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O novo divórcio brasileiro

O novo divórcio brasileiro

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A Emenda Constitucional nº 66 estabeleceu, em norma de eficácia plena, um novo divórcio, direto, consagrando o sistema monofásico no rompimento do núcleo familiar.

RESUMO

Há um novo divórcio na sistemática jurídica pátria. A Emenda Constitucional nº 66, de 13 de julho de 2010, que deu nova roupagem ao § 6º do art. 226, estabeleceu, em norma de eficácia plena, um novo divórcio, direto, consagrando o sistema monofásico no rompimento do núcleo familiar. Essa afirmação, em verdade, nasce da premissa de que a separação conjugal, seja judicial ou administrativa, não foi recepcionada pelo novo texto constitucional. O frescor da mudança é o maior desafio aqui, pois ainda não veio a lume o parecer dos doutos. Assim, com base na principiologia consagrada e numa argumentação que combina, em especial, os métodos de interpretação literal, histórico e teleológico, busca-se concorrer para a melhor leitura do novo, frente aos anseios da coletividade.

Palavras-chave: Emenda Constitucional nº 66/2010, novo divórcio, interpretação.

RESUMEN

Hay un nuevo divorcio en la sistemática jurídica patria. La Enmienda Constitucional nº 66, de 13 de julio de 2010, que dio nuevo ropaje al § 6º del art. 226, estableció, en norma de eficacia plena, un nuevo divorcio, directo, consagrando el sistema monofásico en el rompimiento del núcleo familiar. Esa afirmación, en realidad, nace de la premisa de que la separación conyugal, sea judicial o administrativa, no fue recibida por el nuevo texto constitucional. El frescor del cambio es el mayor desafío aquí, pues aún no vino a la luz el parecer de los doctos. Así, con base en la principiologia consagrada y en una argumentación que combina, en especial, los métodos de interpretación literal, histórico y teleológico, se pretende contribuir a una mejor lectura de lo nuevo, frente a los anhelos de la colectividad.

Palabras clave: Enmienda Constitucional nº 66/2010, nuevo divorcio, interpretación.

SUMÁRIO: 1. Casamento e rompimento numa breve perspectiva histórica. 2. Sistema bifásico de rompimento: separação e divórcio. 3. Divórcio direto: via obrigatória ou facultativa? 3.1 O fenômeno da recepção. 3.2 Interpretação da Emenda Constitucional nº 66/2010. 4. Separações que permanecem. 5. Processos de separação pendentes e findos. 6. Discussão de culpa e suas conseqüências. 7. Últimas considerações. 8. Referências.


1. CASAMENTO E ROMPIMENTO NUMA BREVE PERSPECTIVA HISTÓRICA

Josserand (1958, p.15) define casamento como "a união do homem e da mulher, contraída solenemente e de conformidade com a lei civil". Essa união formal de pessoas sexualmente opostas, que se enlaçam afetivamente e, portanto, com o objetivo de constituir família (intuitu familiae), tem sido a base fundamental e verdadeira matriz da organização da sociedade, como, aliás, reconhece o texto constitucional, em seu Art. 226 ("A família, base da sociedade, tem especial proteção do Estado").

Com tal importância, é natural que o Estado tenha feito do casamento o mais solene dos atos (GONÇALVES, 2010), no afã de garantir aos nubentes e à coletividade a segurança jurídica compatível com sua envergadura, e nesse mesmo espírito não é possível negar seu caráter de permanência e de definitividade. Daí, porém, a desejar sua vitaliciedade, no sentido de uma aliança indissolúvel, vai grande distância: é uma realidade que remanesce noutros campos (religião e moral), não no âmbito dos ordenamentos jurídicos.

