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O neoprocessualismo e a publicização normativa como corolário da unidade processual sistêmica.

Uma afirmativa da jurisdição constitucional

O neoprocessualismo e a publicização normativa como corolário da unidade processual sistêmica. Uma afirmativa da jurisdição constitucional

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RESUMO

A onda afirmativa que propicia a expansão da jurisdição constitucional e, nessa quadra, o próprio ativismo judicial, revela importante faceta da aproximação dos sistemas processuais, penal e civil, dada a convergência de diversos institutos processuais, atraídos que se encontram pela irresistível influência constitucional. Sua eventual constatação deve decorrer de elementos objetivos e sua assimilação envolve a compreensão do conceito de acoplamento estrutural proposto por Luhmann, no conjunto de sua autopoiese, a aceitar a oxigenação do modelo do fechamento operacional. A investigação proposta é de aferir se tal convergência pode mesmo ser identificada, e quais seus efeitos decorrentes para absorção de uma teoria unitária do processo.

PALAVRAS-CHAVES

TEORIA GERAL DO PROCESSO; SISTEMAS PROCESSUAIS; PROCESSO CIVIL; PROCESSO PENAL; CONSTITUIÇÃO FEDERAL; JURISDIÇÃO CONSTITUCIONAL.

SUMÁRIO: 1. Expansão da jurisdição constitucional: das normas constitucionais programáticas ao neoconstitucionalismo. 2. Do fechamento operacional sistêmico ao acoplamento estrutural do processo. 3. Da judicialização da política à politização do Judiciário. 4. Da convergência dos sistemas como hipótese de uma teoria geral do processo. 5. Evidências objetivas da convergência dos sistemas processuais. 6. Vantagens da superação da dicotomia entre o processo civil e o processo penal. 7. Conclusões.


INTRODUÇÃO

A crescente importância que tem sido atribuída à jurisdição constitucional, sobretudo em decorrência da histórica transição para o Estado Democrático de Direito – que em nosso ordenamento se identifica com a promulgação da Constituição da República de 1988 – tem conduzido a unidade processual sistêmica, relacionada tanto ao processo civil quanto ao processo penal, e se caracteriza pela convergência de diversos institutos processuais, num trilhar que se nutre da mesma fonte: a matriz constitucional.

Algumas dimensões de tal convergência podem ser aferidas pelo denominado neoprocessualismo, não apenas pela já plasmada e irreversível constitucionalização do direito privado, mas agora, ao reverso, pela publicização das normas processuais, retirando do Código de Processo a centralidade do ordenamento processual.

Se a matriz constitucional impera, então o resultado não poderia mesmo ser outro que não a convergência dos sistemas, superando suas dicotomias extrínsecas e reafirmando, cada vez mais, sua raiz comum.

Neste quadro, se pretende aqui aferir as causas e, especialmente, as conseqüências advindas de tal movimento, inclusive para se constatar sua aparente convergência.


1. EXPANSÃO DA JURISDIÇÃO CONSTITUCIONAL: DAS NORMAS CONSTITUCIONAIS PROGRAMÁTICAS AO NEOCONSTITUCIONALISMO

Se o reconhecimento da força normativa da Constituição, o desenvolvimento de uma nova dogmática da interpretação constitucional e, especialmente, a franca expansão da jurisdição constitucional caracteriza o chamado neoconstitucionalismo, como aponta Luis Roberto Barroso (2005), tem-se a superação da visão clássica do Direito Constitucional, em que se admitia a existência das normas constitucionais programáticas, as quais eram meras declarações políticas ou exortações morais.

Valendo-se da lição de Garcia de Enterria, conclui José Joaquim Gomes Canotilho que:

Em virtude da eficácia vinculativa reconhecida às ‘normas programáticas’, deve considerar-se ultrapassada a oposição estabelecida por alguma doutrina entre ‘norma jurídica actual’ e ‘norma programática’ (altuelle Rechtsnorm-Programmsatz): todas as normas são actuais, isto é, tem força normativa independente do acto de transformação legislativa. Não há, pois, na constituição, ‘simples declarações (sejam oportunas ou inoportunas, felizes ou desafortunadas, precisas ou indeterminadas) a que não se deva dar valor normativo, e só seu conteúdo concreto poderá determinar em cada caso o alcance específico de dito valor’ (Garcia de Enterria) (CANOTILHO, 1995, p. 193).

Por outro lado, a ampliação do acesso à Justiça e a própria expansão da litigiosidade, seja em decorrência da simplificação verificada com a adoção dos Juizados Especiais, seja pela tutela de interesses coletivos, difusos e individuais homogêneos, são marcas inegáveis da difusão da jurisdição constitucional, a culminar com o chamado ativismo judicial, cuja gênese se encontra no próprio controle incidental (difuso) da constitucionalidade, tendo reconhecido o Ministro Gilmar Mendes, Presidente do Supremo Tribunal Federal, que "em caso de omissão inconstitucional sistêmica, recalcitrante, o tribunal tem que assumir uma posição ativa, mais enfática" [01].

Ainda que temperado pela reserva do possível, pela reserva da consistência e pelo próprio princípio da proporcionalidade (CAMBI, 2007) o ativismo judicial não pode ser compreendido sem a umbilical relação que guarda com a difusão da jurisdição constitucional, posto que se nutre de seus fundamentos e de seus princípios para consecução de seus objetivos, para a realização das promessas a que alude Antoine Garapon, assinalando que "o controle crescente da justiça sobre a vida coletiva é um dos maiores fatos políticos deste final do século XX" (2001, p. 24).

A aparente resposta institucional da atuação estatal tem se dado de modo a prestigiar a atuação do Poder Judiciário, viabilizando uma ação judicial que recorre a procedimentos interpretativos de legitimação de aspirações sociais (FERRAZ JR., 1989, p. 11), com a incorporação de direitos e princípios fundamentais, pelo texto constitucional, e a configuração do Estado Democrático de Direito ao estabelecer princípios e fundamentos do Estado. Como assinala Luiz Werneck Vianna,

(...) à prevalência do tema do Executivo, instância da qual dependia a reconstrução de um mundo arrasado pela guerra (...) seguiu-se a do Legislativo, quando uma sociedade civil transformada pelas novas condições de democracia impôs a agenda de questões que diziam respeito à sua representação, para se inclinar, agora, para o chamado Terceiro Poder e a questão substantiva nele contida – Justiça (1996, p. 263).

