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O direito de acesso ao ensino fundamental de 9 anos. A competência estadual para regulamentar o corte etário e a inconstitucionalidade da resolução CNE/CEB n° 1/2010

O direito de acesso ao ensino fundamental de 9 anos. A competência estadual para regulamentar o corte etário e a inconstitucionalidade da resolução CNE/CEB n° 1/2010

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RESUMO

A Constituição Federal prescreve o princípio da igualdade material ao acesso à educação. Uma das peculiaridades deste princípio está na mensuração da aptidão do educando para o acesso a níveis superiores de ensino. Para fins operativos, o legislador fixa cortes etários para o acesso à educação, todavia, tais mecanismos não podem gerar presunção absoluta de inaptidão do educando a determinado nível de ensino sob pena de ofensa ao referido princípio. Em relação ao acesso ao ensino fundamental, a Constituição Federal garantiu que, após os 5 anos de idade, o educando tem o direito público subjetivo ao mesmo. Toda norma infraconstitucional, produzida pelo legislativo ou pelo executivo, deverá observar tal parâmetro constitucional, sob pena de invalidade.

Palavras-chave: Ensino Fundamental – Critério – Ingresso – Constituição.

Sumário: Introdução. 1 - Estado Democrático e Social de Direito. Constituição de 1988. Direitos Fundamentais. 2 - O direito fundamental à educação prescrito na CF/88. Alguns aspectos. 3 - Os deveres constitucionais estatais na prestação da educação básica e do ensino fundamental - art. 208, da CF. 4 - O direito de acesso à educação básica - Lei n. 9.394/96. 5 - Garantias legais e constitucionais para a efetividade do princípio da liberdade de aprender. 5.1 - A flexibilidade na forma de organização temporal dos sistemas de ensino, segundo as peculiaridades locais, regionais, climáticas e econômicas. 5.2 - A flexibilidade do critério idade mínima para o ingresso e/ou a permanência no processo educacional, em função da maturidade, das competências e grau de desenvolvimento do educando. 5.3 - Do ensino fundamental de nove anos. Do corte etário constitucional para acesso a esta etapa educacional. Da compatibilidade material entre o art. 208, IV, da CF/88 e o art. 32, da Lei n. 9.394/96, com a redação dada pelas Leis Ordinárias n. 11.114/05 e 11.274/06. Da competência legislativa estadual para fixação do corte etário para ingresso no ensino fundamental de 9 anos. 5.4 - Da ilegalidade e da inconstitucionalidade da Resolução CNE/CEB n. 1/2010.  6 – Conclusões. 7 - Referências Bibliográficas.


Introdução

Neste ensaio tratar-se-á, inicialmente, do papel dos direitos fundamentais para a configuração do Estado Democrático e Social de Direito. A seguir passar-se-á a delinear o direito constitucional à educação, ladeado pelos princípios da igualdade material ao acesso ao processo educacional e da liberdade de aprender.

Após estas considerações procurar-se-á demonstrar que, observado o pacto federativo, os sistemas de ensino criados pelos entes federados deverão ser flexíveis o suficiente para garantirem o acesso material dos educandos aos mesmos.

Em tópico posterior, para fins de acesso ao ensino fundamental de 9 anos, será confrontada com o Texto Constitucional a presunção legal gerada pelo binômio "idade mínima – início do período letivo".

Por fim, analisar-se-á, perante a CF/88, a compatibilidade formal e material da Resolução CNE/CEB n. 1/2010, que regula o binômio supra referido e procura uniformizar nacionalmente o direito de acesso à primeira série do ensino fundamental de nove anos.


1. Estado Democrático e Social de Direito. Constituição de 1988. Direitos Fundamentais

O Estado Brasileiro, na Constituição Federal de 1988, configura-se em Estado Democrático e Social de Direito.

A Constituição vigente, em seu o art. 1º, caput, para desenhar o Estado, qualifica-o com os termos: "Democrático" e "de Direito". Estes termos, combinados e conjugados com o prescrito no Título I, art. 1º, III e IV, art. 3º, I, II e IV, com o Título II, Capítulo II,"Dos Direitos Sociais", com o Título VII, art. 170 - que desenha a Ordem Econômica e Financeira sob os princípios da "existência digna" e dos "ditamente da justiça social" - e com o Título VIII, "Da Ordem Social", conformam positivamente o formato do Estado Brasileiro em Estado Democrático e Social de Direito.

Contribuem para a configuração democrática e social afirmada acima a ampla fundamentalização de direitos sociais prescrita nos art.s 5º, 6º e seguintes do Texto Maior. Ingo Wolfgang Sarlet ensina que os direitos fundamentais "constituem condição de existência e medida da legitimidade de um autêntico Estado Democrático e Social de Direito, tal como consagrado também no direito constitucional positivo vigente pátrio" [01]. No mesmo sentido, alinha-se Contreras Peláez ao asseverar que o conceito de direitos fundamentais sociais possui "estrecha correlación com el de Estado Social" [02].

Tratando das notas que distinguem um "Estado Social de Direito" de um "Estado de Direito", Perez Luño considera: "el papel de los derechos fundamentales deja de ser el de meros límites de la actuación estatal para transformarse en instrumentos jurídicos de control de su actividad positiva, que debe estar orientada a posibilitar la participación de los individuos y los grupos en el ejercicio del poder. Lo que trae como consecuencia la necesidad de incluir en el sistema de los derechos fundamentales no sólo las libertades clásicas, sino también a los derechos económicos, sociales y culturales como categorías accionables y no como meros postulados programáticos" [03].

Se os direitos fundamentais sociais implicam na configuração e formatação formal de um Estado Social de Direito, este, para sê-lo materialmente, implica na garantia e na efetividade dos primeiros.

Dentre os direitos fundamentais presentes na CF/88 se destaca o direito à educação, a liberdade de aprender e a igualdade material ao acesso e à permanência no processo educacional. O direito à educação e a liberdade de aprender serão tão mais efetivos quanto maior for a garantia de igualdade material ao acesso e à permanência dos educandos no processo educacional.


2. O direito fundamental à educação prescrito na CF/88. Alguns aspectos.

A educação, como processo de transmissão de conhecimentos, é um objeto relacionado ao homem. A sociedade brasileira – assim, como todas as sociedades do mundo - atribui à educação uma grande importância. No Ordenamento Jurídico pátrio, essa relação valorativa foi evidenciada em vários princípios e regras constitucionais, dentre eles os artigos 1º, III, 3º, I, II e III, 6º, 34, VII alínea "e", e, artigos 205 a 214 da Carta Constitucional.

