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O dolo eventual nos homicídios de trânsito

uma tentativa frustrada

O dolo eventual nos homicídios de trânsito: uma tentativa frustrada

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Sumário: 1. Introdução ao tema. 2. Dolo eventual e culpa consciente. 3. O perigo da elasticidade do conceito de dolo eventual e a frustrada tentativa de reduzir as mortes no trânsito. 4. Considerações finais à luz do art. 302 do novo Código de Trânsito Brasileiro.


1. INTRODUÇÃO AO TEMA.

Trataremos, neste breve articulado, a propósito de um tema que há algum tempo vem atormentando a sociedade e o Direito Penal. O tema escolhido reúne dois grandes problemas: a morte no trânsito, cujas estatísticas assombram a sociedade e a discussão sobre a definição do conceito de dolo eventual que, inquestionavelmente, acutila os dogmáticos do Direito Penal.

A mídia, como se a sociedade lhe houvesse outorgado uma procuração, clama pelo aumento de penas e pelo fim da dita "impunidade". Isso, como disse Lenio STRECK, "gera reações de caráter repressivista, mormente quando ocorrem casos de grande repercussão." (1) Face a isso, existe notoriamente uma tentativa de se levar os casos de homicídios ocorridos no trânsito ao crivo do júri popular, acreditando-se que tais agentes agiriam com manifesto dolo eventual.

          A priori, cabe fazermos a pergunta que é imperativa: será possível realizar tal enquadramento? Ou ainda: será possível enquadrarmos os autores dos homicídios no trânsito no homicídio doloso (dolo eventual) sem que, para isso, se tripudie sobre os fundamentos basilares da teoria geral do delito?

A discussão é complexa e face ao novo Código de Trânsito Brasileiro, torna-se novamente pertinente.


2. DOLO EVENTUAL E CULPA CONSCIENTE.

Os dogmáticos lecionam que a culpabilidade assume duas formas únicas: o dolo e a culpa. Todavia, a questão não se resume somente a esta assertiva. Descortina-se dentro desta matéria, no dizer de Hans WELZEL (2), "um dos problemas mais difíceis e discutidos do Direito Penal, por tratar-se de um fenômeno anímico", qual seja: a delimitação do dolo eventual da culpa consciente.

Então, torna-se imperiosa uma análise acurada deste "tormentoso" tema do Direito Penal do qual, a par de toda a divergência e polêmica existente, extrai-se somente uma certeza: a existência de uma tênue diferença entre o chamado dolo eventual e a culpa consciente.

Com efeito, Nelson HUNGRIA (3), ainda comentando o antigo artigo 15 do Código Penal pátrio, já se manifestava no sentido de que: "...tem-se pretendido em doutrina e na jurisprudência, identificar o dolus eventualis com a culpa consciente (luxúria ou lascívia, do direito romano), isto é, como uma das modalidades de culpa strictu sensu. Sensível é a diferença entre as duas atitudes psíquicas."

Como disse o professor da Universidade de Münster, Johannes WESSELS (4), "é largamente discutida a questão de que modo se diferencia o dolo eventual da negligência consciente."

MUÑOZ CONDE (5), lecionando sobre o dolo eventual, citando as expressões utilizadas pela doutrina, "assume o risco", "conta com ele", refere que "com todas essas expressões pretende-se descrever um complexo processo psicológico no qual se mesclam elementos intelectivos e volitivos, conscientes ou inconscientes, de difícil redução a um conceito unitário de dolo ou culpa."

O professor gaúcho, Cezar Roberto BITENCOURT (6), em sua novíssima obra, afirma que "os limites fronteiriços entre o dolo eventual e culpa consciente constituem um dos problemas mais tormentosos da Teoria do Delito."

A questão foi dirimida inicialmente na clássica obra de HUNGRIA (7) que, escorando-se na lição de Paul LOGOZ (Commentaire du Code Pénal Suisse), escreveu, o que é digno de reprodução: "Sensível é a diferença entre essas duas atitudes psíquicas. Há, entre elas, é certo, um traço comum: a previsão do resultado antijurídico; mas, enquanto no dolo eventual o agente presta a anuência ao advento dêsse resultado, preferindo arriscar-se a produzi-lo, ao invés de renunciar à ação, na culpa consciente, ao contrário, o agente repele, embora inconsideradamente, a hipótese de supereminência do resultado e, empreende a ação na esperança ou persuasão de que êste não ocorrerá. Eis a clara e precisa lição de Logoz, que merece transcrição integral: ‘...a diferença entre estas duas formas de culpabilidade (dolo eventual e culpa consciente) apresenta-se quando se faz a seguinte pergunta: ‘por que, em um e outro caso, a previsão das conseqüências possíveis não impediu o culpado de agir?’ A esta pergunta uma resposta diferente deve ser dada, segundo haja o dolo eventual ou culpa consciente. No primeiro caso (dolo eventual), a importância inibidora ou negativa da representação do resultado foi, no espírito do agente, mais fraca do que o valor positivo que êste emprestava à prática da ação. Na alternativa entre duas soluções (desistir da ação ou praticá-la, arriscando-se a produzir o evento lesivo), o agente escolheu a segunda. Para êle o evento lesivo foi como o menor de dois males. em suma, pode dizer-se que, no caso de dolo eventual foi por egoísmo que o inculpado se decidiu a agir, custasse o que custasse. Ao contrário, no caso de culpa consciente, é por leviandade, antes que por egoísmo, que o inculpado age, ainda que tivesse tido consciência do resultado maléfico que seu ato poderia acarretar. Neste caso, com efeito, o valor do resultado possível era, para o agente, mais forte que o valor positivo que atribuía à prática da ação. Se estivesse persuadido de que o resultado sobreviria realmente, teria, sem dúvida, desistido de agir. Não estava, porém, persuadido disso. Calculou mal. Confiou em que o resultado não se produziria, de modo que a eventualidade, inicialmente prevista, não pôde influir plenamente no seu espírito. Em conclusão: não agiu por egoísmo, mas por leviandade; não refletiu suficientemente.’."

Os manuais de sala de aula ensinam de forma superficial que o agente agirá com dolo eventual quando este antevê o resultado e age. Entretanto, se o agente confiar que o resultado não se produzirá, agirá com culpa consciente. Veremos que a quaestio não é tão simples. Modernamente, a caracterização do dolo eventual gira em torno da construção de duas principais teorias: teoria da probabilidade e teoria do consentimento ou da vontade. (8)

Ambas as teorias sofrem críticas doutrinárias. (9) A teoria do consentimento ou da vontade tem maior embasamento jurídico-penal, sendo mais facilmente sustentada. Ocorre que, há quem defenda a teoria da probabilidade, gerando assim uma jurisprudência vacilante que, por vezes utiliza a teoria do consentimento e, não menos raramente utiliza a teoria da probabilidade. (10)

Nos filhamos àqueles que acreditam que a teoria da probabilidade parte apenas do elemento intelectivo do dolo, esquecendo de valorar o elemento volitivo (elemento essencial do dolo, sublinhe-se!). É este elemento volitivo (intenção), presente no dolo, que notoriamente, o distingue da culpa. O dolo é composto necessariamente de elemento volitivo e intelectivo e no dolo eventual não é diferente.

Na verdade, não basta apenas que o autor tenha como provável, ou até muito possível o resultado, pois é preciso mais do que isso para que se configure o dolo eventual. Como disse Enrique BACIGALUPO (11), "el concepto de dolo eventual requiere algo más que la representación de la possibilidad de la realización del tipo penal."

Contra a teoria da probabilidade, que ainda é defendida por GIMBERNAT (12), se tem dito e repetido que ela exige apenas que o autor tenha decidido realizar um ato que provavelmente implicará lesão de um bem jurídico. Ocorre que esta representação da probabilidade de lesão não é suficiente para se acreditar que o autor realmente tenha assumido o risco de produzir um determinado resultado, uma vez que, embora a realização seja provável, poderá o autor, confiando em sua boa fortuna, acreditar que o resultado não se produzirá.

Nesse sentido, mais correta é a teoria do consentimento, que além da necessidade de representação por parte do autor da provável lesão ao bem jurídico, exige que este tenha anuído, consentido interiormente, com o provável resultado e a conseqüente lesão.

