Este texto foi publicado no Jus no endereço https://jus.com.br/artigos/18004
Para ver outras publicações como esta, acesse https://jus.com.br

Direito alternativo e suas repercussões na ordem jurídica tradicional

Direito alternativo e suas repercussões na ordem jurídica tradicional

Publicado em . Elaborado em .

Resumo: Na contramão de uma concepção jurídica tradicional, que privilegia, na infeliz maioria das vezes, o apego irrestrito e irracional aos comandos normativos, surge o Direito Alternativo. Coloca-se então a questão: teria este o condão de remodelar a práxis jurídica, a qual se encontra tão degradada ante a nefasta sacralização da lei?

Palavras-chave: Direito Alternativo; Remodelação; Ordem; Tradicional; Justiça.


1. Introdução.

Tradicionalmente, o pensar e o agir jurídicos brasileiros estão atrelados à conservação da estrutura social excludente. O juspositivismo, que tão nefasta influência exerce nos tribunais e academias do país, sacraliza a lei e põe o jurista na posição servil de mero aplicador dos comandos normativos, independentemente se essa simplória conduta técnico-objetiva trará alguma injustiça ao caso concreto.

Sob os olhos do homem comum, o Direito é lei e ordem, sendo seu grande objetivo a convivência ordenada entre os distintos membros integrantes da sociedade. Ao mundo jurídico não interessa se a regra positivada é contrastante com a realidade, injusta ou iníqua. Enquanto não revogada e extirpada do ordenamento vigente, ou até mesmo caída em desuso, a lei deve ser respeitada, impondo e obrigando algo, mesmo que contra a vontade do aplicador.

Aos juristas, sobretudo aos juízes, é defeso aplicar o Direito à vista dos denominados elementos extrajurídicos, como os influentes sociológicos, econômicos, culturais e psicológicos que se põem às voltas das partes e da situação fática deduzida em juízo.

Segundo a ótica tradicional, a cientificidade do sistema jurídico é dada por via da lei. O Direito, como ciência que é, deve ser compreendido como algo estático, exato, onde suas formulações advêm de postulados básicos pré-definidos. E essa pré-definição é conferida pela norma, a qual é o objeto de estudo da ciência jurídica. O Direito, portanto, se resume a uma síntese de normas, afeiçoando-se numa ciência normativa. A respeito disso, Kelsen já dizia que "as proposições jurídicas a serem formuladas pelo Direito podem ser apenas proposições normativas" [01]

E foi exatamente sob a sensação de uma urgente e inelutável reconstrução da cultura jurídica nacional que o presente artigo foi pensado. E nada melhor a esse respeito do que tratar do Direito Alternativo, que talvez seja o mais importante dos movimentos críticos a essa práxis legalista e dogmática.

Assim, é no vislumbre da necessidade de uma superação do paradigma normativista por que passa hodiernamente o Direito brasileiro que se escolheu falar do Movimento do Direito Alternativo. De antemão, importa destacar que o alternativismo busca sobrelevar características que andam bastante esquecidas na mente dos juristas pátrios, como a própria compreensão do que seja Direito. Trazer à tona uma nova Justiça voltada mais ao social e menos à legalidade é indubitavelmente o maior dos objetivos entrevistos pelo Direito Alternativo. Mas para isso, ele tenta semear uma cultura jurídica onde a liberdade do julgador seja fortalecida no sentido de que o magistrado possa, a partir de então, assumir uma postura ativa em prol das classes que sempre foram espoliadas no país.


2. A ordem jurídica vigente.

Éfreqüente ouvir opiniões que se orientam no sentido de que o ordenamento jurídico é algo fechado. Os comandos legais são genéricos, abstratos, impessoais e obrigatórios, alcançando os mais diversos fatos da vida. Aos olhos do homem comum, o Direito é lei e ordem, sendo seu grande objetivo a convivência ordenada entre os distintos membros integrantes da sociedade.