O separatismo (divisão de funções entre o Estado e a Igreja) ocorre, no Brasil, com a culminação do movimento republicano, que se dá historicamente com a proclamação da república, enquanto forma de governo, em 15 de novembro de 1889 (COTRIM, 2001). Ao apear do poder, para assumir suas típicas funções institucionais, a Igreja deixa de gerir a matéria matrimonial, que passaria a competir unicamente ao Estado, agora laico, isto é, sem culto oficial, sem religião. Assim, é essa condição secular (sem religião) do poder republicano, consagrada na Constituição Federal de 1891 (Art. 72, § 3º e § 4º), que tornou possível a dissolubilidade, rechaçando o princípio da indissolubilidade do vínculo.

Curiosamente a dissolubilidade passa a ser vedada expressamente nas Constituições que se seguiram (de 1934, Art. 144; de 1937, Art. 124; de 1946, Art. 163; de 1967, Art. 167; de 1969, Art. 175), contrariando as liberdades republicanas, fato que mostra a mão invisível da Igreja influenciando o poder político. Todavia, a forma de governo adotada, aliada ao Estado secular, não descartava, naturalmente, essa possibilidade potencial da dissolubilidade do casamento. A Emenda Constitucional nº 9, de 28 de junho de 1977, veio concretizar essa possibilidade, ao alterar o § 1º do Art. 175 da Constituição de 1969, que trocou o viés da indissolubilidade pelo divórcio, exigindo, todavia, separação judicial prévia por mais de três anos.

Essa Emenda levaria à promulgação da Lei nº 6.515, de 26 de dezembro de 1977, que ficou conhecida como lei divorcista, consagrando uma nova realidade que atendia a boa parte da sociedade, que se modificara substancialmente na segunda metade do Século XX (COTRIM, 2001): desde então não somente a morte romperia o conúbio válido, mas também esse artifício humano denominado divórcio.

A Constituição vigente (de 05 de outubro de 1988) recepcionaria o divórcio em seu Art. 226, § 6º, mantendo a separação judicial como pressuposto, mas diminuindo para um ano o interstício entre a sentença de separação e o pedido de divórcio, além de permitir o divórcio direto (sem prévia separação judicial) aos que contassem com mais de dois anos de separação de fato. Separação de fato, ou irregular, é aquela levada a efeito sem o conhecimento e o controle do Estado.

O último passo nessa marcha veio por meio da Emenda Constitucional nº 66, de 13 de julho de 2010, que reformou o § 6º do Art. 226, conferindo-lhe esta forma singela: "O casamento civil pode ser dissolvido pelo divórcio". Revogam-se, assim (ao que parece), os pressupostos da separação e do prazo de espera, permitindo o rompimento direto, sem aquela fase preparatória, que existiu como uma oportunidade de reconciliação aos cônjuges.


2. SISTEMA BIFÁSICO DE ROMPIMENTO: SEPARAÇÃO E DIVÓRCIO

Entre muitos povos que assimilaram o divórcio, vigora o sistema bifásico de rompimento do núcleo familiar, que consiste na exigência de separação judicial como pressuposto para o rompimento definitivo, que atinge o vínculo matrimonial. Bifásico, portanto, é esse sistema de rompimento que passa necessariamente pela separação, rompendo o núcleo familiar em dois tempos, primeiro, extinguindo a sociedade (que pode ser refeita), depois o vínculo conjugal, pelo divórcio (dissolução definitiva da instituição conjugal).

Para boa compreensão, importa explicar que a sociedade conjugal, enquanto "complexo de direitos e obrigações que formam a vida em comum dos cônjuges" (GONÇALVES, p. 201), está contida no casamento, que traz, portanto, uma idéia de maior amplitude. Inteligível, assim, que fenômenos que desfazem a sociedade (separação de direito e separação de fato) não são hábeis a desfazer o casamento, mas que todo fenômeno que fulmine o casamento válido (morte e divórcio) implicará necessariamente no fim da sociedade, posto que esta é como um conjunto ínsito naquele.

