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De Nuremberg a Haia: uma análise histórica sobre o desenvolvimento dos Tribunais Internacionais Penais

De Nuremberg a Haia: uma análise histórica sobre o desenvolvimento dos Tribunais Internacionais Penais

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O universalismo dos preceitos de um Tribunal deste jaez é o cume de um longo processo de organização de mecanismos punitivos cada vez mais internacionalizados.

1. Introdução

Em tempos onde, sob o argumento de uma "guerra ao terror", vemos o Estado imperialista perpetrar invasões e cometer atrocidades na persecução de seus interesses escusos, inúmeras vezes sob a guarida de instituições que pretendiam garantir a paz mundial, o mundo observa atônito a fragilidade de seus supostos valores democráticos.

Por sua vez, o discurso dos direitos humanos torna-se mais eloqüente, mais pujante, visando ultrapassar as fronteiras estatais.

De fato, o início do século XXI parece estar em face da mesma problemática e oferece o mesmo caudal de respostas e afirmativas que no final da primeira metade do século XX, quando os resultados da hecatombe fascista puderam ser contabilizados e mecanismos de resposta acionados.

Quando observamos as análises teóricas que se debruçam sobre a formação das Nações Unidas e a afirmação do Direito Internacional dos Direitos Humanos, resta nítido que a evolução de tais institutos sustenta-se como uma resposta aos abusos realizados na Segunda Grande Guerra.

A recente consolidação de um Tribunal Penal Internacional para julgar certos delitos considerados "atrocidades inimagináveis que chocam profundamente a consciência da humanidade" é o resultado da conscientização coletiva da necessidade de se punir quem afronta a raça humana naquilo que lhe é mais caro?

O mundo contemporâneo parece encontrar-se afoito por saídas e alternativas do impasse em que se encontra.

A aparente derrocada das ideologias de igualdade e fraternidade, a corrida pelo lucro e o mercado cada vez mais predatório lançam um homem em um dilema e nos encontramos em um beco sem saída.

Neste cenário, vemos emergir o Tribunal Penal Internacional como o resultado da arregimentação de esforços na tentativa de constituir-se uma Corte, de caráter global, para punir aquele que cometer os crimes mais atrozes e que afetem diretamente a comunidade internacional.

O universalismo dos preceitos de um Tribunal deste jaez é o cume de um longo processo de organização de mecanismos punitivos cada vez mais internacionalizados no intuito de instituir-se uma rede global de prevenção e punição, um Direito Internacional Penal, diretamente relacionado com as demandas da nova ordem mundial.


2. Um breve esboço sobre a relação entre Direito e História

As diversas vertentes do pensamento marxista atribuem e debruçam-se sobre o direito através de perspectivas distintas, atribuindo valores diferenciados e observando a relação entre direito e poder econômico sob pesos diversos.

Contudo, é indubitável que o direito exerce peculiar função na sociedade, pois, além de ser um fenômeno de expressão das relações materiais de um tempo e de certos homens, possui a função de estatuir e codificar o status de sua origem.

A primeira implicação envolvida está em separar o que Marx define como elementos de superestrutura e infraestrutura.

Elementos de infraestrutura seriam os alicerces da dominação, as relações econômicas que produzem os elementos de superestrutura.

À guisa de exemplo, salutar é a análise feita por Gramsci sobre a divisão de poderes e os atritos entre classes:

A divisão dos poderes e toda a discussão havida para sua efetivação e dogmática jurídica derivada de seu advento constituem o resultado da luta entre a sociedade civil e a sociedade política de um determinado período histórico, com certo equilíbrio instável entre as classes [...]

Importância essencial da divisão dos poderes para o liberalismo político e econômico: toda a ideologia liberal, com suas forças e suas fraquezas, pode ser resumida no princípio da divisão dos poderes, e surge a fonte da debilidade do liberalismo: a burocracia, isto é, a cristalização do pessoal dirigente, que exerce o poder coercitivo e que, num determinado ponto, se transforma em casta [01].

Os elementos de superestrutura, na qualidade de expressões das relações econômicas, dariam legitimidade discursiva às relações de dominação, segundo Alysson Mascaro:

Na terminologia de Marx, no todo da vida social há uma base real, uma infra-estrutura das relações sociais, na qual se situa o eixo central da exploração produtiva, e, a partir dela, uma superestrutura das relações sociais. Mais nos determina a infra-estrutura, como um alicerce determina as paredes que se levantarão posteriormente num prédio [02].

Entre os elementos de superestrutura, inclui-se a ideologia, a cultura e o direito, como aparelho normativo que atende às necessidades da classe dominante, havendo uma determinação imediata entre tais elementos e a base econômica, como informa Márcio Naves:

No período de A ideologia alemã Marx estabelece o principio de determinação imediata entre a base econômica e a superestrutura, resultando disso que esta última aparece como uma "emanação direta" das relações econômicas. Ele estabelece também o principio do primado das forças produtivas sobre as relações de produção, segundo o qual são as forças produtivas que "comandam" o desenvolvimento histórico [03].

Sem sombra de dúvida, o papel do direito é fundamental na articulação do capitalismo em suas diferentes fases, de tal forma que Marx considera que apenas durante o capitalismo podemos falar em instituições jurídicas propriamente ditas, assim ressalta Alysson Mascaro:

Ao olhar para essa longa história dos modos de produção, Marx verifica que somente na dominação do tipo capitalista houve instituições que possam ser denominadas de especificamente jurídicas. Claro está que antes do capitalismo, outras sociedades chamavam seus arranjos políticos de direito, mas esse direito do passado, assim chamado em sentido lato, não tem a mesma estrutura específica do direito no capitalismo [04].

O fundamento do direito encontra base nas relações de poder, sendo tais relações expressões de circunstâncias materiais propriamente ditas, não de um consenso universal, um contrato civilizatório coletivo ou um direito natural. Assim afirmam Marx e Engels:

Na história real, aqueles teóricos que consideravam o poder como fundamento do direito formavam a oposição frontal àqueles que encaravam a vontade como a base do direito. [...]

Se o poder é suposto como a base do direito, como fazem Hobbes etc., então direito, lei etc. são apenas sintomas, expressões de outras relações nas quais se apóia o poder do Estado. A vida material dos indivíduos, que de modo algum depende de sua mera "vontade", seu modo de produção e as formas de intercâmbio que se condicionam reciprocamente são a base real do Estado e continuam a sê-lo em todos os níveis em que a divisão do trabalho e a propriedade privada ainda são necessárias, de forma inteiramente independente da vontade dos indivíduos. Essas condições reais de modo algum forma criadas pelo poder do Estado; elas são, antes, o poder que o cria. Os indivíduos que dominam nessas condições, abstraindo o fato de que seu poder deve constituir como Estado, têm de conferir à sua vontade condicionada por essas condições bem determinadas uma expressão geral como vontade do Estado, como lei – uma expressão cujo conteúdo sempre é dado pelas condições dessa classe, do que o direito privado e o direito criminal são a prova mais cabal [05].