Também contra esta teoria, como já se disse, se tem levantado críticas. BACIGALUPO (13) cita OTTO e QUINTERO OLIVARES para referir a dificuldade da prova. (14) Com certeza a dificuldade está na ilação de confrontar, hipoteticamente, o autor com uma situação irreal, com um resultado possível mas que todavia ainda não ocorreu e, além disso, demonstrar o querer efetivo do autor em lesionar o bem jurídico.

Contudo, a teoria do consentimento ou da vontade, na ausência de uma teoria mais convincente, vem sendo defendida por grande parte da doutrina moderna.

Registre-se, a propósito, que a teoria do consentimento foi defendida pelo professor da universidade de Bonn. Assim sendo, se o próprio WELZEL (15), que originou toda a escola Welziana e honrou o Direito Penal assim optou, o que restará a nós da planície... Basta citá-lo: "Hay que tener presente siempre, que puede existir dolus eventualis solamente cuando el autor fue realmente conciente de las consecuencias posibles. Si no ha pensado em absoluto en ellas, habiendolas podido conocer, actúa solamente (inconcientemente) culposamente, pero nunca com dolus eventualis. La opinión aquí defendida - teoria del asentimento - es la seguida por la jurisprudencia y la literatura, sobre la base de la voluntad de concreción. En oposición a ella, la llamada teoria de las probabilidades distingue el dolus eventualis de la culpa conciente a través del mayor número de probabilidades de producción del resultado, representado por el autor. ...En contra de esa opinion debe señalarse que descuida el elemento volitivo del dolo, en favor del intectual."

Sobre a teoria da vontade, destacamos também a segura orientação de MUÑOZ CONDE (16), trazida ao direito pátrio por Juarez TAVARES: "Para esta teoria não é suficiente que o autor situe o resultado como de produção provável, mas é preciso que, além disso, diga: ‘ainda que fosse certa a sua produção, atuaria’."

Vê-se, no Direito comparado, que a moderna doutrina continua repelindo a teoria da probabilidade. MUÑOZ CONDE (17), recentemente (1996), comentando o moderno Código Penal espanhol de 1995, em companhia de Mercedes GARCÍA ARÁM, disserta sobre as duas teorias e, embora não desconheça as críticas, opta pela teoria do consentimento: "Dolo eventual. Con la categoría del dolo directo no se pueden abarcar todos los casos en los que el resultado producido debe, por razones político-criminales, imputarse a título de dolo, aunque el querer del sujeito no esté referido directamente a ese resultado. Se habla aquí de dolo eventual. En el dolo eventual el sujeto se representa el resultado como de probable producción y, aunque no quiere producirlo, sique actuado, admitiendo su eventual realización. El sujeto no quiere el resultado, pero (cuenta con él), (admite su producción), (acepta el riesgo), etc. Con todas estas expresiones se pretende describir un complejo processo psicológico en el que se entremezclan elementos intelectuales y volitivos, conscientes e inconscientes, de difícil reducción a un concepto unitario de dolo. El dolo eventual constituye, por tanto, la frontera entre el dolo y la imprudencia, sobre todo con la llamada imprudencia consciente, y dentro de esa zona fronteriza se hace difícil determinar qué que procesos psicológicos son incluibles en una u otra forma de imputación subjetiva; pero dado el diverso tratamiento jurídico de una y otra categoría es necesario realizar la distinción con la mayor claridad. Para distinguir el dolo eventual de la imprudencia se han formulado principalmente dos teorías: La teoría de la probabilidad parte del elemento intelectual del dolo. Dado lo difícil que es demostrar en el dolo eventual el elemento volitivo, el querer el resultado, la teoría de la probalidad admite la existencia de dolo eventual cuando el autor se representa el resultado como de muy probable producción y a pesar de ello actúa, admita o no su producción. Si la probabilidad es más lejana o remota, habrá imprudencia consciente o con representación. La teoría de la voluntad o del consentimiento atiende al contenido de la voluntad. Para esta teoría no es suficiente con que el autor se plante el resultado como de probable producción, sino que es preciso que además se diga: (fórmula de Frank). Hay, por el contrario, imprudencia si el autor, de haberse representado el resultado como de segura producción, hubiera dejado de actuar. ... Parece, por ello, preferible la teoría de la voluntad, por cuanto, además de tener en cuenta el elemento volitivo, delimita com mayor nitidez el dolo de la culpa. ..."

Ainda no Direito comparado, destacamos a recente tese de doutoramento de Mª. del Mar DÍAZ PITA (18), intitulada "El Dolo Eventual", que ao analisar as novas tendências da vontade como paradigma de delimitação e elemento do dolo, leciona sobre as teorias tradicionais, vejamos: "Las teorias volitivas tradicionales intentam la delimitación entre dolo eventual e imprudencia consciente através de un momento volitivo afirmando el dolo eventual cuando el autor no sólo se representa la posibilidad de la realización del tipo sino que, además, asiente inteiramente a su realización, es decir, aprueba la producción del resultado o lo acepta. La más extendida y admitida de estas teorías volitivas, tanto por la Jurisprudencia como por la Doctrina, es la teoría del consentimento, que además de la previsión del resultado, exige que el sujeto, desde un punto de vista interno, haya consentido en la producción del misto o, lo que es lo mismo, que haya estado de acuerdo con dicho resultado. [...] Tanto la Jurisprudencia alemana como la española, ya desde los tiempos del Reichsgericht, ha defendido una de las versiones de la teoría del consentimento como la más adecuada para delimitar el dolo eventual de la imprudencia consciente. Para afirmar la concurrencia de dolo, el sujeto debe haber ‘consentido’ en la produción del resultado."

Também WESSELS (19) já havia se manifestado sobre a teoria do consentimento: "A teoria do consentimento ou da aprovação (dominante antes de tudo na jurisprudência) exige que o autor deva ter "aprovado" ou, "aprovando, tomado em compra" o resultado tido como possível... "Aprovar" em sentido jurídico, segundo o Supremo Tribunal Federal (BGHSt 7,363); significa também, quando o resultado seja altamente indesejável ao autor, que este, por causa do fim pretendido, se conforme com sua ocorrência (com pormenores Roxim, JuS 64, 53 - Grudlagenprobeleme, pág. 209)."

José Cerezo MIR (20), após afirmar que a teoria do consentimento é a mais aceita pela doutrina, refere que a moderna ciência do direito penal alemão tem se esforçado no sentido de encontrar novas vias para deslindar o problema do dolo eventual e imprudência consciente, mas opõe-se ao critério trazido por STRATENWERTH: "Según Stratenwerth, si el sujeto se tomó en serio la possibilidad de realización de los elementos objetivos del tipo y, no obstante, llevó a cabo la acción, se daria el dolo eventual. Si confiaba, en cambio, por ligereza o temeridad, en que la realización del tipo no se produjese, se daría una imprudencia consciente. Este criterio ha hallado una amplia acogida, pues según la opinión hoy más extendida se dará el dolo eventual simpre que el sujeto se tome en serio la possibilidad de realización de los elementos objetivos del tipo y se resigne a esta posibilidad. Este criterio ha influido también en la Ciencia del Derecho penal española y en más moderna orientación de la jurisprudencia de nuestro Tribunal Supremo, que exige, para la concurrencia de dolo eventual, que el sejuto considere probable la producción del resultado delictivo, se la tome en serio y que intervenga de algún modo la voluntad, aceptándolo, aprobándolo o conformando-se com él. El criterio de que el sujeto se haya tomado en serio la posibilidad de la realización de los elementos objetivos del tipo me parece discutible, pues perjudica a las personas escrupulosas, coscientes y responsables y favorece, en canbio, al desapresivo o egoísta, que no reflexiona y, por tanto, no se toma en serio la posibilidad de la realización del tipo. ... El criterio decisivo se halla en la actitud emocional del sujeto y, por tanto, no en la magnitud que atribuya al peligro. Siempre que al realizar la acción cuente com la posibilidad de la realización del tipo, se dará el dolo eventual. Si confía, en cambio, en que el tipo no se realice, se dará la imprudencia consciente. Si el sujeto considera probable la realización de los elementos objetivos del tipo contará generalmente, pero no siempre, com su producción. Aunque el sujeto no considere probable la realización de los elementos objetivos del tipo se dará el dolo eventual si contaba com dicha posibilidad. Cuando al sujeto le sea indifernte la lesión o el peligro del bien jurídico, contará generalmente com su produción, pero no es preciso que así sea."