Dessa maneira, inseparáveis são as estruturas jurídicas e normativas. Tudo que é jurídico énorma posta, e vice-versa. Não interessa se a regra positivada é contrastante com a realidade, devendo ser observada irretorquivelmente.

A cientificidade do sistema jurídico é dada por via da lei. O Direito, como ciência que é, deve ser compreendido como algo estático, exato, onde suas formulações advêm de postulados básicos pré-definidos. E essa pré-definição é conferida pela norma, a qual é o objeto de estudo da ciência jurídica.

Miguel Reale [02] assevera que a ciência do Direito a de ser sempre vista como um estudo do Direito Positivo. O Direito seria, portanto, uma maneira sistematizada e positivada de conhecer a realidade social por meio de comandos normativos objetivos, exigindo dos homens determinadas formas de conduta. A subjetividade, então, fica relegada ao segundo plano, se não ao último ou até mesmo ao inconcebível.

Ao Direito não importa como ele deve ser, e sim como ele é. O tão proclamado dever ser da norma tão-somente se refere àquilo que é tido por desejável pela seara jurídica. Nesse espeque, caberia, então, a indagação acerca do que deseja o Direito. Uma coisa é certa, na forma em que praticado, não almeja ele a mudança das estruturas sociais. Ao contrário, seu grande fito é a manutenção da ordem e da segurança, as quais são as rainhas de todo o sistema jurídico.

Para a ótica tradicional, toda e qualquer contemplação da ordem e segurança só se porá possível mediante a coercitividade da norma. A propósito, Kelsen chegou a afirmar de que uma norma, para assim ser considerada, deverá vir, ineludivelmente, acompanhada de uma sanção, sob pena de estar ameaçada sua obediência [03].

A paz, destarte, é assegurada pela imputação da lei. É essa correlação que Rui Portanova denomina de trinômio "paz-segurança-imputação" [04] Dessa maneira, o Direito põe-se à baila tão-somente através da lei, a qual é consagrada pelo Judiciário como o único instrumento apto a barrar a afetação da tranqüilidade social.

É importante consignar, ainda, que a idéia de Direito como coação tem como um de seus corifeus Rudolf Von Ihering [05], considerado, por muitos, um dos grandes jurisconsultos do milênio que passou. Para ele, Direito é norma + coação. Tanto é verdade que simboliza a atividade judiciária com uma espada e uma balança, onde esta somente se porá equilibrada mediante a empunhadura da espada.

Pela teoria do mínimo ético, tão apregoada pela doutrina tradicional, o Direito representa um mínimo de Moral declarado obrigatório a tornar possível a tranqüila sobrevivência social. No tangente a tal assertiva, cabe indagar: como se exigir de uma sociedade tão desigual que todos os seus setores obedeçam às mesmas regras, tenham em vista os mesmos valores morais e éticos? Tal concepção moralista é de todo descabida.

Outro grande equívoco da teoria supramencionada é a simbologia dos círculos concêntricos, onde o Direito, círculo menor, insere-se na Moral, círculo maior. Com essa representação, exsurge uma inelutável e errônea afirmativa de que tudo que é jurídico é moral. Ora, é consabido que nem tudo que é jurídico (leia-se norma) é revestido de moralidade.

Conforme o campo de visão juspositivista, a lei é a maior de todas as fontes do Direito. É dela que todas as soluções jurídicas bebem. "É na lei que se cristaliza o Direito na sua mais perfeita forma" [06]. É ela quem diz qual das partes litigantes está com a razão. "A resolução do litígio se opera pela aplicação da norma que em concreto regula o conflito de interesses" [07].

As próprias denominações norma e regra já dão o tom do que é a visão jurídica tradicional. Norma pode ser facilmente correlacionada com aquilo que é normal, concebida como algo que deve ser encarado como medida para avaliação de algo. Quer-se dizer que a norma é vista como padrão, o qual se depreende da conduta esperada de todos os viventes de um âmbito estatal indiscriminadamente. Regra, por sua vez, indica diretriz, método correto de se proceder.

