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A (in)efetividade do direito à educação nas escolas itinerantes do MST

A (in)efetividade do direito à educação nas escolas itinerantes do MST

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Resumo: O presente trabalho almeja tratar de tema controverso, que muitas discussões tem suscitado em nossa sociedade, notadamente no Rio Grande do Sul. Este artigo deseja realizar alguns apontamentos sobre a prática educacional no âmbito dos acampamentos sem-terra, onde uma forma peculiar de ensino é praticada, enfatizando a questão da (in) coerência desse sistema com a nossa Constituição Federal. Para tanto, será exposto o tratamento que a doutrina jurídica atual confere ao direito à educação no Brasil, enfatizando sua amplitude em nosso ordenamento, bem como o fato deste direito decorrer da dignidade humana. Ademais, serão descritas algumas práticas educacionais no interior do movimento sem-terra, enfatizando os objetivos desejados por esse grupo social ao fornecer instrução aos seus assentados. Para tanto, foram utilizados os métodos bibliográficos e qualitativos de pesquisa.

Palavras-chave: prática educacional – acampamento sem-terra – direito à educação

ABSTRACT: The present work intend to treat the controversial theme, witch have evoked many discussions in our society , notedly in Rio Grande do Sul. This article crave to make some notes about the educational practice on the ambit of the landless camp, where a peculiar way of theaching is practiced, presupposing a concern with the pedagogic doctrine adopted on the way to verify if it´s used as an instrument of instruction and inclusion. Therefore, will be exposed the treatment witch the actual juridical doctrine gives to the theme, enphasizing the amplitude of the right to education in our ordainment, as well as the fact of this right elapse from the human dignity. Further more, will be described some educational practice inside the landless movement emphasizing the intents desired by this social group when provides instructions to it´s settleds. Therefore, where used the bibliographic and qualitative methods of research.

KEYWORDS: EDUCATIONAL PRACTICE – LANDLESS CAMP – RIGHT TO EDUCATIO


1 . Introdução:

No Rio Grande do Sul, há uma forte corrente que mantém frontal incompatibilidade com o movimento de esquerda denominado MST – Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra –, que tem promovido numerosos protestos e invasões, com o fito de promover a reforma agrária.

Inúmeras são as reclamações e reprovações no que toca ao proceder desse movimento, que é tachado de baderneiro e criminoso.

Faz algum tempo, as autoridades públicas do nosso estado têm visto com maus olhos a permanência das chamadas escolas itinerantes no interior dos acampamentos, pois, de acordo com a administração pública, tais órgãos seriam incompatíveis com as leis brasileiras.

Em virtude desse acontecimento, surge a necessidade – e até curiosidade – de comparar tal modelo de ensino com as determinações constitucionais concernentes ao ensino no Brasil, ou seja, se o direito à educação dá azo a esse modelo educacional.

Portanto, sem que haja o intuito de aprovar ou reprovar a conduta desse grupo de camponeses, cumpre indagar se os métodos de ensino desenvolvidos no interior dos acampamentos são, ou não, coerentes com o texto Magno, com os princípios por ele trazidos.


2. O ensino e a dignidade humana: educar para libertar:

A doutrina atual se incumbiu da tarefa de esmiuçar e obter os detalhes dos inúmeros direitos que nossa Constituição Federal tão generosamente confere aos brasileiros. Num rol bastante extenso, várias situações foram elevadas à categoria de direito fundamental [01], o que, por certo, é de grande relevância para o Direito e para a sociedade brasileira, já que a positivação desses direitos os transforma em imposições estatais cuja prestação é obrigatória para o Estado brasileiro.

Porém, dentre o sem-número de direitos que o constituinte conferiu aos brasileiros, alguns deles gozam de elevada importância, principalmente por referirem-se diretamente à dignidade humana. Aliás, há direitos que são verdadeiras particularizações deste princípio, ou mecanismos por meio dos quais este valor constitucional é concretizado. Portanto, a dignidade humana, enquanto valor básico e fundamental para a vida do indivíduo, obtém de determinados processos e condutas os meios com os quais se torna concreta, deixando a abstração das ideias. Dentro dessa linha de raciocínio, são os direitos sociais responsáveis pela concretização da dignidade humana [02].