Cerezo MIR, assim como COBO del ROSAL e VIVES ANTON (21), dá elasticidade demasiada ao conceito de "intenção" (expressão utilizada na legislação de seu país). Como referido pelo próprio professor: "el término ‘intención’ tiene que ser interpretado, a mi juicio, como sinónimo de dolo, es decir, en sentido amplio y no en su estricto sentido psicológico." (22)

Se STRATENWERTH refere que para a caracterização do dolo eventual é necessário que o sujeito haja tomado a sério a possibilidade de realização dos elementos objetivos do tipo, é porque se assim não for, se o agente não levar com seriedade tal possibilidade (de realização dos elementos objetivos), significa que ele, por alguma razão, realmente acreditava que o resultado não se concretizaria. Dolo é tomar ciência e querer os elementos objetivos previstos no tipo legal. Então, ao contrário, se o autor levasse a sério a possibilidade da realização dos elementos objetivos do tipo, e se diante disso, agisse, estaria configurado o dolo eventual.

No mesmo sentido que STRATENWERTH está JESCHECK (23), que em pensamento semelhante, afirma que "dolo eventual significa que el autor considera seriamente como posible la realización del tipo legal y se conforma com ella." O professor alemão refere que pertencem ao dolo eventual, de um lado, a consciência da existência do perigo concreto de que se realize o tipo e, de outro, a consideração séria deste perigo por parte do autor.

Enquanto isso, os espanhóis continuam discutindo a "semântica" do termo "intenção" que fora empregado em sua legislação. Cerezo MIR, refere que "las lenguas románicas la palabra ‘intención’ se utiliza tambíen en un sentido amplio, equivalente a ‘voluntariedad’ y, además, de interpretarse la palabra ‘intención’ en sentido estricto, se llegaría a consecuencias insatisfactorias desde el punto de vista político-criminal." (24)

O litígio semântico sobre o termo "intenção" possibilita que seja dado um conceito mais elástico à figura do dolo eventual, isso se a "intenção" for admitida em sua forma "lata". Com certeza, Cerezo MIR desconhece o perigo da elasticidade do conceito de dolo eventual. Ao contrário do que preconiza o ilustrado professor, a dilatação do conceito ou a sua interpretação em sentido amplo, se não utilizado em benefício do agente, fere os princípios basilares do Estado Social Constitucional Democrático de Direito, bem como a teoria do garantismo, desembocando numa política criminal meramente repressivista.

Existem, indubitavelmente, grandes dificuldades para a delimitação do dolo eventual e da culpa consciente. Percebe-se, com hialina clareza, que embora existam novas teorias que não refiram de forma expressa a necessidade do consentimento/anuência no resultado, estas, para fixarem os limites do dolo eventual, não dispensam o seu elemento volitivo, como fazem os defensores da teoria da probabilidade. Apenas a possibilidade, a representação (que existe também na culpa consciente) não basta para delimitar o dolo eventual.

O Código Penal brasileiro, em seu artigo 18, dispõe: "Diz-se o crime: I – doloso, quando o agente quis o resultado ou assumiu o risco de produzi-lo; II – culposo, quando o agente deu causa ao resultado por imprudência, negligência ou imperícia. § único - Salvo os casos expressos em lei, ninguém pode ser punido for fato previsto como crime, senão quando o pratica dolosamente." (25) (26)

Luiz REGIS PRADO, comentando o artigo, refere que no dolo eventual "o agente não quer diretamente a realização do tipo objetivo, mas aceita como provável ou possível – assume o risco da produção do resultado (teoria do consentimento – art. 18, I, in fine, CP). O agente conhece a probabilidade de que sua ação efetive o tipo. O que o caracteriza é a representação de um possível resultado. O Código Penal deu tratamento eqüipolente às duas espécies, devendo a distinção ser feita no momento da aplicação da pena."

Paulo José da COSTA Jr. (27), escorando-se na doutrina italiana, cita GALLO para referir que na culpa consciente há uma previsão negativa: o evento não se realizará. No dolo eventual, há uma previsão positiva: é possível que se verifique o evento. Por fim, COSTA Jr. diagnostica: "os elementos integrantes do dolo eventual são dois: a representação do resultado como possível e a anuência do agente à verificação do evento, assumindo o risco de produzi-lo." (28) (grifamos)

Ainda na doutrina pátria, cabe por em relevo a lição de Alberto SILVA FRANCO (29) que, corretamente, evidenciou os dois momentos exigidos pela teoria da vontade: "A conjugação da consciência e da vontade representa o cerne do dolo e esses dois momentos definidores não são estranhos ao dolo eventual que, como observa Diaz Palos, "es dolo antes que eventual (Dolo Penal, Barcelona, p. 97). E, por ser dolo e, desta forma, por exigir os dois momentos, não pode ser conceituado com o desprezo de um deles, como fazem os adeptos da teoria da probabilidade, que se desinteressam por completo o momento volitivo. Assim, não basta para que haja dolo eventual que o agente considere sumamente provável que, mediante seu comportamento, se realize o tipo, nem que atue consciente da possibilidade concreta de produzir o resultado, e nem mesmo que tome a sério o perigo de produzir possível conseqüência acessória. Não é exatamente no nível atingido pelas possibilidades de concretização do resultado que se poderá detectar o dolo eventual e, sim, numa determinada relação de vontade entre esse resultado e o agente. Daí a posição mais correta dos defensores da teoria do consentimento que se preocupam em identificar uma manifestação de vontade do agente em relação ao resultado." (grifo nosso)

José Frederico MARQUES (30) utiliza duas expressões para descrever a figura do dolo eventual, afirmando que "o agente prevê o resultado como possível e o admite como conseqüência de sua conduta, muito embora não queira propriamente atingi-lo." (grifamos)

A lição de Cláudio Heleno FRAGOSO (31) é repetida invariavelmente, no sentido de que a expressão "assumir o risco é imprecisa, para distinguir o dolo eventual da culpa consciente e deve ser interpretada em consonância com a teoria do consentimento."

Celso DELMANTO (32) afirmou que "no dolo eventual, não é suficiente que o agente se tenha conduzido de maneira a assumir o risco de produzir o resultado; exige-se, mais, que ele haja consentido no resultado." (grifamos)

Portanto, resta evidente que na caracterização do dolo eventual não basta que o agente se comporte somente assumindo o risco de produzir o evento. Também, sob nossa ótica, é requisito obrigatório o fator volitivo: concordância, anuência ao advento do resultado. Não resta outra alternativa, senão aderirmos a teoria do consentimento.


3. O PERIGO DA ELASTICIDADE DO CONCEITO DE DOLO
EVENTUAL E A FRUSTRADA TENTATIVA DE REDUZIR AS MORTES NO TRÂNSITO.

Teorias são defendidas e sofrem críticas e aplausos ao mesmo tempo. Isto está na essência da própria dogmática jurídica. In casu, a legislação brasileira adotou a teoria do consentimento para caracterizar o dolo eventual.

Ocorre que, quer se queira ou não, o espírito de vindicta ainda impera no coração da humanidade. Os familiares das vítimas do trânsito clamam por penas mais severas e o fim da denominada "impunidade".

Face a isso, como já se disse no pórtico deste estudo, existe uma tendência que, partindo de uma equivocada ilação jurídico-penal, cria o mais gravoso enquadramento jurídico nos casos de morte no trânsito.