Garantida como direito social fundamental, a educação funciona como um instrumento de realização da dignidade do ser humano [04], assim como da democracia social e política. Por esta razão, para delinear o conteúdo do direito à educação, o intérprete deverá cotejar os artigos que o prescrevem com os artigos 1º, III e 3º, I, II e III, da CF/88, que estabelecem a estrutura do Estado Brasileiro e elegem como princípio fundamental deste Estado a dignidadeda pessoa humana.

A educação atua como o mecanismo apto a provocar a consciência (individual e coletiva), a construir o reconhecimento (individual e coletivo) e viabilizar a promoção (coletiva) do valor do ser humano. Sem a educação, a eficácia social do princípio constitucional da dignidade humana fica mais distante da realidade.

Além de mecanismo de preservação da dignidade humana, a educação é a base para a democracia, dado que esta não existe sem as idéias de liberdade na manifestação do pensamento(art. 5º. IV), de liberdade de consciência(art. 5º. VI), e de liberdade de expressão da atividade intelectual, artística, científica e de comunicação(art. 5º. IX), idéias que se concretizam, principalmente, pela educação. Quanto mais educada for uma comunidade, mais facilmente exercitará e respeitará os preceitos democráticos da igualdade e da liberdade. É através da educação que os fundamentos do Estado Democrático de Direito (art. 1º) podem ser realizados e os objetivos da República Federativa do Brasil (art. 3º) alcançados.

Sobre a educação o art. 205, da CF, prescreve o seguinte:

Art. 205. A educação, direito de todos e dever do Estado e da família, será promovida e incentivada com a colaboração da sociedade, visando ao pleno desenvolvimento da pessoa, seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho.

Complementando o artigo supra transcrito, o art. 206, I [05], do Texto Maior, prescreve e impõe o princípio da igualdade de condições e de oportunidades ao acesso às prestações educacionais, bem como o direito de permanência e de evolução no processo educacional se o educando neste já estiver inserido.

Como anverso do direito à igualdade supra descrito, o inciso II, do mesmo art. 206, também prescreve o princípio da liberdade de aprender: "Art. 206. O ensino será ministrado com base nos seguintes princípios: (…) II - liberdade de aprender (...);" [06].

Destacam-se os princípios educacionais supra, uma vez que o ponto de partida do intérprete deve ser sempre os princípios constitucionais. Estes são "um conjunto de normas que espelham a ideologia da Constituição, seus postulados básicos e seus fins" [07]. Os princípios constitucionais "são as normas jurídicas que veiculam o ‘fundamento’ ou ‘qualificações essenciais’ de uma ordem jurídica", considera Luis Roberto Barroso.

Os princípios da igualdade e da liberdade são inerentes à própria noção de República. Se a liberdade é a medida da legalidade informada pela igualdade, o art. 206, I, ao prescrever a igualdade de condições ao acesso e permanência no processo educacional, garante a efetividade da liberdade de aprender, prescrita no inciso seguinte.

Baseado em pressupostos republicanos o constituinte prescreveu os incisos I e II do art. 206, da CF/88. Na condição de princípio constitucional especial, o princípio da igualdade de condições ao acesso e permanência na escola é a concretização dos princípios gerais da igualdade e da liberdade, que por sua vez, densificam os princípios estruturantes da República, da Democracia e da Dignidade da Pessoa Humana. Dessas prescrições constitucionais decorrem alguns efeitos fundamentais, dentre eles aquele que obriga o Estado a criar instrumentos e políticas públicas que implementem um tratamento materialmente igualitário a todos os indivíduos titulares do direito à educação escolar, dado que todos participam e contribuem para a formação do Estado Republicano brasileiro.

Os destinatários dos incisos I e II, do art. 206, são especialmente: a) o Poder Legislativo, que foi proibido de criar prescrição legal discriminatória negativa e impediente do acesso e da permanência citados, bem como obrigado a legislar autorizando o Poder Executivo assegurar, por meio de políticas públicas e de ações positivas e concretas, os objetivos pretendidos pela Constituição; b) o Poder Executivo que, além de proibido de discriminar, por qualquer meio, qualquer titular do direito ao ensino, também está obrigado a empreender ações positivas eficazes que viabilizem concretamente os referidos acessos e permanências, mormente no que tange aos titulares do direito à educação básica [08]; e, c) e, por fim, as escolas privadas referidas no art. 209, da CF/88, uma vez que delegatárias do Estado [09].

O princípio especial da igualdade de condições ao acesso e permanência na escola não se esgota na noção de igualdade formal, pois exige uma prática material, concreta e efetiva dos sujeitos supra referidos para viabilizar os objetivos nele prescritos.

Uma dessas ações exigidas do Estado e de seus delegatários, está prescrita no art. 208, V, da CF/88, que ordena a transmissão e o acesso a níveis mais apurados de conhecimento nos termos da capacidade de cada um. Este artigo impõe, aos órgãos normativos e administrativos, bem como aos particulares delegatários, a construção e a implementação de sistemas de ensino adequados à realidade dos educandos, nos quais se insiram mecanismos que garantam o avanço dos mesmos a níveis mais avançados de ensino, caso demonstrem individualmente capacidade para tanto.

O princípio constitucional da igualdade de condições para o acesso e à permanência no processo educacional, bem como o princípio da liberdade de aprender, impõe não somente um agir negativo, caracterizado pela abstenção de atos que possam impedir que todos cheguem à escola; mas um agir positivo e suficiente para o alcance dos propósitos constitucionais.


3. Os deveres constitucionais estatais na prestação da educação básica e do ensino fundamental - art. 208, da CF.

Como dito alhures, não basta prescrever direitos na Constituição para que estes passem à existência material. Paralelamente à prescrição de direitos, faz-se necessário prescrever os deveres constitucionais que, cumpridos, implementem os direitos prescritos.