A justeza do Direito se mostra a partir do conteúdo da norma. É esta que diz o certo e o errado, o bom e o ruim, o justo e o injusto. É por via da lei que se concede justiça, a qual, segundo o entendimento mais conservador, é dar a cada um o que é seu.


3. Direto Alternativo.

3.1. Gênese e o andar atual do Movimento.

As origens do Direito Alternativo remontam à Itália e à Espanha dos anos 70 (setenta). Nestes dois países, com a Magistratura Democrática e com o Sindicato da Magistratura, respectivamente, foram semeadas novas formas de pensar juridicamente, tendo sido os postulados tradicionais severamente contestados.

No âmbito latino-americano, o Movimento tem suas raízes na luta pela efetivação dos Direitos Humanos. Tal efervescência deu-se em virtude da instauração, em inúmeros países do continente, de regimes ditatoriais que deveras malferiram os direitos mais imanentes à humanidade.

No Brasil, mais especificamente, sua história nasce no período de transição entre as décadas de 80 e 90. A essa época, juristas das mais diversas categorias (principalmente juízes) reuniam-se, periodicamente, na maioria das vezes, na sede campesina da AJURIS (Associação dos Juízes do Rio Grande do Sul), com o afã de discutir textos e decisões judiciais vanguardistas. Tais reuniões tinham, como um de seus propósitos, colher sugestões aos legisladores constituintes, que, em breve, viriam aprovar a Constituição Federal de 1988. Amilton Bueno, de Carvalho, um dos integrantes do referido círculo, afirma em seu livro, Direito Alternetivo: teoria e prática [08], que os encontros davam-se quase às escondidas, dado o grau de refutação que sofriam por parte da maioria da judicatura nacional.

O grande boom do Movimento ocorreu em 1990, quando foi publicada no Jornal da Tarde de São Paulo, edição de 25 de outubro, matéria que tinha como manchete a seguinte frase: JUÍZES GAÚCHOS COLOCAM O DIREITO ACIMA DA LEI.

O intuito de tal reportagem era, nitidamente, de escarnecer os magistrados do Rio Grande do Sul, até hoje berço maior dos alternativistas. No entanto, o efeito foi inverso. O Direito Alternativo ganhou força e adeptos no país inteiro. Juristas das mais diversas localidades do Brasil manifestaram seu apoio. Operadores do Direito que antes se incomodavam isoladamente com a práxis positivista dos nossos tribunais, viram-se, desde então, abarcados por uma manifestação jusfilosófica que reuniria todos aqueles que ambicionavam contemplar uma sociedade efetivamente democrática. Vale ressaltar que até princípios da década de 90, os juízes alternativos não.eram assim denominados. Cognominavam-se de orgânicos [09].

Atualmente, seu caminhar se dá por meio de uma produção teórica (livros, conferências, criação de institutos e cadeiras em Universidades e Escolas de Magistratura, teses de mestrado e doutorado) e prática (sentenças e peças processuais em geral que se abeberam das idéias alternativas).

Entre os anos de 1994 e 1995, o Movimento recuou um pouco. Os congressos vertentes ao tema rarearam. A publicação de livros e artigos reduziu-se de modo significativo. Entretanto, tal baixa foi passageira. Logo no início de 1996 retomou as forças. Livros publicavam-se aos montes. Constantemente, o Movimento regozija-se através das críticas. São elas que fazem, mais e mais, dirimir todas as controvérsias que ainda, equivocadamente, perduram.

3.2. O que é e o que não é.

Muitos não o consideram Escola jurídica, tampouco ramo do Direito. Na verdade, o entendimento mais que predominante posiciona-se no sentido de adotá-lo como Movimento levado à conta pelos mais diversos setores da operatividade jurídica, sobretudo alguns juízes.

De antemão, importa destacar que ele se apresenta como um método conjugador de prática e teoria que tenciona revisar a concepção jurídica dogmática ortodoxa. Nesse espeque, é interessante que se parta de um pressuposto, qual seja, o Direito Alternativo coloca-se como um contraponto à cosmovisão juspositivista.

