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Obtenção da prova para a apuração do crime organizado.

Principais instrumentos e suas implicações

Obtenção da prova para a apuração do crime organizado. Principais instrumentos e suas implicações

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RESUMO

A etapa inicial do procedimento probatório é a obtenção da prova, consistente na busca dos elementos demonstrativos que serão expostos em juízo e formarão a convicção do juiz na solução do litígio. Tal fase é dotada de aspectos específicos quando se trata de apuração da Criminalidade Organizada, tendo em vista que essa espécie delitiva possui características especiais que a diferenciam da Criminalidade Individualizada e que acabam por tornar os meios probatórios tradicionais insuficientes. O presente estudo objetiva uma descrição acerca dos principais instrumentos de consecução de provas na apuração do Crime Organizado, quais sejam, a colaboração processual, a infiltração de agentes da polícia, a ação controlada por policiais, a interceptação telefônica e ambiental e a quebra dos sigilos fiscal, bancário e financeiro. Será apresentada uma discussão sobre a eficácia desses meios e sua compatibilização com as garantias fundamentais dos indivíduos, realizando uma análise à luz dos princípios do Direito Constitucional, Penal e Processual Penal.

Palavras-chave: Crime Organizado. Procedimento probatório. Instrumentos de obtenção da prova. Garantias fundamentais.

ABSTRACT

The first step of probatory procedure is the evidence obtainment, consistent on picks from the demonstrative elements that will be exposed in judgment and they'll form the conviction of the judge of the litigation. That phase , for too much relevant , is present of appearances specific when if treated of examination from Criminality Organized , owing to what about specie crime has characteristics special what the differentiated from Criminality Individualize and that is why the probatory traditional means are insufficient. The present study object a description as for from the principal instruments of achievement of evidences on examination of the Organized crime, such as, the processal collaboration, the infiltration of agents from police inside gangs, the action controlled for policeman , the interceptions telephonic and environmental and the breaking of financial, fiscal and banking reserves. It will be presented a discussion above the effectiveness of this means and theirs connections with the people fundamental guarantees, conquered through a long and hard process along the centuries. Making analyses of such probatory instruments by the light of principals of the Right Constitutional , Criminal Law and Processal Criminal Law.

Keywords: Organized Crime. Probatory Procedure. Evidence Adducement Instruments. Fundamentals Guarantees.


1 INTRODUÇÃO

O presente trabalho objetiva uma análise dos principais instrumentos de obtenção de prova na apuração do Crime Organizado, demonstrando as especificidades da fase probatória inicial e discutindo a eficácia de tais instrumentos frente à tutela das garantias fundamentais do indivíduo, consagradas constitucionalmente.

O tema em apreço revela-se importante para o Direito, pois atualmente muito se tem discutido sobre a efetividade dos mecanismos de controle estatais no combate ao Crime Organizado.

Para a consecução do objetivo pretendido, primeiramente procurar-se-á descrever o fenômeno da Criminalidade Organizada de maneira geral, buscando conceituá-lo e apresentar as características primordiais que o distinguem da Criminalidade Individualizada e justificam um tratamento diferenciado no tocante ao procedimento probatório para sua apuração.

Será discorrido, em seguida, sobre as consequências do Crime Organizado no plano processual penal, de maneira a introduzir o tema especificamente proposto e demonstrar a discussão sobre a atual tendência restritiva dos direitos e garantias fundamentais no combate às organizações criminosas.

Após a análise do instituto, será feita uma breve descrição sobre a obtenção da prova, como uma das fases do procedimento probatório em geral, passando-se ao estudo dos instrumentos específicos para apuração do Crime Organizado, quais sejam, a colaboração processual, a infiltração de agentes da polícia, a ação controlada por policiais, a interceptação telefônica e ambiental e a quebra dos sigilos fiscal, bancário e financeiro.

Conforme proposto, será discutido dentro de cada instrumento, a eficácia desses meios e sua compatibilização com as garantias fundamentais dos indivíduos, conquistadas mediante longo e tormentoso processo ao longo dos séculos, realizando uma análise à luz dos princípios do Direito Constitucional, Penal e Processual Penal.