Em busca da implementação do direito à educação básica, o constituinte prescreveu o art. 208, da CF. Na educação básica insere-se o ensino fundamental, tratado pelo art. 208 nos incisos I, IV, V e §1º, da CF, in verbis:

Art. 208. O dever do Estado com a educação será efetivado mediante a garantia de:

I - educação básica obrigatória e gratuita dos 4 (quatro) aos 17 (dezessete) anos de idade, assegurada inclusive sua oferta gratuita para todos os que a ela não tiveram acesso na idade própria; (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 59, de 2009)

(...)IV - educação infantil, em creche e pré-escola, às crianças até 5 (cinco) anos de idade; (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 53, de 2006)

V - acesso aos níveis mais elevados do ensino, da pesquisa e da criação artística, segundo a capacidade de cada um;

(...) § 1º - O acesso ao ensino obrigatório e gratuito é direito público subjetivo.

(...)

O inciso I do art. 208, supra transcrito, com a redação dada pela Emenda Constitucional n. 59, de 2009, prescreveu a educação básica como obrigatória.

A obrigatoriedade em epígrafe nasce da conjugação entre o inciso I e o §1º, do artigo 208, e gera duas relações jurídicas distintas. A primeira tem em seu pólo passivo o pai/responsável e no pólo ativo o próprio educando. Ao completar 4 anos, a criança - brasileira ou estrangeira, residente no território nacional - terá o direito constitucional ao ingresso à educação básica; e, preenchido este pressuposto fático a norma constitucional incidirá para fazer nascer uma relação jurídica entre esta criança e seu pai/responsável, cujo modal deôntico obrigará este último a matriculá-la em escola formal e acompanhar-lhe a freqüência. Já a segunda relação jurídica gerada pela obrigatoriedade supra referida tem em seu pólo passivo o Estado (e os delegatários, quando representantes deste) e no pólo ativo o educando (representado por seu pai/responsável). Esta relação jurídica obriga o primeiro (Poder Legislativo e Poder Executivo) a disponibilizar ao segundo um sistema de ensino capaz de atender aos valores constitucionalmente prescritos. Ambas as relações jurídicas destacadas veiculam direitos públicos subjetivos ao educando.

Segundo o inciso IV, do art. 208, a educação infantil deverá ser prestada até os 5 anos. Por conseqüência, sendo também obrigatória ao Estado a prestação do ensino fundamental, imediatamente após o término da educação infantil, ou seja, a partir de 5 anos completos, o educando terá o direito público subjetivo ao ensino fundamental.

Esta obrigatoriedade de prestação do ensino fundamental também poderá ser antecipada caso, nos termos do art. 208, IV, o educando tiver aptidão comprovada para ter acesso a nível mais elevado de ensino.

Além da obrigatoriedade da oferta adequada da educação básica, prescrita no inciso I, os incisos II e seguintes do art. 208 prescrevem outros deveres constitucionais do Estado para com a educação escolar, que se descumpridos importam em responsabilidade da autoridade competente, nos termos do §2º do mesmo artigo.

Da leitura do art. 208, da CF, depreende que o constituinte não prescreveu apenas formalmente o direito à educação. Para a garantia da eficácia social deste direito, o constituinte fixou diversos deveres constitucionais que, cumpridos, viabilizam o verdadeiro exercício do referido direito fundamental.


4. O direito de acesso à educação básica - Lei n. 9.394/96.

A lei nacional n. 9.394/96 regulamentou o direito constitucional à educação básica prescrevendo esta como um ciclo educacional único, desmembrado internamente em educação infantil, ensino fundamental e ensino médio [10]. A primeira etapa inicia-se quando a criança ainda é muito jovem, aos 4 anos, e a última etapa termina quase no final de sua adolescência, aos 17 anos.

Estas três etapas da Educação Básica, jurídica e pedagogicamente, formam um todo, organizado de maneira flexível e crescente; as etapas, consideradas entre si, evoluem num verdadeiro "continuum", sem intervalos, e, adaptadas às condições e habilidades dos educandos. Cada conteúdo, aleatoriamente considerado, deve ser concatenado com aquele que lhe é anterior e prévio e com aquele que lhe é posterior, tendo por norte e parâmetro o desenvolvimento individual do educando, desde os 4 anos até os 17 anos.

A educação básica é planejada e ministrada tendo por parâmetro as fases do desenvolvimento do educando: da primeira infância à adolescência. Os recursos humanos e materiais oferecidos em cada fase deste processo educacional também devem ser compatíveis com o grau de desenvolvimento e maturidade individuais do educando.

No decorrer da primeira infância – esta se inicia aos 02 e vai até os 07 anos – todo conteúdo ministrado ao educando deverá ser feito por meio lúdico, no qual seja privilegiado o ato de brincar, a imaginação infantil e a fantasia. O conhecimento, nesta fase, deve ser transmitido sem apego a fórmulas rígidas e metódicas, e ter por método de ensino a brincadeira. O sistema de avaliação também deverá ser adaptado ao estágio de desenvolvimento da criança. Pelo mesmo motivo – ou seja, o respeito à infância e às suas peculiaridades – o mobiliário e o ambiente educacional, no qual a criança deverá estar inserida, nesta fase de seu desenvolvimento, deverá ser diverso daquele no qual ela participará após os 07 anos. Conforme a criança vai crescendo, as técnicas educacionais, os ambientes, os desafios, o sistema de avaliação, serão diversificados e adaptados, novamente, às condições do educando.

Não obstante a divisão feita pelo art. 21, I, da Lei nº 9.394/96, e da terminologia dada à primeira parte (educação infantil), à segunda parte (ensino fundamental) ou à terceira parte (ensino médio) da educação básica, não se pode perder de vista que em cada uma delas o conteúdo, a metodologia e o sistema de avaliação deverão ser adaptados à aptidão e maturidade dos educandos, sob pena de ofensa ao disposto no art. 206, I e II, e, especialmente, no art. 208, V, da CF/88.

O direito ao acesso às etapas da educação básica também deve seguir a aptidão e as habilidades do educando. Conforme será demonstrado abaixo, o constituinte, assim como o legislador ordinário [11], criou uma presunção de aptidão ao delimitar etariamente (dos 4 aos 17 anos) o início e o término da educação básica, todavia, ele também cuidou de tornar relativa esta presunção ao prescrever o art. 208, V, da CF/88. Este dispositivo constitucional determina que a aptidão real é que deve nortear os estímulos ao desenvolvimento do educando, o que, por conseqüência, obriga a adaptação do direito de acesso às etapas da educação básica à aptidão do mesmo.