Nas palavras de Amilton Bueno de Carvalho, o Direito Alternativo tem como apanágio "a busca desesperada e urgente de um instrumental prático-teórico destinado a profissionais que ambicionam colocar seu saber-atuação na perspectiva de uma sociedade radicalmente democrática. Uma atividade comprometida com a utópica vida digna para todos, com abertura de espaços visando à emancipação do cidadão, tornando o direito em instrumento de defesa/libertação contra qualquer tipo de dominação" [10]. O Direito, conforme essa concepção, passa então a ser nitidamente comprometido com a sobrelevação e perfactuação efetiva da liberdade [11].

Gerar reflexões acerca de fórmulas legais alternativas é uma das maiores ambições do Direito Alternativo. Distribuir de forma eqüinânime a justiça substancial e trazê-la ao caso concreto é seu grande mote de existência. O Movimento Alternativo faz surgir um novo caminho, o da "reavaliação do papel do Poder Judiciário neste contexto de transformação social e democratização política" [12].

A concepção jurídica alternativa compreende a ordem jurídica não como uma estrutura estatizada lógico-formal, mas sim como um processo em constante dinamicidade. Contempla a sociedade como algo conflituoso, sofredora de contínuos choques e transformações sociais, entendendo, por conseguinte, que o exame jurídico deve ser sempre cambiante. Seu discurso procura apreciar a eficácia do Direito Positivo; busca tornar inteligível como os modos jurídicos influenciam ou são influenciados pela forma de organização econômica dominante; busca, incessantemente, romper a concepção rígida e fria que se instalou no saber jurídico; requer e propicia uma releitura dos dogmas tradicionais, os quais, sem dúvida, ocultam, na maioria das vezes, os conflitos reais que levaram aquele caso a juízo. Mas para que tudo isso seja possível, tenta que se faça identificar o Direito positivado pelo Estado como um sistema aberto, repleto de contradições, contradições estas que fazem municiar o operador jurídico de maior grau de criatividade.

A visão alternativa faz ser extraída do Direito sua autonomia. O Direito, que ainda é visto como uma ciência isolada, não mais assim deve ser concebido. A multidisciplinaridade é exigência indeclinável dessa crítica concepção jurídica. O Movimento Alternativo tenta demonstrar que "o Direito não pode ser devidamente entendido, explicado e praticado senão dentro da perspectiva global das ciências sociais" [13].

Segundo o Direito Alternativo, o conhecimento jurídico é provisório. Amanhã, conceitos e pré-definições que ontem basearam decisões, poderão não servir à solução dos conflitos exsurgidos. Os valores levados em consideração no momento da prestação jurisdicional são sempre cambiantes. O que dirá quais serão os sustentáculos da atuação judicial será o particularismo do caso concreto. Nesse espeque, ele pretende que o jurista enxergue que seu objeto de estudo não é simplesmente a norma, sendo a investigação jurídica algo muito mais amplo, que percorre, impreterivelmente, as bases da estruturação sócio-econômica vivenciada.

Assim, a abordagem alternativa dá como pobre a visão jurídica tradicional, posto que esta não volta suas atenções aos valores sociais, políticos e econômicos que fundamentam a existência da sociedade. A paz social, que para essa mesma visão jurídica tradicional é entendida como conseqüência da imputação da lei, tem, no alternativismo, sua conceituação relativizada.

É também proposta sua informalizar o Direito. Como exemplo, procura simplificar ao máximo a linguagem utilizada na prática forense. Baseia-se no fato de que grande parte da população consumidora do que se produz na seara jurídica encontra-se alijada do amplo e eficaz conhecimento acerca do que corre e ocorre no Poder Judiciário, haja vista o uso de um linguajar bastante pomposo e rebuscado.

Para muitos (equivocados), negar a lei é primado básico do Direito Alternativo. Quanto a isso, é bem relevante que se ressalte que os alternativistas têm em mente que a lei, quando serviente à totalidade legislada e da melhor maneira interpretada, é conquista da humanidade. Indubitavelmente, a normatização há de ser vista como algo irrecusável da civilização, sendo impossível contemplar-se um Estado sem leis. Pregar a anulação do ordenamento jurídico é correr-se o risco de ver instaurada a tirania, onde o tirano, a seu bel prazer, ditaria as leis que melhor lhes conviesse.