A tendência em se enquadrar os crimes de trânsito na figura do dolo eventual foi evidenciada pelo Juiz do Tribunal de Alçada Criminal de São Paulo, Carlos BIASOTTI (33) que sabiamente se manifestou: "Em verdade, ainda que em números discretos, conhecem-se casos de motoristas que respondem a processo perante o Júri, por haver causado a morte de pedestres. Tê-la-iam causado por inobservância desmarcada de regras de trânsito, como: dirigir em estado de embriaguez, trafegar em velocidade incompatível com a segurança, desobedecer ao sinal fechado ou à parada obrigatória, disputar corrida por espírito de emulação etc. A essência da qualificação legal do crime, a acusação pública deduzira-a desta fórmula: o motorista que, naquelas condições, dirigia seu veículo, se não quis a morte da vítima (dolo direto), ao menos assumiu o risco de produzi-la (dolo indireto eventual). Pelo que, havendo cometido o crime dolosamente, deverá ser julgado pelo seu juiz natural: o Júri. Tal conclusão, que parece acautelada por sólido fundamento, desapresenta, no entanto, quando submetida ao crisol do raciocínio lógico, documento de seriedade: afeta encerrar silogismo inabalável, todavia é menos que uma operação fantástica do espírito, porque é um impudente sofisma (vênia!). Primeiro que o mais, a afirmação de que o autor de morte no trânsito, naquelas circunstâncias, deve ser julgado pelo Júri, porque praticou o delito dolosamente, contém falsa premissa. Deveras, não foi dolo o que aí pudera ter existido, nem sequer dolo eventual, senão culpa (ainda consciente). No dolo eventual, de feito, a doutrina imprimiu sempre esta nota conspícua: não basta a caracterizá-lo tenha o agente assumido o risco de produzir o resultado lesivo; necessita que nele haja consentido. Vindo ao nosso ponto: o motorista, de quem se afirmasse que obrara com dolo eventual, cumpria que, além de ter assumido o risco de causar a morte da vítima, com isso mesmo houvera concordado, o que repugna ao bom senso e afronta a lição da experiência vulgar." (grifamos)

Parece que diante da grande discussão sobre o tema, Lenio STRECK segue o caminho da razão e do novo paradigma do direito penal moderno, registrando que a figura do "dolo eventual não deve ser utilizada como pedagogia ou remédio contra a violência no trânsito". (34) Nesse sentido, como disse STRECK, o direito não deve ser aplicado hobbesianamente ou como bem acentuou BITENCOURT, o direito penal não serve como "panacéia de todos os males". (35)

Os movimentos demagógicos que pregam uma política meramente repressivista, mais das vezes ocos de conhecimento jurídico-penal, mesmo com apoio da mídia sensacionalista, não têm o condão de reformar a teoria geral do delito e a legislação. STRECK (36), citando Salo de CARVALHO, parece evidenciar tecnicamente o problema, referindo que "os movimentos de lei e ordem, na busca de um repressivismo saneador, optam por uma racionalidade material, pela qual nem mesmo os (mínimos) pressupostos dogmáticos do direito penal são preservados."

Na realidade, num planeta extremamente motorizado, a expressão empregada na legislação brasileira tornou-se inadequada. "Assumir o risco" é pouco. Em sentido lato, para "assumir o risco" basta sentar na direção de um veículo. Acreditamos que é preciso mais do que isso, sob pena de darmos demasiada elasticidade ao conceito e, assim, punirmos com o mesmo rigor não só o agente que agiu com dolo, mas até o motorista que agiu com culpa, como se em todos os crimes de trânsito com resultado morte estivesse presente o dolo eventual.

Tanto a legislação como a melhor doutrina, num olhar menos rasteiro, mais acurado e prospectivo, repelem tal postura, acreditando que o dolo eventual ainda é a exceção e a culpa strictu sensu é a regra.

O dolo eventual não é um "dolo de borracha". A elasticidade do conceito é tamanha que chegamos ao ponto de tentar caracterizar o dolo eventual em acidentes de trânsito, onde num raciocínio lógico, seria impossível admitir-se a presença do elemento volitivo.

HUNGRIA (37) já evidenciava essa perigosa elasticidade do conceito e chega a comentar um caso de tentativa de caracterização de dolo eventual em acidente de trânsito com choque frontal entre veículos: "...principalmente na justiça de primeira instância, há uma tendência para dar elasticidade ao conceito do dolo eventual. Dentre alguns casos, a cujo respeito fomos chamados a opinar, pode ser citado o seguinte: três rapazes apostaram e empreenderam uma corrida de automóveis pela estrada que liga as cidades gaúchas de Rio Grande e Pelotas. A certa altura, um dos competidores não pôde evitar que o seu carro abalroasse violentamente com outro que vinha em sentido contrário, resultando a morte do casal que nele viajava, enquanto o automobilista era levado em estado gravíssimo, para um hospital, onde só várias semanas depois conseguiu recuperar-se. Denunciados os três rapazes, vieram a ser pronunciados como co-autores de homicídio doloso, pois teriam assumido ex ante o risco das mortes ocorridas. Evidente o excesso de rigor: se estes houvessem previamente anuído a tal evento, teriam, necessariamente, consentido de antemão na eventual eliminação de suas próprias vidas, o que é inadmissível. Admita-se que tivessem previsto a possibilidade do acidente, mas, evidentemente, confiariam em sua boa fortuna, afastando de todo a hipótese de que ocorresse efetivamente. De outro modo, estariam competindo, in mente, estupidamente, para o próprio suicídio." (grifamos)

Existe evidente incompatibilidade entre o fato narrado e a teoria do consentimento, por nós aceita. HUNGRIA, já em 1978, evidenciava o que hoje vem acontecendo. Atualmente, vem se tentando dar o enquadramento doloso ao homicídio ocorrido no trânsito de forma tão elástica que, a figura do dolo eventual é utilizada até nos casos em que o veículo dirigido pelo agente colide frontalmente com o veículo conduzido pela vítima. Pensam que, se presentes os indícios de excesso de velocidade e embriaguez, a pronúncia é imperativa, até em caso de colisão frontal (numa ultrapassagem, por ex., sem que o agente estivesse em competição automobilística, vulgarmente chamada de "racha").

Assim, parece-nos por demais perigosa a elasticidade do conceito de dolo eventual nos acidentes de trânsito. Acreditamos, sinceramente, que ao colocar a sua própria vida em jogo, o agente que colide seu veículo contra o de outrem não poderia, num raciocínio óbvio, consentir ou anuir com o resultado. Impossível a presença do elemento volitivo no enquadramento fático referido. Impossível tolerar a produção do resultado. Impossível haver consentimento, anuência, pelo simples fato de que se o agente concordasse com o resultado morte da vítima, estaria ao mesmo tempo, consentindo com a sua (possível e também provável) morte.

Ora, se em casos de colisão frontal entre veículos, onde agente e vítima são encaminhados ao hospital com ferimentos graves (p. ex.), na análise deste sinuoso e complexo processo psicológico, houvesse o agente particularmente, em foro íntimo, previsto o acidente, teria ele consentido no resultado?

Será possível - pasme o leitor, se quiser - que o agente, no primeiro momento, tenha "assumido o risco" e, a posteriori "consentido", "admitido", "aprovado e tomado em compra" (parafraseando Wessels) que o seu automóvel colidisse frontalmente com outro veículo?

O que queremos dizer é que parece mais fácil se falar em dolo eventual (que não é a regra geral, frise-se) nos casos em que o agente atinge, lesionando ou causando-lhe a morte, um transeunte que se encontrava aguardando no passeio, ou quando o agente colhe um pedestre no acostamento, ou ainda, choca-se com um ciclista que trafegava na via pública. (38)

Agora, in colisão frontal ou semi-frontal de automóveis, falar-se em dolo eventual, onde seria necessário que o agente previsse e consentisse com o resultado, quando sabidamente seria provável que o próprio agente viesse a falecer conjuntamente com a vítima, data venia (!), seria darmos demasiada elasticidade ao conceito de dolo eventual. Além disso, no esteio da teoria do consentimento, adotada pelo Código Penal brasileiro, seria juridicamente impossível.

Se adotarmos a teoria da probabilidade, repelida por nós, até poderíamos admitir tal enquadramento. Descortina-se, então, a questão primordial do tema. Diante desta complexa relação entre dolo eventual versus culpa consciente devemos indagar, como já fez propiciamente STRECK (39): afinal, qual o posicionamento mais garantista?