Tal atuação do Poder Judiciário se conceitua como ativismo judicial, que se caracteriza pela participação do magistrado e o afastamento da neutralidade jurídica para interpretação e aplicação da lei.

A propagada expansão da jurisdição constitucional não pode ser compreendida separadamente da brutal aceleração da difusão jurídica, que não é meramente conjuntural, mas ligada à própria dinâmica das sociedades democráticas. "Nós não nos tornamos mais litigantes porque as barreiras processuais caíram. A explosão do número de processos não é um fenômeno jurídico, mas social. Ele se origina da depressão social que se expressa e se reforça pela expansão do direito" (GARAPON, 2001, p. 19). O prestígio contemporâneo do juiz – e da jurisdição – procede menos de uma escolha deliberada do que de uma reação de defesa em face de um quádruplo desabamento: político, simbólico, psíquico e normativo. Para Garapon,

Após a embriaguez da liberação, descobre-se que é nossa própria identidade que core o risco de falhar: a do indivíduo, a da vida social e a do político. O juiz surge como um recurso contra a implosão das sociedades democráticas que não conseguem administrar de outra forma a complexidade e a diversificação que elas mesmas geraram. O sujeito, privado das referencias que lhe dão uma identidade e que estruturam sua personalidade, procura no contato com a justiça uma muralha contra o desabamento interior. Em face da decomposição do político, é então ao juiz que se recorre para a salvação. Os juízes são os últimos a preencher uma função de autoridade – clerical, quase que parental – abandonada pelos antigos titulares (GARAPON, 2001, p. 26-27).

A atuação do poder jurisdicional em decorrência do império do fenômeno da globalização tem assumido relevância nunca antes vista, sendo que as características do tempo que em vivemos vêm modificando substancialmente o papel do direito, sobretudo na perspectiva da sua aplicação judiciária (SOUZA NETTO, 2009). Nos últimos cinquenta anos,

(...) ocorreu uma intensa evolução e profunda transformação no poder jurisdicional. É um fenômeno onipresente, sem fronteiras e nacionalidade, provavelmente conexo à evolução das relações entre o Estado e a sociedade. A importância crescente da justiça, com a explosão dos pedidos, faz com que ela se transforme numa parte cotidiana do processo político. Nunca se fez tanto apelo à justiça e nunca o acesso esteve tão aberto, não parando de se alargar as funções que a democracia confia à justiça, parecendo ser ilimitadas.

À medida que o Poder Público torna-se mais intenso, a justiça descobre, sob a pressão de uma demanda crescente, novos domínios. Não há hoje nenhuma intervenção pública que possa ser subtraída da apreciação do juiz. Onde existe uma lei também existirá um juiz para interpretar e precisar os seus efeitos.

Hodiernamente, o juiz tende assim a se tornar uma espécie de maestro de orquestra, onde sua função consiste não só em resolver os litígios, mas também em encontrar soluções aos problemas que as outras instituições não puderam resolver.

Além de uma função técnica científica, aos juízes se exige uma função axiológica, com a valoração das idéias que iluminam o direito. A sociedade espera da justiça o dever de defender a liberdade, aplacar as tensões sociais, de tutelar o meio ambiente, conter as tendências incoercíveis ao abuso do poder, de impor penas, de atenuar as diferenças entre os indivíduos, de defender os cidadãos desde o nascimento, casamento, divórcio e morte, etc...

As responsabilidades do juiz revelam-se cada vez mais acrescidas, desencadeando o fenômeno da jurisdicionalização e a crescente influência da justiça na vida cotidiana.

Na sua nova função, o juiz cria o direito, pois constrói normas que não estão nos códigos. Os juízes se tornam depositários do direito que se torna o que é por eles feito. O pensamento filosófico contemporâneo mais recente mostra a aplicação judiciária do direito, considerando o jurídico essencialmente na perspectiva do judiciário. A idéia do justo só se completa na aplicação da norma ao julgamento.

O julgamento é uma verdadeira norma jurídica, ainda que limitada às partes que estão obrigadas a cumprir. Nesse sentido a função judiciária revela sempre uma versão política. Por isso que o controle da sociedade sobre as razões que fundamentam a decisão judiciária é cada vez mais amplo, colocando em xeque o preparo do juiz (SOUZA NETTO, 2009).

É que, afinal, quanto menos o direito for assegurado à sociedade, mais e mais esta é induzida a tornar-se jurídica, fazendo do direito o último bastião da moral comum de uma comunidade que é carente desta, pelo que se admite a veemente repulsa para a democracia de qualquer outro tipo de julgamento que não o do juiz.

Ainda assim, seja causa estrutural ou conseqüência conjuntural, a expansão da jurisdição constitucional é um dado objetivo, como revelam as estatísticas do Supremo Tribunal Federal: enquanto que no ano de 2002 houveram 34.719 recursos extraordinários distribuídos, no ano de 2006 este número atingiu 54.575, embora nos anos posteriores tenha ocorrido um notável decréscimo real (49.708 em 2007 e 21.531 em 2008) [02], atribuível à necessidade de demonstração da repercussão geral, exigível a partir da Emenda Constitucional nº 45/2004. De outro lado, entre 1988 até fevereiro de 2009 foram distribuídas 4.207 ações diretas de inconstitucionalidade, das quais 843, ou seja, 20,03%, foram julgadas procedentes ou procedentes em parte [03].

Aliado aos números estatísticos há também a experiência prática que revela a intensidade da postulação perante o Judiciário, no exato momento em que se advoga a falência do positivismo jurídico, marcada pela diferenciação da norma e do preceito normativo, rompendo o método silogístico e abrindo espaço para o desenvolvimento de uma nova dogmática de interpretação constitucional.