A esse respeito, várias são as situações que podem ser citadas como exemplo. Porém, dentre os inúmeros temas que podem ser considerados particularizações da dignidade humana, cumpre destacar o do direito à educação. Assim, no Brasil em que atualmente vivemos, afirmar que o direito à educação é garantido é o mesmo que afirmar que a educação confere aos indivíduos a capacidade de interagirem frutiferamente com a sociedade e com ela interagirem como seres autônomos.

Considerada como um direito social, a educação [03] deve propiciar a uma pessoa condições mínimas de aprendizagem e de conhecimento, seja de cunho formal, através das disciplinas integrantes dos currículos básicos das escolas, seja não-formal, ou seja, o chamado "ensinamento para a vida".

Com efeito, é através da educação que o homem vai ter garantido o seu direito à cidadania e à dignidade, pois aquela permite o domínio do conhecimento, a análise e a interpretação crítica da realidade que o rodeia, possibilitando não só que o homem se insira na sociedade, mas também o capacita para transformá-la [04]. A cidadania, aliás, está frontalmente relacionada com essa capacidade de interagir produtivamente com a sociedade que rodeia a todos. Nesse sentido, surge o indivíduo-sujeito [05], que é a pessoa capaz de compreender o contexto sócio-político no qual está inserido e que com ele pode dialogar ativamente.

A importância da educação como corolário da dignidade da pessoa humana é bem destacada por Floriano:

A educação, portanto, é o processo fundamental para que o ser humano possa obter as condições mínimas de sobrevivência com dignidade em uma sociedade pluralista edificada em uma cultura de violência e exclusão social. O desafio da educação consiste na busca e manutenção de estratégias para uma organização social de convivência mais justa e pacífica, ora transmitindo conhecimentos sobre a diversidade da espécie humana, ora conduzindo as pessoas a tomar consciência das semelhanças e da interdependência entre todos os seres humanos do planeta. [06]

Nessa perspectiva, considerando a necessidade da educação para efetivação da dignidade da pessoa humana, lançam-se os ensinamentos de Fiorillo:

(...) para que a pessoa humana possa ter dignidade (CF, art. 1º, III) necessita que lhe sejam assegurados os direitos sociais previstos no art. 6º da Carta Magna (educação, saúde, trabalho, lazer, segurança, previdencia social, proteção à maternidade e à infância e assistência aos desamparados) como "piso mínimo normativo", ou seja, como direitos básicos. [07]

A educação é, portanto, consagrada como um direito social no artigo sexto do texto constitucional. Ou seja, a Constituição Federal estabelece serem direitos sociais a educação, a saúde, o trabalho, a moradia, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância e a assistência aos desamparados.

Não há dúvidas de que, no direito brasileiro hoje vigente, o direito à educação é um dos fundamentos mais caros à sociedade brasileira, já que é por meio dela que serão concretizados todos os mandamentos concernentes à igualdade entre as pessoas e o acesso a melhores oportunidades. Em virtude disso, o artigo 205 da Constituição Federal [08] refere ser a educação um direito de todos e um dever do Estado, bem como da família, devendo ser promovido com a colaboração da sociedade, visando ao pleno desenvolvimento da pessoa, seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho.

Interessante afirmar que a educação desde há muito tempo tem tomado a atenção daqueles que estudam a sociedade e o Estado. Aristóteles [09], por exemplo, dedicou-se ao tema, dizendo que o processo educativo, desde que bem compreendido, está relacionado a aspectos fundamentais do Estado e da própria harmonia social. Diz ele que o perfeito funcionamento dos serviços e práticas públicas necessita de uma vida ética por parte dos cidadãos, ou seja, estes somente terão um Estado hígido se sua própria conduta for moralizada. Aristóteles deixa entrever, então, que fazemos com o público exatamente aquilo que fazemos nas demais áreas de nossa vida.

Conceitualmente, o desejo da Constituição Federal brasileira é o de construir, por meio da educação, um sujeito plenamente capaz de atender às necessidades da sociedade, bem como uma pessoa capaz de oferecer respostas criativas às limitações que o mundo oferece. É, por assim dizer, uma acepção ampla do referido direito. Tal afirmação é extraída até da redação do dispositivo constitucional pertinente, que aduz que o objetivo da educação é o desenvolvimento pleno da pessoa, seu preparo para a cidadania sua qualificação para o trabalho [10].