A metodologia a ser aplicada para o presente estudo será a pesquisa doutrinária, realizada através de livros e de artigos publicados em revistas jurídicas e no meio eletrônico, no qual há especialmente uma rica fonte de conhecimento sobre o tema. Será consultada, ainda, a jurisprudência dos mais diversos tribunais, bem como recorrer-se-á freqüentemente ao Direito comparado, de modo a enriquecer o estudo.


2 FENÔMENO DA CRIMINALIDADE ORGANIZADA

Nas últimas décadas, tem-se observado um crescente aumento, em nível mundial, da Criminalidade Organizada e do acúmulo de poder por tais organizações criminosas, tornando-se assim o Crime Organizado alvo de preocupação e atemorização, não apenas para as três esferas de Poder e para os cientistas socias, como também para a sociedade como um todo.

Diante desse quadro de instabilidade e insegurança social, e observando-se o Direito como uma ciência que deve manter-se estreitamente ligada à sociedade e à sua evolução, na tentativa de regular as relações humanas permitindo a convivência pacífica, apreende-se a relevância de um estudo aprofundado sobre o Crime Organizado e os meios de combatê-lo.

Com o intuito de embasar o presente estudo, permitindo o adentramento adequado ao tema proposto, serão demonstrados de início os principais aspectos do fenômeno em comento: conceituação e características.

2.1 – Busca de uma definição

Em primeiro lugar, importante destacar que árdua é a tarefa de conceituar Crime Organizado e, assim, foram poucas as legislações que ousaram fazê-lo para fins penais, diante da dificuldade, senão impossibilidade, de se englobar em um conceito jurídico-penal todas as nuances com as quais a atividade se apresenta na realidade fática.

Poucas são as legislações que apresentam um conceito para a Criminalidade Organizada. Dessa forma, buscando uma uniformização mundial, para auxiliar os países que vêm enfrentando os malefícios trazidos pelo fenômeno criminoso, o artigo 2º do Tratado de Palermo, resultante da "Convenção das Nações Unidas Contra o Crime Organizado Transnacional", realizada no período de 12 a 15 de novembro de 2000 na Itália, previu como "organização criminosa" aquela que reúna mais de três pessoas (requisito estrutural), de forma estável (requisito temporal), visando praticar crimes graves, assim considerados aqueles punidos com pena igual a superior a quatro anos, com o intuito de lucro (requisito finalístico).

Da denominação "Crime Organizado" se pode inferir a convergência de pessoas com o mesmo objetivo para a consecução de crimes de maneira organizada, e não com uma mera eventualidade ou coincidência de fatores.

No ordenamento jurídico brasileiro, o artigo 1º da Lei nº 9.034, de 3 de maio de 1995, que dispõe sobre a "utilização de meios operacionais para a prevenção e repressão de ações praticadas por organizações criminosas", leva a crer que o conceito de Crime Organizado estaria relacionado com crime de quadrilha ou bando. Diante disso, o legislador equiparou equivocadamente as ações cometidas por quadrilhas que praticam médios ou pequenos crimes a grandes organizações que se dedicam à atividade criminosa.

Posteriormente, a Lei n° 10.217, de 12 de abril de 2001, alterou a redação do artigo 1° da Lei n° 9.034/95, contudo não solucionou a problemática conceitual. Pelo texto atual, a Lei que rege a matéria incide nos "ilícitos decorrentes de ações praticadas por quadrilha ou bando ou organizações ou associações criminosas de qualquer tipo."

Verifica-se, portanto, que a lei trouxe para sua incidência a figura das "associações criminosas" e passou a diferenciar a quadrilha ou bando das "organizações criminosas".

Entretanto, é o que critica a doutrina, da impressão da análise da Lei 10.217/01, entende-se que ao ordenamento jurídico brasileiro ficou faltando algo, pois não há na legislação penal brasileira uma definição legal do que sejam "organizações criminosas".

Diante da imprecisão do legislador, restam as diferentes opiniões dos penalistas e conceitos oferecidos pelos mesmos.

