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Responsabilidade civil das empresas tabagistas

Responsabilidade civil das empresas tabagistas

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1. Introdução

Segundo notícia publicada no site www.conjur.com.br, em 27 de abril de 2010:

"No Brasil, já foram ajuizadas 633 ações judiciais por fumantes, ex-fumantes e seus familiares contra as principais fabricantes de cigarros no país. Dessas, 400 possuem decisões rejeitando tais pretensões indenizatórias, 304 transitadas em julgado. Por outro lado, 16 desses processos já foram julgados em sentido contrário, ou seja, aprovaram o pedido de indenização. Todas ainda estão pendentes de recurso". (http://www.conjur.com.br/2010-abr-27/stj-define-souza-cruz-nao-indenizar-fumantes-cancer, acessada em 05.10.2010).

Em que pese a ausência de decisões judiciais, transitadas em julgado, condenando as empresas tabagistas ao pagamento de indenizações, aos próprios fumantes ou a seus familiares, vozes já se levantam, na doutrina, pregando a responsabilidade civil destas empresas. Esta é a idéia que doravante será defendida.

Pessoas que atualmente têm sua saúde comprometida e que estão morrendo, em razão dos malefícios causados pelo uso do cigarro, iniciaram-se no vício, via de regra, há muitos anos, quando a publicidade do cigarro não sofria qualquer restrição.

À época, as empresas tabagistas, negando que o cigarro pudesse causar prejuízos à saúde, e, ainda, associando seu uso a status social, beleza, prática de esportes, popularidade e sucesso, incitavam a população jovem a seu uso.

Fumantes enganados de outrora são os doentes de hoje.

Diga-se aqui, de passagem, que não convence o argumento de que os fumantes fazem uso do cigarro por livre opção, sabedores dos malefícios que o fumo acarreta, o que poderia excluir a responsabilidade civil das empresas tabagistas, ao menos no que toca aos fumantes que contraem o vício atualmente. Este ponto, porém, não será enfrentado neste texto, que restaria demasiadamente extenso caso buscasse esgotar a matéria.


2. Publicidade do Cigarro

Fim da propaganda de cigarros influenciou queda do consumo

A avaliação é de pesquisador da Unifesp que estudou uso entre os jovens

São Paulo - Para o pesquisador da Unifesp, Elisaldo Carlini, um dos responsáveis pelos estudos sobre o consumo de cigarros no país, divulgados pela Agência Brasil, o bom resultado das pesquisas que indicam queda no uso entre jovens se deve, em grande parte, à proibição da propaganda de tabaco na mídia brasileira com a lei nº 10.167.

"Não tenho dúvidas que a proibição da propaganda foi fundamental para os resultados", enfatiza Carlini. "A propaganda de cigarro era bastante insinuante, ligada ao sucesso pessoal e a fatores como status econômico. Isso influenciava, principalmente, a camada jovem" [01].

(Fonte: Agência Estado)

O conhecimento público acerca dos malefícios ocasionados pelo uso do tabaco e a vasta disponibilidade de informações, que ocorrem na atualidade, afastam a possibilidade de que as empresas tabagistas afirmem, como já fizeram no passado, que o cigarro não é nocivo à saúde, ou que neguem que sua publicidade, enganosa, destinava-se a atrair cada vez mais consumidores ao vício.

O conhecimento do fato de que as empresas que exploram o comércio do fumo eram sabedoras dos malefícios de seu uso, e, ainda assim, faziam uso de propaganda falsa, voltada a cativar público jovem e atraí-lo ao vício, negando o poder viciante da nicotina e os prejuízos à saúde decorrentes do uso do cigarro, já é de domínio público.

Ganha destaque, por sua celebridade, a decisão da Juíza estadunidense Gladys Kessler, proferida em processo movido pelo Governo dos Estados Unidos contra várias empresas tabagistas.

No texto denominado "O veredicto Final: Trechos do processo Estados Unidos X Philip Morris", retirado do site da Aliança de Controle ao Tabagismo, no qual há a reprodução de trechos de decisão da Juíza Gladys Kessler, proferida em 2006, em processo no qual o Governo Americano acusava os fabricantes de cigarros de fraude, fica evidente que as empresas de tabaco tinham ciência, há mais de 50 anos, dos malefícios causados pelo cigarro e ainda assim omitiam tais informações dos consumidores [02].

O texto mencionado acima, "O veredicto Final: Trechos do processo Estados Unidos X Philip Morris", revela a má-fé que permeava as ações das empresas tabagistas, nos Estados Unidos. Dentre as empresas rés em aludida ação judicial, promovida pelo Governo Americano, estava a British American Tobacco Ltda. (BatCo) [03], que, confessadamente, tinha ciência dos malefícios do cigarro, e mesmo assim permaneceu omitindo tal informação, para angariar mais consumidores. Conforme cita a Juíza Gladys Kessler, em trecho de sua decisão, documento interno da BATCo, de junho de 1959, trazia a seguinte afirmação:

"Abaixar demais o teor da nicotina pode acabar destruindo a dependência de um grande número de consumidores e impedir que novos fumantes se tornem dependentes de nicotina". (grifo nosso)

Por todas as pesquisas feitas pelas próprias indústrias do cigarro, sempre voltadas à contradizer e refugar as afirmações de que o uso de tabaco era prejudicial à saúde, fica evidente que elas tiveram ciência, muito antes mesmo que os órgãos de saúde pública, acerca dos malefícios que o cigarro poderia ocasionar e a respeito do poder viciante da nicotina.