O poder pessoal deve se constituir então como a expressão das condições de vida de uma generalidade, expressão condensada na lei como imperativo geral que ocasiona ao dominar renúncia de poder excepcionalmente e controle na média.

Após a ascensão e derrocada do projeto fascista na Europa e o desdobramento de um mundo bipolarizado, as formações discursivas se reorganizaram formando novos paradigmas:

Ao tempo em que trevas se anunciavam na Europa, as armas dos liberais e dos socialistas foram ambas soterradas em favor de mistificados argumentos de raça e da força de exércitos imperialistas. Tempos de obscuridade e de guerra, como, de outro modo, parecem ser os atuais novamente. Naquela altura, boa parte da política, da filosofia e das religiões se lançou ou ao silêncio ou ao pacto de legitimação dos poderes existentes. Ao pensamento crítico, restou a retaguarda.

No direito, o resultado de tal política de trevas foi a destruição de qualquer respeito institucional aos direitos humanos, à dignidade existencial, em troca dos argumentos da força do Estado ou de distinções como a de amigo-inimigo. Em oposição a esse quadro, as velhas forças humanistas – a maior parte delas vinculada às mesmas religiões que, em sua outra faceta, silenciavam quanto ao Reich – proclamaram, sem maior crítica, a volta do direito natural, eterno, metafísico e quase que revelado [06].

Se a experiência devastadora das duas grandes guerras mundiais ainda se processava no imaginário social em meio às transformações cada vez mais rápidas do espaço material, logo o homem precisaria lidar com uma nova ordem mundial bipolarizada.

A afirmação dos direitos humanos liderada pelas correntes humanistas do direito internacional em coalizão com doutrinas religiosas e movimentos pacifistas associou-se teoricamente à base ideológica do direito natural, criado séculos antes, sem maiores condições e ressalvas.

O resultado foi o desenvolvimento dentro do direito internacional de um direito internacional dos direitos humanos.

Nesse sentido, o desenvolvimento das leis penais, que vão se encaminhando para uma certa uniformidade, e o desenvolvimento da ideia e das práticas de colaboração internacional em repressão aos delitos concorrem para a formação de uma civilização homogênea, com um ordenamento jurídico uniforme, com iguais necessidades, regras morais e hábitos de vida.

No âmbito do direito penal interno é evidente a aplicação desta esfera do direito como mecanismo do Estado-Nação de subordinar seus cidadãos. O Estado é por essência titular do direito de punir, o jus puniendi, vedando a vingança privada.

Ocorre que, na articulação de uma justiça penal universal, inúmeros atores entram em cena diferentemente da articulação nacional interna. Por exemplo, as organizações não governamentais exerceram um papel determinante na criação do Tribunal Penal Internacional:

Nos trabalhos preparatórios do tratado, em Roma, estavam presentes nada mais nada menos do que 124. A organização No Peace Without Justice exerceu uma pressão particularmente determinante. Mais do que uma ONG no sentido estrito do termo, tratava-se de um comité englobando parlamentares, juristas, edis e cidadãos, reunidos sob a causa da justiça internacional, cujas posições foram fortemente difundidas pelo Transnational Radical Party, sob a batuta de Emma Bonino. Esta estrutura informal oferecia os seus serviços aos governos mais pobres para pagar aos seus peritos ou manter uma delegação durante cinco semanas em Roma [07].

As ONGs constituem novos poderes, móveis e transnacionais, que entram em cena na consolidação da nova ordem mundial que encontramos.

A justiça penal universal apresenta um conteúdo teórico utópico e um plano realista prático. Segundo as vozes doutrinárias, a evolução deste último plano é a aproximação do primeiro, ou seja:

O desenvolvimento de uma justiça penal universal cada vez mais consciente, transparente, democrática e universal se desvincula de seu contexto político e histórico e atinge a tão sonhada universalidade.

Por que é que a opinião pública democrática se mostra mais sensível do que qualquer outra às violações dos direitos do homem? O apoio das sociedades ditas livres à ideia da justiça penal internacional explica-se pelo traço comum dos países democráticos:

Na perspectiva liberal, nenhuma actividade humana, nenhum poder – mesmo o de fazer a guerra- deve estar à margem do direito. A lei deve delimitar toda a actividade humana e permitir a um juiz ponderar a força. O legalism, a crença nas virtudes do direito, pressupõe uma maneira justa de fazer as coisas, regulada a partir do exterior, prevista de antemão e assim subtraída à arbitrariedade pela intervenção de um terceiro poder independente. O governo "segundo as regras e não segundo os homens" é, efectivamente, um dos dogmas do liberalismo: é essa a ideia do rule of law.

(...)

O aparecimento de uma justiça penal internacional marca a passagem para uma sociedade mais individualista, para a qual a vida de um homem, independentemente das suas pertenças nacional, cultural ou política, tem um valor superior. A omnipresença dos corpos na justiça penal universal – do corpo em sofrimento da vitima ou do corpo do soberano acusado [08].

O sonho de julgar a História se alimenta da decrepitude desta diante da eterna juventude dos valores da justiça.

Sem o seu uniforme, Pinochet não é mais do que um idoso doente destituído de toda a sua soberba. O corpo simbólico desertou do corpo físico: sem ele, este não é senão um corpo velho e doente. A cerimônia judiciária alimenta-se do declínio do poder totalitário, da desinvestidura dos tiranos, do inverso da sagração. É a vez do ditador se apresentar "nu entre as pessoas vestidas". A sua dimensão política está agora confinada a seu próprio corpo, a um corpo semelhante àqueles que submeteu à tortura. O seu uniforme fulgurante surge como um traje de impostura, como uma túnica falsa. Isso só é possível graças ao universo simbólico do palco judiciário [09].

É importante frisar que o que se tem em consideração não é a condescendência com as barbáries praticadas, muito menos se recusa o beneficio em se julgar tais condutas. O que se espera é realizar uma análise critica da utopia da justiça universal, observando suas contradições implícitas, a origem de seus ideais e a inevitável falibilidade de certos aspectos seus.


3. A Justiça dos Vencedores

Em um primeiro momento, a articulação do poder de punir do Estado restringia-se ao poder exercido sobre seus súditos.

