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Analogia constitucional: a solução para o impasse da Lei da Ficha Limpa

Analogia constitucional: a solução para o impasse da Lei da Ficha Limpa

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Nota do Editor: A ação de que trata este artigo foi julgada em 26/10/2010, tendo sido decidida de forma semelhante, mas fundamentada de maneira diversa (ver notícia).


Nesta quarta-feira, 27/10/2010, o Supremo Tribunal Federal (STF) se reúne para julgar, novamente, a validade e aplicabilidade da Lei Complementar 135/2010, que ficou conhecida como a "Lei da Ficha Limpa". Fruto de iniciativa popular, teve sua validade colocada em xeque diante do impasse gerado na primeira vez em que o STF se reuniu para dirimir as dúvidas levantadas pelos candidatos alcançados por esta lei de efeito nitidamente moralizador do pleito eleitoral – um dos pilares de nossa democracia.

Após um deprimente final do primeiro capítulo, quando o STF se reuniu debaixo das atenções da nação, com argumentos de direito interno e internacional, uso de expressões técnicas e populares, arroubos apaixonados de ministros sobre suas teses bem construídas e, após dois dias de cansativas e prolixas leituras de votos (já que, há muito tempo, o colegiado não debate uma questão, sendo colegiado apenas na forma, pois, em conteúdo, os ministros, sem exceção, comparecem para julgamento com suas convicções já formadas de maneira imutável). O final foi a melancólica extinção do processo sem julgamento de mérito, pois o empate, na votação do mérito (5X5), fez surgir dúvidas quanto à proclamação do resultado do julgamento. O que permitiu ao recorrente, o então candidato ao governo do Distrito Federal, Joaquim Roriz (PSC/DF), desistir do recurso interposto (RE 630.147), jogando ao chão, por causa de um detalhe técnico-processual, todo o trabalho de tentativa de prestação jurisdicional pelo Órgão máximo da Justiça brasileira.

Quarta-feira próxima um novo capítulo se anuncia.

Levando em consideração as posições jurídicas já apresentadas por todos os ministros e, considerando que o caso é muito semelhante, renúncia do então deputado federal Jader Barbalho (PMDB/AP) para escapar à cassação de seu mandato por quebra de decoro parlamentar, muito provavelmente o resultado do mérito do julgamento no Recurso Extraordinário 631.102 será o mesmo: empate em 5 a 5, ou seja, cinco ministros afirmarão a validade da lei para as eleições 2010 enquanto, de outra banda, outros cinco ministros negarão validade à lei por alegada ofensa ao artigo 16 da Constituição Federal cuja redação é: "A lei que alterar o processo eleitoral entrará em vigor na data de sua aplicação, não se aplicando à eleição que ocorra até 1 (um) ano da data de sua vigência."

Ultrapassada a discussão de mérito, que deve se manter inalterada, mais uma vez o impasse sobre a prolação do julgamento será formado, e aqui nos concentramos para fazer uma ponderação de hermenêutica.

Até o momento, o que surgiu como solução para o impasse, tanto no plenário do Supremo, por ocasião do julgamento, quanto na doutrina, foros, fóruns e rincões diversos por este Brasil, em resumo, foram duas soluções distintas extraídas de duas interpretações diametralmente opostas do Regimento Interno do Supremo Tribunal Federal: voto de desempate do ministro presidente (art. 13, inc. IX) ou prolação de resultado contrário à pretensão deduzida no recurso (art. 146).

No entanto, pensamos que solução diversa melhor se alinha aos institutos já consagrados no direito brasileiro.

Imperioso lembrar, de intróito, que o fato de o Supremo não decidir constitui a negação de um dos Poderes da República e o prenúncio do caos. A prestação jurisdicional do Órgão máximo da Justiça Brasileira foi, no capítulo anterior, que deve ser esquecido, ou melhor, lembrado, para que não se repita nunca mais, refém de regras meramente regimentais, traindo o mandamento histórico, agasalhado em 1988 no art. 5º., inc. XXXV, da Constituição Federal, que consagra o princípio constitucional da inafastabilidade da jurisdição, reforçado pelo art. 126 do Código de Processo Civil:

Art. 5º, XXXV, da Constituição Federal: "A lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito".

Artigo 126, do Código de Processo Civil: "o juiz não se exime de sentenciar ou despachar alegando lacuna ou obscuridade da lei. No julgamento da lide, caber-lhe-á aplicar as normas legais; não as havendo, recorrerá à analogia, aos costumes e aos princípios gerais de direito".

Pois bem.

Por imposição do legislador constituinte, a declaração de inconstitucionalidade de lei somente poderá ser feita pela maioria absoluta dos membros de um Tribunal (art. 97, da Constituição Federal). [01] No caso do STF, a maioria absoluta corresponde a 6 ministros, ou 6 votos.

Esse dispositivo traz em suas dobras o princípio da presunção relativa de constitucionalidade da lei, isto é, uma lei nasce presumivelmente constitucional, haja vista que passou pelo controle prévio de constitucionalidade do Poder Legislativo (em ambas as Casas – Câmara dos Deputados e Senado Federal, pelas respectivas Comissões de Constituição e Justiça), pelo controle prévio de constitucionalidade do Poder Executivo (através da possibilidade do veto jurídico) e ainda assim subsistiu e veio ao mundo. É, pois, vigente e eficaz, somente podendo ser retirada do mundo jurídico pela maioria absoluta dos membros do Supremo Tribunal Federal, no controle concentrado e, mediante Resolução do Senado Federal, após a declaração de inconstitucionalidade, pela maioria absoluta dos ministros, no controle difuso.