Trazendo à luz, também, tudo o quanto praticado pelas empresas exploradoras do comércio do fumo, no mundo, citamos trechos da notícia "Exposição mostra como a indústria do tabaco enganava consumidores", publicada no portal UOL, na internet, em 14.10.2009:

"Em tempos de leis que proíbem o fumo em locais fechados, observar um anúncio de cigarro produzido entre as décadas de 1920 e 1950 chega a ser cômico, para não dizer trágico. Naquele tempo, a indústria usava a propaganda para esconder os reais e hoje inegáveis efeitos do tabaco à saúde, como o aumento do risco de câncer.

Um Papai Noel que fuma e um médico que anuncia as vantagens de determinada marca de cigarro para a garganta são algumas imagens estampadas nas peças publicitárias da época (...)".

A título de mera ilustração calha mencionar, aqui, ainda, trechos de diversas outras notícias, colhidas em diversos sites da internet, acerca da publicidade do cigarro:

"OMS denuncia marketing de cigarros direcionado a mulheres

 DA REUTERS

A Organização Mundial da Saúde está pedindo mais ações contra a publicidade de cigarros direcionada a mulheres e meninas, especialmente em países em desenvolvimento.

(...)

‘A estratégia da indústria está tendo o impacto desejado’, diz Douglas Bettcher, da OMS. ‘Cada vez mais meninas estão começando a fumar’.

(...)

‘A indústria está gastando muito em publicidade sedutora que tem como alvo as mulheres, especialmente em países com renda baixa ou média’, diz Bettcher. ‘A publicidade tenta fazer as mulheres associarem cigarro com beleza e liberdade’" [04].

"Marketing do tabaco promove o fumo entre jovens

(...)

* As evidências científicas mostram que a publicidade e promoção do tabaco fazem com que seu consumo aumente, e até mesmo uma breve exposição à publicidade do tabaco pode influenciar adolescentes. Grande parte da publicidade do tabaco visa às necessidades psicológicas de adolescentes como popularidade, aceitação entre os colegas e auto-imagem positiva;

(...)

É sabido que a maioria das pessoas começa a fumar antes de 18 anos e quase um quarto delas usa tabaco antes dos 10. Quanto mais novo for o jovem a experimentar o fumo, mais propenso está a se tornar usuário e menores são as possibilidades de parar de fumar.

Está claramente provado que a exposição direta ou indireta à propaganda de tabaco, junto com outras estratégias de marketing usadas pela indústria, leva a um aumento da experimentação entre os jovens e, por conseguinte, a um risco real de se tornarem usuários regulares de produtos de tabaco. A indústria gasta, em todo o mundo, 10 bilhões de dólares por ano para vender seus produtos de todas as maneiras possíveis. [05]".

Não há diferença entre os fatos ocorridos no Brasil e a maneira como tudo se desenrolou nos demais países. Também aqui as empresas tabagistas, enquanto a legislação o permitiu, veicularam, em meios de comunicação de massa, sobretudo na TV, mensagens publicitárias associando o uso do cigarro à bela aparência, sucesso e felicidade, à prática de esportes e à popularidade, comerciais estes voltados, principalmente, ao público jovem.

Evidente a ocorrência do ato ilícito cometido pelas empresas tabagistas, consistente em não informar seus consumidores, hoje doentes, à época em que se iniciaram no vício, de maneira clara e adequada, acerca das características, composição, qualidade do produto, e dos riscos inerentes ao consumo do cigarro.

Ademais, a publicidade de cigarros veiculada à época em que grande parte dos que hoje fumam, contraíram o vício, via de regra ainda na adolescência, associava o consumo de cigarros ao sucesso profissional, beleza, prazer, saúde, etc., como já dito, sem fazer qualquer menção aos malefícios do seu uso.

Conforme texto extraído do site da empresa tabagista Souza Cruz, a maior do Brasil, em acesso realizado em 17 de agosto de 2010, verifica-se que somente no ano de 1988 o comercial de cigarros passou a ter disciplina legal, mas ainda demasiadamente tímida. À época deveria haver a seguinte advertência, inserida na nota comercial: "O MINISTÉRIO DA SAÚDE adverte: fumar é prejudicial à saúde" [06].

Apenas em 1996, com o advento da Lei 9.294/96, é que foram impostas restrições aos comerciais dos cigarros. Citada lei restringiu a propaganda comercial do produto em emissoras de rádio e televisão ao horário compreendido entre as 21 e as 6 horas, e estabeleceu diversas restrições quanto à propaganda, tais como: não sugerir o consumo exagerado ou irresponsável nem tampouco sugerir que seu consumo induzam o bem-estar ou a saúde; não associar o cigarro a celebrações cívicas ou religiosas; não o associar ideias ou imagens de êxito na sexualidade; não associar o uso do produto à prática de atividades esportivas, etc.

Somente no ano de 2000 a Lei Federal 10.167/00 probiu a publicidade de cigarro em meios eletrônicos, que ficou limitada basicamente aos pôsteres, painéis e cartazes, na parte interna dos locais de venda.

Interessante ressaltar aqui, contudo, que já em 1999 o Ministério da Saúde, pela Portaria 695/99, determinou a inclusão, em comerciais de cigarro, de novas cláusulas de advertência:

" O Ministério da Saúde Adverte:

Fumar causa  câncer de pulmão;

- Fumar provoca infarto do coração;

- A nicotina é droga e causa dependência;

- Fumar causa impotência sexual;

- Crianças começam a fumar ao verem os adultos fumando."