Com a pirataria e os Tratados de Navegação, passou-se a considerar certos indivíduos como hostis em um plano internacional dando azo à punição destes, independentemente do local em que se encontravam ou seu país de origem.

No contexto das guerras, a vitória era a consagração natural da justiça, dando o poder ao vitorioso para julgar e punir o vencido conforme seu bel-prazer.

O que vemos na pós-modernidade é a sofisticação de tais mecanismos punitivos internacionais na forma da tipificação e conceituação de determinadas condutas e o desenvolvimento de tribunais internacionais que culminarão na criação do Tribunal Penal Internacional, instituição que constitui marco na história da articulação de tais mecanismos e no desenvolvimento de uma justiça penal universal.

A ideiade julgar os autores de crimes de guerra e de graves atentados contra os chamados direitos das pessoas é muito antiga, conforme lição de Ariel Dotti (2007) [10]:

A primeira Corte Penal Internacional foi instituída no século XV (ano 1474) em Breisach (Alemanha). Era composta por 27 juízes do Sacro Império Romano para julgar e condenar Peter VON HAGENBACH por violações às leis de Deus e dos homens, porque autorizou suas tropas a seqüestrar e matar civis inocentes e usurpar suas propriedades.

Ao final, Von Hagenbach foi condenado à morte por violar as leis de Deus e dos homens durante a ocupação militar. Dali em diante, pouco se modificou ou se aperfeiçoou em virtude da consolidação das noções de soberania e independência dos Estados, como ensina Jankov:

A questão relativa à justiça internacional penal foi retomada com a Paz de Westphalia de 1648. Com o desenvolvimento do direito dos conflitos armados a partir da metade do século XIX, os conceitos de processos judiciais por violações do direito humanitário começaram a crescer. Um dos fundadores do movimento da Cruz Vermelha, ocorrido em Genebra em 1860, preconizava um estatuto provisório para uma corte internacional criminal. Sua tarefa seria processar e julgar graves violações da Convenção de Genebra de 1864 e outras normas de direito humanitário. No entanto, a proposta inovativa de Gustave Monnier era muito radical para o seu tempo [11].

Após a primeira grande guerra, sob a pressão das opiniões públicas, francesa e inglesa, buscou-se julgar os alemães em face de suas atrocidades. As potências vencedoras, Inglaterra e França, sob a liderança de Lloyd George e David Clemenceau, respectivamente, ambicionaram responsabilizar Guilherme II da Alemanha pelo saldo final do confronto levando-o a julgamento, além de oficiais turcos e alemães.

Na Conferência de Paz de Paris (1919) (Paris Peace Conference), os Aliados debateram as possibilidades de realização de julgamentos, especialmente do Kaiser Alemão, criminais de guerra alemães e oficiais turcos por crimes contra as leis da humanidade.

Os julgamentos assemelharam-se a procedimentos disciplinares do exército e configuraram uma derrota para os julgadores, ficando conhecidos como "Julgamentos de Leipzig" (Leipzig Trials).

É chegada a hora do ajuste de contas. A vitória traz a justiça. A justiça do vencedor. Assim, Garapon examina:

A vitória permanece um sinal de eleição divina. Ao recusarem o veredicto das armas e ao remeterem-se a um tribunal para consagrar a sua vitória, os Aliados queriam refazer o caminho que, no século XII, conduziu à justiça penal do ordálio no processo, da intervenção do sobrenatural na convicção da razão. Com a introdução no Tratado de Versalhes do famoso art. 227.° os dirigentes políticos colocavam-se em consonância com a sua opinião pública, por vezes mais do que seria o seu desejo [12].

Guilherme II refugiou-se na Holanda, que se recusou a entregá-lo, ironicamente, o país que sedia hoje o Tribunal Penal Internacional.


4. Os Tribunais de Nuremberg

Após a Segunda Guerra, a ideia de se punir os nazistas já se encontrava cristalizada. A divulgação e descrição dos horrores do holocausto, bem como o interesse nítido de desnazificar a Alemanha foram fundamentais para a formação de uma esmagadora opinião favorável à criação do futuro Tribunal de Nuremberg.

Sondagens efectuadas mostravam que as opiniões públicas inglesa e americana eram maioritariamente favoráveis a uma punição dos criminosos de guerra alemães. Mas quem diz punição não diz necessariamente processo: a ideia de uma comparência perante um tribunal germinou sobretudo entre as elites. Assim a primeira jurisdição verdadeiramente internacional foi instituída em 1945, pelos Aliados, mais exactamente pelos Americanos. Churchill, que guardava ainda na memória o doloroso revés de Leipzig, inclinava-se inicialmente para uma solução expeditiva, que consistiria em executar os dignitários nazis e julgar apenas os quadros intermédios e oficiais de baixa patente. Mas quando Estaline propôs a execução de vários milhares de nazis, ficou chocado e aderiu à opção judicial proposta por Roosevelt [13].

O anseio de processar os líderes nazistas foi manifestado pelos Aliados, na Declaração de Moscou de 1943, sendo o Tribunal Militar Internacional (IMT- International Military Tribunal) instituído pelo Acordo de Londres de 08 de agosto de 1945 [14].

O Tribunal era composto por representantes de cada Aliado signatário não podendo a recusa da Corte e seus membros ser arguida como matéria pela Acusação ou Defesa por nenhum motivo, conforme Estatuto do Tribunal anexado ao Acordo de Londres:

STATUT DU TRIBUNAL MILITAIRE INTERNATIONAL

I- CONSTITUTION DU TRIBUNAL MILITAIRE INTERNATIONAL

(...)

Article 2

Le Tribunal sera composé de quatre juges, assistés chacun d’un suppléant. Chacune des Puissances signataires désignera un juge et un juge suppléant. Les suppléants devront, dans la mesure du possible, assister à toutes les séances du Tribunal. En cas de maladie d’un membre du Tribunal ou si, por toute autre raison, il n’est pas en mesure de remplir ses fonctions, son suppléant siégera à sa place.

Article 3

Ni le Tribunal, ni ses membres, ni leurs suppléants ne pourront être récuses par le Ministère Public, par les accusés, ou par leurs défenseurs. Chaque Puissance signataire pourra remplacer le juge ou le suppléant désignés par elle, pour raisons de santé ou pour tout autre motif valable, mais aucun remplacement, autre que par un suppléant, ne devra être effectué pendant le cours d’un procès [15].

Prevendo o evidente calcanhar de Aquiles do Tribunal, a saber, a total parcialidade dos julgadores, as potências aliadas no Estatuto logo impossibilitaram o possível não reconhecimento do Tribunal por parte de um de seus réus.