Voltemos ao impasse.

O presidente do Supremo não proclamou o resultado do julgamento do RE ao argumento de que estavam diante de um impasse: votação empatada em 5 votos a 5 votos, não surgindo solução para o momento.

Ora, essa solução já está escancarada na Constituição Federal e não deve, necessariamente, como querem os profetas de plantão, ser buscada em teses estratosféricas que bebericam no direito germânico. Mas pode – e deve – ser uma solução já prevista há mais de 20 anos no sistema constitucional brasileiro, a cláusula de reserva de plenário, que significa a necessidade de maioria absoluta dos membros do Órgão Especial ou de um Tribunal para se decretar a inconstitucionalidade de uma lei, já que ela nasce com o signo de presunção relativa de constitucionalidade.

No escore do Supremo Tribunal Federal, não alcançado o quórum mínimo para se extirpar do mundo jurídico uma lei, contrario sensu, esta lei não pode ser erradicada, devendo manter sua vigência e aplicabilidade nos exatos termos que passou a existir. Deve ser mantida incólume, pois o requisito constitucional para que fosse retirada do mundo jurídico não foi alcançado.

Lembremos que a lei, por seu processo de gestação, nasce constitucional, e a declaração de sua inconstitucionalidade deve ser exceção, e não regra, em homenagem à tão sonhada segurança jurídica – princípio da preservação das leis – e a secular harmonia/independência entre os Poderes – princípio da unidade do Estado. Quanto a este último, malgrado as mazelas que acometeram o Congresso Nacional na história recente deste País, que envergonha todos os brasileiros decentes, enquanto Poder da República e também pela sua parcela saudável de membros, deve ser respeitado, assim como o Poder Executivo, pois são Poderes da República ombreados ao Poder Judiciário e todos, em unidade, compõem a República Federativa do Brasil. De modo que a negação de um pelo outro, em qualquer aspecto, é uma derrota da própria República, pois o cidadão – destinatário e razão de existência dos Três Poderes – não quer saber, a fundo, de "quem é a culpa", mas sim se suas expectativas estão sendo atendidas.

Não pode o Supremo Tribunal Federal – Poder Judiciário – desconsiderar por inteiro o complexo trabalho de gestação das leis – processo legislativo –, sob pena de tornar-se um superpoder. Deve preservar ao máximo os atos emanados pelos Poderes Executivo e Legislativo, até porque, bem ou mal, são os representantes legítimos da democracia brasileira, pois eleitos diretamente pelo povo, e lembre-se aqui, diversamente do que ocorre com o Poder Judiciário.

Essa indústria da inconstitucionalidade, apesar de ser fundamental para o bom funcionamento do Estado, se não for muito bem gerida, com prudência e parcimônia, sem arroubos, sem paixões, olhos postos na expectativa social, depõe contra a própria existência da República e os fins do Estado.

Desse modo, por razões estritamente técnicas, é possível afirmar, sem sombra de dúvidas, que o sistema jurídico brasileiro prevê solução legal para o caso do impasse perante o qual se achava o Supremo Tribunal Federal, cabendo aqui lembrar que a solução para os casos mais complexos, não raras vezes, estão nos pontos mais simples.

E não adianta argumentar, como tentou fazer o Senhor Presidente do Supremo Tribunal Federal por ocasião do RE 630.147, que não se está a declarar inconstitucionalidade de lei.

Ora, na medida em que se nega vigência imediata à Lei para as eleições 2010, por afronta ao art. 16 da Constituição Federal, estamos diante de nítida declaração de inconstitucionalidade, mas, dita em outras palavras, isto é, afastamento da vigência imediata da lei por não se compatibilizar com a regra constitucional estampada no art. 16.

Ainda que se diga que o caso é de hermenêutica constitucional no campo da aplicação de interpretação conforme a constituição, ainda assim, estamos diante de prolação de interpretação de inconstitucionalidade, pois, uma vez que se dá interpretação conforme num sentido (que a lei só vale para as próximas eleições), declara-se a inconstitucionalidade da interpretação no sentido inverso (que a lei vale para estas eleições), reclamando-se, para isto, o quórum de maioria absoluta, tendo em vista a presunção de constitucionalidade das leis.

Portanto, sem raciocínios estratosférico-internacionais, em homenagem à coesão do sistema jurídico brasileiro, das lições fundamentais proferidas nas academias nacionais há décadas e, finalmente, em homenagem ao princípio da presunção relativa de constitucionalidade das leis, o impasse da proclamação do resultado empatado do Supremo Tribunal Federal é seguramente resolvido pela interpretação constitucional, desde que com certa dose de esforço interpretativo e uma dose cavalar de bom senso.


Notas

  1. Art. 97. Somente pelo voto da maioria absoluta de seus membros ou dos membros do respectivo órgão especial poderão os tribunais declarar a inconstitucionalidade de lei ou ato normativo do Poder Público.

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Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

SILVESTRE, Fábio Galindo. Analogia constitucional: a solução para o impasse da Lei da Ficha Limpa. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 15, n. 2681, 3 nov. 2010. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/17754. Acesso em: 28 mar. 2024.