Portanto, vemos que a concepção de educação trazida pela Constituição Federal vai ao encontro da doutrina de Morin [11], que reivindica uma prática educacional desvinculada da mera acumulação de informações. Tal autor luta por uma educação emancipadora, que construa os alicerces para o desenvolvimento de um sujeito crítico, que consiga relacionar e concatenar as informações que a ele são submetidas, bem como realizar certo grau de reflexão a seu respeito. Diz o citado autor que o importante não é acumular dados, mas poder realizar um exercício crítico e lógico a seu respeito.

Portanto, no dizer de Alvin, o exercício educacional em nosso país deve estar rigidamente entrelaçado com tais assertivas, já que o desejo do constituinte foi o de gerar um sistema dentro do qual o estudante não apenas reproduza os ensinamentos que lhe são transmitidos, mas sobre eles possa exercer um raciocínio crítico e frutífero. Em virtude disso, a educação é encarada como o instrumento que permite um contato refletido com o social, evitando uma relação parasitária, de dependência ou de submissão.

Mediante tais conceitos, vemos que tem absoluta razão a relação que é feita entre dignidade humana e educação. A dignidade humana, concebida enquanto liberdade e autonomia, somente pode ser perfectibilizada por meio de um saber livre, que permita ao indivíduo um conhecimento satisfatório da sociedade que o cerca. Portanto, a dignidade da pessoa humana somente pode ser alcançada quando o indivíduo tiver um mínimo de condições de sobrevivência física, mental e social, concretizando sua condição humana e não subumana.

Para consagrar essas condições mínimas de sobrevivência, incumbe ao Estado possibilitar a todos o ensino formal, assegurando aos brasileiros o acesso gratuito a estabelecimentos oficiais de ensino, destinados, sobretudo, àqueles mais carentes financeiramente, de forma a cumprir o papel social de melhoria de suas condições de vida, almejando a igualdade de todos. Eis um fundamento do Estado Democrático de Direito, conforme previsão no artigo 1º, inciso IV, da Constituição Federal.

E é tendo em vista essa afirmação que é necessário compreender a forma como ocorre o processo educativo no interior de um assentamento do movimento dos trabalhadores sem-terra. Cumpre, portanto, questionar se a metodologia pedagógica aplicada pelos colonos cumpre a finalidade libertadora que deve mover a atividade educacional, conforme estipulação do art. 205 da Constituição Federal.


3. A prática Educacional no movimento sem-terra:

A existência de um sistema de ensino no âmbito dos acampamentos sem-terra relaciona-se à necessidade de ser construída uma mentalidade coerente com os fins e atividades desenvolvidos no interior de um assentamento. Assim, a sistemática que anima as atividades educacionais orienta-se pela necessidade de manter os indivíduos ideologicamente ligados ao MST, forjando, assim, um vínculo de identidade dos indivíduos para com o grupo.

A doutrina pedagógica utilizada visa construir um ambiente favorável para a perpetuação da cultura vigente nesses acampamentos, de forma que os jovens, e principalmente as crianças, ao estarem frequentando tais locais, passem a fazer parte desse processo de manutenção das ideias que permitem a existência do movimento. Assim, embora formada por pessoas simples e desvalidas, a comunidade na qual estão incluídas detém, em conjunto, força o suficiente para pressionar os órgãos e a sociedade organizada, exigindo uma distribuição mais justa de terras em nosso país. Em face a isso, Luciano afirma que "o princípio educativo principal dessa pedagogia é o próprio movimento" [12].

Impende não olvidar que um dos ingredientes do sistema educacional que promove essas escolas é o espírito de cooperação que predomina seus ensinamentos. No dizer de Ruschel [13] as escolas para crianças incentivam a união entre elas, o que doutrinariamente recebe as denominações de pedagogia da luta social e pedagogia da organização coletiva. A primeira delas refere-se à necessidade do ensino fundamental ser direcionado para as reivindicações realizadas pelo movimento, como a disputa por terras improdutivas e a igualdade social. A segunda relaciona-se com a imprescindibilidade do colono sentir-se integrado num grupo maior, com o qual mantém vínculos de afinidade e identidade, além de ter deveres cooperativos, o que o transforma numa engrenagem imprescindível para o funcionamento deste organismo social.

