportará os ônus tributários ou que não ensejaram imposições tributárias pelas leis vigentes á época, que eram do seu conhecimento. (...)." [10]

Em sentido contrário à irretroatividade, portanto, temos apenas as hipóteses contidas nos incisos I e II do art. 106 do Código Tributário Nacional, as quais serão discriminadas nos tópicos que se seguem.

O princípio da irretroatividade, como quase todo postulado contido no ordenamento jurídico-constitucional brasileiro, não se opera de forma absoluta, havendo, como dito anteriormente, hipóteses de convívio harmonioso entre lei produtora de efeitos jurídicos em face de atos pretéritos e o supracitado princípio.

Todavia, não se vislumbra na doutrina entendimento pacífico acerca da natureza jurídica de tais hipóteses contidas no art. 106 do CTN, como sendo ou não exceções ao princípio da irretroatividade.

Nesse sentido, preleciona Eduardo Sabbag que

"(...) não é inoportuno afirmar que não existem ‘exceções’ ao princípio da irretroatividade tributária. De fato, não há tributo que a tal regra não se submeta. (...) as hipóteses do art. 106, I e II, do CTN são a própria corroboração da regra da irretroatividade, pois é natural que estipule, no plano da hermenêutica, a retroação para uma lei ‘interpretativa’ e para uma lei mais benéfica, o que não se confunde com a dimensão semântica assumida pelo vocábulo ‘exceção’. (...)." [11]

Ricardo Alexandre explana que o princípio da irretroatividade, tal qual disposto no art. 150, III, ‘a’, da Constituição, não possui qualquer exceção, não havendo hipótese de cobrança de tributo em face de fatos geradores havidos antes do início da vigência da lei que os houver instituído ou majorado.

Para este doutrinador, o CTN abarca de forma mais ampla o princípio da irretroatividade, pois aqui, "trata da irretroatividade de toda a legislação tributária e não apenas da lei que institua ou majore tributos. Já as exceções terão vez em situações bem específicas, não relacionadas à majoração ou instituição de tributo." [12]

Em sentido oposto, Leandro Paulsen compreende que "o art. 106 do CTN traz casos excepcionais de retroatividade em situações não gravosas para o contribuinte" [13], consubstanciando assim, exceção ao aludido princípio.


A PRODUÇÃO DE EFEITOS JURÍDICOS SOBRE ATOS PRETÉRITOS EM FACE DE LEI INTERPRETATIVA

Dispõe o inciso I do art. 106 do Código Tributário Nacional que "a lei aplica-se a ato ou fato pretérito em qualquer caso, quando seja expressamente interpretativa, excluída a aplicação de penalidade à infração dos dispositivos interpretados."

Por lei interpretativa [14] deve-se entender, conforme preleciona Eduardo Sabbag, aquela que

"(...) espanca as obscuridades e ambigüidades, sem criar tributos, penas ou ônus, as quais não resultem expressa ou implicitamente do texto interpretado. Tais inovações, longe de retroagirem, pelo contrário, projetam-se para o futuro. (...)." [15]

Ainda nessa seara do significado da expressão "lei interpretativa", temos o entendimento professado por Paulo de Barros Carvalho, referenciado por Luiz Emygdio F. da Rosa Jr, para quem

"(...) é aquela que visa apenas a esclarecer dúvidas no tocante a uma lei anterior, cujos termos podem não ser claros, e, assim, não estabelece nova regra de conduta. Trata-se, portanto, de vera interpretação autêntica por decorrer do próprio órgão do qual a lei emana." [16]

Aqui, devemos estabelecer breve parêntese, a fim de discorrer acerca da possibilidade de existirem normas interpretativas em nosso sistema jurídico. Para Roque Antonio Carrazza, referenciado por Eduardo Sabbag,

"(...) há uma barreira constitucional à edição de leis interpretativas. Essa barreira está implicitamente contida no princípio da separação dos Poderes. (...) a tarefa de interpretar leis é cometida aos seus aplicadores, basicamente ao Poder Judiciário, que aplica a lei aos casos concretos submetidos a sua apreciação, definitivamente e com força institucional." [17]

Da mesma forma, Carlos Mário da Silva Velloso, citando Pontes de Miranda, compreende que

"(...) se a lei se mostra como interpretativa e nada acresce, é de duvidosa aplicabilidade e de nenhuma valia, mostrando-se inócua; por outro lado, se inova, deixa de ser interpretativa para ser lei nova, propensa a modificar a realidade, avocando-se-lhe o princípio da irretroatividade." [18]

Assim, na visão do eminente Ministro, ao se falar em lei interpretativa com efeito retroativo, estaríamos colocando a segurança jurídica atinente ao Estado de Direito em clamorosa posição de perigo, por ser tal situação incompatível com os ditames constitucionais.