5. Garantias legais e constitucionais para a efetividade do princípio da liberdade de aprender.

Com vistas a densificação dos princípios da liberdade de aprender e da igualdade ao acesso à educação básica, o legislador ordinário foi sábio e prescreveu diversos mecanismos de flexibilidade para os sistemas de ensino, tendo em vista o dever de adaptação destes às necessidades e aptidões dos educandos. Abaixo serão tecidos alguns comentários sobre tais mecanismos.

5.1. A flexibilidade na forma de organização temporal dos sistemas de ensino, segundo as peculiaridades locais, regionais, climáticas e econômicas.

É notória e sempre enaltecida, a característica flexível e democrática da Lei Darcy Ribeiro (Lei nº 9.394/96). Tal flexibilidade lança seus reflexos, por exemplo, na forma de organização da educação básica. Os arts. 23, §2º e 24, IV, da referida lei autorizam que a educação básica seja organizada em: (1) séries anuais, (2) períodos semestrais, (3) ciclos, (4) alternância regular de períodos de estudos, (5) grupos não-seriados, (6) com base na idade, (7) na competência e (8) em outros critérios, ou por (9) forma diversa de organização, sempre tendo em vista o interesse do processo ensino- aprendizagem.

Com base nos artigos supra referidos, conforme as peculiaridades geográficas, climáticas e econômicas predominante em cada ente federativo brasileiro, o calendário escolar da educação básica poderá ser composto por período letivo coincidente com o ano civil, também poderá ser composto por semestres letivos, por ciclos de 02 anos ou por qualquer outra forma de organização temporal se esta pretender a implementação da liberdade de aprender e a instrumentalizaçãoda garantia de igualdade de acesso e/ou de permanência dos educandos no processo educacional básico.

O § 2º do artigo 23 prescreve que o calendário escolar (e, portanto, o início do ano/período/ciclo/ou qualquer outra forma de organização temporal) deverá adequar-se: (1) às peculiaridades locais, inclusive (2) climáticas e (3) econômicas, a critério do respectivo sistema de ensino, desde que isso não reduza o número obrigatório de horas letivas.

Nos termos do referido parágrafo e segundo as peculiaridades locais, dado sistema de ensino poderá estabelecer, por exemplo, que o início de seu período letivo ocorra em junho, ao invés de fevereiro; também poderá estabelecer que o recesso escolar - que, na maioria das regiões do país é mais longo em dezembro - seja fixado para junho e julho, nas regiões onde esta época for muito fria e dificultar a aquisição do conhecimento, em função do desconforto ambiental.

Em cumprimento ao princípio federativo, à repartição de competências constitucionais, especialmente as referidas no art. 22, XXIV e no art. 24, IX, o legislador nacional, nos artigos 23 e 24, da Lei n. 9.394/96, condicionou Assembléias Legislativas e Conselhos Estaduais de Educação a flexilizarem e adaptarem seus sistemas de ensino à aptidão dos educandos (art. 208, V), assim como às peculiaridades locais e regionais, e, às características climáticas e econômicas.

Estes parâmetros fixados pela Lei n. 9.394/96 têm por objetivo implementar os princípios da liberdade de aprender (art. 206, II) e da igualdade no acesso e na permanência no processo educacional (art. 206, I, CF).

5.2. A flexibilidade do critério idade mínima para o ingresso e/ou a permanência no processo educacional, em função da maturidade, das competências e grau de desenvolvimento do educando.

Sem perder de vista os objetivos retro, passa-se à análise do critério etário para ingresso nas etapas da educação básica.

O ato de fixar a data de início de um período letivo traz como conseqüência a fixação de um corte etário entre os educandos existentes em dado sistema de ensino. Assim, cria-se o binômio "idade mínima – data de início de dado período letivo".

O critério "idade mínima-data de início do período letivo" é bastante operativo para os sistemas de ensino, pois cria uma presunção de aptidão do educando a determinada faixa da educação básica. Todavia, o critério em questão não pode ser o único a nortear a admissão de dado aluno em tal ou qual série/ano/ciclo/semestre, sob pena de ofensa ao princípio da igualdade de acesso e permanência na educação básica. Daí a lei de diretrizes ter prescrito (com base no art. 208, V, da CF/88) que somente a idade cronológica ou a fixação aleatória de datas são insuficientes para orientar o agrupamento de crianças no processo de ensino aprendizagem.

Ou seja, não é possível a fixação nacional arbitrária de apenas uma data para o início do ano letivo, porque o § único do art. 23 autoriza inícios diversos, segundo a pluralidade pedagógica, as peculiaridades regionais e locais, bem como as peculiaridades climáticas e econômicas do local onde se encontra o educando - observado o número mínimo de horas aulas previstos em lei - assim como o art. 208, V, da CF, garante ao educando o acesso a níveis superiores de ensino, quando apto para tanto.

É certo que, para fins operativos, cada sistema de ensino pode escolher uma data diferente para o início de seu período letivo. Todavia, se dado sistema de ensino adotar uma data de corte para o início do período letivo, não poderá alçá-lo a termos absolutos, sob pena de ofensa ao art. 23 e 24 da Lei nº 9.394/96 e, especialmente, ofender a igualdade de tratamento e/ou de permanência do educando no processo educacional segundo a sua capacidade individual (art. 206, I, II e art. 208, V, da CF/88).

Não se pretende, com estas considerações, negar a possibilidade de estabelecimento do binômio "idade mínima – data de início do período letivo" como critério para admissão de educandos em dado período letivo. Pretende-se apenas evidenciar que não é possível adotar o binômio em questão de modo absoluto, pois a lei nacional permitiu vários inícios diferentes para o período letivo, o que faria uma criança ter a idade mínima em algumas hipóteses e em outras não.

É necessário conjugar os critérios elencados no art. 23, § 2º, da Lei nº 9.394/96, para resolver os problemas causados pelo binômio: "idade mínima – data de início do período letivo". Com já dito acima, o binômio em questão é de grande operatividade, pois cria uma presunção legal de que dada criança estará apta no momento formalmente fixado e, assim, evita que o Estado precise avaliar cada criança, individualmente, por psicólogo/pedagogo, antes de autorizar o ingresso desta em dado período do processo educacional básico.

Mas, não é possível criar, por meio deste referido binômio, uma presunção absoluta de incapacidade de uma criança, sob pena de ofensa ao art. 206, I e II, e ao art. 208, V, todos da CF/88. Para situações onde houver uma disparidade entre o binômio em questão e a real aptidão e desenvolvimento da criança, estes últimos deverão prevalecer. O desenvolvimento individual de cada criança deverá ser o critério forte e prevalente sobre a presunção legal, que, em tudo, é relativa.