Merecem destaque, por fim, as advertências cuja veiculação foi imposta na RDC 335/03 ANVISA, consistentes em imagens a ocuparem toda extensão da maior face visível da embalagem do cigarro, acompanhadas dos seguintes textos:

"1. Esta necrose foi causada pelo consumo do tabaco.

2. Fumar causa impotência sexual.

3. Crianças que convivem com fumantes têm mais asma, pneumonia, sinusite e alergia.

4. Ele é uma vítima do tabaco. Fumar causa doença vascular que pode levar a amputação.

5. Fumar causa aborto espontâneo.

6. Ao fumar você inala arsênico e naftalina, também usados contra ratos e baratas.

7. Fumar causa câncer de laringe.

8. Fumar causa câncer de boca e perda dos dentes.

9. Fumar causa câncer de pulmão.

10. Em gestantes, fumar provoca partos prematuros e o nascimento de crianças com peso abaixo do normal".

Como visto, o uso do cigarro está diretamente relacionado, dentre outras, com doenças cardiovasculares e pulmonares, justamente aquelas que vitimam a maioria absoluta dos fumantes. O fato de que o cigarro provoca estas doenças é tão evidente que tal advertência, como dito acima, a partir de 1999, passou a constar da própria embalagem do produto.

Voltando os olhos, agora, a título de mero exemplo, à Souza Cruz, como dito, maior empresa tabagista do Brasil, conforme informação extraída do site www.olhardireto.com.br em 17.08.2010, até o ano de 2000, quando aconteceu a proibição da veiculação de comerciais de cigarros em meios eletrônicos de comunicação, a Souza Cruz já havia gasto R$ 347.000.000,00 em propaganda.

Revela o fato de que o marketing da Souza Cruz, como ocorre com as demais empresas do cigarro, sempre foi agressivo, o fato de que, ainda hoje, com todas as limitações impostas à publicidade do cigarro, a empresa faz uso de estratégias de comércio condenáveis, dada a natureza do produto que coloca à venda. Segundo notícia divulgada no site www.mundodomarketing.com.br:

"Customizar é criar vínculo

Com base nas informações adquiridas com estudos de comportamento e perfil, a Souza Cruz lança produtos customizados, assim como empresas do segmento de alimentação, que divulgam novas fórmulas de seus produtos em versão Light ou Diet. Com esta estratégia, a companhia faz com que o consumidor tenha a sensação de pertencer a alguma comunidade, gerando bem-estar individual e coletivo" [07].

As empresas do fumo, portanto, tanto venderam, quanto continuam vendendo, cigarros como se eles pudessem trazer ao consumidor segurança, bem-estar, status e colocação social.

Discorrer mais acerca do marketing das empresas tabagistas é desnecessário. Inegável que a publicidade do cigarro sempre foi voltada aos jovens e seu consumo sempre foi associado a sucesso, bem estar, desenvoltura, prática de esportes, beleza, etc. Inegável, também, que somente há poucos anos os consumidores passaram a ser cientificados dos efeitos nocivos do consumo do tabaco, e, ainda, assim, de início, de maneira tímida.


3. Malefícios do Cigarro

"Diversas pesquisas mostram que, nos últimos 15 anos, a idade em que meninas e meninos começam a fumar está cada vez mais baixa. Atenta ao mercado, a indústria do fumo dirige a publicidade para a infância e a puberdade.

Por exemplo, veja o que aconteceu nos Estados Unidos com os comerciais estrelados por aquele camelo simpático de óculos escuros, em cima da moto, criado pela R. J. Reinolds, em 1988.

Três anos depois de lançada a campanha, diversos estudos demonstraram que crianças e adolescentes eram perfeitamente capazes de reconhecer com facilidade a personagem e associá-la à marca de cigarro correspondente. Um desses estudos mostrou que o camelo era tão conhecido pelas crianças de 6 anos quanto o camundongo Mickey" [08].

Conforme dados da Organização Mundial da Saúde, três milhões de fumantes morrem por ano em decorrência de doenças relacionadas com o tabaco. De acordo com artigo "Tratamento da Dependência da Nicotina" extraído do site da Universidade Federal de São Paulo - UNIFESP, o tabagismo é apontado como a maior causa de mortalidade em muitos países, e, embora 70% dos fumantes pretendam parar de fumar, apenas 5% consegue, de fato, por fim ao vício. Para o psiquiatra Dr. Ronaldo Laranjeira, autor do artigo, o consumo do cigarro não é meramente a causa de mortes e sim a própria doença, que é a dependência da nicotina [09].

No Brasil a situação não é diferente. Segundo notícia publicada no site Folha.com:

"No Brasil, segundo dados do Instituto Nacional do Câncer (Inca), 40% das mortes de mulheres com menos de 65 anos são causadas pelo consumo de tabaco" [10].

Notícia que revela, também, o atual reconhecimento público dos malefícios do cigarro e a adesão, inclusive dos órgãos públicos a seu combate, é a extraída do site do Ministério da Saúde, intitulada "A ofensiva do MS contra o fumo", da qual citamos o seguinte trecho:

"A luta contra o tabaco, hoje já visto como uma droga que causa dependência e graves transtornos a seus usuários, é dura. Sofisticadas e eficazes campanhas de marketing garantem à indústria do fumo sua expansão. No Brasil, o Ministério da Saúde busca apoio na sociedade para o projeto de Decreto Legislativo nº 602/04 que ratifica a Convenção-Quadro, documento internacional que propõe estratégias para controle do tabaco e derivados" [11].