Corroborando tal posicionamento, trazemos a baila o pensamento de Luciano Amaro, também disposto na obra de Eduardo Sabbag, asseverando que

"(...) a dita lei interpretativa não consegue escapar do dilema, ou ela inova o direito anterior (e, por isso, é retroativa, com as consequências daí decorrentes), ou ela se limita a repetir o que já dizia a lei anterior (e, nesse caso, nenhum fundamento lógico haveria, nem para a retroação da lei, nem, em rigor, para sua edição) (...) o que evidencia a inutilidade desta." [19]

No entanto, em que pesem tais críticas, deve-se ter em mente que os Tribunais brasileiros, até o presente momento, não declararam qualquer vício de constitucionalidade acerca do dispositivo contido no inciso I do art. 106 do CTN, devendo o mesmo ser aceito até que reste posicionamento contrário em definitivo.

Desta feita, o Supremo Tribunal Federal vem entendendo pela válida existência de lei interpretativa, desde que limitada a esclarecer preceitos anteriores à referida legislação editada, conforme se depreende de jurisprudência emanada pelo Pleno do Pretório Excelso em sede de Ação Direta de Inconstitucionalidade nº. 605/DF, de 23.10.1991, suscitada pelo Partido Democrático Trabalhista (PDT), sob a lavra do Ministro Celso de Mello, transcrita in verbis

EMENTA: AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. MEDIDA PROVISÓRIA DE CARÁTER INTERPRETATIVO. A QUESTÃO DA INTERPRETAÇÃO DE LEIS DE CONVERSÃO POR MEDIDA PROVISÓRIA. PRINCÍPIO DA IRRETROATIVIDADE. CARÁTER RELATIVO. LEIS INTERPRETATIVAS E APLICAÇÃO RETROATIVA (...).

1.É plausível, em face do ordenamento constitucional brasileiro, o reconhecimento da admissibilidade das leis interpretativas, que configuram instrumento juridicamente idôneo de veiculação da denominada interpretação autêntica.

2.As leis interpretativas – desde que reconhecida a sua existência em nosso sistema de direito positivo – não traduzem usurpação das atribuições institucionais do Judiciário e, em consequência, não ofendem o postulado fundamental da divisão funcional do poder.

3.(...)

4.(...)

5.Na medida em que a retroação normativa da lei não gere e nem produza os gravames referidos, nada impede que o Estado edite e prescreva atos normativos com efeito retroativo.

6.As leis, em face do caráter prospectivo de que se revestem, devem ordinariamente, dispor para o futuro. O sistema jurídico-constitucional brasileiro, contudo, não assentou, como postulado absoluto, incondicional e inderrogável, o princípio da irretroatividade.

Esposando tal entendimento, temos a explanação de Ruy Barbosa Nogueira, referenciado por Leandro Paulsen, para quem

"(...) na atualidade do Estado de Direito e dos regimes democráticos a lei interpretativa reveste-se de caráter excepcional porque a função interpretativa conclusiva é reservada ao Poder Judiciário. (...) o item I do art. 106 [do CTN] somente pode ser entendido dentro do poder de autolimitação que tem o Estado, porque a interpretação autêntica, no campo tributário, somente pode esclarecer dúvidas sem qualquer agravo. (...) poderá como medida de política tributária e dentro da autolimitação dispor sobre aspectos de equidade, remissão, anistia, enfim de suavizações, jamais de agravações retroativas em relação às obrigações tributárias principais." [20]

Do mesmo modo, o Superior Tribunal de Justiça também se manifestou pela aplicabilidade do art. 106, inciso I do CTN, desde que não provoque qualquer gravame que venha prejudicar o contribuinte, conforme se infere do seguinte excerto da jurisprudência emanada pelo Egrégio Tribunal Superior, em sede de REsp nº. 329892/RS de 05.11.2001, tendo como relatora o Ministro Garcia Vieira, in verbis

TRIBUTÁRIO. SISTEMA INTEGRADO DE PAGAMENTO DE IMPOSTOS E CONTRIBUIÇÕES (SIMPLES). APLICAÇÃO DA LEI NO TEMPO.