Dessa forma, quem se separa está impedido para novas núpcias, pois permanece casado (RODRIGUES, 2004), apenas deixando a condição de sócio, ou seja, cessam os deveres e direitos à fidelidade, à coabitação, assim como cessa o regime de bens. Enquanto permanece o vínculo matrimonial, basta a reconciliação para que os consortes voltem à normalidade da vida a dois. Após o divórcio, entretanto, somente novo matrimônio poderia uni-los.

A adoção desse passo a passo (sistema bifásico), com possibilidade de reconciliação, foi, em verdade, uma forma de vencer a resistência dos estratos sociais mais conservadores, oferecendo uma espécie de garantia de que o divórcio não seria a ruína do núcleo familiar, mas um remédio que só em último caso seria ministrado, pois mesmo com o fim da sociedade conjugal restava possível a reconciliação, como se vê em Venosa (2010, p. 1.424): "essa separação ou desquite é útil para aqueles cujos escrúpulos não admitem o divórcio de plano".

Convém, ainda, minuciar que a separação de direito e o divórcio, que só podiam ocorrer em juízo, passaram, com o advento da Lei nº 11.441, de 04 de janeiro de 2007 (que criou o Art. 1.124-A do Código de Processo Civil), a ser possíveis extrajudicialmente, desde que presentes os requisitos: amplo consenso (quanto ao uso do nome, eventuais alimentos e partilha patrimonial), não haver prole menor nem maior incapaz, transcurso de um ano para a separação e de mais um ano (a contar dela), para o divórcio, presença de advogado e lavra por escritura pública (NOGUEIRA DA GAMA, 2008).

Com a nova norma constitucional, pode-se adiantar que dentre os requisitos acima listados, cai o prazo para o divórcio, assim como o divórcio direto, que era hipótese excepcional (apenas para os que estivessem separados de fato há mais de dois anos – separação-falência) passa a ser a regra, vigorando, portanto, uma estrutura monofásica de rompimento, atendendo, assim, aos reclamos da literatura jurídica, a exemplo da proposta de Maria Berenice (2001, p. 66):

É imperioso que se reconheça ser de todo inútil, desgastante e oneroso, não só para o casal, mas para o Poder Judiciário, impor uma duplicidade de procedimentos para simplesmente manter no âmbito jurídico – durante o breve período de um ano – uma união que não mais existe.

É visível que a separação, apenas enquanto pedágio para o rompimento definitivo, perdeu sua finalidade. Por outro ângulo, se considerado o fenômeno como oportunidade processual para eventual discussão de culpa pelo fim da união e como fase para outros eventuais ajustes frente ao pós-rompimento, teria, ainda, sua razão de ser. Nesse diapasão, caso essas discussões tenham espaço para se desenvolver no palco do divórcio, nenhuma dúvida há de que numerosos fatores aconselham a dissolução monofásica.

Dessarte, que a sistemática passa a ser monofásica, parece não haver dúvida. Contudo, permanece o sistema bifásico, ao menos enquanto faculdade dos consortes?


3. DIVÓRCIO DIRETO: VIA OBRIGATÓRIA OU FACULTATIVA?

Aqueles que desejam colocar fim ao casamento, teriam o divórcio direto como único caminho ou poderiam optar pela prévia separação de direito?

A resposta passa obrigatoriamente por outra questão: a nova norma constitucional recepcionou ou não as formas de separação previstas no Código Civil (Arts. 1.571 e seguintes) e no Código de Processo Civil (Art. 1.124-A)?

A prevalecer o fenômeno da recepção, a separação de direito, tanto a judicial quanto a administrativa, estaria no sistema como faculdade aos consortes que preferissem essa via ao divórcio direto.

3.1 O FENÔMENO DA RECEPÇÃO

Ocorre o fenômeno da recepção quando a norma infraconstitucional, cotejada com a nova norma constitucional posta, mostra-se compatível. Há esse detalhe hierárquico: não é a nova norma constitucional que se curva para essa verificação, mas o oposto, e, em havendo a compatibilidade, diz-se que a norma inferior foi recepcionada, ou que a norma constitucional a recepcionou.