Se a expansão jurisdição constitucional, num viés estruturalista, é embalado pela nova dogmática, sem abandonar os elementos clássicos (gramatical, histórico, sistemático e teleológico), mas relativizando-os à hermenêutica jurídica ressaltando a teoria dos princípios sobre as regras, torna-se possível encontrar o meio-termo entre a vinculação e a flexibilidade (ALEXY, 1999, p. 79; HABERMANS, 1997, p. 259; e CAMBI, 2002, p. 110-111), buscando melhores soluções para os conflitos entre direitos fundamentais.

A esse fenômeno deve se somar a constitucionalização dos direitos e garantias processuais, que para Eduardo Cambi retiraria o Código de Processo da centralidade do ordenamento processual (2007), com o que não podemos concordar por conta do fato de que aludida centralidade não poderia existir nem mesmo precedentemente, por conta da hierarquia ínsita do sistema. Central é e sempre foi a Constituição, de modo que parece insustentável advogar a hodierna condição periférica do Código de Processo, eis que ela sempre esteve presente. Com efeito, destaca ainda Eduardo Cambi que

(...) o processo distancia-se de uma conotação privatística, deixando de ser um mecanismo de exclusiva utilização individual para se tornar um meio à disposição do Estado para a realização da justiça, que é um valor eminentemente social. O processo está voltado à tutela de uma ordem superior de princípios e de valores que estão acima dos interesses controvertidos das partes (ordem pública) e que, em seu conjunto, estão voltados à realização do bem comum. A preponderância da ordem pública sobre os interesses privados em conflito manifesta-se em vários pontos da dogmática processual, tais como, por exemplo, na garantia constitucional de inafastabilidade da jurisdição, na garantia do juiz natural, no impulso oficial, no conhecimento de ofício (objeções) e na autoridade do juiz, na liberdade de valoração das provas, no dever de fundamentação das decisões judiciais, nas nulidades absolutas, nas indisponibilidades, no contraditório efetivo e equilibrado, na ampla defesa, no dever de veracidade e de lealdade, na repulsa à litigância de má-fé etc. (2007).

Se a constitucionalização dos direitos materiais e processuais fundamentais, a crescente adoção da técnica legislativa das cláusulas gerais e o aumento dos poderes do juiz, entre outros fenômenos, explicam o surgimento do neoprocessualismo, também servem para afirmar um modelo que se nutre cada vez mais, de forma irreversível, com a própria dogmática constitucional, posto que, se a fonte é comum, o resultado não pode ser dissonante.


2. DO FECHAMENTO OPERACIONAL SISTÊMICO AO ACOPLAMENTO ESTRUTURAL DO PROCESSO

A unidade sistêmica do processo pode também ser compreendida a partir da dimensão filosófica que assume o reconhecimento de que sua suposta unidade, ordem interna e coerência formal, defendida pelos positivistas dos Séculos XIX e XX, não passam de uma espécie de mito fundador da teoria do ordenamento jurídico. Isso porque o direito não possui coerência interna como condição de sua sistematicidade, não há unidade vez que dela prescinde e nem mesmo obedece a uma só ordem hierárquica, ou a um só sentido.

"Se o direito trabalha com valores – que são reconhecidos através de signos, os quais mudam de acordo com a conjuntura social – não há sequer hierarquia material ou mesmo formal, pois os valores se revelam em várias dimensões semânticas e construções sintáticas", aponta Lucas de Alvarenga Gontijo (2009). Daí porque o direito é capaz de suportar antinomias perenes, inexistindo lacunas porque é fragmentado por formação.

Ainda assim, é um sistema próprio, com estrutura e função definidas e delimitadas, daí porque aceita a denominação de auto-referencial atribuída por Niklas Luhmann, como alude Gunther Teubner:

O Direito retira a sua própria validade dessa auto-referência pura, pela qual qualquer operação jurídica reenvia para o resultado de operações jurídicas. Significa isto que a validade do Direito não pode ser importada do exterior do sistema jurídico, mas apenas obtida a partir do seu interior. Nas palavras de LUHMANN, "não existe direito fora do direito, pelo que sua relação com o sistema social, o sistema jurídico, não gera nem inputs nem outputs" (1989, p. 2).

Neste trilhar, se verifica que a teoria dos sistemas é binária e o direito existe por si, ou seja, a partir do momento em que não gera inputs nem outputs, está ele girando em torno e por si mesmo, alterando sua própria estrutura, "aumentando constantemente suas possibilidades até que a complexidade atinja limites não tolerados pela estrutura, levando-o a mudar sua forma de diferenciação" (KUNZLER, 2004, p. 123).

Para esse modelo, Luhmann aproveitou o termo cunhado na década de 70 pelos biólogos e filósofos chilenos Francisco Varela e Humberto Maturana para designar a capacidade dos seres vivos de produzirem a si próprios (RAMOS, 2009, chamado autopoiese ou autopiesis (do grego auto "próprio", poiesis "criação") [04], estendendo para as ciências sociais o fechamento operacional proposto para a biologia.

Embora o modelo autopoiético tenha por função reduzir complexidades e negar paradoxos em relação ao ambiente, internamente sua segmentação e especialização acabam, ao reverso, por aumentar a complexidade interna, mesmo considerando, segundo Luhmann, que a complexidade interna nunca vai ser maior que a complexidade do ambiente, porque este contém sempre um número maior de elementos do que aquela, e porque o sistema é capaz de fixar seus próprios limites, demarcando as possibilidades de seu interior (KUNZLER, 2004).

Dada sua aparente incapacidade estrutural de romper com o que se acredita ser uma forma de autismo que impede uma comunicação plena e eficaz entre os sistemas, se teceram críticas à autopoiésis, propondo-se a adoção de princípios fundados na razão prática e na comunicação entre os cidadãos (BONAVIDES, 2003, p. 125), incumbência que coube à teoria da ação comunicativa, como alternativa ao positivismo jurídico e ao seu projeto de validade formal e absoluta, a partir da regra de precedência condicionada, proposta por Robert Alexy (APPIO, 2005, p. 40).