Por brevidade, não serão lançados, aqui, longos argumentos a respeito da nocividade do cigarro à saúde. Basta dizer que o Ministério da Saúde, o Instituto Nacional do Câncer – INCA, e a Organização Mundial de Saúde, além de diversas outras entidades, públicas e privadas, empreendem esforços para o controle e redução de seu consumo.

Citamos, na sequência, diversos trechos de artigos publicados pelo médico Drauzio Varella, no site www.drauziovarella.com.br. Os artigos contam, em seu conteúdo, não só com a experiência médica do autor, mas, também, com sua experiência de ex-fumante, e bem ilustram a capacidade viciante da nicotina e os prejuízos à saúde decorrentes de seu uso:

"Droga pesada

Fui dependente de nicotina durante 20 anos. Comecei ainda adolescente, porque não sabia o que fazer com as mãos quando chegava às festas. Era início dos anos 60 e o cigarro estava em toda parte: televisão, cinema, outdoors e com os amigos. As meninas começavam a fumar em público, de minissaia, com as bocas pintadas assoprando a fumaça para o alto. O jovem que não fumasse estava por fora.

(...)

A nicotina é um alcalóide. (...) De todas as drogas conhecidas, é a que mais dependência química provoca. Vicia mais do que álcool, cocaína, morfina e crack. E vicia depressa: de cada dez adolescentes que experimentam o cigarro quatro vezes, seis se tornam dependentes para o resto da vida.

A droga provoca crise de abstinência insuportável. Sem fumar, o dependente entra num quadro de ansiedade crescente, que só passa com uma tragada. Enquanto as demais drogas dão trégua de dias, ou pelo menos de muitas horas, ao usuário, as crises de abstinência da nicotina se sucedem em intervalos de minutos.

(...)

O fumo é o mais grave problema de saúde pública no Brasil (...)" [12].

"Fraude, corrupção e mentiras

Os fabricantes de cigarro levaram 40 anos para admitir o que já sabiam desde os anos 1950: o fumo causa câncer de pulmão. Nesse período, ‘a indústria do tabaco cometeu uma sucessão de fraudes, propagou mentiras com ares de controvérsia científica e enganou os consumidores num nível provavelmente inédito na história do capitalismo’. Assim começa o excelente livro ‘O Cigarro’ (Publifolha, 87 pág.), de Mario Cesar Carvalho.

(...)

No Brasil, apesar do avanço inegável dos últimos anos, a adoção de medidas restritivas à publicidade do cigarro aconteceu com 30 anos de atraso em relação aos Estados Unidos, como nos lembra o autor. Desde 1971, é proibido anunciar cigarro na TV americana; no Brasil, a proibição foi feita há pouco mais de um ano. Durante 30 anos, nossas crianças foram bombardeadas com mensagens para induzi-las a fumar, enquanto as americanas eram protegidas pela legislação de seu país" [13].

"Crime e castigo

(...)

A Souza Cruz, que não é do senhor Souza e muito menos do senhor Cruz, e a Philip Morris, que não sei se algum dia pertenceu aos senhores Philip ou Morris, dominam mais de 80% do mercado nacional. Em linguagem mais precisa, fornecem droga para 80% dos dependentes de nicotina do país.

É um mercado cativo de mulheres e homens induzidos ao vício na puberdade e adolescência. São milhões de crianças arregimentadas por meio da publicidade criminosa que ligou o cigarro à liberdade, à performance esportiva e ao sucesso nas conquistas amorosas, veiculada sem restrições legais pelos meios de comunicação de massa até pouquíssimo tempo atrás.

(...)

Por entender que os fabricantes de cigarro são responsáveis por vender uma droga que provoca câncer, enfisema, derrames cerebrais, ataques cardíacos e uma infinidade de outras patologias, tanto nos fumantes como nos que têm o azar de conviver com eles, o governo dos Estados Unidos processou as principais indústrias do setor com o objetivo de forçá-las a indenizar o sistema de saúde.

(...)

Sem entrar no mérito do papel a que determinadas pessoas se sujeitam para ganhar a vida, é importante deixar claro que, de fato, os malefícios do cigarro são conhecidos há décadas. Pena que só pudessem chegar aos usuários mais esclarecidos (e só a eles) tão recentemente, porque as companhias citadas, em compadrio obsceno com suas congêneres, tradicionalmente arregimentaram médicos e cientistas de aluguel para criticar qualquer estudo que porventura demonstrasse a relação entre cigarro, doença e mortalidade. Sem falar no imenso poder intimidatório das verbas publicitárias na hora de calar a imprensa mundial.

Quem perpetrou tais crimes por mais de 50 anos, com o objetivo de universalizar uma epidemia causadora de mais mortes do que as guerras do século 20 somadas, por acaso tem idoneidade para dizer que fumantes adoecem por ignorar os avisos de que o cigarro mata?

(...) [14]".

"A epidemia do fumo

(...)

Naquela época, o impacto da propaganda do cigarro era universal: no cinema, na TV, no rádio e na música, todos os astros e estrelas fumavam sem parar. Que adolescente conseguia resistir ao charme dos lábios de Rita Hayworth assoprando a fumaça para o céu?

(...)

A partir da Segunda Guerra Mundial, essa compra de espaço nos meios de comunicação, aliada a um tipo de publicidade dirigida sem nenhum pudor para aliciar as crianças, alastrou a epidemia da dependência de nicotina pelo mundo inteiro. Na história do capitalismo, raros crimes contra a humanidade foram executados com tal premeditação" [15].