O Tribunal possuía competência para julgar os crimes contra a paz, que consistiam em "projetar, preparar, desencadear ou prosseguir uma guerra de agressão ou uma guerra feita em violação de tratados, acordos ou compromissos internacionais" [16], os crimes de guerra, que consistiam nas violações às leis e costumes de guerra e, finalmente, o crime contra a humanidade, definido como o "assassínio, extermínio, sujeição à escravatura, deportação ou qualquer outro ato desumano cometido contra quaisquer populações civis, ou perseguições por motivos políticos, raciais ou religiosos, quando tais atos ou perseguições forem cometidos na seqüência de um crime contra a paz ou de um crime de guerra ou estiverem ligados a estes crimes" [17]. Sobre o resultado informa Garapon:

Este processo gigantesco, que comportaria quatrocentas e três sessões, ouviria cento e dezesseis testemunhas e se realizaria em quatro línguas, e do qual restam quarenta e dois volumes de documentos e retranscrição de debates, assinala incontestavelmente uma ruptura histórica. No entanto, não faltam criticas passiveis de lhe ser apontadas [18].

Conforme asseverado, a imparcialidade dos juizes era nula considerando que cada um dos Magistrados e Procuradores provinha de um dos Aliados: França, Inglaterra, EUA e URSS.

A qualificação do crime contra a humanidade não existia antes do cometimento dos crimes, o que configuraria uma violação ao princípio "nulla pœna sine lege", o qual impossibilita a condenação de alguém em razão de cometimento de fato posteriormente incriminado.

Para a tipificação dos "Crimes de Guerra" houve uma simples translação do que já existia no âmbito do Direito Internacional e quanto aos "Crimes contra a Paz" o Tribunal Militar Internacional referiu-se às Convenções da Haia e ao Tratado de Renúncia à Guerra (Pacto de Paris ou Briand-Kellog, de 1928).

As Convenções de Paz da Haia (1899 e 1907) previam a obrigatoriedade de utilização dos mecanismos pacíficos de solução de controvérsias, por sua vez o Pacto de Briand-Kellog estabelecia utopicamente que jamais se recorreria à guerra.

Os crimes elencados no Estatuto recebiam críticas também em razão de seu caráter de lege imperfetae, ou seja, norma que não comina em sanção, denominação de um crime sem estabelecimento de uma pena prévia. Também não havia a possibilidade de se recorrer da sentença editada.

Pode-se notar a ausência do elencamento do "Crime de Genocídio", fato explicado porque tal conceito somente surgiria em 1948 por criação de Raphael Lemkin.

Mas o desassiso maior se encontra no que os anglo-saxões denominam de "tu quoque": A expressão ficou célebre pela frase de Júlio César ao ser assassinado: "Até tu, Brutus!" Assim o tu quoque é a ideia de que ninguém pode invocar normas jurídicas após descumpri-las, ou seja, como poderiam acusar os nazistas de atos que os Aliados haviam igualmente cometido?

Apesar de todas as críticas, os julgamentos foram levados a cabo e seu principal papel aparentemente fora cumprido: desnazificar a Alemanha.

Em outubro de 1945, 24 foram pronunciados e seu julgamento, conhecido como Julgamento dos Grandes Criminosos, iniciou-se no mês seguinte. Um ano depois os julgamentos eram concluídos, com a condenação de 19 dos acusados e a imposição de pena de morte em 12 casos [19].

Do mesmo modo, prevendo a possibilidade de mais julgamentos e a viabilidade de criação de novos tribunais, o Acordo de Londres consignou desde já tal possibilidade.

De fato, o que ocorreu não foi um Tribunal Internacional Militar de Nuremberg, mas vários Tribunais de Nuremberg, constituídos com a versão modificada do Estatuto do Tribunal Militar Internacional, conhecida como Control Council Law n. 10, de dezembro de 1945, permitindo aos Aliados processarem os nacionais alemães nas respectivas zonas de ocupação.

No Pacifico, instituiu-se o "Tribunal Militar Internacional para o Extremo-Oriente" (IMTFE – International Military Tribunal for the Far East), promulgado em Tóquio, em 19 de janeiro de 1946, com princípios similares aos de Nuremberg, mas sem a pompa de seu antecedente. "O processo de Tóquio não deixou as mesmas marcas, talvez devido à distância geográfica, mas também às tensões muito acesas que marcaram o inicio da descolonização" [20].

Sem sombra de dúvida, o Tribunal de Nuremberg constituiu-se como marco histórico no âmbito do direito internacional penal e na persecução de uma justiça penal universal.


5. Processos ulteriores a Nuremberg

O processo de Nuremberg foi o último ato da impactante da Segunda Grande Guerra, passando, com o tempo, a servir como precedente e referência para os processos ulteriores. Jankov informa:

Com o objetivo de positivar as premissas para o estabelecimento do IMT e do IMTFE e para evitar a associação desses tribunais com a ideia de ‘justiça dos vencedores’, o sistema das nações unidas, no final da década de 1940, iniciou um trabalho visando estabelecer mecanismos permanentes e imparciais para a justiça internacional penal. Nesse contexto, a Convenção para a Prevenção e a Repressão ao Crime de Genocídio (1948), em seu art. 6°, faz a alusão a um tribunal penal internacional.

Nesse sentido, os esforços das Nações Unidas para estabelecer um tribunal penal manifestaram-se basicamente em dois âmbitos: a codificação dos crimes internacionais e a elaboração de um projeto de estatuto para o estabelecimento de um tribunal internacional.

Conforme a solicitação da Assembléia Geral das Nações Unidas de 21 de novembro de 1947, a Comissão de Direito Internacional (Internacional Law Comission) iniciou a formulação dos princípios reconhecidos pelo Estatuto do tribunal de Nuremberg (Princípios de Nuremberg – Nuremberg Principles,1950), objetivando elaborar um projeto de código dos crimes contra a paz e a segurança da humanidade (Code of Crimes against the Peace and Security of Mankind) [21].

Tratava-se do inicio do processo de arregimentação de mecanismos normativos que redundariam no Tribunal Internacional Penal.

Paralelamente ao trabalho da Comissão de Direito Internacional, a Assembléia Geral estabeleceu também um comitê, encarregado de elaborar o estatuto de um tribunal penal internacional, o qual foi submetido a aprovação em 1952. Posteriormente, um novo comitê foi criado pela Assembléia Geral com a finalidade de rever o projeto do estatuto, com base nos comentários realizados pelos estados-Membros, relatado à Assembléia geral em 1954.

Uma versão substancialmente modificada do Projeto de Código de 1954 foi provisoriamente aprovado pela Comissão em 1991 e enviada aos Estados Membros para análise. Entretanto, este código não previa necessariamente uma jurisdição internacional. Este tema seria apenas tratado em 1989, ano da queda do muro de Berlin.