De acordo com Luciano [14], os objetivos visados pelo movimento reivindicam a construção e educação de um "sujeito sem-terra", que esteja preparado e doutrinado para viver dentro de um ambiente comunitário, onde a produção ocorre de maneira distinta.

Aliás, tais afirmações não são nem mesmo refutadas por integrantes e lideres do movimento, que, conquanto dêem a tal fato um contorno diferenciado, afirmam que o objetivo primordial desses locais de ensino é fornecer aos acampados, independentemente da idade que tenham, uma formação fundamentalmente político-ideológica. Assim, todos os temas abordados nas aulas têm um viés claramente ideológico, relacionado com a necessidade de formar pessoas que perpetuem a estrutura que permite a existência do grupo MST.

A esse respeito, nada é tão sintético e ao mesmo tempo esclarecedor quanto uma afirmação realizada por Luciano, que, ao descrever algumas peculiaridades das escolas itinerantes, deixa entrever uma sutilidade que necessita ser refletida. Surpreendentemente, tal autor refere que entre uma lição e outra concernente às disciplinas usuais, - como matemática e português, por exemplo –, outras informações são veiculadas, com o intuito de fortalecer nos estudantes a concepção de que eles pertencem a um organismo que refuta determinados valores. De acordo com o autor:

Na escola itinerante, por exemplo, as atividades sobre matemática não apenas oferecem elementos práticos de como medir as dimensões de um hectare de terra quadros, ‘mas discutem a política fundiária sobre a perspectiva da propriedade privada’ [15].

No que toca à perpetuação e obtenção de jovens lideranças, o MST tem obtido êxito com a utilização desse método pedagógico. Luciano [16] afirma que inúmeros são os casos de filhos de assentados que, doutrinados pelo método educacional das escolas itinerantes, viram na causa de seus pais um exemplo a ser seguido. Embora distanciados do processo de produção agrícola almejado pelo MST, tais lideranças estão diariamente ligadas às disputas políticas. Entretanto, curiosamente, os assentados vêem com desconfiança a liderança exercida por esses egressos, já que eles não se enquadram no conceito tradicional de liderança, que está disposto a utilizar da força e de todos os meios necessários para chegar aos seus objetivos.

Dalmagro [17] aduz que o conjunto das atividades educativas desenvolvidas nos assentamentos é regido por uma doutrina classista, ou de "classe", de forma que o que move os programas de ensino não é a necessidade de formar indivíduos que sejam aptos a dialogar com o mundo, mas a indispensabilidade de perpetuar o modus vivendi do movimento, que assim pode contar com a mão de obra e os militantes que o sustentarão futuramente.

Cumpre não olvidar, dentro desse conjunto de ideias, um fato que é merecedor de grande atenção, já que se relaciona até mesmo com a validade jurídica dessa modalidade de ensino. No ambiente interno dos assentamentos sem-terra, o desejo das lideranças não é o de incluir o colono, jovem ou adulto, no sistema produtivo atualmente existente, mas, do contrário, excluí-lo por completo [18]. O argumento utilizado para justificar tal opção é o fato de que os pequenos agricultores, embora educados e preparados para a vida capitalista, sempre seriam rotulados como pessoas pertencentes a uma categoria social de menor importância, cuja presença na sociedade é prescindível. Tendo como base essa afirmação é que as práticas educacionais são realizadas, negando e refutando a estrutura capitalista existente no Brasil de hoje.

Portanto, insulados dentro de um acampamento, os indivíduos, crianças ou não, expostos ao regime educacional que a eles é oferecido, passam a ser expostos a um modelo que os diferencia substancialmente da sociedade em geral, causando assim, uma evidente discriminação, que os torna ainda mais diferenciados e distantes da sociedade.

Em face a tais afirmações, vislumbra-se que o sistema educacional dentro dos assentamentos dos sem-terra não é um instrumento de instrução dos colonos e de suas famílias, mas o braço doutrinário e teórico da luta ideológica promovida pelo movimento. Assim, a transmissão de ideias e pensamentos, nessa realidade, transforma-se em mais um front dessa batalha conceitual, dessa luta política.