"Os criminosos ‘light’

Material que chegou às mãos do The New York Times mostra que uma das companhias pretende adotar o seguinte código nas embalagens: maço vermelho para cigarros comuns; verde para os mentolados; azul, dourado e verde claro para os ‘lights’; prateado e alaranjado para os ‘ultralights’.

Estudo publicado em setembro do ano passado no European Journal of Public Health revelou que mulheres e homens adultos acreditam que cigarros com maços prateados ou dourados fazem menos mal e são mais fáceis de largar, e que os adolescentes tendem a experimentá-los com mais curiosidade" [16].

"A crise de abstinência de nicotina

(...)

Tal empreitada significa enfrentar a abstinência de nicotina, que se manifesta em crises repetitivas, muito mais intensas, desagradáveis e difíceis de suportar do que aquelas provocadas por drogas como cocaína, crack, maconha, ou álcool.

Os primeiros dois dias sem fumar são os piores.

(...)

Em média, seis meses depois de parar de fumar, a maioria dos ex-fumantes já consegue passar um ou outro dia sem se lembrar da existência do cigarro.

(...)" [17].

Por fim, citamos um último trecho, também de artigo publicado por Drauzio Varella, no site já indicado, que merece especial destaque, por fazer referência expressa justamente a uma das patologias que mais flagela e mata usuários de cigarro:

"DPOC

A doença pulmonar obstrutiva crônica (DPOC) é, na verdade, um espectro de doenças que inclui bronquite crônica e enfisema. O cigarro é responsável pela imensa maioria dos casos.

(...)

Parar de fumar é decisivo para o futuro dos que apresentam declínio progressivo das provas de função respiratória. Quando isso acontece em pacientes com pequeno grau de obstrução das vias aéreas causada pela fumaça do cigarro, a interrupção é associada à melhora imediata da função pulmonar. Ao contrário, nos que continuam a fumar, uma vez alteradas, as provas funcionais sofrem declínio rápido e progressivo.

(...)" [18].

Diante do que foi até aqui exposto, fica evidente o nexo causal entre a ação das empresas tabagistas, consistente em expor à venda um produto extremamente nocivo à saúde e que leva ao vício, omitindo, escondendo e mascarando tais circunstâncias, e as doenças que tolhem a vida e a saúde de seus usuários.

Embora tivessem as empresas exploradoras do fumo plena ciência das propriedades nocivas do tabaco, não tomaram elas a cautela necessária de prevenir o consumidor acerca de dados relevantes sobre o produto que colocavam no mercado, como a presença de nicotina e de outras milhares de substâncias tóxicas, e que seu consumo poderia levar ao vício.

Como já exposto acima, a lista de doenças provocadas pelo cigarro é extensa, de forma que o óbito, ou o comprometimento da saúde, dos fumantes, guarda estreita relação com o tabaco.

Ainda, porém, que se admita que tais doenças tenham outras causas, que não o uso do cigarro, inegável que o vício de fumar dificulta, e, por vezes, impossibilita, a recuperação do doente, diminuindo sua expectativa e sua qualidade de vida, causando, tanto ao viciado quanto a seus familiares, dano moral passível de indenização.

Imagine-se, por exemplo, que um fumante, após dezenas de anos de uso do tabaco, venha a apresentar uma doença pulmonar, ou cardiovascular. Certamente a doença é decorrente do vício do cigarro. Contudo, ainda que se pense de modo contrário, ou seja, que a doença pode ter outras causas que não o cigarro, certamente o vício na nicotina dificulta, ou mesmo impossibilita a recuperação do doente, diminuindo sua expectativa e sua qualidade de vida, causando dano passível de indenização.


4. Direito Aplicável

Consumidores que atualmente morrem, ou apresentam severos comprometimentos em sua saúde, em regra, começaram a fumar na adolescência, e continuaram fazendo uso do cigarro ao longo da vida. O vício da nicotina acompanha o fumante por anos e até décadas, intervalo de tempo suficiente para a vigência de diversos diplomas legislativos.

Cumpre, de início, fazer menção ao Código Civil de 1916, diploma legal vigente à época em que a maioria dos fumantes, hoje moribundos, iniciaram-se no vício, e que trazia em seu artigo 159 a seguinte prescrição:

"Art. 159. Aquele que, por ação ou omissão voluntária, negligência ou imprudência, violar direito, ou causar prejuízo a outrem fica obrigado a reparar o dano"

Importante transcrever, também, que o Código Civil de 2002, atualmente vigente, da mesma forma prevê, em seu artigo 927:

"Art. 927. Aquele que, por ato ilícito (artigo 186 e 187), causar dano a outrem, fica obrigado a repará-lo"

Parágrafo Único. Haverá obrigação de reparar o dano, independentemente de culpa, nos casos especificados em lei ou quando a atividade normalmente desenvolvida pelo autor do dano, implicar, por sua natureza, riscos para os direitos de outrem. (grifo nosso).

Em complemento, vem a calhar a reprodução, também, dos artigos 186 e 187 do Código Civil, a que o artigo 927 faz remissão:

"Art. 186. Aquele que, por ação ou omissão voluntária, negligência ou imprudência, violar direito e causar dano a outrem, ainda que exclusivamente moral, comete ato ilícito".

"Art. 187. Também comete ato ilícito o titular de um direito que, ao exercê-lo, excede manifestamente os limites impostos pelo seu fim econômico ou social, pela boa-fé ou pelos bons costumes".