Mas importa compreender o modelo da autopoiésis também em conjunto com o fenômeno do acoplamento estrutural, em que o sistema vivo e o meio ambiente se modificam de forma congruente. Na comparação proposta, o pé está sempre se ajustando ao sapato e vice-versa (MARIOTTI, 2009), ou seja, o meio produz mudanças na estrutura dos sistemas, que por sua vez agem sobre ele, alterando-o, numa relação circular. Sempre que um sistema influencia outro, este passa por uma mudança de estrutura, por uma deformação. Ao replicar, o influenciado dá ao primeiro uma interpretação de como percebeu essa deformação. Estabelece-se, portanto, um diálogo. Por outras palavras, forma-se um contexto consensual, no qual os organismos acoplados interagem. Esse interagir é um domínio lingüístico. A dificuldade reside na transposição do modelo, inspirado num sistema tipicamente natural, embora vivo, para o sistema social. Ainda assim, destaca Rômulo Figueira Neves,

Pelo acoplamento estrutural um sistema pode se relacionar com sistemas altamente complexos do ambiente que o envolve, sem que precise alcançar ou reconstruir cognitivamente sua complexidade, mas apenas operacionalmente relacionar-se com os elementos do outro sistemas, a fim de colocar em operação seus próprios elementos. Assim, um sistema pode utilizar estruturas mais avançadas do que suas próprias sem a necessidade de compreender as suas lógicas de funcionamento (NEVES, 2009).

Embora o fenômeno do acoplamento estrutural se apresente como hipótese de diálogo do sistema, numa inter-relação mútua, não supera a visão binária proposta por Luhmann, para o qual não existe o direito fora do direito (ALMEIDA FILHO, 2004). Ele só se justifica enquanto aceito o modelo da autopoiésis. Mas ainda que admitido o fechamento operacional decorrente do modelo, o acoplamento estrutural pode funcionar como válvula de escape e interagir com os demais sistemas, até mesmo simbioticamente, de modo que a constante inter-relação acaba por produzir mais pontos de convergência do que pontos de divergência.


3. DA JUDICIALIZAÇÃO DA POLÍTICA À POLITIZAÇÃO DO JUDICIÁRIO

A frustração em geral do meio político tem implicado tanto na condução das demandas de natureza política à jurisdição como, em sentido contrário, a adoção da postura política pelo Judiciário, como bem caracteriza o ativismo judicial. Disso decorre que a legitimação das reivindicações coletivas tem se dado mais sob a forma processual do que política, decorrente da perda de prestígio do político e de uma reorientação das expectativas políticas com vistas à justiça, pois é a ela que a opinião pública dirige agora suas demandas (GARAPON, 2001). A justiça passa a encarar, assim, o espaço público neutro, o direito, a referência da ação política, e o juiz, o espírito público desinteressado.

O movimento se dá tanto com a extensão da competência da justiça em detrimento do Poder Executivo, como marca indelével da superação do Estado Social, como também pela atração que a jurisdição exerce em função do raciocínio político. Daí porque a politização da razão judiciária não tem outro equivalente senão a judicialização do discurso político, posto que as reivindicações políticas se exprimem mais facilmente em termo jurídicos do que ideológicos.

Esses dois fenômenos – desnacionalização do direito e exaustão da soberania popular – ilustram o núcleo da evolução hoje vivida, a saber, a migração do centro de gravidade da democracia para um lugar mais externo, sendo que a judicialização da vida pública comprova esse deslocamento: é a partir dos métodos da justiça que nossa época reconhece uma ação coletiva justa. Daí a afirmação de Willis Santiago Guerra Filho de que "o objeto da ciência jurídica não seria propriamente normas, mas sim os problemas a que elas cabe viabilizar a solução" (GUERRA FILHO, 1998).

O dúplice movimento apontado – judicialização da política e politização do Judiciário – só pode ser demonstrado também como consequência da disseminação da jurisdição constitucional, sobretudo em seus aspectos substantivos, eis que a carga de pretensões irrealizadas, enunciadas pelo texto constitucional, exige a tomada de posição indistinta para sua realização. Afinal, se o Estado Liberal era identificado com o Poder Legislativo, o Estado Social com o Poder Executivo, o Estado Democrático de Direito está mais do que qualquer outro identificado com o Poder Judiciário, sendo que a importância aqui está ao se identificar o tendência convergente do sistema, material e formalmente, num contexto que não se cinge à mera inter-comunicação sistêmica.


4. DA CONVERGÊNCIA DOS SISTEMAS COMO HIPÓTESE DE UMA TEORIA GERAL DO PROCESSO

Embora identificável, até aqui, elementos idôneos da aproximação do processo em direção à Constituição, que poderia ser inferido como sendo a constitucionalização do processo, há um trilhar em sentido diverso que aponta para a aproximação da Constituição em direção ao processo, em sua dimensão instrumental substantiva (processualização da Constituição), assim destacado por Willis Santiago Guerra Filho:

(...) quer dizer, do que leva à estreita associação entre Constituição e processo hoje em dia, quando esse se torna um instrumento imprescindível na consecução daquela. Colocamo-nos, assim, diante de um duplo movimento em sentidos opostos, nomeadamante, uma materialização do direito processual, ao condicioná-lo às determinações constitucionais, e, ao mesmo tempo, uma procedimentalização ou ‘desmaterialização’ do direito constitucional, à medida que o processo se mostre indispensável para a realização da ‘Lei Maior’ e, logo, também das ‘menores’, ou ordinárias (1998).