Alexandre de Moraes (2003, p. 526), baseado em Anna Cândida Cunha Ferraz e Fernanda Menezes de Almeida, explica nestes termos:

Consiste no acolhimento que uma nova constituição posta em vigor dá às leis e atos normativos editados sob a égide da Carta anterior, desde que compatíveis consigo. O fenômeno da recepção, além de receber materialmente as leis e atos normativos compatíveis com a nova Carta, também garante a sua adequação à nova sistemática legal.

Sob essa ótica, poder-se-ia, inicialmente, cogitar de recepção das normas que provisionam o instituto da separação de direito, uma vez que na literalidade do texto constitucional ("O casamento civil pode ser dissolvido pelo divórcio") anuncia o divórcio direto, mas não veda o indireto, não fecha categoricamente o caminho ao jurisdicionado que desejasse passar previamente pela separação, cumprindo o roteiro bifásico para o desenlace.

Ocorre, entretanto, que é necessário um exame com mais vagar na interpretação desse texto constitucional, pois uma releitura que extrapole a interpretação literal poderá fornecer dados nele ínsitos, o que, em se confirmando, pode levar à constatação de que a separação foi alijada enquanto procedimento preparatório para o divórcio.

3.2 INTERPRETAÇÃO DA EMENDA CONSTITUCIONAL Nº 66/2010

Na busca do alcance da norma jurídica, é necessário interpretar, e neste mister, que constitui momento de intersubjetividade entre o hermeneuta e o legislador (REALE, 1968), o operador do direito deve ter ampla cautela, pois, como bem recomenda Maria Helena (2010, p. 64), o brocardo latino que manda cessar a interpretação diante do que está claro "não tem qualquer aplicabilidade, pois tanto as leis claras como as ambíguas comportam interpretação". Do contrário, bastaria aprimorar a construção das normas e os computadores, por códigos de barras, dariam respostas bastantes às lides forenses.

Que a Emenda sob análise é norma de eficácia plena, acredita-se fora de dúvida. Ou seja, trata-se de um comando normativo situado entre aquelas normas que, no dizer de José Afonso (1982, p. 89):

desde a entrada em vigor da Constituição, produzem, ou têm possibilidade de produzir, todos os efeitos essenciais, relativamente aos interesses, comportamentos e situações, que o legislador constituinte, direta e normativamente, quis regular.

Desse ângulo, portanto, quanto ao Projeto de Lei nº 7.661, apresentado na Câmara dos Deputados em 14 de julho de 2010, independente de vingar enquanto norma, fique claro que não vem para desatar a eficácia do novo texto constitucional, mas, em sua força máxima, servirá para anunciar que a via da separação não está facultada ao jurisdicionado, ou, simplesmente, que ela foi revogada, observando-se, repita-se, que o novo § 6º do Art. 226 é de eficácia plena, tornando realidade o divórcio direto enquanto regra (já existia na exceção), produzindo, porém, uma dúvida, que é a possibilidade de optar pela separação prévia, visto não haver aparente contradição dessa hipótese frente à norma superior.

3.2.1 Literalidade, Historicidade e Teleologia

A combinação de métodos aumenta o êxito do intérprete (VENOSA, 2008), pelo que se pode afirmar que a aplicação isolada de um ou outro mecanismo diminui as chances de sucesso. Combinam-se, nesse desfecho, os métodos literal, histórico e teleológico.

3.2.1.1 Método Literal

Sob o prisma da literalidade: no texto anterior ("O casamento civil pode ser dissolvido pelo divórcio, após prévia separação judicial por mais de um ano nos casos expressos em lei, ou comprovada separação de fato por mais de dois anos"), fazia expressa referência à separação "nos casos expressos em lei". Pode-se deduzir, daí, que se o reformador quisesse preservar a faculdade ao sistema bifásico, teria recepcionado expressamente essa possibilidade.