Tal fato é clara unanimidade entre aqueles que já dissertaram algo a respeito da educação no interior do movimento sem-terra. Souza [19], por exemplo, alinha-se com o posicionamento dos autores supracitados, ao referir que o método educacional não se limita a uma prática restritamente mnemônica, mas ultrapassa esse sentido, fomentando um ensino que visa preparar os jovens para a luta por reforma agrária, que serão posteriormente desenvolvidas pelo grupo.

A instrução oferecida pelo MST aos seus integrantes abrange pessoas das mais diversas idades, dependendo dos mais diversos propósitos. Todavia, no tocante às crianças sem-terra é que a questão suscita ainda maior debate, ensejando redobrado estudo. Alves [20] descreve de forma bastante interessante o cotidiano destas crianças, especificando com bastantes detalhes o seu dia-a-dia.

Nesta descrição, tal autora refere que os mais diversos temas de interesses dos assentamentos e do movimento já são transmitidos e elas, o que passa desde assuntos relacionados à segurança, até assuntos concernentes ao plantio da terra. Portanto, embora bastante jovens, elas participam, ainda que de forma limitada, da organização de setores fundamentais da estrutura do movimento, visitando as guaritas, por exemplo, que é local onde é realizada a ronda e a observação das proximidades do acampamento.

Portanto, principalmente na educação infantil, o movimento busca realizar um trabalho de construção de uma concepção de vida, formando as pessoas que futuramente comporão os quadros de líderes do movimento, deixando-os a par das mais variadas minúcias organizatórias. O resultado desse método educacional é a formação daquilo que Caldart [21] denominou de conduta sem-terrinha, numa clara menção ao mundo dentro do qual essas crianças estão sendo incluídas, em que pese sua condição infantil. Ainda aqui, o processo educacional é eminentemente político e ideológico, por meio do qual são perpetuadas as ideias e acepções que mantém o movimento vivo.

O grau de inserção dessas crianças no movimento expressa-se por meio de declarações que causam, no mínimo, espanto. Tomemos como exemplo a seguinte fala, de uma criança de apenas 13, citada por Alves [22]: "Não me importo quando me chamam de acampada, estamos lutando por nossa dignidade". Além dela, significativa é a seguinte fala, de uma criança ainda mais jovem, de 11 anos, também citada pela referida autora: "Nós somos do movimento, para nós é um orgulho".

Tal fato demonstra, portanto, o caráter revolucionário que permeia a organização do movimento dos trabalhadores rurais sem-terra. Assim, não basta obter a terra e dela extrair o sustento e uma vida condigna, mas é necessário que os indivíduos que estejam vinculados ao movimento tenham uma formação político-ideológica, transformando-os em agentes de propagação e defesa da moral do movimento. De certa forma, tal sistemática gera pessoas que não estão incluídas na sociedade, mas que dela se excluem e para a qual não são preparadas para fazer parte. Nesse sentido, esclarecedoras são as seguintes palavras de Luciano, que refere: "o MST vê na educação a possibilidade de construção de uma identidade que negue o processo cultural do capitalismo" [23].

Assim, pelo que se afirmou acima, vê-se que a sistemática aí vigente tem propósitos que não são coerentes com as necessidades educacionais modernas, já que não visam incluir o agricultor sem-terra no sistema produtivo, mas coloca-lo ainda mais à margem da sociedade. Ora, ocorre que a proposta desses assentamentos é claramente formar indivíduos que tenham a capacidade de agir e se comportar dentro das necessidades do grupo, dentro do qual ele mantém cada vez maior dependência.

Não bastasse isso, vê-se que o indivíduo, notadamente a criança, é submetida a um conteúdo que a impedirá de refletir criticamente a realidade de lutas à qual se integra, sendo objeto de uma educação maniqueísta, que distingue bons e maus, excluídos e incluídos.


Conclusões e encaminhamentos:

Conclui-se que justificado é o receio da sociedade em geral quanto à existência de um modelo de ensino no âmbito dos assentamentos sem-terra.