Alberto Silva Franco, por exemplo, assim manifesta-se:

O crime organizado possui uma textura diversa: tem caráter transnacional na medida em que não respeita as fronteiras de cada país e apresenta características assemelhadas em várias nações; detém um imenso poder com base numa estratégia global e numa estrutura organizativa que lhe permite aproveitar as fraquezas estruturais do sistema penal; provoca danosidade social de alto vulto; tem grande força de expansão, compreendendo uma gama de condutas infracionais sem vítimas ou com vítimas difusas; dispõe de meios instrumentais de moderna tecnologia; apresenta um intrincado esquema de conexões com outros grupos delinquenciais e uma rede subterrânea de ligações com os quadros oficiais da vida social, econômica e política da comunidade; origina atos de extrema violência; exibe um poder de corrupção de difícil visibilidade; urde mil disfarces e simulações e, em resumo, é capaz de inerciar ou fragilizar os poderes do próprio Estado (FRANCO, 1994, p. 75).

Na opinião de Luiz Flávio Gomes [01], a qual nos parece mais didática, o conceito de Criminalidade Organizada abrange atualmente: quadrilha ou bando (previsto no artigo 288 do Código Penal), que claramente recebeu o rótulo de Crime Organizado, embora seja fenômeno completamente distinto do "verdadeiro Crime Organizado"; associações criminosas, já tipificadas no nosso ordenamento jurídico (em diversos momentos na legislação especial) assim como todas as que porventura vierem a sê-lo; e todos os ilícitos delas decorrentes ("delas" significa: da quadrilha ou bando assim como das associações criminosas definidas em lei).

Referido conceito, na opinião do doutrinador, não abrange: a "organização criminosa", por falta de definição legal, e o concurso de pessoas. No tocante ao concurso de pessoas, os requisitos da estabilidade e permanência levam à conclusão de que associação criminosa ou quadrilha ou bando jamais podem ser confundidos com o mero concurso, que é sempre eventual e momentâneo.

Vislumbra-se, pois, em análise às colocações acima, que o legislador pátrio foi omisso em relação ao conceito de Crime Organizado, o que traz o problema da insegurança jurídica e, conseqüentemente, dificulta a repressão da conduta.

2.2 – Características principais

A modalidade criminosa em apreço possui algumas características marcantes, que lhe proporcionam grande mobilidade, alto poder de ação e intimidação, bem como resultados espantosos em termos financeiros.

Tais características, que passarão a ser descritas brevemente a seguir, repercutem não apenas no plano material, como também no processual.

2.2.1 - Participação de agentes estatais

Uma das características do Crime Organizado é a participação de agentes estatais na atividade criminosa, fato que se dá em razão do alto poder de corrupção das organizações criminosas. Hassemer sintetiza não ser a Criminalidade Organizada apenas uma organização bem planejada. Seria sim, finalmente, a corrupção da legislatura, da magistratura, da polícia, do Ministério Público.

O alto poder de corrupção configura-se como fator relevante no incentivo à criminalidade, uma vez que é direcionado a várias autoridades das três esferas estatais, na medida em que são compostas pelas instâncias formais de controle do Direito (Polícia Judiciária, Ministério Público e Poder Judiciário), pelas altas esferas do Poder Executivo, além de integrantes do Poder Legislativo.

2.2.2 - Criminalidade difusa

A característica da criminalidade difusa decorre da ausência de vítimas individuais, conhecidas, determinadas, configurando-se como obstáculo à reparação dos danos causados, uma vez que no momento em que se descobre a infração, os danos são imensos e irreparáveis, restando ao Poder Público o rastreamento do valor apropriado, tarefa esta de difícil concretização, frente à morosidade, dificuldade e aos resultados mínimos.

Certo é que a Criminalidade Organizada vem atuando em áreas nas quais o controle estatal é precário, como no sistema de Previdência Social, onde já foram detectadas várias fraudes (ações que contaram com a participação de agentes estatais), com relevantes prejuízos à coletividade (vítimas difusas) e com índice mínimo de recuperação do produto desviado.

2.2.3 - Pouca visibilidade dos danos

O prejuízo financeiro causado por tais organizações criminosas é altíssimo, ressaltando-se, por oportuno, que não obstante serem elevados os danos, estes não são visualizados em um primeiro momento, permanecem invisíveis por considerável período.