A criança tem o direito de a ela ser aplicado o critério: competência, maturidade e grau de desenvolvimento individual retratado em avaliação técnica, como forma de superar o não cumprimento do binômio "idade mínima/início do período letivo", para fins de cumprimento do art. 206, I e II, e do art. 208, V, da CF/88.

Foi o respeito ao desenvolvimento cognitivo, emocional e psicomotor natural e individual de cada educando que norteou o legislador ao criar o art. 23 e seu parágrafo único, tudo com fundamento no art. 208, V, da CF/88.

Estas preocupações do legislador merecem aplausos, porque pactuam e densificam os objetivos magnos previstos no art. 3º, bem como os princípios especiais previstos no art. 206, incisos I, II e, especialmente, o prescrito no art. 208, V, todos da Constituição Federal.

5.3. Do ensino fundamental de nove anos. Do corte etário constitucional para acesso a esta etapa educacional. Da compatibilidade material entre o art. 208, IV, da CF/88 e o art. 32, da Lei n. 9.394/96, com a redação dada pelas Leis Ordinárias n. 11.114/05 e 11.274/06. Da competência legislativa estadual para fixação do corte etário para ingresso no ensino fundamental de 9 anos.

Especificamente sobre o ensino fundamental de 9 anos – fase intermediária da educação básica -, destaca-se que as leis ordinárias nacionais n. 11.114/05 e n.11.274/06 alteraram os artigos 6° e 32 da Lei n. 9.394/96, para ampliar a duração desta fase e antecipar idade para a matrícula obrigatória neste nível de ensino para 6 anos.

A redação original dos artigos 6° e 32, da Lei n. 9.394/96 (LDB) dispunha:

Art. 6º. É dever dos pais ou responsáveis efetuar a matrícula dos menores, a partir dos sete anos de idade, no ensino fundamental.

Art. 32. O ensino fundamental, com duração mínima de oito anos, obrigatório e gratuito na escola pública, terá por objetivo a formação básica do cidadão, mediante(...).(grifos nossos).

Em 17 de maio de 2005, foi publicada a Lei 11.114/05 para alterar a LDB nos artigos 6º e 32. Estes passaram a vigorar com as seguintes redações:

Art.6º - É dever dos pais ou responsáveis efetuar a matrícula dos menores, a partir dos seis anos de idade, no ensino fundamental.

Art.32 - O ensino fundamental, com duração mínima de oito anos, obrigatório e gratuito na escola pública a partir dos seis anos, terá por objetivo a formação básica do cidadão mediante: (...) (grifo nosso)

O art. 32, tanto em sua redação original quanto na redação dada pela Lei n. 11.114/05, não impôs uma duração de 9 anos para o ensino fundamental. Para corrigir este conflito entre a intenção do legislador e produto desta, em 06/02/206 foi publicada a Lei n. 11.274/2006 para efetivamente prescrever a duração de 09 anos para o ensino fundamental, a saber:

Art. 3º O art. 32 da Lei nº 9.394, de 20 de dezembro de 1996, passa a vigorar com a seguinte redação:

"Art. 32. O ensino fundamental obrigatório, com duração de 9 (nove) anos, gratuito na escola pública, iniciando-se aos 6 (seis) anos de idade, terá por objetivo a formação básica do cidadão, mediante:"(NR) (grifos nossos).

Com o novo texto do art. 32, o legislador abandonou os modais deônticos obrigatório/permitido para adotar um único modal: o obrigatório. O legislador tornou obrigatório, tanto para a escola pública quanto para a escola privada o ensino fundamental com duração de 9 anos, antecipando o seu início em um ano.

Do ponto de vista constitucional, em 06 de fevereiro de 2006 vigia a seguinte redação no art. 208, IV, CF/88:

Art. 208 (omissis).

IV - atendimento em creche e pré-escola às crianças de zero a seis anos de idade;

(...)

Pela simples leitura dos textos transcritos fica claro que, entre as normas nacionais supra referidas e o texto constitucional outrora vigente, havia firme relação de compatibilidade material.

Todavia, no dia 31 de dezembro de 2006, foi publicada a Emenda Constitucional n. 53, e esta deu nova redação ao inciso IV, do art. 208:

Art. 208 (omissis)

IV - educação infantil, em creche e pré-escola, às crianças até 5 (cinco) anos de idade;

(...)

Pela nova redação constitucional, dada ao inciso IV, a educação infantil deixou de ser ofertada até os 6 anos e para sê-lo até os 5 anos de idade. A partir deste marco o educando deverá ingressar no ensino fundamental de 9 anos. Aqui parece existir uma incompatibilidade entre as redações dos artigos 6º e 32, da Lei n. 9.394/96 e o novo texto constitucional.

Com a nova redação dada ao inciso IV, do art. 208, passaram a existir duas interpretações possíveis para o art. 32, da Lei n. 9.394/96, com a redação da Lei n. 11.274/2006. A primeira interpretação consiste em entender a expressão "seis anos", constante do dispositivo ordinário, como sendo "seis anos completos". Este entendimento gerará uma incompatibilidade material entre o texto do art. 32 e a redação do inciso IV, do art. 208. E como conseqüência, a única conclusão possível é de que, em função da rigidez constitucional,a norma superior e posterior (art. 208, IV) revogou a norma inferior e anterior (art. 32).Quanto à segunda interpretação possível, esta consiste em compreender a expressão "seis anos", prevista no art. 32, como sendo "seis anos incompletos". Considerando-se que "6 anos incompletos" resulta já 5 anos e um dia, esta segunda solução interpretativa gera uma relação de compatibilidade material entre o texto ordinário e o texto constitucional e a conseqüente recepção do texto infraconstitucional ao novo texto do art. 208, IV, da CF.

Nos termos do princípio da interpretação conforme à Constituição, é mais adequada a segunda possibilidade interpretativa, dado que mantém no ordenamento jurídico a norma ordinária n. 11.274/2006 mesmo na presença da nova redação do art. 208, IV, da CF.