Em meados de 1993, a Comissão preparou um projeto sob a direção do Special Rapporteur James Crawford, o qual em 1994 teve sua versão final do Estatuto para um Tribunal Penal Internacional submetida à Assembléia Geral [22].

O Longo quase recesso entre Nuremberg e a aprovação do Estatuto é justificado pela tensão gerada por uma ordem mundial bipolarizada, impedindo maiores conjecturas e pretensões do porte de um Tribunal como o TPI.

Enquanto o Projeto de um Tribunal Internacional Penal se desenvolvia, o mundo viu a criação de uma corte com base ad hoc, endereçada às atrocidades cometidas na antiga Iugoslávia.

Em 08 de maio de 1993, o Conselho de Segurança aprovou a Resolução 827 estabelecendo o Tribunal para a Antiga Iugoslávia. O Estatuto define a autoridade do Tribunal para processar quatro categorias de crimes: graves violações às Convenções de Genebra de 1949; violações às leis e costumes da guerra; crimes contra a humanidade e genocídio. A jurisdição estava limitada às violações ocorridas no território da antiga Iugoslávia a partir de 1991.

Logo depois, o Tribunal ad hoc para a extinta Iugoslávia deu azo à criação de outro Tribunal:

Em novembro de 1994, atendendo a uma solicitação da Ruanda o Conselho de Segurança deliberou a criação de um segundo tribunal ad hoc, encarregado de processar e julgar as graves violações do direito humanitário cometidas na Ruanda e nos países vizinhos durante o ano de 1994. Seu Estatuto assemelha-se ao do TPII, entretanto, os dispositivos relativos aos crimes de guerra por refletirem o contexto de um conflito armado eminentemente interno, afastam as graves violações das Convenções de Genebra [23].

Cabe ressaltar a grande inovação trazida pelo Tribunal no sentido de uma visão inovativa e progressiva do direito aplicado aos crimes de guerra, estendendo os precedentes de Nuremberg ao declarar que os crimes contra a humanidade poderiam ser cometidos em tempos de paz e estabelecendo a punibilidade dos crimes de guerra durante conflitos armados internos.


6. O Tribunal Penal Internacional

Em julho de 1998, em Roma, foi aprovado, por 120 votos a favor, 07 votos contrários – China, Estados Unidos da América, Filipinas, Índia, Israel, Sri Lanka e Turquia – e 21 abstenções, na Conferência Diplomática de Plenipotenciários das Nações Unidas, o Estatuto de Roma [24] do Tribunal Penal Internacional, cujo principal objetivo era instituir uma instância penal internacional de caráter permanente, sediado na Haia.

De fato o TPI é o ápice do desenvolvimento de uma instância de caráter internacional antes vislumbrada com o advento dos Tribunais Militares de Nuremberg e do Extremo Oriente.

A jurisdição do Tribunal Penal Internacional possui caráter complementar ao ordenamento jurídico dos Estados, ou seja, o Tribunal somente poderá exercer a sua jurisdição se o Estado competente para conhecer o fato não o fizer ou encontrar-se impossibilitado de fazê-lo.

O Estatuto entrou finalmente em vigor em 1° de julho de 2002, na forma do seu artigo 126 [25]:

Artigo 126 [Entrada em vigor]

1. O presente Estatuto entrará em vigor no primeiro dia do mês seguinte ao sexagésimo dia após a data de depósito do sexagésimo instrumento de ratificação, aceitação, aprovação ou adesão junto ao Secretário-Geral das Nações Unidas.

Para cada Estado que ratificar, aceitar ou aprovar o Estatuto, ou a ele aderir após o depósito do sexagésimo instrumento de ratificação, aceitação, aprovação ou adesão, o Estatuto entrará em vigor no primeiro dia do mês seguinte ao sexagésimo dia após a data em que cada um desses Estados tiver depositado seu instrumento de ratificação, aceitação, aprovação ou adesão.

O texto aprovado encontra-se aberto à assinatura e ratificação por parte dos Estados. Tendo alcançado a ratificação de 89 Estados, até abril de 2003, ultrapassando, assim, o consenso mínimo necessário para a sua entrada em vigor. O Brasil assinou o Tratado em 2000.

O Estatuto do TPI estabelece a competência para os crimes previstos em seu artigo 5°, a saber: genocídio, crimes contra a humanidade, crimes de guerra e crimes de agressão, descritos como "crimes mais graves, que afetam a comunidade internacional no seu conjunto" [26]. O Estatuto ainda os descreve como "atrocidades inimagináveis que chocam profundamente a consciência da humanidade" [27] e "crimes de maior gravidade com alcance internacional" [28].

Originalmente a ideia de crimes internacionais estava relacionada à jurisdição do Estado, em cujo território o acusado se encontrava. Assim, o fato deste ser ou não julgado e condenado, dependia exclusivamente da legislação e das autoridades do país em questão.

Na hipótese de não atuação do Estado, o Estado de nacionalidade da vítima poderia solicitar ao Estado do suposto autor, a punição do acusado ou pagamento de indenização. Enfim, seria uma questão de responsabilidade do Estado, em razão da ausência de julgamento e punição do acusado. No entanto, duas categorias de crimes eram consideradas exceções a este princípio, a saber: a pirataria e os crimes de guerra.

A pirataria era uma prática muito conhecida nos séculos XVII e XVIII. O artigo 101 da Convenção das Nações Unidas sobre o Direito do Mar (1982) a define. Os piratas eram considerados inimigos da humanidade (hostes humani generis) e portanto, todos os Estados, poderiam processá-los, julgá-los e puni-los, independentemente da sua nacionalidade [29].

Os crimes de guerra foram positivados na segunda metade do século XIX impulsionados por dois fatores: "A codificação do direito costumeiro consuetudinário da guerra (codification of the customary law of warfare) e Codificação da Haia (1899-1907) (Hague Codification)" [30].

Ao final da Primeira Guerra Mundial surgiu o "Princípio da Territorialidade", bastando, portanto, que o crime fosse cometido no território do Estado para estar sujeito à sua jurisdição [31].

Mas as grandes mudanças no cenário dos crimes internacionais e o refinamento de tais mecanismos punitivos surgiram após a Segunda Grande Guerra. Se quanto aos crimes de guerra, o Tribunal Militar Internacional de Nuremberg apenas fez um aproveitamento do que já havia no ordenamento jurídico internacional, fez surgir duas novas categorias: crimes contra a paz e crimes contra a humanidade.