A pouca visibilidade dos danos decorre da própria atuação criminosa, que conta com apoio de pessoas que deveriam estar atuando no seu combate, além do fato de que, na maioria das vezes, inexistem vítimas diretas (criminalidade difusa).

2.2.4 - Alto grau de operacionalidade

Uma outra característica a ser apontada e que prejudica também a apuração da Criminalidade Organizada, é aquela relativa ao alto grau de operacionalidade dos grupos criminosos, geralmente compostos por pessoas com qualificação de ponta nas diversas áreas onde se faça necessária a sua atuação, que recebem excelente remuneração e quase nunca possuem informações acerca do restante da organização, como forma a evitar que haja vazamento de informações.

Dessa forma, contando com os serviços de profissionais altamente qualificados, em tempo integral, e, ainda, estando devidamente munidos de equipamentos de última geração, tais grupos possuem uma mobilidade incrível, podendo atuar, concomitantemente, em vários locais do mundo inteiro, transferindo valores e informações com velocidade invejável e, via de conseqüência, tornando muito difícil seu rastreamento.


3 CONSEQUÊNCIAS DO CRIME ORGANIZADO NO PLANO PROCESSUAL PENAL

As características específicas apontadas não repercutem apenas no plano material, mas, sobretudo no plano processual, pois se constatou ao longo do tempo que os instrumentos processuais para a apuração da Criminalidade Individualizada não se mostram suficientes para o tratamento do Crime Organizado, justamente em razão de suas peculiaridades.

No âmbito processual, a tendência verificada é para regulamentar com mais eficácia a obtenção da prova e o tratamento dispensado aos investigados e acusados pela prática de infrações relacionadas à Criminalidade Organizada, na busca da eficiência penal.

Um recente julgado, de 22 de agosto de 2006, do Supremo Tribunal Federal demonstra essa tendência; por três votos a dois, a Primeira Turma do STF indeferiu Habeas Corpus [02], com pedido liminar, em favor do presidente da Assembléia Legislativa do Estado de Rondônia, deputado estadual José Carlos de Oliveira. O que ocorre é que, como deputado estadual, o mesmo goza de imunidade parlamentar, só podendo ser preso em flagrante delito por crime inafiançável, sendo que o crime de quadrilha ou bando, no qual foi enquadrado, constitui crime afiançável. Mesmo assim, a Suprema Corte entendeu devida a manutenção da prisão, com o intuito de desmantelar uma organização criminosa. Vejamos abaixo:

No tocante à imunidade parlamentar, ressaltou-se que o presente caso não comportaria interpretação literal da regra proibitiva da prisão de parlamentar (CF, art. 53, §§ 2º e 3º), e sim solução que conduzisse à aplicação efetiva e eficaz de todo o sistema constitucional. Aduziu-se que a situação descrita nos autos evidenciaria absoluta anomalia institucional, jurídica e ética, uma vez que praticamente a totalidade dos membros da Assembléia Legislativa do Estado de Rondônia estaria indiciada ou denunciada por crimes relacionados à mencionada organização criminosa, que se ramificaria por vários órgãos estatais. Assim, tendo em conta essa conjuntura, considerou-se que os pares do paciente não disporiam de autonomia suficiente para decidir sobre a sua prisão, porquanto ele seria o suposto chefe dessa organização. Em conseqüência, salientou-se que aplicar o pretendido dispositivo constitucional, na espécie, conduziria a resultado oposto ao buscado pelo ordenamento jurídico. Entendeu-se, pois, que à excepcionalidade do quadro haveria de corresponder a excepcionalidade da forma de interpretar e aplicar os princípios e regras constitucionais, sob pena de se prestigiar regra de exceção que culminasse na impunidade dos parlamentares. O Min. Sepúlveda Pertence destacou em seu voto a incidência do art. 7º da Lei 9.034/95, que veda a concessão de fiança aos integrantes de crime organizado, o qual compreende o delito de quadrilha. Vencidos os Ministros Ricardo Lewandowski e Marco Aurélio que deferiam o writ ao fundamento de ser aplicável a imunidade parlamentar. (Grifos que não constam no texto original).