Se antes desse movimento circular era possível afirmar a dicotomia entre o processo civil e o processo penal, tal como fizeram Francesco Carnelutti, Ovídio Baptista da Silva e Flávio Gomes (2002), e Rogério Lauria Tucci (2003), ao defenderem a inexistência de uma teoria geral do processo, sustentando a plena desvinculação da teoria geral do processo civil com a teoria geral do processo penal, a aproximação da técnica processual da mesma matriz condicionadora, qual seja, constitucional, implica no reconhecimento de que a técnica não é mais tão distinta quanto aludia Silva e Gomes:

Esta peculiaridade, comum a todo fenômeno jurídico, mostra-se ainda mais visível quando se trata do direito processual, dado que este ramo da ciência jurídica tem de tratar, necessariamente, de casos individuais, onde a construção de regras gerais mostrar-se-á sempre uma tarefa limitada e precária (2002, p. 9).

Também para Jacinto Nelson de Miranda Coutinho não existiria uma teoria geral do processo, pois, sustenta, no processo penal não existe lide como conflito de interesses qualificado por uma pretensão resistida, afirmando a incompatibilidade estrutural para composição do processo civil e do processo penal. Segundo Coutinho, a construção da teoria geral do processo civil se deu a partir de Liebman, sendo impossível compartilhar da mesma visão em relação ao processo penal, tendo recentemente reiterado posição firmada há mais de vinte anos:

Imperioso, porém, negar peremptoriamente a chamada teoria geral do processo, (...)

Assim, com um sistema diverso, um princípio unificador diverso, um conteúdo do processo diverso, e uma diversidade estrutural em cada elemento da trilogia fundamental (jurisdição/ação/processo), não há que se cogitar sobre uma teoria geral. Com denominadores comuns diferentes, não cabe uma teoria, muito menos geral. Como referi há 20 anos, "sem embargo disso, per faz et nefas, a teoria geral do processo civil, a cavalo na teoria geral do processo, penetra no nosso processo penal e, ao invés de dar-lhe uma teoria geral, o reduz a um primo pobre, uma parcela, uma fatia da teoria geral. Em suma, teoria geral do processo é engodo; teoria geral é a do processo civil e, a partir dela, as demais." Ela, todavia, serve: para reter o desenvolvimento democrático do processo penal porque encobre o núcleo do problema de seu sistema (2007, p. 11).

Já os instrumentalistas, da escola processual paulista, acolhem a existência de uma teoria geral do processo (GRINOVER, 1999), estruturada com fundamento no tripé jurisdição – ação – processo, tendo a jurisdição como base institutiva sistematizada, que vê o processo como instrumento de pacificação social, colocando o processo como forma de realização da jurisdição, tendo como marco teórico a teoria do processo como relação jurídica.

O mero paralelismo entre a disciplina do processo e o regime constitucional já vem sendo há muito reconhecido pelos processualistas clássicos, ainda que beirando a subsidiariedade. Assim é que para Antonio Carlos de Araújo Cintra, Ada Pelegrini Grinover e Cândido Rangel Dinamarco, todo o direito processual, como ramo do direito público, tem suas linhas fundamentais traçadas pelo direito constitucional, que fixa a estrutura dos órgãos jurisdicionais, que garante a distribuição da justiça e a efetividade do direito objetivo, que estabelece alguns princípios fundamentais.

Antigos e conceituados doutrinadores já afirmavam que o direito processual não poderia florescer senão no terreno da liberalismo e que as mutações do conceito de ação merecem ser estudadas no contraste entre liberdade e autoridade, sendo dado destaque à relação existente entre os institutos processuais e seus pressupostos políticos e constitucionais. Hoje acentua-se a ligação entre o processo e Constituição no estudo concreto dos institutos processuais, não mais colhidos na esfera fechada do processo, mas no sistema unitário do ordenamento jurídico: é esse o caminho, foi dito com muita autoridade, que transformará o processo, de simples instrumento de justiça, em garantia de liberdade (CINTRA, 2008, p. 84).

Sem que tal convergência implique em massificação do processo, como poderia parecer, é de constatar que, embora diversos os ramos, o tronco comum é um só, ou seja, o poder, o que gera a unidade nos grandes princípios, no entendimento das garantias constitucionais do processo, na interação funcional dos institutos, sem que isto signifique admitir soluções igualadas em todos os setores (DINAMARCO, 1987, p. 100/03), arrematando José Figueiredo Dias que qualquer conclusão pessimista quanto à viabilidade de uma Teoria Geral do Processo não deve obstar que se reconheça a importância de uma consideração comparativa dos diversos tipos de processo (DIAS, 1974, p. 52/7).

Aliás, a unidade processual foi uma das intuições de Carnelutti, quando afirmava que o direito processual é uno, distinguindo-se o processo penal e o processo civil não por suas raízes, mas porque, sem dois grandes ramos, logo, deles deriva um tronco comum (GIORGIS, 1991, p. 76). Previa o tempo, alude José Carlos Teixeira Giorgis,

(...) em que se levará em consideração tal verdade no ensino universistário, advertindo que um dos graves problemas do ordenamento jurídico se encontra na cisão do processo civil e penal e no acoplamento deste ao Direito Penal.

Ao encaminhar-se para conclusão unitária, em conhecido trabalho, Carnelutti observa que, no fundo, o ambiente do processo civil já se revela uma impressão de superioridade.

Escrituras cuidadosas, discussões rebuscadas, e, sobretudo, pessoas esquisitas...

Ao contrário, o processo penal é inquieto, turbulento, um verdadeiro reino de andrajosos.

O processo civil, na grande maioria dos casos, é um processo de possuidores, pois, quanto um dos dois sujeitos não possui, pelo menos aspira possuir. É o processo do meu e do teu, a aposta do jogo é a propriedade.

No processo penal, em troca, se trata da liberdade, que é uma verdadeira aposta no processo.

Nisto reside a distinção entre os dois processos: no civil, discute-se sobre o ter ou haver, e no penal sobre o ser! (GIORGIS, 1991, p. 76/77).