Sem dúvida, não podemos abrir mão do elemento volitivo, pois este é elemento essencial do dolo e, também, do dolo eventual. Por isso, acreditamos que o posicionamento dogmático mais correto é a adoção da teoria da vontade. Isso, na perspectiva de termos um conceito menos elástico e mais garantidor da figura do dolo eventual.

Em seu conhecido manual, ZAFFARONI (40), ao lecionar sobre dolo eventual, fornece o seguinte exemplo: "Quem se lança numa competição automobilística de velocidade, numa cidade populosa, à custa da possibilidade de produção de um resultado lesivo, age igualmente com dolo eventual de homicídio, lesões e danos."

O perigo está em generalizarmos a figura do dolo eventual, como se pudéssemos adentrar no complexo processo psicológico de cada um dos agentes e como se todos raciocinassem de maneira igual. Parece que o reconhecido jurista do país co-irmão, está a contrastar a lei brasileira. (41) Alegar que no dolo eventual "não há uma aceitação do resultado como tal, e sim sua aceitação como possibilidade, como probabilidade" (42) é colidir com a legislação brasileira que, como insistentemente afirmamos, adotou a teoria do consentimento, exigindo mais que a aceitação como possibilidade, exigindo a anuência.

Ao menos, o jurista argentino confirma que o limite entre dolo eventual e a culpa com representação é um terreno movediço e conclui que "em nossa ciência, limite é dado pela aceitação ou rejeição da possibilidade de produção do resultado e, no campo processual, configura um problema de prova que, em caso de dúvida sobre a aceitação ou rejeição da possibilidade de produção do resultado, imporá ao Tribunal a consideração da existência de culpa, em razão do benefício da dúvida: in dubio pro reo." (43)

O caso da dúvida já havia sido referido por FRAGOSO e trazido à baila por STRECK, especialmente no caso dos crimes de trânsito.

Ora, se a distinção é tão tênue que COSTA e SILVA referiu que o dolo eventual é "o terreno em que entestam o dolo e a culpa" (44), FRAGOSO, após mencionar que ambas teorias sofrem críticas e ambas representam "esforço na formulação de critérios práticos para evidenciar o conteúdo psicológico da ação", só poderia afirmar que, "se subsistir dúvida em relação ao mesmo, deve-se admitir a hipótese menos grave de culpa consciente." (45) Este também é o posicionamento de COSTA Jr., asseverando que em caso de dúvida por parte do julgador, deverá ele "concluir pela solução menos rigorosa: a da culpa consciente." (46)


4. CONSIDERAÇÕES FINAIS À LUZ DO O ART. 302 DO
NOVO CÓDIGO DE TRÂNSITO BRASILEIRO.

Deixemos que se abram as portas para a verdade. Chega de falácias e sofismas!

Diga-se, então, que o dolo eventual nos crimes de trânsito é uma ficção jurídica utilizada fantasiosamente para compensar uma legislação inadequada e, assim, atender aos reclamos da mídia. Diga-se, ainda, que serve para acabar com aquilo que a mídia (odiosa imprensa leiga) e os profetas dos "movimentos", mais das vezes emulados pela mesquinhez de ideologias "baratas", classificam de impunidade. Mas, não se diga que, com base na teoria do delito existe fundamento jurídico plausível e consolidado sobre a demarcação do conceito de dolo eventual, mormente, no sentido amplo, chegando a cogitar-se que o agente consinta com seu possível suicídio. (47)

Escancaradamente, ao invés de mudar a própria lei penal, por intermédio do Poder Legiferante, que seria o caminho adequado, a Justiça, satisfazendo "ditos" interesses sociais está suprindo a carência da legislação com uma aplicação errônea do Direito.

Caminhamos rumo a um novo milênio e o Estado, face à falência da pena de prisão (48) - e isso é incontroverso - procura novas formas de punir. Procura-se, também, um Direito Penal progressista, liberalista, mínimo e garantidor. Fala-se em penas alternativas, discute-se a "ressocialização". (49) Há quem fale até, talvez com um pouco de utopia, em "situação problema" (ao invés de crime) e "abolicionismo penal", como Louk Hulsman e Nils Christie.

Portanto, totalmente equivocada e divorciada dos novos paradigmas do Direito Penal Moderno, a tentativa de se levar os crimes de trânsito ao plenário do júri e, com isso, aplicar reprimenda mais gravosa. Não podemos permitir que seja dada demasiada elasticidade à ficção jurídica dolus eventualis, nem que tripudiem sobre a teoria geral do delito, para suprir uma legislação inadequada ou para atender os "ditos" reclamos sociais. (50)

A motorizada sociedade da pressa teve pressa em punir. Não conseguiu aguardar a atitude do Poder Legislativo. Uma equivocada visão de política criminal que, ao invés de lutar pelo Direito e pela Justiça, trabalhando na (re)construção de um Estado Social Constitucional Democrático de Direito cada vez mais garantista (51) (mínima aflitividade à maioria dos desviados e máxima seguridade à maioria dos não-desviados) e na reforma da lei penal, optou por deturpar conceitos legais para atender tão somente aos reclamos ditos sociais.

Na tentativa de dar-se aos crimes de trânsito o enquadramento do dolo eventual, podemos estar criando perigosamente uma representação genérica ao invés de uma previsão específica, como leciona o moderno posicionamento do Direito Penal mínimo e garantista.

O recente Código de Trânsito Brasileiro, legislação tão esperada e que traz para si a matéria face ao princípio da especialidade, não adotou o dolo eventual como regra geral. Todavia, aumentou a pena do homicídio culposo (vide artigo 302 da Lei nº. 9.503/97). (52)

A verdade é que o novo Código, tido como instrumento "moderno" e "severo" aos olhos da mídia e "controvertido" e "incongruente" no olhar da doutrina, não optou pelo dolo eventual. Não poderia ser diferente. A lição mais comezinha em Direito Penal, a primeira que se aprende nos bancos acadêmicos, é a de que não se pode presumir a culpa (Nulla poena sine culpa). Se fosse elaborado um novo tipo penal descrevendo a conduta a título de dolo, estaríamos diante de uma presunção de dolo eventual. Mas, como sabemos, o nosso Direito repele a culpa presumida e, cientes de que em nenhum caso haverá presunção de culpa, o que dizer então de presunção de dolo?

Tentou-se, com o novo Código, dar a resposta que a sociedade esperava. Aumentou-se a pena, mas o homicídio no trânsito continua sendo, em regra, culposo. Os defensores do dolo eventual perderam sua oportunidade. O discurso da tentativa de se levar os crimes de trânsito com resultado morte ao Tribunal do Júri estiolou-se em si mesmo. E a sociedade que é leiga, vibra e aplaude o aumento da pena do homicídio culposo no trânsito, quando na verdade o aumento é benévolo a todos aqueles que têm sido (equivocadamente, salvo juízo melhor) enquadrados no dolo eventual. A sociedade quer "Justiça", mas como disse Chaim PERELMAN, "es ilusorio querer enumerar todos los sentidos posibles de la noción de justicia." (53)

O problema é que nem a alteração legislativa conseguiu deslindar a questão. Aliás, a verdadeira batalha não é pela reforma da legislação, mas pela reforma do costume, como já dizia CARNELUTTI (54). O artigo 302 do Código de Trânsito Brasileiro estabelece uma pena em abstrato de dois e quatro anos de detenção ao homicídio culposo praticado na direção de veículo. O mesmo homicídio culposo, está previsto no artigo 121, § 3° do Código Penal, fixando, in abstracto, a pena de um a três anos de detenção.

Logo após a publicação do Código, Rui STOCO (55) observou "a exacerbação da pena no homicídio culposo praticado na direção de veículo automotor, em comparação com o mesmo delito, cometido em outras circunstâncias." O conceituado jurista refere que este tratamento distinto e exacerbado não parece possível. STOCO (56) leciona que "o que impende considerar é a maior ou menor gravidade da conduta erigida à condição de crime e não nas circunstâncias em que este foi praticado ou os meios utilizados."