De acordo com a doutrina de Nelson Nery Junior e de Rosa Maria de Andrade Nery, em se tratando de responsabilidade objetiva, o ato ilícito dá causa à reparação dos danos causados, independentemente da comprovação de dolo ou culpa do agente causador. Basta ao lesado, assim, fazer prova do ato violador de seu direito, do dano sofrido e do nexo de causalidade entre um e outro. Afirmam os conceituados doutrinadores:

"(...) O ato ilícito descrito no CC 187 enseja reparação dos danos que causou, pelo regime da responsabilidade objetiva, desnecessária a demonstração da conduta do agente (dolo ou culpa), de sorte que são requisitos necessários para que haja o dever de indenizar: a) o ato, b) o dano; c) o nexo de causalidade entre o ato e o dano" [19].

Nelson Nery Junior e Rosa Maria de Andrade Nery ensinam, também, ser a responsabilidade indenizatória objetiva, quando decorrer ela do risco da atividade desenvolvida pelo agente causador, conforme disposto no parágrafo único, do artigo 927, acima citado:

"A norma determina que seja objetiva a responsabilidade quando a atividade do causador do dano, por sua natureza, implicar risco para o direito de outrem. É a responsabilidade pelo risco da atividade" [20].

O ato ilícito imputado às empresas tabagistas, no presente texto, consiste em omitir informações relevantes acerca da nocividade do produto por elas exposto à venda, tal como a presença de nicotina e de outras milhares de substâncias tóxicas, omissão esta atrelada à publicidade que associava o consumo do cigarro ao sucesso, à beleza, à popularidade, à prática de esportes, etc.

Já o dano, no caso, consiste no abalo à saúde do fumante, e, por vezes, na sua morte, prematura, sofrida e tormentosa, em regra precedida de mais sofrimento e tormento, que recai tanto sobre o próprio fumante quanto sobre seus familiares, sendo por todos compartilhados.

E quanto ao nexo de causalidade, por fim, inegável e de clareza ímpar que o consumo do cigarro leva o fumante a apresentar sérios problemas de saúde, que o conduzem à morte ou, ao menos, encurtam seu caminho até ela. Diversas doenças estão diretamente relacionadas ao consumo do tabaco, tanto que assim atualmente consta advertência, na própria embalagem do produto.

Importante ressaltar, neste ponto, que ainda que não se considere seja produzida prova estanque de que as doenças que maltratam o viciado tenham sido causadas pelo uso de cigarros, indubitável que o vício dificulta ou mesmo impede sua recuperação, diminuindo sua expectativa, sua qualidade de vida e seu tempo de sobrevida, aumentando, pois o sofrimento do usuário do fumo e de toda a família.

Da mesma forma, vislumbra-se a aplicabilidade do Código de Defesa do Consumidor aos fatos em discussão, eis que existe, no caso, uma relação continuada de consumo, de trato sucessivo, na medida em que o início do consumo do cigarro pelos usuários que ora padecem teve início há dezenas de anos, em regra, estendendo-se até a vigência da Lei 8.078/90.

Ademais, a norma que estabelece a proteção consumerista é considerada norma de ordem pública, de aplicação cogente, e, por essa razão atinge os fatos ainda não consolidados quando de sua entrada em vigência.

O Código de Defesa do Consumidor prevê, em seu artigo 12, a responsabilidade do fornecedor pela reparação de danos oriundos de defeito no produto, conforme disposto a seguir:

"Art. 12. O fabricante, o produtor, o construtor, nacional ou estrangeiro, e o importador respondem independentemente da existência de culpa, pela reparação dos danos causados aos consumidores por defeitos decorrentes do projeto, fabricação, construção, montagem, fórmulas, manipulação, apresentação ou acondicionamento de seus produtos, bem como por informações insuficientes ou inadequadas sobre sua utilização e riscos" (grifo nosso).

Cabe esclarecer que a legislação consumerista prevê não somente o defeito causado por fatos relacionados à produção e fabricação do produto, mas que leva em consideração, da mesma forma, o defeito decorrente da ausência de informações, ou, ainda, por não ser ela prestada na íntegra, de forma ostensiva e clara, ou quando faltam informações essenciais com relação ao produto comercializado. Segundo o teor do artigo 8º do CDC:

"Art. 8°. Os produtos e serviços colocados no mercado de consumo não acarretarão riscos à saúde ou segurança dos consumidores, exceto os considerados normais e previsíveis em decorrência de sua natureza e fruição, obrigando-se os fornecedores, em qualquer hipótese, a dar as informações necessárias e adequadas a seu respeito".

Da mesma forma, estabelecem os artigos 6° e 9°, do mesmo diploma, quanto ao dever de informar:

"Art. 6°. São direitos básicos do consumidor:

(...)

IIII- a informação adequada e clara sobre os diferentes produtos e serviços, com especificação correta de quantidade, características, composição, qualidade e preço, bem como sobre os riscos que apresentam;

(...)".

"Art. 9°. O fornecedor de produtos e serviços potencialmente nocivos ou perigosos à saúde ou segurança deverá informar, de maneira ostensiva e adequada, a respeito de sua nocividade ou periculosidade, sem prejuízo da adoção de outras medidas cabíveis em cada caso concreto".

Não nos resta dúvida, assim, acerca da responsabilidade civil das empresas tabagistas pelos danos causados aos consumidores do cigarro, notadamente àqueles que já se iniciaram no vício há muitos anos, haja vista a evidência do ilícito perpetrado por elas, quando preponderava a ausência de informações aos consumidores quanto aos efeitos nocivos do tabaco e dos riscos do produto, no caso, o cigarro. Ao contrário, a regra era a veiculação de publicidade de cigarros atrelando o seu uso a sucesso, saúde, popularidade, etc.