Também para José Frederico Marques, discípulo de Liebman, o processo, como instrumento compositivo de litígios, é um só, quer quando tenha por objeto uma lide penal, quer quando trate de uma lide não-penal, e que, como instrumento da atividade jurisdicional do Estado, não sofre mutações substanciais quando passa do campo de justiça civil para o penal. "Uno, portanto, é o Direito Processual pelo que pode ser construída uma Teoria Geral do Processo com os postulados e linhas mestras construídas segundo a metodologia da Dogmática do Direito" (MARQUES, 1980, p. 36). Daí também porque, para René Ariel Dotti, as categorias dogmáticas do processo penal não devem perder o contato com os valores que o processo se destina a amparar, pois a supremacia das categorias lógicas tão marcantes na prestação jurisdicional através do processo civil (avaliação das provas, restrições de capacidade de meios, reconhecimento de indícios, etc) é muito distinta da ocorrente no processo penal, pois quando se trata de infligir uma pena a verdade convencional não é o bastante (DOTTI, 1987, IX).

Muito além do paralelismo, seja num ou noutro caso, a assunção da garantia do devido processo legal em sentido substancial (substantive due process of law), construído ao longo da experiência constitucional norte-americana [05] e alemã, incorporado pela Constituição Federal de 1988 ao ordenamento jurídico nacional, implicou na perda da posição central da lei como fonte do direito, passando a ser subordinada à Constituição [06], não valendo, por si só, mas somente se conformada com a Constituição e, especialmente, se adequada aos direitos fundamentais (CAMBI, 2007).

A supremacia da Constituição sobre a lei e a repulsa à neutralidade da lei e da jurisdição encontram, no artigo 5º, inciso XXXV, da Constituição da República, um importante alicerce teórico. Ao se incluir no rol do artigo 5º a impossibilidade da lei excluir da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça ao direito, consagrou-se não apenas a garantia de inafastabilidade da jurisdição (acesso à justiça), mas um verdadeiro direito fundamental à tutela jurisdicional efetiva, célere e adequada (acesso à ordem jurídica justa) (MARINONI, 1997, p. 20).

A convergência dos vetores processuais, envolto no líquido amniótico constitucional, pode levar a um modelo mínimo de processo, num modelo constitucional de processo que não se limite ao processo civil, mas seja compreendido como gênero, que tem no processo a espécie, e na qual o provimento é preparado em simétrica paridade pelos afetados, como sustentou Elio Fazzalari (2006).

Se a tônica da pós-modernidade se lastreia na hermenêutica dos princípios constitucionais, então a justificativa para a dicotomia entre o processo penal e o processo civil não pode mais prevalecer. A propósito, Ronald Dworking enfrenta um problema interpretativo para compreensão do direito como integridade, no caso McLoughlin, que serve para indicar um caminho para a hipótese proposta. Para o autor, a divisão do direito em áreas específicas – Direito Civil, Direito Penal, Direito Administrativo, Direito do Trabalho e Direito Tributário – segue uma definição tradicional que reflete princípios morais amplamente aceitos pela opinião pública, cuja demonstração é ainda mais fácil a partir da clara distinção entre Direito Civil e Direito Penal, como ilustram Flaviane de Magalhães Barros e Fabrício Santos Almeida (2007), de tal modo que a interpretação do direito deve se dar como elemento de integridade, respeitando as diferenças relativas à prioridade local, salvo quando os limites tradicionais de divisão do direito em áreas se mostrar mecânico ou arbitrário. Assim,

Se um juiz aceita o direito como integridade considera que duas interpretações se ajustam, cada uma na área de seu interesse imediato, bem o suficiente para satisfazer as limitações interpretativas, então ampliará o alcance de seu estudo numa série de círculos concêntricos para incluir outras áreas do direito e, assim, determinar qual das duas melhor se adapta ao âmbito mais abrangente. Mas respeitará, normalmente, a prioridade da área do direito, na qual desponta seu problema imediato; considerará de menor valor, rigorosamente, algum princípio como uma interpretação aceitável do direito de acidentes se ele for estranho a esse ramo do direito, mesmo que se ajuste bem a outras áreas. A topologia das áreas é, como vimos, parte do seu problema interpretativo, e os seus julgamentos sobre os limites das áreas pode ser polêmico e, todo modo, irá modificar-se com a evolução do direito. No entanto, restrições específicas aplicam-se a seus julgamentos sobre os limites: devem, em princípio, respeitar opiniões públicas e profissionais estabelecidas que dividem o direito em áreas importante de conduta pública e privada (DWORKING, 1999, p. 481).

A afirmação inequívoca da plenitude da jurisdição constitucional, alastrando-se de modo irresistível pelo ordenamento e minando o anacrônico encapsulamento do direito processual, contribui para a formação de similaridades sucessivas entre o processo civil e o processo penal, num movimento que pode conduzir a construção de uma teoria geral do processo, desta vez não pela sua gênese, mas sim pela sua refundação em conformidade com a Constituição.


5. EVIDÊNCIAS OBJETIVAS DA CONVERGÊNCIA DOS SISTEMAS PROCESSUAIS

Se a expansão da jurisdição constitucional, a politização do Judiciário e a compreensão do conceito de acoplamento estrutural podem fornecer os pressupostos elementares para o magma da convergência entre o processo civil e o processo penal, então deve ser possível identificar objetivamente as manifestações de tal movimento, exatamente para sua eventual confirmação.

A rigor a convergência poderia ser pontuada a partir da inter-relação macro-sistêmica entre a Common Law e a Civil Law, a exemplo do que já se operou com a assimilação da disregard doctrine pelo artigo 50 do Código Civil, a possibilidade da transação penal, por conta do artigo 98, inciso I, da Constituição Federal e da Lei nº 9.099/1995, a regra do stare decisis, inspiradora da súmula vinculante objeto do artigo 103-A, da Constituição Federal, e a recente adoção, pela Lei nº 11.690/2008, da técnica da cross examination no processo penal, possibilitando às partes que formulem perguntas, diretamente, à testemunha, ou seja, sem que elas sejam feitas por intermédio do magistrado. Daí a precisa constatação de Mario Losano de que

O Common Law anglo-americano e o direito europeu continental, que agora regem a maioria da população mundial, tendem a se aproximar. o Common Law está passando por uma extensão dos statutes e das consolidations em detrimento do puro "judge made law", enquanto a jurisprudências vai assumindo importância crescente em muitos países de Civil Law. Por exemplo, naqueles países que têm um tribunal constitucional, o direito constitucional tende cada vez mais a se tornar um direito jurisprudencial (LOSANO, 2007, p. 345).