Ao final, STOCO se opõe ao novo dispositivo, haja vista que "nada justifica que para a mesma figura penal a pena-base seja diversa. Tal ofende o princípio constitucional da isonomia, e o direito subjetivo do réu a um tratamento igualitário." (57)

A afirmação de STOCO não nos convenceu plenamente. Concordamos com BITENCOURT (58) que, discordando de STOCO sustenta a constitucionalidade do referido dispositivo, alertando que "é indiscutível que o desvalor da ação, hoje, tem uma importância fundamental, ao lado do desvalor do resultado, na integração do conteúdo da antijuridicidade".

A polêmica sobre o dispositivo 302 do CTB está levantada. Não cabe a nós o julgamento da constitucionalidade do referido artigo. Todavia, se considerado válido o dispositivo, acreditamos que o "jeitinho" de se punir o delinqüente de trânsito com o mesmo rigor que o delinqüente que dispara uma arma de fogo, terminará. Será o enterro do dolo eventual nos homicídios de trânsito. Se inconstitucional, como quer STOCO, resta-nos apenas a lição deixada pela lendária figura do "legislador" (59) que, ao contrário de adotar a figura do dolo eventual, aumentou a pena do homicídio culposo.

Caberá aos nossos Julgadores – no papel de Juiz verdadeiramente criminal - a incumbência de decidir sobre a aplicabilidade ou não do dispositivo. (60) Os grandes dogmatas hão de se manifestar. Torcemos pela preservação do bom senso e pela razão jurídica, afastando-se a hipérbole do clamor social. A resposta só pode ser uma. A doutrina e a jurisprudência admitem a punição a título de culpa com qualquer intensidade de imprudência ou negligência. Por isso, nos crimes culposos o tipo é "aberto", cabendo ao Magistrado, in casu, identificando o grau de dever de cuidado imposto ao agente, "fechá-lo", determinando ou não o injusto típico.

Destaca-se, por fim, que não só na "verdade fática" deve o Julgador, em caso de dúvida escolher a tese que mais favoreça ao Réu, mas sim também na "verdade jurídica". Diante de toda esta complexa discussão e da dificuldade probatória, a solução não pode ser outra senão do reconhecimento de um homicídio culposo. O contrário, seria ferretear para todo o sempre o constitucional princípio de presunção de inocência: "in dubio pro reo".