Tal tendência consubstancia-se na exigência de medidas diferenciadas que podem inclusive conduzir à restrição de direitos fundamentais, com o argumento de que, se essas medidas não forem tomadas, haverá o risco de que num futuro não muito distante, haja iniciativas muito mais radicais e prejudiciais aos direitos e liberdades garantidas constitucionalmente.

Trata-se de buscar uma proporcionalidade, atentando-se para o fato de que assim como os direitos fundamentais do cidadão, o bem-estar da coletividade e a prevenção e repressão criminal também possuem assento constitucional, não podendo ser sacrificados por uma concepção puramente individualista.

O constitucionalista Alexandre de Moraes, brilhantemente, nos ensina:

Os direitos humanos fundamentais, dentre eles os direitos e garantias individuais e coletivos consagrados no artigo 5° da Constituição Federal, não podem ser utilizados como um verdadeiro escudo protetivo da prática de atividades ilícitas, nem tampouco como argumento para afastamento ou diminuição da responsabilidade civil ou penal por atos criminosos, sob pena de total consagração ao desrespeito a um verdadeiro Estado de Direito.

De todo modo, devido à dificuldade em se adquirir provas contundentes no caso do Crime Organizado, medidas como interceptações telefônicas e ambientais, quebra de sigilo bancário e fiscal dos denunciados, têm sido permitidas pelo ordenamento jurídico.

Aqui se demonstra relevante o princípio da proporcionalidade, que se destina a regulamentar no processo penal a confrontação indivíduo-Estado. Tem o objetivo de equilibrar essa relação, para evitar tanto a violação dos direitos fundamentais do particular, como o comprometimento da atividade estatal no combate à criminalidade.

O Supremo Tribunal Federal assim entende, conforme palavras do Min. Nelson Jobim, no HC n° 75.338/98, de 11 de março de 1998:

A Constituição não trata a privacidade como direito absoluto (art. 5°, X, XI e XII). Há momento em que o direito a privacidade se conflita com outros direitos, quer de terceiros, quer do Estado (...) Deve-se buscar o critério para a limitação. O princípio da proporcionalidade é o instrumento de controle. Deve-se ter em conta a proporcionalidade em concreto.

Conclui-se que medidas devem ser tomadas no combate ao Crime Organizado, ainda que percorram uma tênue linha entre a violação dos direitos e garantias individuais e a manutenção da ordem social, buscando o bem estar da sociedade.


4 PRINCIPAIS INSTRUMENTOS DE OBTENÇÃO DA PROVA PARA A APURAÇÃO DO CRIME ORGANIZADO

Conceitua-se procedimento probatório como o conjunto de atos praticados pelas partes, por terceiros e até pelo juiz para averiguar a verdade e formar a convicção deste último.

A atividade probatória é composta por cinco momentos distintos: a obtenção da prova; a propositura da prova, pela qual se indica ao magistrado os meios probatórios utilizados pelas partes; a admissão da prova, consistente no deferimento ou não desta, pelo juiz; a produção da prova, que se configura como o meio pelo qual esta é introduzida no processo; e a valoração da prova, segundo a qual o juiz a avaliará.

O primeiro momento da atividade probatória, a obtenção da prova, em regra ocorre na fase pré-processual e destina-se à colheita dos elementos que possibilitarão a formação da opinio delicti pelo representante do órgão responsável pela acusação em juízo.

4.1 – Colaboração processual

A colaboração processual, também denominada de processo cooperativo e colaboração premiada, ocorre na fase investigativa criminal, momento em que o acusado, além de confessar seus crimes para as autoridades, evita que infrações venham a consumar-se (colaboração preventiva), assim como auxilia concretamente a polícia em sua atividade de recolher provas contra os demais co-autores, possibilitando suas prisões (colaboração repressiva). Incide sobre o desenvolvimento das investigações e o resultado do processo, constituindo-se em instituto de maior amplitude em relação à delação premiada.

No Direito Internacional, mais especificamente no norte-americano e no italiano, a colaboração processual está incorporada na cultura jurídica. Inclusive no primeiro, aceitando a proposta do procurador para testemunhar em favor da acusação, o colaborador é incluído num programa de proteção à testemunha (witness profession program), no qual poderá usufruir de uma nova identidade, alojamento, dinheiro e profissão.