Além da relação de compatibilidade material acima apontada, impõe-se não olvidar que, mesmo na presença de uma aparente data de corte, autorizada constitucionalmente para ingresso no ensino fundamental de 9 anos, toda presunção de aptidão ou inaptidão do educando para o ingresso em tal ou qual nível educacional poderá ser afastada pela aplicação do art. 208, V, da CF/88, tal como acima já demonstrado.

A Assembléia Legislativa do Estado do Paraná, no exercício de sua competência constitucional [12], [13], regulamentou o binômio "idade mínima/início do ensino fundamental de 9 anos" de maneira a adaptar a operatividade do corte etário ao disposto no art. 208, incisos IV e V, da CF/88.

A Lei Estadual nº 16.049, de 19 de Fevereiro de 2009, publicada no Diário Oficial nº. 150 de 20 de Fevereiro de 2009 prescreveu:

Art. 1°. Terá direito à matrícula no 1º ano do Ensino Fundamental de Nove Anos, a criança que completar 6 anos até o dia 31 de dezembro do ano em curso.

Como se depreende do texto estadual supra transcrito, no sistema de ensino paranaense garantiu-se o ingresso, na primeira série do ensino fundamental de 9 anos, de todos os educandos a partir de 5 anos de idade (art. 208, IV), bem como o legislador estadual guardou uma margem temporal capaz de cumprir com o disposto no art. 208, V, da CF, e adaptar o sistema de ensino às condições e aptidões das crianças. Assim, há plena compatibilidade material e formal da referida lei estadual com os ditames constitucionais.

5.4. Da ilegalidade e da inconstitucionalidade da Resolução CNE/CEB n. 1/2010

Como visto acima, está prescrito no art.22, XXIV e no art. 24, IX, da CF, a competência legislativa federativa suplementar para que cada ente federativo crie o seu próprio sistema de ensino. Nesta esteira, a Lei n. 9.394/96 delegou a cada ente federativo a liberdade de organização destes sistemas educacionais [14], bem como a autorização para que corte etário para ingresso no sistema de ensino fosse feito nos moldes do art. 23 e 24 já comentados acima.

Todavia, no que se refere ao acesso à primeira série do ensino fundamental de nove anos, em 14 de janeiro de 2010, o Conselho Nacional de Educação, por meio da Câmara da Educação Básica, publicou a Resolução n.1, que prescreve, in verbis:

"Resolução nº 1, de 14 de janeiro de 2010 (*)

Define Diretrizes Operacionais para a implantação do Ensino Fundamental de 9 (nove) anos.

(...)

Art. 1º Os entes federados, as escolas e as famílias devem garantir o atendimento do direito público subjetivo das crianças com 6 (seis) anos de idade, matriculando-as e mantendo-as em escolas de Ensino Fundamental, nos termos da Lei nº 11.274/2006.

Art. 2º Para o ingresso no primeiro ano do Ensino Fundamental, a criança deverá ter 6 (seis) anos de idade completos até o dia 31 de março do ano em que ocorrer a matrícula.

Art. 3º As crianças que completarem 6 (seis) anos de idade após a data definida no artigo 2º deverão ser matriculadas na Pré-Escola.

(...)

Art. 5º Esta Resolução entrará em vigor na data de sua publicação, revogadas as disposições em contrário."

O Conselho Nacional de Educação tem função normativa e de supervisão dos sistemas de ensino, nos termos do art. 9º, §1º, da Lei n. 9.394/96. Esta sua função normativa, todavia, submete-se ao princípio da legalidade (art. 5º, II) e ao controle material de constitucionalidade.

Analisando-se a compatibilidade material da resolução supra transcrita com o texto constitucional percebe-se um conflito entre esta norma inferior e o art. 208, IV, da CF/88. Como visto alhures, este dispositivo constitucional prescreve como limite para a oferta da educação infantil os 5 (cinco) nos de idade do educando. Por óbvio, sendo a educação básica um continuum obrigatório [15], se a oferta da educação infantil, segundo a Constituição, dar-se-á apenas até os 5 anos [16], aos educandos com 5 anos e 1 dia o constituinte garantiu o ingresso na primeira série do ensino fundamental de 9 anos; salvo se esta estiver inapta para fazê-lo, nos termos do art. 208, V, da Carta Maior - o que demanda comprovação técnica e não mera conveniência política e/ou econômica - típica invocação da cláusula ‘reserva do possível’ - dos sistemas de ensino.

Note-se que o direito dos educandos com 5 anos e um dia ao acesso ao ensino fundamental tem seu fundamento na obrigatoriedade imposta ao Estado de oferta desta etapa educacional. E, a relação jurídica, entre educando e Estado, decorre do próprio texto constitucional. Qualquer norma inferior que disponha de maneira diversa está fadada a ser expulsa do ordenamento jurídico.

Ainda sob o ponto de vista material, a inconstitucionalidade da Resolução n.1/2010 reafirma-se no fato de que pretendeu padronizar nacionalmente o binômio "idade mínima/início do ensino fundamental de 9 anos", em desrespeito ao princípio federativo, traduzido na competência constitucional deferida aos entes federados pelo art. 24, IX, da CF/88 para a suplementação da legislação educacional conforme os objetivos pretendidos pelo art. 23 e 24, da LDB.

A referida Resolução também ofende aos princípios da legalidade (art. 5º, II, da CF/88) e do Estado Democrático de Direito porque desborda a competência regulamentar que possui. Só ao Poder Legislativo cabe a imposição, a proibição ou a permissão de comportamentos intersubjetivos com caráter vinculante.

À Câmara da Educação Básica, do Conselho Nacional de Educação, falece competência para inovar o ordenamento jurídico, especialmente porque em confronto com o art. 208, IV, da CF/88 e, no caso do Estado do Paraná, em confronto com o disposto na Lei n. 16.049/2009 publicada sob a chancela da vontade popular.


6. Conclusões

1. O Estado Brasileiro, na CF/88, configura-se em Estado Democrático e Social de Direito, garantido, dentre outros direitos sociais, o direito à educação.

2. O art. 206, I e II prescreve o direito à igualdade ao acesso e à permanência no processo educacional, bem como a liberdade de aprender.

3. Para tornar efetivo o direito à igualdade e o direito de liberdade referidos no item anterior, a Lei n. 9.394/96, em seus art.s 23 e 24, permitiu a construção de sistemas de ensino flexíveis e adaptados às peculiaridades locais, regionais, climáticas e econômicas de cada ente federativo. A flexibilidade para o acesso aos sistemas de ensino, prevista na lei nacional, autoriza os entes federados a garantir tratamento materialmente igualitário aos educandos, com vistas ao exercício da liberdade de aprender.