Outra novidade encontra-se no fato de que, até 1945 (exceção feita ao dispositivo constante do Tratado de Versalhes, em relação ao Império Alemão, que permaneceu como letra morta), Oficiais Estatais "senior" nunca haviam sido responsabilizados pessoalmente por suas faltas.

Sendo assim, os acusados deixavam de estar protegidos pela soberania do Estado, sendo quebrada sua imunidade, a qual não poderia mais ser alegada. Pela primeira vez o princípio básico era proclamado: diante da alternativa entre obedecer ao comando da lei interna ou ao padrão internacional de conduta, o Oficial ou indivíduo deveria optar pelo segundo.

Principes du droit international consacrés par le statut du tribunal de nuremberg et dans le jugement de ce tribunal, 1950.

PRINCIPE 1

Tout auteur d’un acte qui constitue un crime de droit international est responsable de ce chef et passible de châtiment.

(...)

PRINCIPE 4

Le fait d’avoir agir sur l’ordre de son gouvernement ou celui d’un supérieur hiérarchique ne dégage pas la responsabilité de l’auteur en droit international, s’il a eu moralement la faculté de choisir [32].

Posteriormente, a Convenção sobre o Genocídio (1948) e as Convenções de Genebra (1949) fazem surgir novas categorias de crimes de guerra, denominados: "graves violações às Convenções de Genebra", considerando ainda seus dois Protocolos Adicionais (1977), a Convenção contra a Tortura (1984), e uma cadeia de tratados contra o terrorismo desde 1970. Já no âmbito do direito processual, é estabelecido o "Princípio da Universalidade da Jurisdição, de acordo com o qual um Estado contratante poderia levar a julgamento o acusado de "grave violação", independentemente de sua nacionalidade ou local de ocorrência do crime [33].

Os crimes de guerra constituem a mais antiga das quatro categorias de crimes de competência do Tribunal Penal Internacional e o que mais elenca hipóteses de incidência no Estatuto.

Por sua vez, os crimes de agressão, oriundos dos antigos crimes contra a paz ainda encontram-se carentes de uma definição formal pela ausência de acordo entre os Estados sobre sua definição.

Muita expectativa se criou sobre a recente Conferência de Revisão do Estatuto de Roma, ocorrida em Kampala e que durou duas semanas, encerrando-se no dia 11 de junho de 2010.

Aproximadamente 4600 representantes de Estados, organizações intergovernamentais e não governamentais participaram do evento.

A Conferência visando estabeleceu uma definição para o crime de Agressão, adotou uma resolução que na prática estabelece que a decisão deverá ser tomada após o dia 01 de janeiro de 2017 pela maioria dos Estados-Partes adotando-se uma emenda ao Estatuto.

Com base na resolução 3314 da Assembleia Geral das Nações Unidas de 14 de dezembro de 1974, convencionou-se qualificar "Agressão" como um crime cometido por um dirigente político ou militar, que em razão de sua natureza, gravidade ou repercussão constitui-se como uma violação manifesta à Carta da ONU.

No mesmo turno, a Conferência adotou uma resolução ao fito de emendar o artigo 8º do Estatuto de Roma, alargando a competência da Corte em relação ao crime de guerra, contudo esquivou-se de emendar o art. 124 que possibilita que um Estado que se torne Parte no Estatuto declare que, durante um período de sete anos a contar da data da entrada em vigor do Estatuto no seu território, não aceitará a competência do Tribunal relativamente à categoria de crimes de guerra. A declaração formulada ao abrigo deste artigo poderá ser retirada a qualquer momento.

A Conferência concluiu o balanço da justiça penal internacional adotando duas resoluções, uma declaração e reduzindo a termo os debates.

Quanto ao crime de genocídio, a palavra "genocídio" foi cunhada por Raphael Lemkin em seu livro que trata sobre os crimes cometidos pelos nazistas na Europa ocupada. O artigo 6° do Estatuto de Roma define o genocídio copiando o dispositivo inserto no artigo II da Convenção para a Prevenção e Repressão do Crime do Genocídio (1948). Nesse sentido é salutar a lição de Fernanda Jankov:

Ao adotar o texto de uma convenção de 1948, o Estatuto de Roma claramente constitui uma codificação de norma consuetudinária internacional. Segundo esta norma, o genocídio é definido com base em cinco atos cometidos com o intuito de destruir, no todo ou em parte, um grupo nacional étnico, racial ou religioso [34].

São estes os cinco atos: homicídio de membros do grupo; ofensas graves à integridade física ou mental de membros do grupo; sujeição intencional do grupo a condições de vida com o objetivo de provocar a sua destruição física, total ou parcial; imposição de medidas destinadas a impedir nascimentos no seio do grupo; transferência, à força, de crianças do grupo para outro grupo [35].

O crime de genocídio possui um intuito específico que o distingue dos demais crimes, a saber: o fato do ato, seja o homicídio ou qualquer outro dos quatro atos definidos pelo artigo 6°, ser cometido na intenção de destruir no todo ou em parte, um grupo determinado, sem haver restrição no que cerne à quantidade de pessoas vitimadas pelo ação.

O genocídio ou o crime sem nome encontra antecedentes de sua prática desde as mais remotas civilizações, todavia, a articulação de sua prática compreendida a partir de seu conceito é um fenômeno próprio do século XX, como explica Bruneteau:

En 1944, à propos des horreus générées par le nazisme, Wiston Churchill parlait d’ « un crime sans nom ». Lui répondant en quelque sorte, un professeur de droit international, Juif américain d’origine polonaise, Raphael Lemkin, forge la même année le mot de « génocide » à partir du mot grec genos (race, peuple) e du suffixe latin – cide (de caedere, tuer). Il l’introduisait notamment dans un livre, Axis Rule in Occupied Europe, que répertoriat toutes les mesures planifiées par les nazis pour annihiler des peuples, juif et polonais au premier chef, dans leurs composantes nationales, religieuses et ethniques [36].   

Cumpre considerar que, a perseguição a grupos sociais e políticos, não se inclui na definição de genocídio, o que é passível de muitas criticas que, apesar de terem surgido, não conseguiram ampliar a definição tradicional de genocídio. Assim, tais perseguições serão tratadas como crimes contra a humanidade, conforme o artigo 7 (1) (h) do Estatuto.

Por sua vez, para a definição dos crimes contra a humanidade, o Artigo 7° do Estatuto contém quatro requisitos para que seja definida a competência do Tribunal sob a alegação de crimes contra a humanidade:

Ab initio, o Estatuto requer que o crime seja cometido como parte de um "ataque, generalizado ou sistemático", devendo este ser cometido contra uma "população civil", o que claramente os distingue dos crimes de guerra, os quais podem ter como objeto combatentes ou civis, podendo ainda ser um ataque não-militar.