Não resta dúvida, de outro lado, quanto à presença do dano decorrente do uso do cigarro, que destroi a saúde do usuário, e da respectiva responsabilidade objetiva, prevista tanto no Código Civil quanto no Código de Defesa do Consumidor.

Julgando caso bastante similar ao ora em discussão, o Tribunal de Justiça de São Paulo decidiu pela aplicação do Código de Defesa do Consumidor e da teoria do risco, e declarou a responsabilidade objetiva de empresa tabagista quanto à obrigação de indenizar fumante que sofreu danos em razão do vício:

Apelação Com Revisão 994050111297 (3792614500)

Relator (a): Joaquim Garcia

Comarca: São Paulo

Órgão julgador: 8ª Câmara de Direito Privado

Data do julgamento: 08/10/2008

Data de registro: 05/11/2008

Ementa: Responsabilidade civil - Indenização por danos morais e materiais - Tabagismo - Amputação dos membros inferiores - Vítima acometida de tromboangeíte aguda obliterante - Nexo causal configurado - Incidência do Código de Defesa do Consumidor - Responsabilidade objetiva decorrente da teoria do risco assumida com a fabricação e comercialização do produto - Omissão dos resultados das pesquisas sobre o efeito viciante da nicotina - Dever de indenizar - Recurso improvido.

Outros tribunais têm decidido no mesmo sentindo. A título de exemplo citamos trecho de ementa de Acórdão do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul (o Acórdão conta com mais de 120 páginas, e apenas a ementa se estende por mais de cinco), que também decidiu pela aplicabilidade do Código de Defesa do Consumidor e condenou empresa tabagista a indenizar familiares de fumante morto em razão de doenças advindas do uso do tabaco:

EMENTA:  APELAÇÃO CÍVEL. RESPONSABILIDADE CIVIL. MORTE DE FUMANTE QUE INICIOU O VÍCIO DO TABAGISMO ANTES DA VIGÊNCIA DO CDC. RESPONSABILIDADE OBJETIVA DO FABRICANTE OU FORNECEDOR PELO FATO DO PRODUTO (ART. 6º, INCISO VI, 9º E ART. 12, DO CDC). DIREITO COMPARADO. PRESSUPOSTOS. DEFEITO DE PRODUTO INERENTEMENTE PERIGOSO EM RAZÃO DA VIOLAÇÃO DE UMA LEGÍTIMA EXPECTATIVA DE SEGURANÇA CAPAZ DE PROVOCAR DANOS Á SAÚDE DOS CONSUMIDORES. NEXO DE CAUSALIDADE SOB A PERPECTIVA MÉDICA E JURÍDICA. AUSÊNCIA DE BOA-FÉ EM RAZÃO DA OMISSÃO EM ALERTAR AOS CONSUMIDORES DE CIGARROS SOBRE OS CONHECIDOS DANOS À SÁUDE PELO ATO DE FUMAR PRODUTO INERENTEMENTE PERIGOSO. CONTRIBUIÇÃO DA VÍTIMA (...) QUANTUM INDENIZATÓRIO. "DESPROVERAM O AGRAVO RETIDO E O RECURSO DE APELAÇÃO, E DE OFÍCIO, FIXARAM OS JUROS MORATÓRIOS LEGAIS A PARTIR DA SENTENÇA. UNÂNIME." (Apelação Cível Nº 70016845349, Nona Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Odone Sanguiné, Julgado em 12/12/2007).

Ora, uma vez evidente e inafastável a omissão de informações essenciais e relevantes sobre o produto comercializado pelas empresas tabagistas, quanto à sua periculosidade intrínseca, como a presença da nicotina e seu poder viciante, logo surge o dever de indenizar os usuários de tabaco pelo ato ilícito cometido. O fato de as empresas tabagistas deixarem de advertir os consumidores de tais fatos é passível e suficiente para causar danos de toda ordem e de grande monta, devendo elas responderem por sua ocorrência.

Diga-se, por fim, que ainda que possa haver dúvida quanto ao diploma legal que venha a ser aplicado à espécie, a ilicitude dos atos das empresas tabagistas, que expuseram e expõem à venda produto viciante e altamente nocivo à saúde, omitindo tais informações dos consumidores, e, pior, convencendo-os do contrário, emerge da violação do princípio da boa-fé objetiva.

O princípio da boa-fé não foi instituído por código algum. Ao contrário, decorre ele da mais simples ideia de Direito e de Justiça.

O Direito Romano, berço mais distante do ordenamento jurídico nacional, já trazia entre seus postulados os princípios: Honeste vivere, sunum cuique tribuire, neminem caederae (viver honestamente, dar a cada um o que é seu, não prejudicar a ninguém). Tais postulados, ainda que não de maneira expressa, sempre foram e sempre serão a base fundamental do Direito.

Discorrendo acerca do princípio da boa-fé Miguel Reale escreve que:

"Como se vê, a boa-fé não constitui um imperativo ético abstrato, mas sim uma norma que condiciona e legitima toda a experiência jurídica, desde a interpretação dos mandamentos legais e das cláusulas contratuais até as suas últimas conseqüências.

Daí a necessidade de ser ela analisada como conditio sine qua non da realização da justiça ao longo da aplicação dos dispositivos emanados das fontes do direito, legislativa, consuetudinária, jurisdicional e negocial.

