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Homicídio e lesão corporal: forma culposa qualificada no CTB

Homicídio e lesão corporal: forma culposa qualificada no CTB

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O Código de Trânsito Brasileiro (Lei nº. 9.503, de 23 de setembro de 1997) inovou no sistema penal brasileiro, ao trazer uma seção que enumera os crimes de trânsito em espécie (arts. 302 a 312). Destes novos tipos penais, destacam-se dois, por se tratarem de importantes crimes já capitulados no Código Penal, mas agora qualificados pela nota específica de serem cometidos "na direção de veículo automotor". São eles o homicídio culposo (art. 302) e a lesão corporal culposa (art. 303).

Com isso, o legislador dividiu o homicídio culposo em dois tipos distintos, um primitivo e outro dele derivado, cada qual com pena própria: o homicídio culposo "normal" (CP, art. 121, §§3º a 5º) e uma nova espécie de homicídio culposo, qualificado por ser praticado "na direção de veículo automotor" (CTB, art. 302). O mesmo ocorreu com o delito de lesão corporal culposa, que passou a ter um tipo "normal" (CP, art. 129, §6º) e um novo tipo qualificado (CTB, art. 303).


Objeto jurídico, tipos objetivo e subjetivo

O caput do art. 302 do CTB dispõe: "Praticar homicídio culposo na direção de veículo automotor: Penas – detenção, de 2 (dois) a 4 (quatro) anos, e suspensão ou proibição de se obter a permissão ou a habilitação para dirigir veículo automotor". A pena é mais severa que a do homicídio "normal", que é de detenção, de 1 a 3 anos.

Analogamente, diz o art. 303 do CTB: "Praticar lesão corporal culposa na direção de veículo automotor: Penas – detenção, de 6 (seis) meses a 2 (dois) anos, e suspensão ou proibição de se obter a permissão ou a habilitação para dirigir veículo automotor". No crime previsto no CP, a pena continua sendo de detenção, de 2 meses a 1 ano.

O conceito de veículo automotor é dado pelo Anexo I do CTB: "Todo veículo a motor de propulsão que circule por seus próprios meios, e que serve normalmente para o transporte viário de pessoas e coisas, ou para a tração viária de veículos utilizados para o transporte de pessoas e coisas". Não se incluem neste conceito os veículos de propulsão humana (bicicletas, patinetes) e animal (carroças, animais), bem como os que não utilizam vias terrestres (embarcações em geral, aeronaves).

As novas regras não são aplicáveis a qualquer delito ocorrido no trânsito, mas tão somente para os cometidos "na direção de veículo automotor". Assim, se um pedestre ou ciclista provoque um acidente de trânsito, no qual um motociclista saia gravemente ferido, o agente responde pelas penas do CP, e não do CTB (1).

Ambos os casos de homicídio culposo têm o mesmo objeto jurídico (a vida humana), o mesmo tipo objetivo (matar alguém) e o mesmo tipo subjetivo (culpa). A diferença reside somente no fato de que o homicídio culposo do CBT possui um elemento normativo, especializante de modo ("na direção de veículo automotor") que, por força do princípio da especialidade, prevalece caso o fato típico ocorra nestas circunstâncias. Enquanto isso, o homicídio do CP permanece como tipo penal de forma livre. Algo semelhante ocorre com o delito de lesão corporal, em que ambos os casos o objeto jurídico é a incolumidade física.

Acrescente-se que a criação destas duas figuras culposas qualificadas no CTB constitui uma derrota dos militantes da possibilidade da incidência do dolo eventual nos crimes de trânsito, que perderam uma boa oportunidade de verem sua teoria respaldada em lei. O CTB, embora tenha inovado ao enumerar os crimes de trânsito, fixando-lhes penas severas, não reconheceu as figuras típicas de homicídio e lesão corporal culposos praticados com dolo eventual.


Imprecisão técnica na descrição dos tipos

A nova lei apresenta uma imprecisão na descrição dos tipos penais, por serem descritas utilizando o próprio nomen juris da conduta. Em verdade, o núcleo do crime de homicídio não é "praticar homicídio", mas "matar alguém". O ideal seria se o novo tipo fosse descrito como "causar a morte de alguém, culposamente, na direção de veículo automotor". Da mesma forma, o tipo do art. 303 restaria mais claro como "ofender a integridade corporal ou a saúde de outrem, culposamente, na direção de veículo automotor".

Tratar de crimes cujo resultado é idêntico a outros já existentes no Código Penal, em legislação autônoma, não parece de boa técnica, por romper a sistemática do ordenamento jurídico-penal. O ideal, em vez de criar qualificadoras em um novo diploma legal, seria simplesmente fazer inserir, em um dos parágrafos dos arts. 121 e 129 do CP, uma qualificadora ou mesmo uma nova causa de agravamento de pena da forma culposa pela circunstância de seu cometimento "na direção de veículo automotor".

Em verdade, a sobredita imprecisão terminológica, na referência direta ao nomen juris decorre exatamente do fato de não estarem as qualificadoras contidas no mesmo dispositivo do tipo principal.