A atual lei de drogas, a 11.343, de 23 de agosto de 2006, previu a colaboração processual no art. 41, segundo o qual o indiciado ou acusado que colaborar voluntariamente com a investigação policial e o processo criminal, na identificação dos demais co-autores ou partícipes do crime e na recuperação do produto do crime, no caso de condenação, terá pena reduzida de um terço a dois terços.

Segundo a doutrina, o representante do Ministério Público deve observar os seguintes requisitos para a efetuação dos acordos: voluntariedade da iniciativa do colaborador; relevância das declarações do investigado; colaboração feita de maneira efetiva; personalidade do colaborador, natureza das circunstâncias, gravidade e repercussão social do fato criminoso sejam compatíveis com o instituto.

Na sua real dimensão, a colaboração processual trata-se de um poderoso instituto no combate às organizações criminosas, pois ainda na fase de investigação criminal, o colaborador, além de confessar seus crimes para as autoridades, evita que outras infrações venham a se consumar, assim como auxilia concretamente a polícia e o Ministério Público.

4.2 – Infiltração dos agentes da polícia

A infiltração de agentes da polícia consiste numa técnica de investigação criminal, pela qual um agente do Estado, mediante prévia autorização judicial, ouvido o representante do Ministério Público, infiltra-se numa organização criminosa, simulando a condição de integrante, para obter informações a respeito de seu funcionamento.

Para tal fim, deve apresentar três características: a dissimulação, ou seja, a ocultação da condição de agente oficial, o engano, que permite ao agente obter a confiança do suspeito e a interação, uma relação direta e pessoal entre o agente e o autor potencial.

No Brasil, após ser vetada a infiltração de agentes na Lei n° 9.034, de 3 de maio de 1995, foi disciplinada pela Lei n° 10.217, de 12 de abril de 2001, que introduziu ao artigo 2°, V, na Lei n° 9.034/95. Esse dispositivo preceitua que, em qualquer fase de persecução criminal é permitido como procedimento de investigação e formação de provas, a infiltração por agentes de polícia ou de inteligência, em tarefas de investigação, constituída pelos órgãos especializados pertinentes, mediante circunstanciada autorização judicial, estritamente sigilosa e que permanecerá nesta condição enquanto perdurar a infiltração.

A antiga lei de drogas, 10.409/02 previu o instituto no artigo 33, inciso I. A nova lei de drogas, a 11.343/06, dispôs em seu artigo 53, I, que, em qualquer fase da persecução criminal relativa aos crimes previstos na referida lei, é permitida, mediante autorização judicial e ouvido o Ministério Público, a infiltração por agentes de polícia, em tarefas de investigação, constituída pelos órgãos especializados pertinentes.

A exemplo das leis consagradas em outros países, o legislador exigiu prévia autorização judicial, como forma de assegurar o controle judicial sobre essa atividade. Todavia, a lei nacional não disciplinou um procedimento próprio para seu processamento.

A análise da proporcionalidade entre a conduta do policial infiltrado e o fim buscado pela investigação é o caminho a ser trilhado, limitando-se apenas à busca dos elementos de provas. É de ser relevado que a prática tem demonstrado que, muitas vezes, é estrategicamente mais vantajoso evitar a prisão num primeiro momento, de integrantes menos influentes de uma organização criminosa, para monitorar suas ações e possibilitar a prisão de um número maior de integrantes ou mesmo a obtenção de prova em relação a seus superiores na hierarquia da associação.

4.3 – Ação controlada por policiais

O inciso II do art. 2º da Lei 9.034/95 prevê a "ação controlada" por parte da polícia quando da possível ação de organizações criminosas. Consiste numa prorrogação ou retardamento do flagrante (flagrante prorrogado, retardado ou diferido), estando este sob a discricionariedade das autoridades policiais. Tal procedimento investigatório não é uma novidade no meio policial, pois essa estratégia era adotada muito antes da vigência dessa lei.

A "ação controlada" torna-se melhor aplicável com o dispositivo trazido pela Lei 10.217/01 que incluiu o inciso V ao art. 2º da Lei 9.034/97, estabelecendo a infiltração policial, com fins investigativos, em organizações criminosas.