Ainda nessa tomada gramatical, veja-se que o novo texto surge de uma amputação literal do antigo texto, um corte ("O casamento civil pode ser dissolvido pelo divórcio"), que elimina o pós-vírgula explicativo e redutivo (trecho grifado acima), ensejando, com isso, a idéia de ampliação do divórcio, que, se era direto por exceção, agora é direto por regra (e ponto!).

3.2.1.2 Método Histórico

Pelo método histórico, que consiste em investigar as razões de criação da norma (ratio legis) e os bastidores de sua aprovação (MARIA HELENA, 2010), a interpretação acima ganha porto seguro, pois foram amplos os reclamos da doutrina no tocante à desnecessidade da separação prévia e mesmo pelo desgaste moral e emocional que essa via crucis acrescenta a todos os envolvidos no rompimento do núcleo familiar (RIZZARDO, 2004; MARIA BERENICE, 2005; PAULO LÔBO, 2008; VENOSA, 2010).

Na discussão do Projeto de Emenda à Constituição, ainda na Comissão de Constituição e Justiça da Câmara dos Deputados, pode-se destacar, como eixo da argumentação, o seguinte trecho do Relator Nelson Trad, de 17 de novembro de 2005:

Quanto ao mérito da proposta, o nobre Deputado (referindo-se a Antonio Carlos Biscaia, primeiro signatário do projeto) argumenta que a coexistência dos institutos da separação e do divórcio justifica-se no contexto da aprovação da Lei do Divórcio, mas que nos dias de hoje configura um ônus injustificado, em termos econômicos e emocionais, aos casais que decidem extinguir seu vínculo matrimonial.

Sob a coberta dessa argumentação, focada basicamente no desperdício desse "ônus injustificado, em termos econômicos e emocionais", os variados debates podem ser resumidos no seguinte:

a) trabalho desnecessário de um Poder Judiciário afogado: são cerca de 100.000 processos de separação por ano, no período entre 2000 e 2008, consoante dados do IBGE – Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. Entretanto, a estatística apresentada em 2008 é de 102.873 casos, mas aí inclusas as separações extrajudiciais, que se tornaram possíveis com o advento da Lei nº 11.441, de 04 de janeiro de 2007;

b) não observância ao princípio da economia processual: se a ordem jurídica comporta a solução por via menos gravosa economicamente, é necessário buscá-la em nome do interesse público; e

c) desgaste emocional: naturalmente, quanto mais entraves burocráticos e quanto mais tempo houver na prorrogação do rompimento do núcleo familiar falido, maior será a fadiga de todos os envolvidos no processo: consortes, filhos e demais familiares. Minorar essa fadiga de alma é questão de observar, sobretudo, o princípio da dignidade da pessoa humana (Art. 1º, inc. III, da Constituição Federal).

Confirmando essa posição, já se referiu acima ao Projeto de Lei nº 7.661, que propõe a revogação dos comandos normativos que se refiram, no Código Civil, à separação judicial. A vingar essa proposta, ter-se-á a confirmação do posicionamento que vem se formando, cabendo duas observações: primeira, o Projeto deveria incluir a separação extrajudicial; e mais, pelo viés histórico, resta muito claro que o dispositivo reformado pretendeu romper definitivamente com o sistema bifásico de dissolução do matrimônio, estando nele implícita a revogação, o que dispensaria essa norma infraconstitucional revogadora.

Ainda na esteira da historicidade, importa lembrar que até a Constituição de 1988 não se permitia o divórcio direto, mas com ela veio, à guisa de exceção, como visto (desde que houvesse a separação-falência), mostrando, então, alguma atenção aos reclamos sociais que já se esboçavam nessa direção.