1.A lei tributária mais benéfica e aquelas meramente interpretativas retroagem, a teor do disposto nos incisos I e II do art. 106, do CTN.

2.O § 4º introduzido pela Lei nº. 9.528/97 no art. 9º, da Lei nº. 9.317/96, ao explicitar em que consiste "a atividade de construção de imóveis", veicula norma restritiva do direito do contribuinte, cuja retroatividade é vedada.

3.(...)

Grosso modo, temos que se a lei interpretativa, em que pese constituir lei nova e, portanto, como tal deve ser considerada, não tem o condão de inovar, trazendo maior gravame ao contribuinte, esta deve ater-se tão-somente a retirar a obscuridade e imprecisão que o próprio legislador lançou sobre a norma anterior, por falta de técnica legislativa. Em suma, temos que a expressão contida no inciso I do art. 106 do CTN – "em qualquer caso" – deve ser entendida de modo restrito, como sendo, nas palavras de Eduardo Sabbag, uma "cláusula remissiva à lei exclusivamente interpretativa" [21].

Mas quando haverá a retroação da norma interpretativa e quando tal situação não se operará?

Eduardo Sabbag, em sua obra, traz o entendimento de Pedro Roberto Decomain, para quem

"(...) a norma, que apenas interpreta, retroage. Mas aquela que, interpretando, diz que a norma interpretada na verdade aplica uma pena, tem aplicação apenas para fatos futuros, não para aqueles que aconteceram antes da entrada em vigor da norma interpretante, embora possam ter ocorrido depois da vigência da norma interpretada." [22]

Se houve a edição de um lei obscura e/ou ambígua, e por consequência, a posterior edição de outra norma legal, com o escopo de trazer a eloquência que a primeira lei não observou, estaríamos diante de verdadeira injustiça caso fosse possível a ocorrência, no bojo desta segunda norma, de penalidades que alcançassem atos de boa-fé praticados anteriormente à sua edição.

Se nos encontramos diante de uma lei que veio tão-somente interpretar o alcance e aplicabilidade de uma outra lei, sem aferir qualquer novo gravame ou penalidade, esta deverá retroagir. Se, contudo, nos depararmos com uma lei que ao trazer a interpretação que aquela primeira lhe fugiu, também tem inserida em seu bojo novo gravame e penalidades quanto a infração daquela lei anterior, a segunda somente poderá atingir os fatos ocorridos no futuro, portanto, não retroagindo.

Paulo de Barros Carvalho assevera que as normas interpretativas "podem ser aplicadas a atos ou fatos pretéritos, mas excluindo-se a aplicação de penalidades à infração dos dispositivos interpretados." [23]

Todavia, a exclusão da incidência sobre penalidades não é absoluta, conforme ensinamento do professor Hugo Brito de Machado, dizendo respeito "à má interpretação da lei e não à sua total inobservância." [24]

Importante ressaltar também o pensamento do professor Eduardo Sabbag, para quem

"(...) a retroação da lei interpretativa somente poderá se dar quando inexistente outra interpretação, (...). Se a norma interpretável já tiver sido objeto de interpretação realizada pelo Poder Judiciário, a superveniente lei interpretativa mostrar-se-á excedente, na tentativa de lhe atribuir novo sentido. (...)." [25]

Tendo o Poder Judiciário já se manifestado acerca de uma determinada interpretação, para um dispositivo legal, fica dispensável a edição de uma lei que venha também dar interpretação, ainda que diversa, àquela norma precedente, pois assim o Poder Legislativo estaria inovando na ordem jurídica, e não interpretando a norma já posta.


A PRODUÇÃO DE EFEITOS JURÍDICOS SOBRE ATOS PRETÉRITOS EM FACE DE LEI MAIS BENÉFICA PARA O CONTRIBUINTE

O inciso II do art. 106 do Código Tributário Nacional versa acerca das possibilidades de consecução pretérita de efeitos jurídicos em face de uma lei mais benéfica para o contribuinte, conforme depreendemos de sua leitura, a qual traz o seguinte comando: "A lei aplica-se a ato ou fato pretérito: (...) II - tratando-se de ato não definitivamente julgado: a) quando deixe de defini-lo como infração; b) quando deixe de tratá-lo como contrário a qualquer exigência de ação ou omissão, desde que não tenha sido fraudulento e não tenha implicado em falta de pagamento de tributo; c) quando lhe comine penalidade menos severa que a prevista na lei vigente ao tempo da sua prática."