Também está prevista na Lei 11.343/06, no artigo 53, II, que enumera como procedimento investigatório, a não-atuação policial sobre os portadores de drogas, seus precursores químicos ou outros produtos utilizados em sua produção.

Só deve ocorrer com devida autorização judicial e um controle muito específico deveria ser levado a efeito, a fim de evitar a corrupção da autoridade policial pela associação criminosa.

A Lei nº 9.034/95 exige requisitos: a existência de um crime em desenvolvimento praticado por organização criminosa ou a ela vinculado; e a observação e acompanhamento dos atos praticados pelos investigados até o momento mais adequado para apreensão.

4.4 – Interceptação das comunicações telefônicas

A nossa Carta Magna resguarda o direito à intimidade e à vida privada e tem como regra a inviolabilidade das comunicações telefônicas, salvo por ordem judicial. Para a interceptação das comunicações telefônicas seja permitida, deve-se atentar para o fato de que, se qualquer dos meios pesquisados for menos gravoso e suficiente para a finalidade pretendida pela investigação, a violação dos direitos referidos será considerada desnecessária.

A decisão judicial que deferi-la deve esclarecer os seus exatos limites, evitando assim eventuais abusos na apuração de fatos desconexos com o objeto da investigação. Somente será possível sua admissão para a persecução de crimes em andamento, não se prestando a medida para a investigação de infrações que sequer tiveram início de execução.

O Supremo Tribunal Federal tem aceitado como lícitas as provas colhidas através de escuta telefônica, mesmo sem autorização judicial, em alguns casos, desde que a conversa tenha sido gravada por um dos interlocutores.

4.5 – Vigilância eletrônica

Também conhecida como interceptação ambiental, trata-se a vigilância eletrônica de outro instrumento que tem possibilitado uma atuação mais eficiente dos agentes estatais na apuração do Crime Organizado.

O artigo 2°, inciso IV, da Lei n° 9.034/95, estabelece ser permitida "a captação e a interceptação ambiental de sinais eletromagnéticos, óticos ou acústicos, e o seu registro e análise, mediante circunstanciada autorização judicial".

A relativização do direito a intimidade prevista constitucionalmente só deve ser levada a efeito quando outro direito fundamental resguardado pela Constituição também deva ser protegido. É a aplicação do princípio da proporcionalidade, o qual deve ser utilizado como forma de atenuar a rigidez dos direitos fundamentais visando impedir que a criminalidade encontre refúgio na própria lei, ofendendo, assim, o Estado Democrático, ainda mais se levando em conta, analogicamente, o disposto na parte final do inciso XII, do art. 5º, da Lei Maior, o qual estabelece a quebra do sigilo telefônico para fins de "investigação criminal ou instrução processual penal".

4.6 – Quebra dos sigilos fiscal, bancário e financeiro

O inciso III, do art. 2º, da lei 9.034/95 permite "o acesso a dados, documentos e informações fiscais, bancárias, financeiras e eleitorais" como um dos meios de obtenção de prova em relação às organizações criminosas investigadas.

A Constituição Federal não prevê expressamente a inviolabilidade dos sigilos fiscal, bancário e financeiro, que é extraída da tutela do direito à intimidade (artigo 5°, inciso X).

Observa-se que o sigilo bancário é uma forma de proteção à liberdade do indivíduo, já que se não fosse a regra, seria permitido às autoridades o acesso indiscriminado aos segredos confiados às instituições financeiras, impossibilitando ao sujeito determinar se quer compartilhar determinados dados. Semelhante às instituições financeiras, que devem observar sigilo sobre os negócios e informações obtidas nas transações com seus clientes, a autoridade fiscal tem o dever de manter em segredo as informações que obtém através do exercício das suas funções. Essa obrigação de não revelar encontra-se expressa no Código Tributário Nacional.

Em que pese os sigilos bancário e fiscal consistirem numa garantia constitucional, cumpre salientar que não são os mesmos revestidos de caráter absoluto, conforme entendimento já consolidado em nossa jurisprudência.