Gravidade dos crimes e proporcionalidade das penas

No mais, é questionável o objetivo da lei de tratar mais gravemente os crimes cometidos nestas circunstâncias. A nova lei estabelece uma presunção juris et de jure de que o homicídio cometido na direção de um automóvel é sempre de maior potencial ofensivo que qualquer outro culposo. Contudo, há casos de homicídios culposos "normais" que revelam um grau de culpa muito mais intenso do que o do caso específico previsto no CBT, e nem por isso merecem tratamento mais gravoso.

Por exemplo: se uma pessoa provoca a morte de outra em razão de imprudência na utilização de arma de fogo, ou de grave falha técnica na elaboração de um projeto estrutural de uma construção, ou na realização de uma cirurgia sem a devida qualificação profissional, tal agente incidirá sempre nas penas do homicídio culposo do CP. Enquanto isso, um sensato motorista que venha a cometer um deslize na direção de seu automóvel, atropelando alguém, responderá pelas sanções mais graves do CTB. Surge, assim, uma desnecessária desproporção, ferindo o princípio da razoabilidade na aplicação das penas (2).

Segundo Rui Stoco (3), "o que impende considerar é a maior ou menor gravidade da conduta erigida à condição de crime e não as circunstâncias em que este foi realizado ou os meios utilizados. (...) Nada justifica que para a mesma figura penal a pena-base seja diversa. Tal ofende o princípio constitucional da isonomia, e o direito subjetivo do réu a um tratamento igualitário".


Pena cumulativa

Tanto no art. 302 como no 303 do CTB, não só foi aumentada a duração da pena privativa de liberdade em relação ao tipo simples do CP, como também foi cominada, de forma cumulativa, uma nova pena restritiva de direitos ("suspensão ou proibição de se obter a permissão ou a habilitação para dirigir veículo automotor"). Esta pena atinge tanto as pessoas que já possuem permissão ou habilitação para dirigir, que ficam com este direito suspenso, como as que ainda não possuem permissão para dirigir, que ficam proibidas de obtê-la. O art. 293 do CBT determina que esta restrição terá duração de 2 meses a 5 anos, e que este prazo não será contado enquanto o sentenciado estiver recolhido a estabelecimento prisional.

Na verdade, não houve inovação. Anteriormente ao CTB, já existia pena restritiva de direitos semelhante no CP, insculpida no seu art. 47, III ("suspensão de autorização ou de habilitação para dirigir veículo"). E o art. 57 do CP já previa que "a pena de interdição, prevista no inciso III do art. 47 deste Código, aplica-se aos crimes culposos de trânsito". Ou seja, o que houve foi apenas a delimitação das condições em que será imposta tal pena, pois ela já existia como pena acessória obrigatória nos crimes de trânsito.


Causas de aumento de pena

Os parágrafos únicos dos dois artigos em comento estabelecem que "a pena é aumentada de um terço à metade", se o agente se enquadrar em alguma das quatro circunstâncias enumeradas, a saber: I) não possuir permissão ou habilitação para dirigir; II) ser cometido o crime sobre a faixa de pedestres ou na calçada; III) deixar de prestar socorro à vítima, quando possível fazê-lo sem risco pessoal; IV) ser cometido o crime quando estiver conduzindo veículo de transporte de passageiros, no exercício de sua profissão ou atividade. Trata-se de causas de aumento da pena, específicas para os delitos em análise.

Aliás, a terceira delas ("deixar de prestar imediato socorro à vítima") já era prevista como causa de aumento de pena em um terço nas formas culposas de homicídio e de lesão corporal do CP (art. 121, §4º c/c 129, §7º), mas, em virtude do princípio da especialidade, prevalece a nova norma do CTB para os crimes de trânsito.

O art. 305 do CTB cria um novo tipo penal, consistente em "afastar-se o condutor do veículo do local do acidente, para fugir da responsabilidade penal ou civil que lhe possa ser atribuída". É perfeitamente cabível o concurso material entre o crime de homicídio ou lesão corporal com pena aumentada (CTB, art. 302, parágrafo único, III) com o de fuga do local do acidente (CTB, art. 305), pois este último tem como objeto jurídico protegido a tutela da administração da Justiça. Anote-se que tal situação era, no sistema anterior, simples causa de aumento da pena do homicídio (CP, art. 121, §4º: "foge para evitar prisão em flagrante").


Agravantes genéricas

O art. 298 do CTB estabelece ainda 7 circunstâncias agravantes genéricas, aplicáveis a todos os crimes de trânsito, quando o agente cometer o delito: I) com dano potencial para duas ou mais pessoas, ou com grande risco de grave dano patrimonial a terceiros; II) utilizando veículo sem placas, com placas falsas ou adulteradas; III) sem possuir permissão ou habilitação para dirigir; IV) com permissão ou habilitação de categoria diversa da necessária para conduzir o veículo; V) no exercício de profissão ou atividade que exija cuidados especiais com o transporte de passageiros ou de carga; VI) utilizando veículo em que tenham sido adulterados equipamentos ou características que afetem a sua segurança ou o seu funcionamento de acordo com os limites de velocidade prescritos nas especificações do fabricante; ou VII) sobre faixa de pedestres.