NOTAS

  1. Artigo publicado originariamente na Revista dos Tribunais n° 576/461. O assunto mereceu destaque na nova edição da obra do autor, que fez questão de arrolar decisões sobre o tema, as quais, à evidência, na hipótese de reprodução, não prescindem do contexto fático do qual emergiram. Veja-se Tribunal do júri: símbolos e rituais, 3 ed., POA, Livraria do Advogado, 1997, p. 153 e segs.
  2. Derecho Penal aleman, Santiago de Chile, Ed. Juridica de Chile, 1993, p. 83.
  3. Cfe. Comentários ao Código Penal, v. I, t. II, RJ, Forense, 1958, p. 116.
  4. Direito Penal: parte geral, POA, Fabris, 1976, p. 52.
  5. Teoria geral do delito, POA, Fabris, 1988, p. 60.
  6. Teoria geral do delito, RJ, RT, 1997, p. 112.
  7. In ob. cit., Comentários ao Código Penal, p. 116-117.
  8. Jescheck fala em três teorias: teoria da probabilidade, teoria da possibilidade (teoria do risco) (que seriam as teorias da representação) e teoria do consentimento (Cfe. Tratado de Derecho Penal: parte general, 4 ed., Granada, Comares editorial, 1993, p. 271-272). Destacamos, ainda, que a teoria do consentimento poderá ser, cfe. Frank, hipotética ou positiva, como bem expõem em sua análise crítica, Manuel Cobo del Rosal e Vives Anton, in Derecho Penal: parte general, 4 ed. Valencia, Tirant lo Blanch, 1996, p. 564. Também não desconhecemos a moderna doutrina alemã de Roxin e Hassemer, teoria do consentimento ou do dolo de decisão, quando o agente tem que, necessariamente, lesionar o bem jurídico.
  9. Somente à guisa de curiosidade, destacamos que a questão também é levantada pelos professores italianos. Giorgio Licci analisa a construção do "dolo evetuale" como figura limite e, refere a problemática da teoria da vontade e da representação. O professor italiano chega a analisar a o dolo eventual no contexto de uma revisão teórica do quadro epistemológico. Licci fala que a demarcação do dolo eventual e culpa consciente haverá de passar pela resposta do indivíduo a uma situação, resposta profundamente condicionada aos fatores "endogeni" e "esogeni". Vemos aí a dificuldade da questão. Confira-se em "Dolo eventuale", Rivista Italiana di Diritto e Procedura Penale, Milano, v.33, n. 4, p. 1.498-1.514, ott./dic. 1990. Confira-se, também, o artigo de Giovannangelo de Francesco, Dolo eventuale e colpa consciente, Rivista Italiana di Diritto e Procedura Penale, Milano, v. 31, n. 1, p. 113-165, gen./mar, 1988.
  10. Tal fato não é peculiaridade somente nos pretórios brasileiros. Enrique Bacigalupo, em sua obra Principios del Derecho Penal: parte general, 3 ed., Madrid, Akal Ediciones, 1994, p. 136, cita Gimbernat, para dizer que o critério jurisprudencial espanhol é confuso, mencionando decisões do Supremo Tribunal utilizando as duas teorias. Vide também Muñoz Conde e Garcia Arán, Derecho Penal: parte general, 2 ed., Tirant lo Blanch, 1996, p. 251.
  11. In ob. cit., Principios de Derecho Penal: parte general, p. 135.
  12. Confira-se in Muñoz Conde e Garcia Arán, ob. cit., Derecho Penal: parte general, p. 251.
  13. In ob. cit., Princípios del Derecho Penal: parte general, p. 136.
  14. Na caracterização do dolo eventual em acidente de trânsito que deu causa a homicídio, já que não se pode ingressar no complexo processo psicológico do agente, será necessário que se realize um exaustivo exame da moldura fático-probatória do contexto dos autos. Encontramos aqui certa dificuldade. Mais das vezes, a questão probatória é complicada, face aos depoimentos de vítimas e testemunhas. Nós, seres humanos, carregamos uma natural vulnerabilidade à hipérbole da emocionalidade, sempre presente em acontecimentos traumáticos e, além disso, trazemos, cada um de nós, uma diversa introjeção e análise subjetiva dos fatos. Isto, acumulado a pressão realizada pela mídia poderá, in these, acarretar até o "linchamento moral" do agente que escapou do "linchamento físico". O julgador deve sopesar os elementos probatórios de forma serena, o clamor social não está acima da lei. Aliás, o grande tratadista da prova, Mittermayer, lecionando sobre a devida prudência que o Magistrado deve ter para apreciar a prova testemunhal, refere que para se dar credibilidade ao depoente, este deve "mostrar-se firme, verídico e surdo a todas as influências exteriores" (in C. J. A. Mittermayer, Tratado da prova em matéria criminal, 3ª. ed., RJ, Jacintho Ribeiro dos Santos, 1917, p. 422).
  15. In ob. cit., Derecho Penal: parte general, p. 76.
  16. In ob. cit., Teoria geral do delito, p. 60. O autor faz questão de frisar que a favor desta teoria estão penalistas consagrados: Anton Oneca, Luís Jiménez de Asúa, Rosal, Cuello, Cobo-Vives... E, em nota de rodapé, Juarez Tavares acrescenta: "O Código Penal brasileiro, ao conceituar o dolo no art. 18, I, equipara, para efeitos de mesmo tratamento, o dolo direto e o dolo eventual. Quando a este, adota o critério da "assunção do risco", constante no Projeto Gürtner de 1933 para o III Reich. Embora definindo o dolo, o legislador não esclareceu definitivamente sua diferença da culpa ou negligência. A doutrina, porém, e de certo modo a jurisprudência têm seguido os critérios da teoria do consentimento (Anibal Bruno, Fragoso, Hungria)." (in ob. cit., p. 61)
  17. Ob. cit., Derecho Penal: parte general, p. 249-250.
  18. In El dolo eventual, Valência, Tirant lo Blanch, 1994, p. 168-169.
  19. Cfe. ob. cit., Direito Penal: parte geral, p. 52-53.
  20. Curso de Derecho Penal español: parte general, v. II, Teoría juridica del delito, 5 ed., Madrid, Tecnos, 1997, p. 142-143.
  21. Ob. cit., Derecho Penal: parte general, p. 567, in verbis: "Existen indubitables dificultades semánticas para la inclusión del dolo eventual en el seno de la intención, pues la intención es, en su sentido más proprio, determinación de la voluntad en orden a un finy, precisamente, lo característico del dolo eventual es que la producción del resultado antijurídico no aparece como un fin alque se dirija la voluntad del agente. Pero, a partir de esse estricto del término ‘intención’, habría que incluir en la imprudencia no sólo el dolo eventual, sino también el dolo directo de segundo grado, porque tampoco en él el evento antijurídico constituye el fin al que se dirige la voluntad. Esta inaceptable conclusión obliga a pensar que, en la legislación española, se há utilizado el término ‘intención’ en su acepción lata, para designar la relación entre el querer y su objeto. ..."
  22. Cfe. ob. cit., Curso de Derecho Penal español, p. 145.
  23. Ob. cit., Tratado de Derecho Penal: parte general, p. 269. Jescheck esclarece ainda que "considerar en serio el peligro quiere decir que el autor calcula como relativamente alto el riesgo de la realización del tipo. De este modo se obtiene la referencia a la magnytud y proximidad del peligro, necesaria para acreditación del dolo eventual."
  24. In ob. cit., Curso de Derecho Penal español, p. 145.
  25. Para José Cirilo de Vargas a questão é simples. Em sua recente obra, Instituições de Direito Penal: parte geral, t. I, Belo Horizonte, Del Rey, 1997, p. 277, o autor não viu a necessidade de abrir espaço ao tema espécies de dolo e, justifica-se alegando que dolo ou "é sempre vontade do resultado, ou sempre assunção do risco do resultado, dolo é direto ou eventual, nos exatos termos em que a lei coloca, sendo que a lei é a referência."
  26. Confira-se in RT 607: 274. Consigne-se, ainda, que a exposição de motivos do Código Penal, adotando o ponto-de-vista de HUNGRIA, esclareceu que "assumir o risco é alguma coisa mais do que ter consciência de correr o risco: é consentir previamente no resultado, caso venha este, realmente, a ocorrer."
  27. Comentários ao Código Penal, 4 ed., SP, Saraiva, 1996, p. 75.
  28. Cfe. ob. cit., Comentários ao Código Penal, p. 75.
  29. Código Penal e sua interpretação jurisprudencial, 5ª. ed., SP, RT, 1995, p. 205.
  30. Cfe. Tratado de Direito Penal, v. II, Campinas, Bookseller, 1997, p. 260.
  31. Lições de Direito Penal, 15ª ed., RJ, Forense, 1994, p. 173-174. Vide também a obra de Lenio Streck, ob. cit., Tribunal do júri: símbolos e rituais, p. 157.
  32. Código Penal comentado, 3ª. ed., Rio de Janeiro, Renovar, 1991, p. 30.
  33. Cfe. excelente artigo, Morte no trânsito: homicídio doloso?, Temas Atuais de Advocacia Criminal, SP, Escola de advocacia criminal, p. 96 e segs.
  34. Ob. cit., Tribunal do júri: símbolos e rituais, p. 155. Cfe. o autor: "Dito de outro modo, o operador do direito, em face dos delitos de trânsito, embora graves, não deve ser obrigado a optar entre ‘civilização’, representada pela adoção do dolo eventual – de onde exsurgirão punições rigorosas – e a ‘barbárie’, representada pelos milhares de crimes praticados cotidianamente. Isto porque é nas crises e nos casos limites que o Direito Penal e a própria teoria do delito são colocados em xeque. ..."
  35. A expressão é bem utilizada por Bitencourt, Princípios garantistas e a delinqüência de colarinho branco, in Revista brasileira de ciências criminais, SP, RT, 1995, n° . 11, p. 118.
  36. Ob. cit., Tribunal do júri: símbolos e rituais, p. 155.
  37. Ob. cit., Comentários ao Código Penal, p. 544. Vide também o livro do professor da UFRGS, Frederico Abrahão de Oliveira, Dolo e culpa nos delitos de trânsito, POA, Sagra, 1997, p. 51-52.
  38. A figura do dolo eventual começou a ser usada nestes casos. Veja-se: "Dolo eventual. Acidente de trânsito. Colher pedestre em acostamento, em velocidade excessiva, após tentativa de ultrapassagem em local proibido, caracteriza dolo eventual, sendo contrária à prova dos autos decisão dos jurados que desclassifica o fato para homicídio culposo. Embargos desacolhidos, por maioria. (Embargos Infringentes nº 695055400, 2º Grupo Criminal do TJRGS, Estrela, 16.06.95)"
  39. Ob. cit., Tribunal do júri: símbolos e rituais, p. 155.
  40. In Manual de Derecho Penal: parte general, 6 ed., Buenos Aires, Ediar, 1997, p. 420. Vide também, Zaffaroni e Pierangelli, in recente Manual de Direito Penal brasileiro: parte geral, SP, RT, 1997, p. 501-502.
  41. Zaffaroni e Pierangelli não tiveram sorte na exemplificação da matéria. Até se compreende que em certos casos, principalmente nos "rachas", o agente possa, extrapolando o senso comum, em casos limites, anuir no resultado (teoria do consentimento). Com efeito, isso não pode ser tratado como um dogma, uma verdade absoluta, sob pena de termos que admitir absurdos como a anuência em colisão frontal, amplamente exposta em nosso trabalho. O que não se admite é a padronização, a estereotipação in malam partem.