E ainda o Art. 7° (2) (a) estabelece:

(...) Artigo 7° [Crimes contra a Humanidade] (2) (a)

2. Para os efeitos do parágrafo 1°:

a) Por "ataque contra uma população civil’ entende-se qualquer conduta que envolva a prática múltipla de atos referidos no parágrafo 1° contra uma população civil, de acordo com a política de um Estado ou de uma organização de praticar esses atos ou tendo em vista a prossecução dessa política. [37]

Os crimes contra a humanidade podem, portanto, também ser praticados por entes não-estatais, com objetivos políticos.


7. Conclusão

No dia 24 de março de 1999, a Câmara dos Lordes Britânicos rechaçou a imunidade do general Pinochet, dois meses depois, pela primeira vez na história, um chefe de Estado, no exercício de suas funções – Slobodan Milosevic – era notificado da acusação movida contra si por uma jurisdição internacional. Em 11 de abril de 2002 nasce o Tribunal Penal Internacional.

Tais acontecimentos recentes decorrem de um longo processo histórico com raízes remotas e desdobramentos distintos, mas que passam a se efetivar e ter uma amplitude significativa no século XX.

É indubitável que os Tribunais de Nuremberg configuraram uma justiça dos vencedores e sua utilidade foi muito mais ideológica que na aplicação da justiça.

Os tribunais ad hoc, por sua vez, possuem uma natureza muito particular de atuação, o que ocasiona inúmeros questionamentos quanto à legitimidade (filosófica, histórica, sociológica e jurídica) dos mesmos.

É inegável que o projeto de uma justiça universal sustenta uma utopia, que em parte alcance ares até de totalitarismo considerando as conseqüências da inafastabilidade de uma jurisdição de tamanha proporção.

Do mesmo modo, o horizonte para o qual aponta tal projeto universal se esvaece ante a realidade dos fatos e em face da dinâmica histórica.

A competência universal, na forma dos Tribunais e na atuação dos Estados em julgamentos de crimes dignos desta competência, aponta para a cada vez mais evidente aldeia global em que vivemos.

Os apologistas da justiça internacional apresentam a história que leva à criação do TPI como uma evolução, como o caminho que conduz à vitória do direito contra a barbárie. Como se a barbárie pudesse ser extinta, varrida do mapa e do tempo.

Não há de se negar o caráter realista que devemos ter ao analisar a justiça, ela não vai nos libertar do mal, e o mal não pode ser identificado com o político. A justiça é, inevitavelmente, em inúmeras ocasiões, a continuação da guerra por outros meios.

A justiça penal universal rompe com os paradigmas westfalianos que consagraram as noções essenciais que possuíamos de Estado, soberania, autodeterminação e legitimidade para punir.

Todavia, o ideal da justiça penal universal nunca será concretizado plenamente, estará sempre lançado no devir dos acontecimentos. Deste modo, devemos analisar criticamente os riscos atinentes à empreitada proposta constantemente por este direito internacional penal de julgar a História.

Todos os crimes de competência do Tribunal Penal Internacional são imprescritíveis. O destino de um povo e a ação de certos homens submetem-se a uma instância que se pretende capaz de parar o tempo e tornar inoperante qualquer justificativa histórica.

Os acontecimentos históricos jamais serão julgados fora da História, sempre na História eles serão abordados, assim sabiamente leciona Garapon:

Não é a acção política que adquire o seu sentido com o julgamento a posteriori, mas sim, pelo contrário, o julgamento que só revela o seu verdadeiro significado face à acção política.

(...)

A História não para nunca, a condição histórica não nos dá tréguas. A História não termina, não pode suspender-se. Julgar a História é ainda estar na História. Declarar a abstracção da História é tão insensato como pretender libertar-se da condição humana [38].

Além do mais, uma utopia que se pretende tão somente acertar as contas da História, jamais cumprirá sua meta de punir todas as infrações e reparar todos os prejuízos.

O homem permanece com as rédeas da história em suas mãos. O homem como animal político ainda precisa agir se pretende reparar injustiças, evitá-las. Permanece imprescindível a responsabilidade natural dos povos de serem donos de sua história e assim construí-la, alterá-la, modificá-la.

O considerado fim da utopia socialista bem como as práticas cada vez mais predatórias do capitalismo lançam o homem contemporâneo em um impasse sem precedentes.

Ainda no século XX, os horrores transmitidos em cadeia internacional das hostilidades ocorridas pelo mundo contrastam gritantemente com o eloquente discurso dos direitos humanos de ares transnacionais.

Os defensores de uma justiça penal universal a apoiam sem maiores considerações, ora como projeto de salvação do homem, ora como mínimo possível a se fazer sem maiores pretensões.

Se na primeira hipótese se peca pelo excesso, pelo vão ideal da reforma do homem através do judiciário, que se mostrou tão impotente no âmbito de todas as legislações nacionais, na segunda hipótese se erra pela falta.

Confiar aos juizes, às leis e aos tribunais a justiça, a busca por reparações e transformações históricas é abdicar de agir no mundo, e agir no mundo é agir politicamente.

São incontáveis as vítimas de práticas políticas atrozes perpetradas por genocidas, criminosos de guerra e por aqueles que negligenciaram o mínimo de dignidade ao ser humano, isso tão somente no último século.

Contudo, outros milhares de vítimas perecem e estão a perecer neste exato momento em razão das condutas de uma política econômica genocida, fria e desumana.

Quantos são os mortos, vítimas da pobreza e da desigualdade social, decorrentes originariamente de uma colonização exploratória perpetrada pelos mesmos países que se dizem democráticos?

Quantos mais irão morrer de fome e de outras causas decorrentes da ausência de condições mínimas de sobrevivência após sofrer outras mortes tão cruéis quanto a fisiológica: a morte histórica, a morte política, a morte da autonomia?

O direito não tem condições de responder a tais questionamentos. A utopia jurídica só será real se decorrer de uma utopia social e política, se for fruto da ação política e histórica dos homens; caso contrário, sempre será uma mera arregimentadora de práticas policialescas e punitivas que nada compreendem do mundo que julgam e que condenam.


9. Referências

BRUNETEAU, Bernard. Le Siècle des Génocides. Paris: Armand Colin. 2005.

GARAPON, Antoine. Crimes que Não se Podem Punir nem Perdoar – Para uma Justiça Internacional. Lisboa: Editora Piaget. 2002.

GRAMSCI, Antonio. Cadernos do Cárcere. v. 3. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira. 2007.