Cumpre aqui, no entanto, por rigor científico da problemática proposta, limitar a análise sob o viés endógeno do sistema pátrio, notadamente entre o processo civil e o processo penal. Neste trilhar, a convergência entre os sistemas pode se dar tanto sob o aspecto normativo quanto sob o aspecto jurisdicional, já que o fenômeno pode ser destilado em ambos.

A mera interpretação extensiva e a aplicação analógica admitida pelo artigo 3º, do Código de Processo Penal, pelo artigo 4º, da Lei de Introdução ao Código Civil, e pelo artigo 126, do Código de Processo Civil, não dão conta de asseverar a convergência dos sistemas pois representam, quando muito, vasos comunicantes que antes reafirmam a autonomia do que propriamente aproximam os modelos. Já a recente aprovação da Lei nº 11.719/2008, que acrescentou o inciso IV ao artigo 387 do Código de Processo Penal e determinou a fixação, pela sentença penal condenatória, de valor mínimo para reparação dos danos causados pela infração, "considerando os prejuízos sofridos pelo ofendido", representou inequívoca convergência processual, não apenas na reafirmação da unidade da jurisdição, mas também pela exigência de estabelecimento de determinado montante (o valor "mínimo") que não é objeto da própria instrução criminal.

As medidas assecuratórias do processo penal (seqüestro e arresto) também guardam intensa vinculação e inspiração com suas congêneres do processo civil, tanto assim que autorizam o uso dos embargos de terceiro rigorosamente com fundamento no diploma civil.

O próprio transbordamento do conceito da ampla defesa e do contraditório, tão mais em sua plenitude identificado com o processo penal – seja pela sua concepção garantista, seja por lidar com valores como a liberdade -, mas que avança e se consolida no âmbito do processo civil, remonta à origem comum, constitucional, dos modelos, sendo efetivamente dois pilares básicos da irradiação da combinação entre o due processo of law e o substantive due process.

Em arremate, a convergência pode ser plenamente identificada pela assimilação do simples e genial conceito de Elio Fazzalari do processo como procedimento mais o contraditório, que se afasta do "velho e inadequado clichê pandetístico da relação jurídica processual (...) esquema estático (...) que leva em conta a realidade, mas não a explica" (FAZZALARI, 2006, p. 5), conceito este que se espraia por todo o modelo formal, seja penal, cível ou administrativo, e impõe o reconhecimento da unidade sistêmica decorrente.


6. VANTAGENS DA SUPERAÇÃO DA DICOTOMIA ENTRE O PROCESSO PENAL E O PROCESSO CIVIL

Se é possível o reconhecimento de elementos que apontam para a convergência dos modelos processuais, então cabe ainda identificar as razões pelas quais tal movimento é vantajoso para o sistema, de modo a não repelir sua consolidação.

A primeira e mais importante razão para a utilidade da superação da dicotomia está exatamente na retroalimentação do circuito constitucional, que ao mesmo passo em que irradia sua dimensão normativa, aproximando e não distanciando o processo penal do processo civil, também se reafirma como núcleo duro do ordenamento, na medida em que se serve da ressonância obtida para manter constante a força centrípeta necessária à sua legitimidade, validade e plenitude.

A segunda vantagem na afirmação unitária do sistema está na recíproca possibilidade de aproximação, comparação e fusão dos institutos, nutrindo-se mutuamente de elementos aptos a dar suporte à regulamentação do exercício de uma das funções capitais do Estado moderno, que é o poder jurisdicional.

Se é verdade que o Direito Processual Penal vem recebendo seiva do Direito Processual Civil, não é menos verdade que este encontrou naquele a substância publicística melhor preparada para sua construção sistemática (GIORGIS, 1991, p. 80).

Ora, se a prestação jurisdicional tem como precípuo escopo a garantia da efetividade do exercício dos direitos e deveres inerentes ao Estado Democrático de Direito, então a proximidade dos modelos só tende a revelar a concatenação de esforços em tal sentido, superando o viés autonomista, senão mesmo autista, que se apregoava enquanto em voga o discurso pluralista dicotômico.

A experiência que mantém cada ramo em sua individualidade, tendo o processo penal clara vocação para atuar em relação ao ser, enquanto que o processo civil em relação ao ter, pode ser aproveitada em sua condição de mutualismo, ofertando a cada um, de modo recíproco, a solução para o problema da prestação da atividade jurisdicional, propriamente, garantido a consecução de um processo justo, eficaz e célere.

Por fim, a aproximação dos sistemas numa visão unitária também implica no aumento exponencial das garantias, já que, mais uma vez voltados à matriz constitucional, refutam a construção de teorias que se ignorem ou que se contradigam, de modo a catalisar a assunção de princípios comuns tendentes a prestigiar a dimensão final, humana, da construção do bem comum a partir da jurisdição, num círculo virtuoso que congrega esforços no afã da concretização dos fundamentos da República.


7. CONCLUSÃO

O caminho que o ordenamento trilhou até sua atual constitucionalização não foi em vão. Ele se deu tendo por postulado o reconhecimento de um astro-rei, a Carta Magna, irradiando seus efeitos de modo constante por todo o sistema, e, embora a construção histórica metodológica tenha optado pela especialização e pela autonomia dos modelos processuais, sua releitura embalada pela cantiga constitucional reabre a concreta possibilidade do reconhecimento de que a mecânica da prestação jurisdicional tem fonte comum, e, como tal, não pode implicar em resultados dissonantes.