Nessa seqüência, a Lei nº 11.441, de 04 de janeiro de 2007, que criou a via administrativa como faculdade para separações, divórcios, inventários e partilhas, teve nítido cunho de desburocratização, atendendo a um só tempo as questões da economia processual, do desafogamento do Poder Judiciário e, para o caso dos rompimentos, da minoração dos desgastes emocionais, com preservação da vida privada (GONÇALVES, 2010).

3.2.1.3 Método Teleológico

Pelo método teleológico, busca-se, como ensina Maria Helena (2010, p. 67), "adaptar o sentido ou finalidade da norma às novas exigências sociais", cuja adequação, no presente caso, mostra-se extremamente facilitada, considerando que a norma acaba de ser promulgada, de forma que toda a sustentação que se esboçou no histórico de criação da norma coincide em todos os termos com a necessidade coletiva atual: desafogar o Poder Judiciário, desburocratizar o divórcio e minorar o sofrimento dos divorciandos (em especial pela menor interferência do Estado).


4. SEPARAÇÕES QUE PERMANECEM

Acredita-se afirmável que desapareceu o instituto da separação, ou desquite, como preferia Rodrigues (2004), em todas as suas modalidades, judicial e administrativa, litigiosa e consensual. No entanto, permanecem, por exceção, duas modalidades: a separação de fato e a separação de corpos. A primeira, à prova de extinção. Perniciosa à segurança jurídica (NOGUEIRA DA GAMA, 2008), não há como impedir que as pessoas negligenciem com o rompimento da sociedade conjugal, fazendo-o ao arrepio das regularidades cuidadosamente postas pelo Estado.

A separação de corpos (Art. 1.562 do Código Civil) é um instrumento de natureza acautelatória, que separa provisoriamente os consortes, autorizando liminarmente a saída do demandante ou determinando a saída do outro (NOGUEIRA DA GAMA, 2008), nos casos em que o convívio se torna insustentável (sob risco de lesão a direito), por ocasião das demandas previstas no referido dispositivo (anulação, nulidade, separação judicial, divórcio e dissolução de união estável). Esse dispositivo permanecerá de pé, portanto, exceto que deve ser derrogado quanto à expressão separação judicial.


5. PROCESSOS DE SEPARAÇÃO PENDENTES E FINDOS

Ante essa interpretação da extinção da separação de direito (enquanto regra), é possível afirmar que os processos judiciais pendentes podem ser emendados, transmudando o pedido para divórcio. A iniciativa do advogado nessa diligência será um diferencial durante essa fase de transição, pois possivelmente os juízos, premidos pelo excesso de demanda, não terão como provocar as partes.

No caso dos processos findos, em que os consortes estão no aguardo do transcurso do prazo, podem imediatamente propor a demanda divorcista ou atuar pela via administrativa, uma vez que deixa de existir o requisito temporal. Para quem já escriturou a separação e aguarda o transcurso do prazo, idem à mesma solução.


6. DISCUSSÃO DE CULPA E SUAS CONSEQÜÊNCIAS

Nesse período inicial sob eficácia da nova norma constitucional, especialmente por ainda não haver produção de pareceres doutrinários, essa questão da discussão da culpa é mais uma vexata, mesmo pelas importantes conseqüências jurídicas que sua constatação enseja.

Em que pese a tendência de se encerrar a discussão de culpa no moderno direito de família (LÔBO, 2008; VENOSA, 2010), ela ainda é parte da realidade jurídica posta, ante o que se arrisca aqui a opinião de que essa discussão há que se acomodar, doravante, no seio do procedimento divorcista, opinião que pode se escorar em lição de Gonçalves (2010, p. 208):

Os juízes, no entanto, por economia processual, têm admitido a discussão sobre a culpa mesmo nas ações de divórcio direto, mas para os efeitos de perda do direito a alimentos ou da conservação do sobrenome do ex-cônjuge, e não para a decretação do divórcio.