  42. In ob. cit., Manual de Direito Penal brasileiro, p. 501.
  43. In ob. cit., Manual de Direito Penal brasileiro, p. 502.
  44. Apud Frederico Marques, ob. cit., p. 260.
  45. Heleno Cláudio Fragoso, ob. cit., Lições de Direito Penal, p. 173-174. No mesmo sentido, Lenio Streck, in ob. cit., Tribunal do júri: símbolos e rituais, p. 157.
  46. Ob. cit., Comentários ao Código Penal, p. 76.
  47. Recentemente a segunda Turma do Supremo Tribunal Superior deferiu habeas corpus para anular acórdão do tribunal de Justiça do Estado de Rondônia, que confirmara sentença de pronúncia do paciente, envolvido em acidente de trânsito com vítima fatal, considerado o dolo eventual e desclassificar o crime para homicídio culposo. Entendeu-se que o paciente, trafegando na contra-mão, em cidade na qual residia há pouco tempo, sem o domínio maior do sentido dos logradouros, não assumira, conscientemente, a possibilidade de produzir o evento morte. Vencidos os ministros Néri da Silveira e Carlos Velloso que, considerando necessário o reexame de provas, indeferiram o writ. (HC n° 76.778-RO, 2ª Turma, Rel. Min. Marco Aurélio, j. 28.04.98) (vide também in Boletim do IBCCrim n° 67, junho/98, p. 261)
  48. Confira-se a excelente obra de Cezar Roberto Bitencourt, Falência da pena de prisão: causas e alternativas, RJ, RT, 1993. Veja-se, à guisa de informação, Antonio Sánches Galindo, El derecho a la readaptación social, Buenos Aires, Depalma, 1983.
  49. Toma-se, in exemplis, a Lei nº. 9.099/95 que, embora não desconhecemos suas imperfeições, instituiu em nosso direito processual penal algumas medidas que servem como paradigmas para um novo Direito Penal, um Direito Penal Mínimo e Humano.
  50. Nesse sentido, vale trazer à baila o seguinte decisório: "Dolo eventual. Acidente de trânsito. Para atender reclamos sociais contra aquilo que denominam de impunidade pelas penas brandas em acidente de veículo, a jurisprudência tem aceitado a tese do dolo eventual em que o agente, depois de beber grande quantidade de cerveja, em casa noturna, sai em velocidade elevada e abalroa outro veículo estacionado, ferindo várias pessoas. Apelo improvido. Condenação mantida. (Apelação Crime nº 694035692, 4ª Câmara Criminal do TJRGS, Carazinho, 23.06.94)" Em sentido oposto está o Tribunal de Justiça Mineiro (Recurso em sentido Estrito n° 75.631/2, 2ª Câmara Criminal, Relator Des. Alves de Andrade, pub. no Diário do Judiciário de Minas Gerais, Belo Horizonte, em 20.02.1997, fl. 01): "Despronúncia. Delitos de trânsito. Elemento subjetivo. Dolo eventual. Culpa consciente. Clamor social. Segurança nas relações jurídicas. Divisão de poderes. Age sob modalidade de culpa consciente e não dolo eventual o condutor do veículo que, mesmo inabilitado, em velocidade excessiva e apresentando sintomas de embriaguez, atropela pedestre, não se podendo dizer que o mesmo quis ou admitiu positivamente que o resultado se produzisse. A atividade jurisdicional não pode sofrer injunções ditadas pelo clamor social que emerge de certos delitos de trânsito, sob pena de instalar-se a insegurança jurídica, extrapolando o Julgador suas funções para transformar-se também em legislador, em afronta à divisão tripartite de Poderes." Do corpo do acórdão destacamos: "O clamor social que o trágico evento deflagrou, traduzido em manifestações populares, no sentido da punição do responsável é perfeitamente compreensível. Merece o acusado receber as conseqüências de sua reprovável conduta, de acordo com o direito positivo aplicável. Todavia, o Juiz não pode transmudar seu papel, de interprete da lei para legislador. ..."
    Inadmissível que o judiciário, embalado pela comoção e revolta popular, arroste a legislação pertinente ou faça sua aplicação conforme a repercussão que o fato suscitar no meio coletivo. Seria a instalação do caos e da insegurança jurídica, a mesma que reinava antes do racionalismo implantado pela revolução francesa."
  51. Utilizamos a expressão "garantista" em atenção ao "sistema de garantias ou garantismo", muito bem colocado por Luigi Ferrajoli, in Derecho y razón: teoria del garantismo penal, Madrid, Trotta, 1997. Ferrajoli, explica as três acepções do garantismo. Garantismo como estado de direito: níveis de normas e níveis de deslegitimação, garantismo como teoria do direito e crítica do direito e, ainda, o garantismo como filosofia do direito e filosofia política. O garantismo é um modelo de direito. Segundo Ferrajoli "el estado de derecho: gobierno ‘per leges’ y gobierno ‘sub lege’. Legitimación formal y legitimación sustancial. En la primera de las tres acepciones que se han distinguido, el ‘garantismo’ es el principal rasgo funcional de esa formación moderna específica que es el estado de derecho."
  52. Um projeto do Código de Trânsito Brasileiro trazia em seu bojo o seguinte artigo: "Art. 301: O art. 121 do Decreto-lei nº. 2.848, de 7 de dezembro de 1940, passa a vigorar acrescido do seguinte § 6º: Art. 121. ... ... § 6º. No homicídio culposo, ocorrido em acidente de trânsito, dobram-se as penas se o agente: I - encontra-se em estado de embriaguez ou sob efeitos de substância entorpecente ou que determine dependência física ou psíquica; ..." Ao que tudo indica, terminaria aqui o lamentável equívoco do dolo eventual. Ocorre que, a redação final foi exposta no artigo 302 do Código em vigor: "Art. 302. Praticar homicídio culposo na direção de veículo automotor: Penas: detenção, de dois a quatro anos, e suspensão ou proibição de se obter permissão ou a habilitação para dirigir veículo automotor. Parágrafo único: No homicídio culposo cometido na direção de veículo automotor, a pena é aumentada de um terço à metade, se o agente: I – não possuir permissão para dirigir ou carteira de habilitação; II – praticá-lo em faixa de pedestre ou na calçada; III – deixar de prestar socorro, quando possível fazê-lo sem risco pessoal, à vítima do acidente; IV – no exercício de sua profissão ou atividade, estiver conduzindo veículo de transporte de passageiros."
  53. In De la justicia, México: Universidad Nacional Autónoma del México, Centro de Estudos Filosóficos, 1964, Cuaderno 14, p. 16.
  54. In As misérias do processo penal, Campinas, Conan, 1995, p. 70.
  55. In Código de Trânsito Brasileiro: disposições penais e suas incongruências, Boletim do IBCCrim, ano5, n. 61, p. 9, dez., 1997.
  56. In art. cit., Código de Trânsito Brasileiro: disposições penais e suas incongruências, p. 9.
  57. In art. cit., Código de Trânsito Brasileiro: disposições penais e suas incongruências, p. 9.
  58. In Desvalor da ação e desvalor do resultado nos crimes culposos de trânsito, Boletim do IBCCrim, ano 6, n. 64, p. 14, mar., 1998.
  59. Quando nos referimos à figura do "legislador" (propositadamente entre aspas), o fazemos no mesmo sentido que Lenio Streck. Estamos cientes da problemática do "mito do legislador racional" e de suas "treze características" e, ainda, de que a expressão mais correta seria Poder Legislativo ou Poder legiferante. Em sua obra citada, Tribunal do júri: símbolos e rituais, p. 22, o autor esclarece, em nota de rodapé: "Quando me refiro à figura do ‘legislador’, estou ciente da problemática relacionada ao ‘mito do legislador racional’ e suas ‘treze características’, muito bem enfocadas e ironizadas - por Santiago Nino e Ferraz Jr. Trata-se, conforme Ferraz Jr., ‘de uma construção dogmática que não se confunde com o legislador normativo (o ato juridicamente competente conforme o ordenamento) nem com legislador real (a vontade que de fato positiva normas). É uma figura intermédia, que funciona como um terceiro metalingüístico em face da língua normativa (LN) e da língua-realidade (LR). A ele a hermenêutica se reporta quando fala que ‘o legislador pretende que...’, ‘a intenção do legislador é que...’ ou mesmo ‘a mens legis nos diz que...’." Confira-se, também, Tércio Sampaio Ferraz Jr., Introdução ao estudo do Direito, SP, Atlas, 1989, p. 254-255.
  60. Nesse sentido, é digno de destaque o artigo da lavra do Juiz Walter Fanganiello Maierovitch, publicado no Jornal Estado de S. Paulo, em 27.03.91, p. 2, reproduzido por Alberto Silva Franco, in Crimes Hediondos, 2ª. ed., RJ, RT, 1992, p. 45: "O perfil do Juiz Criminal, na perspectiva do movimento da lei e da ordem, é o de uma pessoa totalmente empenhada no combate, sem quartel, à criminalidade, na defesa dos ‘homens decentes’ que nunca delinqüem, na proteção da parcela ‘sadia’ da sociedade, na aplicação cada vez mais severa do poder punitivo estatal (penas privativas de liberdade longas e pena de morte), no encurtamento dos direitos e garantias processuais, na diminuição dos controles judiciais da execução da pena, enfim, no comprometimento ideológico com o establishment. ... A missão do juiz criminal é bem outra: é exercer a função criativa nas balizas da norma incriminadora, é infundir, em relação a determinadas normas punitivas, o sopro do social; é zelar para que a lei ordinária nunca elimine o núcleo essencial dos direitos do cidadão; é garantir a ampla e efetiva defesa, o contraditório e a isonomia de oportunidades, favorecendo o concreto exercício da função da defesa; é invalidar as provas obtidas com a violação da autonomia ética da pessoa; é livrar-se do circulo fechado do dogmatismo conceitual, abrindo-se ao contato das demais ciências humanas e sociais; é compatibilizar o Estado de Direito com o Estado social que lhe é subjacente; é em resumo ser o garante da dignidade da pessoa humana e da estrita legalidade do processo."

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Autor

  • Alexandre Wunderlich

    Alexandre Wunderlich

    advogado criminal, especialista e mestre em Ciências Criminais (PUC/RS), professor de Direito Penal da pós-graduação da PUC/RS e UFRGS

    é também presidente do Instituto Transdisciplinar de Estudos Criminais, professor de Direito Penal da Escola Superior da Magistratura (AJURIS) e professor de Direito Penal da Escola Superior de Advocacia/RS.

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WUNDERLICH, Alexandre. O dolo eventual nos homicídios de trânsito: uma tentativa frustrada. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 5, n. 43, 1 jul. 2000. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/1732. Acesso em: 29 mar. 2024.