Em primeiro lugar, importa registrar que a boa-fé apresenta dupla faceta, a objetiva e a subjetiva. Esta última – vigorante, v.g., em matéria de direitos reais e casamento putativo – corresponde, fundamentalmente, a uma atitude psicológica, isto é, uma decisão da vontade, denotando o convencimento individual da parte de obrar em conformidade com o direito. Já a boa-fé objetiva apresenta-se como uma exigência de lealdade, modelo objetivo de conduta, arquétipo social pelo qual impõe o poder-dever que cada pessoa ajuste a própria conduta a esse arquétipo, obrando como obraria uma pessoa honesta, proba e leal. Tal conduta impõe diretrizes ao agir no tráfico negocial, devendo-se ter em conta, como lembra Judith Martins Costa, ‘a consideração para com os interesses do alter, visto como membro do conjunto social que é juridicamente tutelado’. Desse ponto de vista, podemos afirmar que  a boa-fé objetiva se qualifica como normativa de comportamento leal. A conduta, segundo a boa-fé objetiva, é assim entendida como noção sinônima de ‘honestidade pública’" [21].

Independentemente, assim, do viés jurídico pelo qual seja analisada a situação de fato colocada, qual seja, de que as empresas tabagistas comercializam produto altamente nocivo à saúde, dotado de grande poder viciante, omitindo e falseando tais informações, a conclusão não pode ser outra que não a de que ditas empresas são civilmente responsáveis pelos danos causados a seus consumidores.


5. Conclusão

Inegável, conclui-se, que a atitude das empresas tabagistas de colocar à venda produto viciante altamente nocivo à saúde, escondendo, dissimulando e negando esta natureza, conduzindo seus consumidores ao vício, é ato ilícito.

Tal ato ilícito, conjugado com os danos sofridos pelos fumantes e seus familiares, que veem a saúde do viciado ser destruída pelo consumo de cigarros, faz nascer a obrigação de indenizar.

Ressalte-se aqui, uma vez mais, que ainda que não se comprove que as doenças que vitimam os fumantes têm como causa exclusiva o consumo de cigarros, inafastável é a circunstância de que este vício dificulta, ou mesmo impossibilita a recuperação, diminuindo a sobrevida do usuário do tabaco, bem como a qualidade desta sobrevida, causando já dano passível de indenização.


Notas

  1. http://www.idec.org.br/noticia.asp?id=7740, acesso em 18.08.2010
  2. Extraído do endereço eletrônico www.actbr.org.br/pdfs/capitulos-sentenca.pdf em 21 de julho de 2010
  3. A requerida é subsidiária da Britsh American Tobacco no Brasil.
  4. http://www1.folha.uol.com.br/equilibrioesaude/742482-oms-denuncia-marketing-de-cigarros-direcionado-a-mulheres.shtml, acesso em 18.08.2010
  5. http://www.revistavigor.com.br/2008/08/24/marketing-do-tabaco-promove-o-fuma-entre-jovens/, acesso em 18.08.2010
  6. http://www.souzacruz.com.br/group/sites/SOU_7UVF24.nsf/vwPagesWebLive/DO7ZTRET?opendocument&SKN=1
  7. http://www.mundodomarketing.com.br/imprimiblognews.php?materia=4009, acesso em 18.08.2008
  8. http://www.drauziovarella.com.br/ExibirConteudo/401/a-propaganda-do-cigarro, acesso em 18.08.2010
  9. Extraído do endereço eletrônico www.unifesp.br/dpsiq/polbr/ppm/atu1_02.htm, em 21 de julho de 2010
  10. http://www1.folha.uol.com.br/equilibrioesaude/743030-fumo-e-responsavel-por-40-das-mortes-de-mulheres-com-menos-de-65-anos.shtml, acesso em 18.08.2010
  11. http://portal.saude.gov.br/portal/saude/visualizar_texto.cfm?idtxt=21806, acesso em 18.08.2010.
  12. http://www.drauziovarella.com.br/ExibirConteudo/396/droga-pesada, acesso em 18.08.2010
  13. http://www.drauziovarella.com.br/ExibirConteudo/399/fraude-corrupcao-e-mentiras, acesso em 18.08.2010
  14. http://www.drauziovarella.com.br/ExibirConteudo/6005/crime-e-castigo, acesso em 18.08.2010
  15. http://www.drauziovarella.com.br/ExibirConteudo/456/a-epidemia-do-fumo, acesso em 18.08.2010
  16. http://www.drauziovarella.com.br/ExibirConteudo/6126/os-criminosos-"light", acesso em 18.08.2010
  17. http://www.drauziovarella.com.br/ExibirConteudo/343/a-crise-de-abstinencia-de-nicotina, acesso em 18.08.2010
  18. http://www.drauziovarella.com.br/ExibirConteudo/448/dpoc, acesso em 18.08.2010
  19. JUNIOR, Nelson Nery; NERY, Rosa Maria de Andrade, Código Civil Comentado, Editora Revista dos Tribunais, São Paulo, 2005, p. 535.
  20. JUNIOR, Nelson Nery; NERY, Rosa Maria de Andrade, Código Civil Comentado, Editora Revista dos Tribunais, São Paulo, 2005, p. 536.
  21. http://www.miguelreale.com.br/artigos/boafe.htm, acesso em 19.08.2010

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Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

FERREIRA, Rodrigo Emiliano; PETRIBÚ, Mariana Reis Cavalcanti de. Responsabilidade civil das empresas tabagistas. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 15, n. 2662, 15 out. 2010. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/17632. Acesso em: 28 mar. 2024.