Suspensão condicional do processo

O novo tipo qualificado de homicídio culposo não mais é passível do benefício da suspensão condicional do processo. A Lei nº. 9.099/95, em seu art. 89, determina que tal instituto somente é aplicável nos delitos cuja pena mínima seja igual ou inferior a um ano. A pena mínima do homicídio culposo, que era de 1 ano no CP, passou a ser de 2 anos no CTB. Contudo, a suspensão continua aplicável no crime de lesão culposa, pois a pena mínima continua sendo inferior a um ano (2 meses no CP, 6 meses no CTB).

Neste ponto, obrou a lei com acerto, pois o crime de homicídio, embora culposo, atenta contra um bem essencial (a vida humana), e não deveria ser suscetível de um instituto tão benéfico quanto a suspensão condicional da pena. O CTB, majorando a pena nos homicídios de trânsito, corrigiu em parte esta falha. Contudo, a distorção não foi solucionada, pois a supressão do benefício não foi estendido aos demais casos de homicídio culposo, o que acabou por gerar mais uma injusta distinção entre o homicídio culposo simples e o de trânsito.


Competência dos Juizados Especiais Criminais

O art. 61 da Lei nº. 9.099/95 diz que os Juizados Especiais Criminais são competentes para os delitos de menor potencial ofensivo, assim considerados aqueles cuja pena máxima não seja superior a um ano. Assim, o homicídio de trânsito continua excluído da competência dos Juizados Especiais, pois sua pena máxima é de 4 anos (pelo CP, eram 3 anos).

Quanto ao crime de lesão corporal culposa no trânsito, a pena máxima passou de 1 para 2 anos, logo também ficou excluído da competência dos Juizados. Contudo, o art. 291, parágrafo único, do CTB admitiu, em enumeração exaustiva, que se lhe aplicassem alguns institutos típicos dos Juizados Especiais, previstos em três artigos da Lei nº. 9.099/95. São eles: arts. 74 (composição dos danos civis), 76 (transação penal) e 88 (ação penal pública condicionada a representação do ofendido).


Perdão judicial

Seria admissível a aplicação do perdão judicial nestes dois crimes de trânsito em discussão?

O CP prevê esta causa de extinção da punibilidade abstratamente na sua Parte Geral (art. 107, IX), e especificamente nos crimes de homicídio culposo (art. 121, §5º) e lesão corporal culposa (art. 129, §8º): "... o juiz poderá deixar de aplicar a pena, se as conseqüências da infração atingirem o próprio agente de forma tão grave que a sanção penal se torne desnecessária".

O CTB silencia a respeito. O seu art. 291 determina a aplicação subsidiária das "normas gerais do Código Penal"; contudo, na Parte Geral, o CP somente faz referência à aplicação do perdão judicial "nos casos previstos em lei". E o CTB não traz dispositivo específico sobre o assunto, já que o texto original do art. 300, que admitia expressamente o perdão judicial, foi vetado antes da publicação.

Contudo, nas razões do veto, constata-se que o dispositivo foi vetado justamente por somente ser admitido para casos determinados, com o que não concordou o Presidente da República, que considerou que deveria se estender a todos os crimes de trânsito.

Damásio E. de Jesus (4) acrescenta ainda mais um argumento a favor da admissibilidade do perdão judicial. Segundo ele, os arts. 302 e 303 "tratam de ‘crimes remetidos’, hipóteses em que uma norma penal incriminadora faz menção a outra, que a integra". A referência se constata, no caso, pela inserção do nomen juris do crime da qual derivam ("homicídio culposo" e "lesão corporal culposa"). Assim, torna-se necessário buscar nos respectivos arts. 121 e 129 do CP as normas que complementem seus sentidos. A remissão ao crime principal traz para o especial não só as elementares do tipo, como as demais causas e circunstâncias que o envolvem, como é o caso do perdão judicial. Sem esta integração, restaria prejudicada a isonomia processual e frustrada a intenção do perdão judicial, considerando que a maioria dos casos em que é aplicado se referem a delitos de trânsito.


NOTAS

(1) Capez, Fernando. Direito Penal, parte especial. 6. ed. São Paulo, Paloma, 1999. pp. 39-40.

(2) Leal, João José. O CTB e o homicídio culposo de trânsito: duas penas e duas medidas. [Internet] Buscalegis. http://buscalegis.ccj.ufsc.br

(3) Stoco, Rui. Código de Trânsito Brasileiro: disposições gerais e suas incongruências. Boletim do IBCCrim, a. 5, n. 61, dez. 1997, p. 9.

(4) Jesus, Damásio E. de. Perdão judicial nos delitos de trânsito. [Internet] Complexo Jurídico Damásio de Jesus. http://www.damasio.com.br


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Informações sobre o texto

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

ANDRADE, Paulo Gustavo Sampaio. Homicídio e lesão corporal: forma culposa qualificada no CTB. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 5, n. -1096, 1 jul. 2000. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/1736. Acesso em: 29 mar. 2024.