4. Pressupondo o acima exposto, e também o contido no art. 208, V, da CF/88, é inconstitucional o binômio "idade mínima-data de início do período letivo", comumente fixado por meio de lei nos sistemas de ensino, quando utilizado como presunção absoluta de aptidão ou inaptidão do educando para o acesso à educação.

5. Para o ingresso na primeira série do ensino fundamental de 9 anos, o constituinte fixou como corte etário os 5 anos completos do educando, nos termos do art. 208, IV, da CF.

6. Em interpretação conforme a Constituição é possível considerar válida a redação do art. 32, da Lei n. 9.394/96, se a expressão "seis anos", nele prescrita, for entendida como sendo "seis anos incompletos". Interpretação diversa da exposta gerará uma incompatibilidade absoluta entre o prescrito no art. 208, IV, da CF e o marco etário fixado no referido art. 32.

7. Em função do exposto, a Resolução CNE/CEB n. 1/2010 é inconstitucional por ofender o princípio federativo, a distribuição de competências legislativas deferidas aos entes federados para a regulamentação de seus próprios sistemas de ensino, bem como o princípio da legalidade. Por fim, tal resolução ofende especialmente o contido no art. 208, IV, da CF/88.


7. Referências Bibliográficas

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PEREZ, Jesus Gonzales. La dignidad de la persona. Madrid: Civitas, 1986.

PEREZ LUÑO, Antonio Enrique. Derechos Humanos, Estado de Derecho y Constitución. Octava Edición, Madrid: Tecnos, 2003.

RANIERI, Nina Beatriz. Educação Superior, Direito e Estado na Lei de Diretrizes e Bases (Lei n. 9394/96). São Paulo: EDUSP, 2000.

SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos fundamentais. 9. ed., Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2008.


Notas

  1. SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos fundamentais. 9. ed., Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2008, p. 72.
  2. PELÁEZ, Francisco José Contreras. Derechos sociales: Teoría e Ideología. Madrid: Editorial Tecnos, 1994, p. 15.
  3. PEREZ LUÑO, Antonio Enrique. Derechos Humanos, Estado de Derecho y Constitución. Octava Edición, Madrid: Tecnos, 2003, pp.227-228.
  4. Sobre o princípio da dignidade da pessoa humana, cfr: PEREZ, Jesus Gonzales. La dignidad de la persona. Madrid: Civitas, 1986.
  5. CF/88: "Art. 206. O ensino será ministrado com base nos seguintes princípios: I - igualdade de condições para o acesso e permanência na escola;"
  6. O princípio da liberdade de aprender, ensinar, pesquisar, divulgar o pensamento, a arte e o saber veicula três imperativos distintos: a) Direito à liberdade de aprender – entendemos que este direito deverá ser combinado com o princípio da igualdade de condições ao acesso e permanência na escola para ganhar maior concretude, pois não há que se falar em liberdade de aprender se não houver condições para o acesso e permanência na escola. Tal imperativo também abrange a liberdade de pesquisar, garantida pelos deveres impostos ao Estado pelo art. 218, da Constituição, que lhe atribui o dever de promover e incentivar o desenvolvimento científico, a pesquisa e a capacitação tecnológicas; b) Direito à liberdade de ensinar – este direito possui dois aspectos: a liberdade da escola, cujo conteúdo autoriza a criação de escolas distintas das do Estado; e a liberdade na escola, que se desmembra, por sua vez, na liberdade de fixação da proposta pedagógica e a liberdade dos docentes ao ministrar suas aulas; c) Direito à liberdade de divulgar o pensamento, a arte e o saber - este direito vincula-se a vários outros princípios e regras constitucionais, em especial os constantes dos incisos IV, VI do art. 5º que garantem a livre manifestação do pensamento (vedado o anonimato), a liberdade de consciência e de crença, a livre a expressão da atividade intelectual, artística, científica e de comunicação (independentemente de censura ou licença), e o acesso à informação Cfr. MIRANDA, Jorge. Manual de direito constitucional. Direitos fundamentais, T. IV, Coimbra: Ed. Coimbra: 1988, p. 367.
  7. Luis Roberto Barroso. Interpretação e Aplicação da Constituição. São Paulo: Saraiva, 1996, p.141.
  8. FERREIRA, Dâmares. Educação Escolar Pública e Educação Escolar Privada: Regimes Constitucionais. In: FERREIRA, Dâmares (coord). Direito Educacional em debate. Vol. I. São Paulo: Cobra Editora, 2004, p. 14.
  9. Sobre a vinculação dos particulares aos direitos fundamentais, conferir: STEINMETZ, Wilson. A vinculação dos particulares a direitos fundamentais. São Paulo: Malheiros, 2004; CANARIS, Claus-Wilhelm. Direitos fundamentais e direito privado. Tradução de Ingo Wolfgang Sarlet e Paulo Mota Pinto. Coimbra: Almedina, 2006; BILBAO UBILLOS, Juan María. La eficácia de los derechos fundamentales frente a particulares. Analisis de la jurisprudencia del Tribunal Constitucional, Madrid: CEPC, 1997, p. 243; VEGA, Pedro de. La eficacia frente a particulares de los derechos fundamentales (La problemática de la drittwirkung der grundrechte).In CARBONELL, Miguel (coord). Derechos fundamentales y Estado. Memoria del VII Congreso Iberoamericano de Derecho Constitucional, México: UNAM, 2002, nota 11, p. 697; SARMENTO, Daniel. Direitos Fundamentais e Relações Privadas. Rio de Janeiro: Lumen Iuris, 2004, p.297; ESTRADA, Alexei Julio. La eficacia entre particulares de los derechos fundamentales. Una presentación.pp.267-296; COMELLAS, Victor Ferreres. La eficacia de los derechos constitucionales frente a los particulares. In FERRER, Eduardo Mac-Gregor et all (coord.). La ciencia del derecho procesal constitucional. Tomo IV. Derechos fundamentales y tutela constitucional. pp.529-546. A 2ª Turma do STF, no RE n° 158.215-RS também reconheceu a vinculação de direitos fundamentais a particulares. Sobre a posição do STF sobre tal vinculação, também podem ser consultados: RE 161.243, DJ 17.12.1999 e RE n° 160.222-RJ, DJ de 01/09/1995.
  10. Lei nº 9.394/96. "Art. 21.A educação escolar compõe-se de:
  11. I - educação básica, formada pela educação infantil, ensino fundamental e ensino médio;"