Essa manifestação se deu, em verdade, em contexto diverso e anterior à Emenda sob análise, mas que pode, como se vê, ser aqui aproveitada, no sentido de abalizar aquela opinião de que o rito procedimental deve adaptar-se à nova realidade divorcista.

O divórcio-sanção era aquele que convertia a separação-sanção, a separação com discussão de culpa. Agora nele próprio se discute a culpa. Sabe-se que a culpa tem por corolário aplicar sanção ao cônjuge culpado, e esta sanção consiste exatamente na perda do direito a alimentos e ao direito de manter o sobrenome.

Interessante que, como verdadeiro prenúncio de que a questão da culpa tende a desaparecer, a sanção pode ser afastada nos termos das exceções legais, sem contar as ponderações que vem sofrendo na prática, como se vê do Enunciado 254, da III Jornada de Direito Civil, do Conselho da Justiça Federal:

Formulado o pedido de separação judicial com fundamento na culpa (Art. 1.572 e/ou Art. 1.573 e incisos), o juiz poderá decretar a separação do casal diante da constatação da insubsistência da comunhão plena de vida (Art. 1.511) – que caracteriza hipótese de "outros fatos que tornem evidente a impossibilidade da vida em comum" – sem atribuir culpa a nenhum dos cônjuges.

Repete-se, todavia, que não está descartada a discussão de culpa, e enquanto for assim há que se amoldar a eventual discussão ao rito do divórcio.


7. ÚLTIMAS CONSIDERAÇÕES

Feitas essas cuidadosas considerações, pode-se dizer, em sede de precária conclusão, que a Emenda Constitucional 66/2010 veio plantar um novo divórcio no Brasil, numa modalidade mais arrojada, à medida que permite o rompimento do núcleo familiar com maior celeridade e economia processual, fatores que, pela natureza da matéria personalíssima, significam essencialmente a minoração do sofrimento dos envolvidos no duro processo de desenlace. E mais, a prestação jurisdicional que se faz mais humana aqui, também ganhará maior qualidade, nas demandas em geral, com o desafogamento considerável que a sistemática monofásica há de provocar.

Entendeu-se, portanto, que a Emenda, submetida a processo de interpretação que combinou os métodos literal, histórico e teleológico, mostra-se revogadora do normamento infraconstitucional que prevê as separações de direito, sejam pela via judicial ou administrativa.

O rompimento do vínculo conjugal, no Brasil, passa a ser monofásico, e o divórcio, portanto, direto. Excepcionalmente será sucedâneo de separação de fato ou de separação de corpos, o que o mantém direto, pois nem mesmo esta última é pressuposto para o rompimento definitivo.

Quanto ao rito, está recepcionada a processualística da Lei nº 6.515, de 26 de dezembro de 1977, de forma que enquanto for permitida a discussão de culpa no rompimento, ainda assim esta deve acomodar-se aí mesmo.

Ademais, se neste país, desde a Emenda, o divórcio só pode ser direto, sugere-se pela retirada do adjetivo, para dizer apenas divórcio, deixando a adjetivação para os ordenamentos que continuam com o rompimento em dois tempos.

Numa última palavra, e em homenagem aos férreos defensores da conservação do núcleo familiar, registre-se que essa Emenda não torna o casamento descartável nem o diminui, mas principalmente torna mais humano o rompimento do núcleo familiar, que aqui já existe desde 1977, para o bem ou para o mal.


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Autor

  • Delmiro Porto

    Delmiro Porto

    Advogado Familiarista - Família e Sucessões. Leciona na Universidade Católica Dom Bosco. Coord. da Pós-Graduação em Direito Civil, com ênfase em Família e Sucessões. Adjunto Jurídico aposentado do Comando da Aeronáutica.

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Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

PORTO, Delmiro. O novo divórcio brasileiro. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 15, n. 2692, 14 nov. 2010. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/17815. Acesso em: 29 mar. 2024.