A Constituição Federal, ao prever que a educação é um direito de todos e um dever da sociedade e do Estado, estipula que a forma de ensino desejada é aquela que além de conferir aos indivíduos a capacidade de refletir sobre os problemas e entraves sociais, proporciona aos mesmos um conteúdo básico a fim de os capacitar para o mercado de trabalho, e, consequentemente para a vida em sociedade. Nesse sentido, estaria cumprindo tanto o princípio da dignidade da pessoa humana, ao fornecer elementos básicos para uma vida digna, bem como o princípio de igualdade, ao propiciar até mesmo aos hipossuficientes economicamente a possibilidade de ingresso na rede pública de ensino.

Portanto, nesse aspecto, o texto Magno alinha-se com o pensamento de Morin, que defende uma educação voltada para seu aspecto mais pleno.

Dentro desse contexto, todas as formas e propostas castradoras, que limitem a capacidade de reflexão do indivíduo encontram clara vedação Constitucional. A Lex Legum deseja e promove formas emancipadoras da educação, dentro de um sistema que almeje promover a autonomia e a liberdade das pessoas.

Em face a isso, percebemos que o modelo educacional aplicado e praticado no interior dos assentamentos sem-terra conflita com essa necessidade de liberdade e reflexão desejada pela Constituição.

Ora, num sistema em que os indivíduos adultos, mas principalmente as crianças, são verdadeiramente doutrinadas para ter uma postura reprodutora da moral sem-terra, tudo indica que não há ensino, mas "lavagem cerebral". As declarações de crianças bastante jovens, como 11 e 13 anos, transcritas no trabalho, demonstram que há um comprometimento ideológico com o grupo MST que soa bastante estranho.

Assim, por fim, vislumbramos que os propósitos dessas escolas é discutível. O caráter político ideológico que nelas é disseminado prejudica a idoneidade desse formato, que se presta, ao que tudo indica, apenas para perpetuar um sistema que refuta o modo de vida existente nos dias de hoje.


Bibliografia:

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TOURAINE, Alain. O que é a democracia? Tradução de Guilherme João de Freitas Teixeira. Petrópolis: Vozes, 1996.