JANKOV, Fernanda F.F. Direito Internacional Penal – Mecanismos de Implementação do Tribunal Penal Internacional. São Paulo: Editora Saraiva. 2009.

MARX, Karl; ENGELS, Friedrich. A Ideologia Alemã. São Paulo: Boitempo, 2007.

MASCARO, Alysson Leandro. Utopia e Direito: Ernst Bloch e a Ontologia Jurídica da Utopia. São Paulo: Quartier Latin, 2008.

_________________________. Lições de Sociologia do Direito. São Paulo: Quartier Latin. 2009.

MAZZUOLI, Valerio de Oliveira (organizador). Coletânea de Direito Internacional, 7a edição, São Paulo: Revista dos Tribunais, 2008.

NAVES, Márcio Bilharinho. Marx, Ciência e Revolução. São Paulo: Moderna/Unicamp, 2000.


Notas

  1. GRAMSCI, Antonio. Cadernos do Cárcere. v. 3. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira. 2007.p. 235.
  2. MASCARO, Alysson L. Lições de Sociologia do Direito. São Paulo: Quartier Latin. 2009. p.107.
  3. NAVES, Márcio Bilharinho. Marx, Ciência e Revolução. São Paulo: Moderna/Unicamp, 2000. p. 79.
  4. MASCARO, Alysson Leandro. Lições de Sociologia do Direito. São Paulo: Quartier Latin, 2009. p.112.
  5. MARX, Karl; ENGELS, Friedrich. A Ideologia Alemã. São Paulo: Boitempo, 2007. p. 317-318.
  6. MASCARO, Alysson Leandro. Utopia e Direito: Ernst Bloch e a Ontologia Jurídica da Utopia. São Paulo: Quartier Latin, 2008. p. 11.
  7. GARAPON, Antoine. Crimes que Não se Podem Punir nem Perdoar – Para uma Justiça Internacional. Lisboa: Editora Piaget. 2002. p.76
  8. Ibidem., p.89
  9. Ibidem., p.91
  10. DOTTI, René Ariel. Prefácio ao livro de JANKOV, Fernanda F.F. Direito Internacional Penal – Mecanismos de Implementação do Tribunal Penal Internacional. São Paulo: Editora Saraiva. p. XXII.
  11. JANKOV, Fernanda F.F. Direito Internacional Penal – Mecanismos de Implementação do Tribunal Penal Internacional. São Paulo: Editora Saraiva. 2009. p. 22.
  12. GARAPON, Antoine. Crimes que Não se Podem Punir nem Perdoar – Para uma Justiça Internacional. Lisboa: Editora Piaget. 2002. p. 23.
  13. Ibidem., p. 24.
  14. "Accord concernant la poursuite et le châtiment des grands criminels de guerre des Puissances européennes de l’Axe et statut du tribunal international militaire. Londres, 8 août 1945 » - disponivel em « http://www.icrc.org/dih.nsf/
  15. Ibidem.
  16. Artigo 6°, a) dos princípios de Nuremberg.
  17. Artigo 6°, c) dos princípios de Nuremberg.
  18. GARAPON, Antoine. Crimes que Não se Podem Punir nem Perdoar – Para uma Justiça Internacional. Lisboa: Editora Piaget. 2002. p. 25.
  19. JANKOV, Fernanda F.F. Direito Internacional Penal – Mecanismos de Implementação do Tribunal Penal Internacional. São Paulo: Editora Saraiva. 29. p. 24.
  20. GARAPON, Antoine. Crimes que Não se Podem Punir nem Perdoar – Para uma Justiça Internacional. Lisboa: Editora Piaget. 2002. pág. 26.
  21. JANKOV, Fernanda F.F. Direito Internacional Penal – Mecanismos de Implementação do Tribunal Penal Internacional. São Paulo: Editora Saraiva. 29. pág. 26.
  22. Ibidem., p. 26-27.
  23. Ibidem. p. 28.
  24. Estatuto de Roma do Tribunal Penal Internacional, assinado em Roma, em 17.07.1998, aprovado no Brasil pelo Decreto Legislativo 112, de 06.06.2002, e promulgado pelo Decreto 4.388, de 25.09.2002, depósito da Carta de Ratificação em 20.06.2002. Entrada em vigor internacional em 01.07.2002, reproduzido em MAZZUOLI, Valerio de Oliveira (organizador). Coletânea de Direito Internacional, 7a edição, São Paulo: Revista dos Tribunais, 2008, 1187-1243.
  25. Estatuto do TPI, artigo 126, reproduzido em MAZZUOLI, Valerio de Oliveira (organizador). Coletânea de Direito Internacional, 7a edição, São Paulo: Revista dos Tribunais, 2008.
  26. Preâmbulo e artigo 5° do Estatuto do TPI.
  27. Preâmbulo do Estatuto do TPI.
  28. Artigo 1° do Estatuto do TPI.
  29. JANKOV, Fernanda F.F. Direito Internacional Penal – Mecanismos de Implementação do Tribunal Penal Internacional. São Paulo: Editora Saraiva. 2009. p. 54.
  30. Les Lois de la Guerre sur Terre, Manuel publié par l’Institut de Droit Internacional – Brussels and Liepzig: C. Muquardt, 1880. In: CASSESE, Antonio. International Criminal Law...p. 39. apud JANKOV, Fernanda F.F. Direito Internacional Penal – Mecanismos de Implementação do Tribunal Penal Internacional. São Paulo: Editora Saraiva. 2009. p. 54-55.
  31. Ibidem.
  32. Principes du Droit International Consacrés par le Statut du Tribunal de Nuremberg et dans le Jugement de ce Tribunal -Texte adopté par la Commission à sa deuxième session, en 1950, et soumis à l’Assemblée générale dans le cadre de son rapport sur les travaux de ladite session. Le rapport, qui contient également des commentaires sur les principes, est reproduit dans l’Annuaire de la Commission du droit international, 1950, vol. II.
  33. JANKOV, Fernanda F.F. Direito Internacional Penal – Mecanismos de Implementação do Tribunal Penal Internacional . São Paulo: Editora Saraiva. 2009. p. 57.
  34. Ibidem., p. 60.
  35. Ibidem.
  36. BRUNETEAU, Bernard. Le Siècle des Génocides. Paris: Armand Colin. 2005. p. 8.
  37. Ibidem., p. 1189.
  38. Ibidem., p.62

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Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

GOMES, Juan Pablo Ferreira. De Nuremberg a Haia: uma análise histórica sobre o desenvolvimento dos Tribunais Internacionais Penais. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 15, n. 2623, 6 set. 2010. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/17311. Acesso em: 27 abr. 2024.