O referido inciso não tem o escopo de se referir ao tributo em si mesmo, mas às infrações e penalidades decorrentes do comando legal. São situações elencadas de forma taxativa, isto é, aplicam-se apenas aos fatos relacionados nas alíneas do supracitado inciso II, do art. 106 do CTN.

Assim preleciona Eduardo Sabbag acerca das três hipóteses mencionadas:

a)se a conduta não mais for tida como infração: (...) nesse sentido, segue Luciano Amaro, para quem, ‘se a lei nova não mais pune certo ato, que deixou de ser considerado infração, ela retroage em benefício do acusado, eximindo-o de pena’;

b)se a conduta não mais se opuser a qualquer exigência de ação ou omissão, desde que não tenha sido fraudulenta e não tenha implicado falta de pagamento do tributo;

c)se tiver havido a inflição de penalidade menos severa do que a que foi imposta pela lei vigente ao tempo da prática da conduta antijurídica – e só neste caso, próprio da benignidade: observe que a temática envolve a multa menos gravosa. Caso a lei posterior traga uma sanção mais rígida, não haverá que se falar em retroatividade. [26]

Ressalte-se que as hipóteses contidas nas alíneas ‘a’ e ‘b’ são redundantes, não havendo, portanto, como fugir de sua incidência, ou seja, restando qualquer tipo de dúvida acerca da aplicabilidade da alínea ‘b’, prevalecerá o comando constante da alínea ‘a’, esta mais ampla e abrangente que aquela. Assim, explana o professor Paulo de Barros Carvalho, in verbis

"Toda a exigência de ação ou de omissão consubstancia um dever, e todo o descumprimento de dever é uma infração, de modo que foi redundante o legislador ao separar as duas hipóteses." [27]

Entrementes, Ricardo Alexandre, contrariamente entende que há sim diferenças entre o comando contido na alínea ‘b’ em face do que dispõe a alínea ‘a’, pois segundo seu raciocínio

"(...) o fato de a alíenea ‘b’ exigir que o ato não seja fraudulento e não tinha implicado falta de pagamento de tributo aponta no sentido de que o dispositivo se refere exclusivamente às obrigações ditas acessórias (que não têm conteúdo pecuniário), de forma que a alínea ‘a’ seria aplicável às infrações relativas às obrigações principais (com conteúdo pecuniário)." [28]

No tocante à alínea ‘c’ do referido inciso II do art. 106 do CTN, Eduardo Sabbag entende estar nele contido o Princípio da Benignidade, ou seja, a edição de

"(...) uma lei contemporânea do lançamento poderá elidir os efeitos da lei vigente na época do fato gerador, caso esta, em tempos remotos, houvesse estabelecido um percentual de multa superior ao previsto naquela, em tempos recentes. (...)." [29]

Todavia, deve-se ter em mente a existência de um limite lógico à retroação da referida alínea ‘c’, ou seja, somente quando não tenha sido recolhida a multa é que poderá se falar em retroação da norma. Grosso modo, tendo o fato deixado de ser considerado como infração tributária a multa anteriormente aplicada, não poderá mais ser cobrada. No entanto, se já tiver sido recolhida, não será restituída, pois já se exauriu.

Outro ponto importante que deve ser observado é que, para a aplicação dos efeitos pretéritos contidos no inciso II do art. 106 do CTN, é imprescindível que o ato não tenha sido julgado definitivamente.

Julgado definitivamente, seja no âmbito administrativo, seja na seara judicial? Não se trata de entendimento pacífico.