Notas

  1. Ferraz, Anna Cândida da Cunha. Aspectos da positição dos direitos fundamentais na Constituição de 1988. In: Bittar, Eduardo C. B. e Ferraz, Anna Cândida da Cunha. Direitos Humanos Fundamentais: positivação e concretização. São Paulo: Edifieo, 2006, 123.
  2. Barcellos, Ana Paula de. A Eficácia Jurídica dos Princípios Constitucionais: O Princípio da Dignidade da Pessoa Humana. São Paulo: Renovar, 2008, p. 223.
  3. FLORIANO, Neida Terezinha Leal. Educação: um direito social para a conquista e a proteção da cidadania e dos direitos humanos. In: GORCZEVSKI, Clóvis; REIS, Jorge Renato. (Org.). Santa Cruz do Sul: 2008, p. 237: "Com efeito, educação e ensino não possuem o mesmo significado, contudo, um não exclui o outro, ao contrário, há uma relação de interdependência entre ambos. A educação é um processo global de socialização e aprendizagem, direcionado ao desenvolvimento biopsicossocial do indivíduo. Nesse processo, quando se desenvolve em instituições educacionais formais, públicas ou privadas, se diz que há ensino. Portanto, esse é tarefa, predominantemente, de instituições educacionais, mediante uma estrutura de formação escolar, com alunos, professores e metodologia aplicada. Significa dizer que ensinar é uma intenção que poderá, ou não, culminar em uma aprendizagem, ao passo que a educação não se resume em um aprendizado, porquanto resulta de experiências adquiridas ao longo da vida de cada sujeito".
  4. COSTA, Marli Marlene da; RITT, Caroline Fockink. Educação como um direito fundamental e social. In: GORCZEVSKI, Clóvis; REIS, Jorge Renato. (Org.). Direitos fundamentais sociais como paradigmas de uma sociedade fraterna: constitucionalismo contemporâneo. Santa Cruz do Sul: IPR, 2008, p. 54.
  5. TOURAINE, Alain. O que é a democracia? Tradução de Guilherme João de Freitas Teixeira. Petrópolis: Vozes, 1996, p. 176
  6. FLORIANO, Neida Terezinha Leal. Educação: um direito social para a conquista e a proteção da cidadania e dos direitos humanos. In: GORCZEVSKI, Clóvis; REIS, Jorge Renato. (Org.). p. 236.
  7. FIORILLO, Celso Antonio Pacheco. O direito de antena em face do direito ambiental no Brasil. São Paulo: Saraiva, 2.000.p. 14.
  8. Brasil. Constituição Federal, art. 205.
  9. In. Alvim, Márcia Cristina de Souza. A educação e a dignidade da pessoa humana. In. Bittar, Eduardo C. B. e Ferraz, Anna Cândida da Cunha. Direitos Humanos Fundamentais: positivação e concretização. São Paulo: Edifieo, 2006, 184.
  10. Alvim, Márcia Cristina de Souza. A educação e a dignidade da pessoa humana. In. Bittar, Eduardo C. B. e Ferraz, Anna Cândida da Cunha. Direitos Humanos Fundamentais: positivação e concretização. São Paulo: Edifieo, 2006, 186
  11. MORIN, Edgar. A cabeça bem feita. 10. ed. Rio de Janeiro. Bertrand Brasil, 2004, 65.
  12. Luciano, Charles Luiz Policena. Escola Itinerante – Uma análise das práticas educativas do MST, no contexto da democracia liberal. Santa Cruz do Sul: EDUNISC, 2008, p. 52.
  13. Ruschel, Vanderci Benjamin. Pedagogia da Organização Coletiva: a cooperativa dos estudantes da Escola Agrícola 25 de maio. In. Vendramini, Célia Regina (Org.). Educação em Movimento na Luta pela Terra. Florianópolis: Núcleo de Publicações, 2002, p. 117.
  14. Luciano, op. cit, p. 53.
  15. Idem, op. cit, p. 56.
  16. Idem, op.cit. p. 64.
  17. Dalmagro, Sandra Luciana. O Trabalho na Pedagogia do MST. In. Vendramini, Célia Regina (Org.). Educação em Movimento na Luta pela Terra. Florianópolis: Núcleo de Publicações, 2002, p. 135.
  18. Idem, op. cit. p. 135.
  19. Souza, Maria Antônia de. Assentamentos Rurais, cidadania e educação: projetos, possibilidades e desafios. In. Vendramini, Célia Regina (Org.). Educação em Movimento na Luta pela Terra. Florianópolis: Núcleo de Publicações, 2002.
  20. Alves, Suzy de Castro. Infância e acampamento: como se constituem? In. Vendramini, Célia Regina (Org.). Educação em Movimento na Luta pela Terra. Florianópolis: Núcleo de Publicações, 2002, p. 216.
  21. Caldart, Roseli. Escola e mais que escola na pedagogia do movimento Sem Terra. Petrópolis: Vozes, 2000.
  22. ALVES, op. cit. p. 219.
  23. LUCIANO, op. cit. p. 54.

Autores

  • Diego Marques Gonçalves

    Diego Marques Gonçalves

    Mestrando em Direito pela Universidade de Santa Cruz do Sul-UNISC. Linha de pesquisa: Políticas Públicas de inclusão social. Grupo de Pesquisa: Políticas Publicas de inclusão social - Sub-grupo: Políticas Públicas para a Inovação e a Proteção Jurídica da Tecnologia. Pós-Graduado em Direito Constitucional/UNIFRA. Advogado.

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  • Rosana Luchese

    Rosana Luchese

    Mestranda em Direito pela Universidade de Santa Cruz do Sul - UNISC. Linha de pesquisa: Políticas Públicas de inclusão social Pós Graduada em Direito Constitucional com ênfase em Direito Municipal. Advogada.

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  • Tatiane Kipper

    Tatiane Kipper

    Mestranda em Direito pela Universidade de Santa Cruz do Sul - UNISC. Pós Graduada em Direito Penal e Processual Penal pela Faculdade IDC. Integrante do Grupo de Estudos: Meio Ambiente e Constituição coordenado pelo Prof. Dr. João Telmo Vieira da UNISC. Advogada.

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Informações sobre o texto

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

GONÇALVES, Diego Marques; LUCHESE, Rosana et al. A (in)efetividade do direito à educação nas escolas itinerantes do MST. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 15, n. 2717, 9 dez. 2010. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/17997. Acesso em: 29 mar. 2024.