  12. Por exemplo: art. 6º, da Lei n. 9.394/96
  13. As normas de competência fixadas nos artigos 22, XXIV e 24, IX, da CF,estabelecem um mecanismo de descentralização vertical de competências, que autoriza o Congresso Nacional a fixar normas gerais sobre a educação e as Assembléias Legislativas a suplementar o que for necessário. Esta técnica de repartição de competências "reserva ao ente central uma parcela de competências para uniformizar determinada matéria, ao mesmo tempo em que atribui aos demais entes federados um campo de competência suplementar, para conformar as diretrizes, bases ou fundamentos daquela uniformização à suas peculiaridades". RANIERI, Nina Beatriz. Educação Superior, Direito e Estado na Lei de Diretrizes e Bases (Lei n. 9394/96). São Paulo: EDUSP, 2000, p. 88.
  14. Neste sentido a decisão do STF na ADI n. 682: "AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. LEI DO ESTADO DO PARANÁ 9.346/1990. MATRÍCULA ESCOLAR ANTECIPADA. ART. 24, IX E PARÁGRAFO 2º DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL. COMPETÊNCIA CONCORRENTE PARA LEGISLAR SOBRE EDUCAÇÃO. A lei paranaense 9.346/1990, que faculta a matrícula escolar antecipada de crianças que venham a completar seis anos de idade até o final do ano letivo de matrícula, desde que preenchidos determinados requisitos, cuida de situação excepcional em relação ao que era estabelecido na lei federal sobre o tema à época de sua edição (lei 5.692/1971 revogada pela lei 9.394/1996, esta alterada pela lei 11.274/2006). Atuação do Estado do Paraná no exercício da competência concorrente para legislar sobre educação. Ação direta julgada improcedente" (relator originário Ministro MAURÍCIO CORRÊA, relator para acórdão Ministro JOAQUIM BARBOSA, j. 8/3/2007, DJ 11/5/2007).
  15. Lei n. 9.394/96. "Art. 8º A União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios organizarão, em regime de colaboração, os respectivos sistemas de ensino. § 1º Caberá à União a coordenação da política nacional de educação, articulando os diferentes níveis e sistemas e exercendo função normativa, redistributiva e supletiva em relação às demais instâncias educacionais. § 2º Os sistemas de ensino terão liberdade de organização nos termos desta Lei."
  16. Cfr. A noção de obrigatoriedade exposta alhures vincula o Estado e os responsáveis pelo educando, e garante a este o direito público subjetivo prescrito no art. 208, §1º, da CF/88.
  17.  "EMENTA: CRIANÇA DE ATÉ CINCO ANOS DE IDADE. ATENDIMENTO EM CRECHE E EM PRÉ-ESCOLA. EDUCAÇÃO INFANTIL. DIREITO ASSEGURADO PELO PRÓPRIO TEXTO CONSTITUCIONAL (CF, ART. 208, IV, NA REDAÇÃO DADA PELA EC Nº 53/2006). COMPREENSÃO GLOBAL DO DIREITO CONSTITUCIONAL À EDUCAÇÃO. DEVER JURÍDICO CUJA EXECUÇÃO SE IMPÕE AO PODER PÚBLICO, NOTADAMENTE AO MUNICÍPIO (CF, ART. 211, § 2º). AGRAVO IMPROVIDO. - A educação infantil representa prerrogativa constitucional indisponível, que, deferida às crianças, a estas assegura, para efeito de seu desenvolvimento integral, e como primeira etapa do processo de educação básica, o atendimento em creche e o acesso à pré-escola (CF, art. 208, IV). - Essa prerrogativa jurídica, em conseqüência, impõe, ao Estado, por  efeito da alta significação social de que se reveste a educação   infantil, a obrigação constitucional de criar condições objetivas que possibilitem, de   maneira concreta, em favor das "crianças até 5 (cinco) anos de idade" (CF, art. 208, IV), o efetivo acesso e atendimento em creches e unidades de pré-escola, sob pena de configurar-se inaceitável omissão governamental, apta a frustrar, injustamente, por inércia, o integral adimplemento, pelo Poder Público, de prestação estatal que lhe impôs o próprio texto da Constituição Federal. - A educação infantil, por qualificar-se como direito fundamental de toda criança, não se expõe, em seu processo de concretização, a avaliações meramente discricionárias da Administração Pública, nem se subordina a razões de puro pragmatismo governamental. - Os Municípios – que atuarão, prioritariamente, no ensino fundamental e na educação infantil (CF, art. 211, § 2º) – não poderão demitir-se do mandato constitucional, juridicamente vinculante, que lhes foi outorgado pelo art. 208, IV, da Lei Fundamental da República, e que representa fator de limitação da    discricionariedade político- -administrativa dos entes municipais, cujas opções, tratando-se do atendimento das crianças em creche (CF, art. 208, IV), não podem ser exercidas de modo a comprometer, com apoio em juízo de simples conveniência ou de mera oportunidade, a eficácia desse direito básico de índole social. - Embora inquestionável que resida, primariamente, nos Poderes Legislativo e Executivo, a prerrogativa de formular e executar políticas públicas, revela-se possível, no entanto, ao Poder Judiciário, ainda que em bases  excepcionais, determinar, especialmente nas hipóteses de políticas públicas definidas pela própria Constituição, sejam estas implementadas, sempre que os órgãos    estatais competentes, por   descumprirem os encargos político-jurídicos que sobre eles incidem em caráter mandatório, vierem a comprometer, com a sua omissão, a eficácia e a integridade de direitos sociais e culturais  impregnados de estatura constitucional. A questão pertinente à "reserva do possível". Doutrina. (...)"(AI 677274, Relator Min. CELSO DE MELLO, julgado em 18/09/2008, publicado em DJe-185 DIVULG 30/09/2008 PUBLIC 01/10/2008 RTJ VOL-00207-03 PP-01331).

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FERREIRA, Dâmares. O direito de acesso ao ensino fundamental de 9 anos. A competência estadual para regulamentar o corte etário e a inconstitucionalidade da resolução CNE/CEB n° 1/2010. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 15, n. 2707, 29 nov. 2010. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/17966. Acesso em: 28 mar. 2024.