Zelmo Denari, referenciado por Eduardo Sabbag, entende que

"(...) o ato não definitivamente julgado é aquele que não possui decisão final prolatada pelo Poder Judiciário. Assim, (...) se a decisão administrativa ainda pode ser submetida ao crivo do Judiciário, e para este houve recurso do contribuinte, não há de ser ter o ato administrativo ainda como definitivamente julgado." [30]

Em sentido oposto, conforme se pode aferir da jurisprudência emanada do STJ em sede de REsp nº. 187.051/SP, sob a lavra do Ministro Ari Pargendler, julgado em 15.10.1998, transcrito in verbis

EMENTA: TRIBUTÁRIO. MULTA. REDUÇÃO. LEI MAIS BENIGNA. A expressão "ato não definitivamente julgado", constante do artigo 106, II, ‘c’, alcança o âmbito administrativo e também o judicial; constitui portanto, ato não definitivamente julgado o lançamento fiscal impugnado por meio de embargos do devedor em execução fiscal. (...).

Corroborando o exposto, Aliomar Baleeiro, referenciado por Leandro Paulsen, assevera que "a disposição não o diz, mas, pela própria natureza dela há-se entender-se como compreensiva do julgamento tanto administrativo quanto judicial." [31]

Assim, transitando em julgado uma decisão judicial, a retroação não se operará, ainda que haja a edição superveniente de lei que preveja multa mais benéfica.

Também se deve ressaltar que o Estado não é detentor de garantia constitucional da irretroatividade das leis, só se operando esta em favor da proteção do particular contra o Estado. Tal situação se dá em razão de, conforme preleciona Hugo de Brito Machado, o Estado não poder "valer-se de seu poder de legislar para alterar, em seu benefício, relações jurídicas já existentes." [32]


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ALEXANDRE, Ricardo. Direito Tributário esquematizado. 3. ed. São Paulo: Método, 2009.

CARVALHO, Paulo de Barros. Curso de Direito Tributário. 17. ed. São Paulo: Saraiva, 2005.

COELHO, Sacha Calmon Navarro. Curso de Direito Tributário brasileiro. 7. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2004.

DA ROSA JR, Luiz Emygdio F. Direito Financeiro & Direito Tributário – Jurisprudência atualizada. 15. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2001.

LIMA, Thiago Figueiredo de. Retroatividade da lei tributária interpretativa. Jus Navigandi, Teresina, ano 12, n. 1608, 26 nov. 2007. Disponível em: <http://jus.com.br/artigos/10698>. Acesso em: 24 abr. 2010.

GUSMÃO, Camila Uliana de. Aplicação e vigência da Legislação Tributária. FGV – Direito Rio. Disponível em: <http://academico.direito-rio.fgv.br/ccmw/Vig%C3%AAncia_e_Aplica%C3%A7%C3%A3o_da_Lei_Tribut%C3%A1ria>. Acesso em: 24 abr. 2010.

MACHADO, Hugo de Brito. Curso de Direito Tributário. 30. ed. São Paulo: Malheiros, 2009.

MORAES, Alexandre de. Direito Constitucional. 21. ed. São Paulo: Atlas, 2007.

PAULSEN, Leandro. Direito Tributário – Constituição e Código Tributário à luz da doutrina e da Jurisprudência. Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2008.

SABBAG, Eduardo. Manual de Direito Tributário. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2010.

____. Repertório de Jurisprudência de Direito Tributário. 4. ed. São Paulo: Premier Máxima, 2008.

SÁVIO, Camila Gomes. Breves comentários sobre os princípios da irretroatividade e anterioridade da lei tributária. Jus Navigandi, Teresina, ano 8, n. 260, 24 mar. 2004. Disponível em: <http://jus.com.br/artigos/4989>. Acesso em: 24 abr. 2010.


Notas

Em que pese, o ordenamento jurídico pátrio desconhecer uma definição acerca da expressão "direito adquirido", podemos trazer a baila o entendimento esposado pelo professor Alexandre de Moraes, que citando o eminente Celso Bastos, preleciona ser este um "dos recursos de que se vale a Constituição para limitar a retroatividade da lei. (...) esta (...) em constante mutação; o Estado cumpre o seu papel na medida em que atualiza as suas leis. (...) entretanto, a utilização da lei em caráter retroativo, em muitos casos, repugna porque fere situações jurídicas que já tinham por consolidadas no tempo (...)." (MORAES, Alexandre de. Direito Constitucional. p. 75).