A tal neocentrismo, com o papel sempre renovado da Constituição como o Sol atraindo os sistemas e exercendo sua influência irresistível, logra aproximar o processo penal do processo civil e vice-versa. O reconhecimento de tal convergência acaba por influir na percepção, ao reverso, das suas próprias divergências, e, como tal, propiciar a atuação da força motriz constitucional na consecução da prestação da jurisdição de modo equânime e equalizada com a operacionalização de seu pleno funcionamento, como células que mantêm a sinapse em atividade e que, com isso, se prestam a reconhecer, ao final, a centralidade do homem e de sua busca pelo bem comum, como móvel de toda a atividade estatal, e de sua precípua contribuição para que o processo atue como ferramental adequado na permanente construção do Estado Democrático de Direito.


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Notas

Maturana e Varela utilizaram uma metáfora didática para falar dos sistemas autopoiéticos que vale a pena reproduzir aqui. Para eles, trata-se de máquinas que produzem a si próprias. Nenhuma outra espécie de máquina é capaz de fazer isso: todas elas produzem sempre algo diferente de si mesmas. Sendo os sistemas autopoiéticos a um só tempo produtores e produtos, pode-se também dizer que eles são circulares, ou seja, funcionam em termos de circularidade produtiva. Para Maturana, enquanto não entendermos o caráter sistêmico da célula, não conseguiremos compreender os organismos. (MARIOTTI, Humberto. Autopoiese, cultura e sociedade. Disponível em <http://www.geocities.com/pluriversu/autopoies.html>, acesso em 26 mar 2009).

  1. Folha de São Paulo, 24 mar 2009, p. A6.
  2. Disponível em <http://www.stf.jus.br/portal/cms/verTexto.asp?servico=estatistica&pagina=REAIProcessoDistribuido#>, acesso em 27 mar 2009.
  3. Disponível em <http://www.stf.jus.br/portal/cms/verTexto.asp?servico=estatistica&pagina=adi>, acesso em 27 mar 2009.
  4. Para Maturana, o termo "autopoiese" traduz o que ele chamou de "centro da dinâmica constitutiva dos seres vivos". Para exercê-la de modo autônomo, eles precisam recorrer a recursos do meio ambiente. Em outros termos, são ao mesmo tempo autônomos e dependentes. Trata-se, pois, de um paradoxo. Essa condição paradoxal não pode ser bem entendida pelo pensamento linear, para o qual tudo se reduz à binariedade do sim/não, do ou/ou. Diante de seres vivos, coisas ou eventos, o raciocínio linear analisa as partes separadas, sem empenhar-se na busca das relações dinâmicas entre elas. O paradoxo autonomia-dependência dos sistemas vivos é melhor compreendido por um sistema de pensamento que englobe o raciocínio sistêmico (que examina as relações dinâmicas entre as partes) e o linear. Eis o pensamento complexo, modelo proposto por Edgar Morin.
  5. A respeito do controle judicial dos atos legislativos, como conseqüência, do devido processo legal, ensina F. C. de San Tiago Dantas, que "a jurisprudência não poderia considerar law of the land tôda lei que dispusesse com caráter geral, para um grupo ou classe de indivíduos, a menos que ela preenchesse dois requisitos: 1o, que compreenda no seu âmbito todos os que se encontram ou se venham a encontrar em igual situação; 2o, que a diferenciação ou classificação feita na lei seja natural e razoável, e não arbitrária ou caprichosa (Vd. Magrath, loc. cit., pág. 302). A extensibilidade a tôdas as situações idênticas é um requisito que, no fundo, prova o caráter genérico da lei. Não é geral a norma cujo comando carece de fungibilidade perfeita; e não lhe poderá ser, portanto, reconhecido o caráter de due process of law (Sutton v. State, 96 Tenn. 710; Woodard v. Brien, 14 Lea, Tenn., 531; State v. Burnetts, 6 Heisk, Tenn., 186; etc). No segundo requisito, o da racionalidade da classificação, abre-se ao Poder Judiciário a porta por onde lhe vai ser dado examinar o próprio mérito da disposição legislativa; repelindo como um due process of law a lei caprichosa, arbitrária no diferenciar o tratamento jurídico dado a uma classe de indivíduos, o tribunal faz o cotejo da lei especial com as normas gerais de direito, e repele o direito de exceção que não lhe parece justificado" (Igualdade perante a lei e due process of law. In: Problemas de direito positivo. Estudos e pareceres. Rio de Janeiro: Forense, 1953. Pág. 46).
  6. O fenômeno da constitucionalização dos direitos e, conseqüentemente, da sua descodificação foi bem asseverado, entre outros, por Pietro Perlingieri: "O Código Civil certamente perdeu a centralidade de outrora. O papel unificador do sistema, tanto nos seus aspectos mais tradicionalmente civilísticos quanto naqueles de relevância publicista, é desempenhado de maneira cada vez mais incisiva pelo Texto Constitucional. Falar de descodificação relativamente ao Código vigente não implica absolutamente a perda do fundamento unitário do ordenamento, de modo a propor a sua fragmentação em diversos microordenamentos e em diversos microssistemas, comausência de um desenho global. Desenho que, se não aparece no plano legislativo, deve ser identificado no constante e tenaz trabalho do intérprete, orientado a detectar os princípios constantes na legislação chamada especial, reconduzindo-os à unidade, mesmo do ponto de vista da sua legitimidade. O respeito aos valores e aos princípios fundamentais da República representa a passagem essencial para estabelecer uma correta e rigorosa relação entre poder do Estado e poder dos grupos, entre maioria e minoria, entre poder econômico e os direitos dos marginalizados, dos mais desfavorecidos"(Perfis do Direito Civil. Introdução ao Direito Civil Constitucional. Trad. de Maria Cristina de Cicco. 3ª ed. São Paulo: Renovar, 1997. p. 6).

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Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

PEGORARO JUNIOR, Paulo Roberto. O neoprocessualismo e a publicização normativa como corolário da unidade processual sistêmica. Uma afirmativa da jurisdição constitucional. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 15, n. 2650, 3 out. 2010. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/17540. Acesso em: 29 mar. 2024.