Obviamente que, para se exercitar a quebra de sigilo, deve o devido processo legal ser respeitado, sendo tal determinação efetuada apenas com ordem judicial e um rigoroso controle das diligências pelo poder judiciário, conforme acórdão infra (do Tribunal Regional Federal da 2ª Região. Hábeas Corpus 95.02.22528-7/RJ. Relator Desembargador Federal Valmir Peçanha).

PROCESSUAL PENAL – HÁBEAS CORPUS – QUEBRA DE SIGILOS BANCÁRIO, FISCAL E DE COMUNICAÇÕES TELEFÔNICAS (ART. 5º, X E XII, DA CF) – I. Os direitos e garantias fundamentais do indivíduo não são absolutos, cedendo em face de determinadas circunstâncias, como, na espécie, em que há fortes indícios de crime em tese, bem como de sua autoria. II. Existência de interesse público e de justa causa, a lhe dar suficiente sustentáculo. III. Observância do devido processo legal, havendo inquérito policial regularmente instaurado, intervenção do órgão do parquet federal e prévio controle judicial, através da apreciação e deferimento da medida. (Grifos nossos).


5 CONCLUSÃO

Conforme se procurou demonstrar ao longo do presente trabalho, o fenômeno da Criminalidade Organizada, por possuir características peculiares que o tornam de dificílima apuração, tais como a capacidade de infiltração dos criminosos na máquina estatal, a alta mutabilidade e a pouca visibilidade dos danos, necessita de mecanismos próprios de obtenção probatória, na busca da pretendida eficiência penal.

E, sobretudo, pelo crescimento que tem apresentado às organizações criminosas na atualidade, facilitado pelo avanço tecnológico aliado ao poderio econômico que detêm, torna-se cada vez mais constante em diversos países a adoção de medidas de combate e prevenção realmente adequadas às peculiariedades do Crime Organizado.

Tais medidas processuais são criticadas por muitos com o argumento de que ferem garantias constitucionais, como o direito à intimidade e à vida privada, não devendo, portanto, segundo os partidários desse entendimento, ser adotadas pelo ordenamento jurídico pátrio por apresentarem uma tendência restritiva e um retrocesso.

Outros, no entanto, consoante restou discutido ao longo do presente, defendem que diante da gravidade do fenômeno, e compartilhando com o entendimento de que os direitos e garantias previstos na Constituição não são absolutos, urge que o legislador brasileiro regulamente de uma forma mais completa instrumentos específicos para apuração e combate ao Crime Organizado, mesmo que estes venham a, digamos, prejudicar alguns direitos, em face de um bem maior, a paz coletiva.

Apesar da legislação brasileira não se debruçar da forma desejada sobre o tema, a jurisprudência pátria mais recente evolui a olhos vistos, adotando medidas para desmantelar organizações criminosas.

Demonstrada a discussão sobre a compatibilidade entre garantias individuais e eficiência penal, o presente estudo apresentou sucintamente quais os mecanismos de obtenção de prova já adotados, mesmo que timidamente, pelo ordenamento jurídico brasileiro, concluindo que estes devem ser aprimorados para uma maior eficácia no combate ao Crime Organizado.

Por fim, cabe registrar que, partindo do entendimento de que devem ser adotados instrumentos restritivos de direitos para apuração da Criminalidade Organizada, a fim de que arbitrariedades não aconteçam, o operador do Direito deverá oportunamente se valer do princípio da proporcionalidade, com moderação e respeito à dignidade da pessoa humana.


REFERÊNCIAS

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Notas

  1. GOMES, Luiz Flávio. Crime organizado: que se entende por isso depois da lei n° 10.217/01? Disponível em: <http://www.mundojuridico.adv.br/sis_artigos/artigos?codigo=22>. Acesso em: 14 jan. 2007.
  2. BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Habeas Corpus 89417/RO. Relatora Ministra Cármen Lúcia, 22.8.2006. Informativo STF. Brasília, 21 a 25 de agosto de 2006 - Nº 437. Acesso em 12 de Fevereiro de 2007.


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Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

CAMPOS, Tiago Medeiros. Obtenção da prova para a apuração do crime organizado. Principais instrumentos e suas implicações. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 15, n. 2702, 24 nov. 2010. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/17890. Acesso em: 26 abr. 2024.