  1. Art. 3º da CF/88: Constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil: I - construir uma sociedade livre, justa e solidária; II - garantir o desenvolvimento nacional; III - erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais; IV - promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação.
  2. Art. 5º da CF/88: Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes: (...) XXXVI- a lei não prejudicará o direito adquirido, o ato jurídico perfeito e a coisa julgada;
  3. "A segurança jurídica pode ser representada a partir de duas perspectivas: I- o cidadão deve saber antecipadamente qual norma é vigente, o que sinaliza a lógica precedência da norma perante o fato por ela regulamentado, no contexto da irretroatividade, e o antecipado conhecimento do plano eficacial da lei, no bojo da anterioridade. Assim, a segurança jurídica toma a irretroatividade e a anterioridade como seus planos dimensionais, primando pela possibilidade de o destinatário da norma se valer de um prévio cálculo, independentemente, pelo menos, de início, do conteúdo da lei; II- o cidadão deve, em um segundo momento, compreender o conteúdo da norma, no que tange à sua clareza, calculabilidade e controlabilidade." (SABBAG, Eduardo. Op. Cit. p. 184).
  4. CARRAZZA, Roque Antonio. In: SÁVIO, Camila Gomes. Breves comentários sobre os princípios da irretroatividade e anterioridade da lei tributária. p. 1.
  5. AMARO, Luciano. In: SABBAG, Eduardo. Manuel de Direito Tributário. p. 182.
  6. CARRAZZA, Roque Antonio. In: SABBAG, Eduardo. Op. Cit. p. 183.
  7. SABBAG, Eduardo. Op. Cit. p. 183.
  8. SABBAG, Eduardo. Op. Cit. p. 184.
  9. COELHO, Sacha Calmon Navarro. In: SABBAG, Eduardo. Op. Cit. p. 185.
  10. PAULSEN, Leandro. Direito Tributário – Constituição e Código Tributário à luz da doutrina e da jurisprudência. p. 210.
  11. SABBAG, Eduardo. Op. Cit. p. 186.
  12. ALEXANDRE, Ricardo. Direito Tributário Esquematizado. p. 236.
  13. PAULSEN, Leandro. Op. Cit. p. 847.
  14. "Os estudiosos da hermenêutica jurídica classificam a interpretação quanto à fonte em administrativa (feita pelas autoridades administrativas na aplicação da norma aos casos concretos), doutrinária (feita pelos estudiosos do direito), jurisprudencial (adotada reiteradamente pelos órgãos judiciários, nos processos que lhe são submetidos) e a autêntica (emanada do mesmo órgão responsável pela elaboração da norma interpretada)." (ALEXANDRE, Ricardo. Op. Cit. p. 236.
  15. SABBAG, Eduardo. Op. Cit. p. 189.
  16. DA ROSA JR, Luiz Emygdio F. Direito Financeiro & Direito Tributário. p. 436.
  17. CARRAZZA, Roque Antonio. In: SABBAG, Eduardo. Op. Cit. p. 187.
  18. VELLOSO, Carlos Mário da Silva. In: SABBAG, Eduardo. Op. Cit. p. 187-188.
  19. AMARO, Luciano. In: SABBAG, Eduardo. Op. Cit. p. 188.
  20. NOGUEIRA, Ruy Barbosa. In: PAULSEN, Leandro. Op. Cit. p. 848.
  21. SABBAG, Eduardo. Op. Cit. p. 189.
  22. SABBAG, Eduardo. Op. Cit. p. 191.
  23. CARVALHO, Paulo de Barros. Curso de Direito Tributário. p. 94.
  24. MACHADO, Hugo de Brito. Curso de Direito Tributário. p. 100.
  25. SABBAG, Eduardo. Op. Cit. p. 192.
  26. SABBAG, Eduardo. Op. Cit. p. 198.
  27. CARVALHO, Paulo de Barros. Op. Cit. p. 95.
  28. ALEXANDRE, Ricardo. Op. Cit. p. 242.
  29. SABBAG, Eduardo. Op. Cit. p. 198.
  30. DENARI, Zelmo. In: SABBAG, Eduardo. Op. Cit. p. 202.
  31. BALEEIRO, Aliomar. In: PAULSEN, Leandro. Op. Cit. p. 849.
  32. MACHADO, Hugo de Brito. Op. Cit. p. 101.

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Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

DEL ANTONIO, Juliano. O art. 106 do Código Tributário Nacional e sua aplicabilidade em face do princípio da irretroatividade tributária. Um breve estudo de suas hipóteses. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 15, n. 2611, 25 ago. 2010. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/17259. Acesso em: 28 mar. 2024.