A propósito, Amilton Bueno de Carvalho bem clarifica qual a relação do Direito Alternativo com a lei:

A alternatividade luta para que surjam leis efetivamente justas, comprometidas com os interesses da maioria da população, ou seja, realmente democráticas. E busca instrumental interpretativo que siga a mesma diretiva (da radicalidade democrática). O que a alternatividade não reconhece é a identificação do direito tão-só com a lei, nem que apenas o Estado produz direito, nem tampouco que se dê à norma cunho de dogma (verdade absoluta, inquestionável), o que é diverso da negativa da lei [14].

Desse modo, deslegalizar as relações sociais não é, nem de longe, o grande afã do alternativismo. "Trata-se apenas de legalizar diferentemente. Legalizar a favor da maioria dos cidadãos, das reivindicações populares e dos interesses nacionais" [15].

Ao se falar em Direito Alternativo, muito se indaga acerca da praticidade de suas idéias. Edmundo Lima de Arruda Jr. [16] sugere serem três as suas formas tipológicas: 1) Plano do instituído negado: é o que visa dar efetividade àsnormas conquistadas; 2) Plano do instituído relido: é aí onde se dá vez à hermenêutica jurídica, tendo a interpretação maior destaque; 3) Plano do instituinte negado: valoriza o pluralismo jurídico, isto é, assume que o Direito não é advindo de um único ente, no caso o Estado.


4. Conclusão

A partir de todas as considerações acima expostas, pode-se perceber que o Direito precisa, urgentemente, de uma remodelação, no sentido de torná-lo mais afinado com sua função social que de maneira infortuna anda bem esquecida. Entretanto, aos olhos comuns, o Direito continua a se restringir na lei.

E uma das formas que se apresenta para essa mudança paradigmática parte, com maior força, do Direito Alternativo, que indubitavelmente pertence ao mundo da crítica, distinto, portanto, ao mundo jurídico dogmático, o qual não consegue abarcar todas as especificidades das demandas que se originam de uma sociedade tão complexa e conflituosa como a reinante no Brasil.

Assim, no momento em que o mundo se encontra ampla e nefastamente influenciado pelo neoliberalismo racional, a função do Direito merece ser (re)discutida. E tal altercação é afã indeclinável do Movimento do Direito Alternativo, o qual procura incidir sob todas as bases do Direito, desde as academias até os tribunais, âmbitos que infelizmente mostram-se bastante contaminados pelo juspositivismo.

Na esfera do processo, o Direito Alternativo quer alterar a relação do juiz com a lei, a qual deve ser encarada por aquele apenas como ponto de partida de uma aplicação mais vertida ao bem-estar social e à efetivação dos comandos constitucionais. Afinal, a simples elaboração de um belo texto constitucional não é suficiente para concretizar a ideologia que o inspirou, sendo inelutavelmente necessária uma postura do Judiciário no sentido de tornar eficazes esses direitos conquistados pela sociedade e reconhecidos pelo constituinte.

Importa salientar que, segundo o alternativismo, a concreção da justiça material não advém de prévias definições, e sim a partir da multifacetada análise das circunstâncias que envolvem o pleito intentado. O importante é não se estabelecer, aprioristicamente, critérios estanques para se definir o que é justo, o qual emergirá do debate de valores no caso concreto.

Enquanto que a visão jurídica tradicional é deveras pobre, posto que não volta suas atenções aos valores sociais que fundamentam a existência da sociedade, a concepção alternativa tenciona atingir escopos sociais mais comprometidos com a paz social efetiva e real. Mas, desde já, deve-se alertar que essa paz social encontra conotação diametralmente distinta da que concebida tradicionalmente. Para o alternativismo, pacificação social não se confere apenas pela aplicação da lei, a qual é elaborada para que seja irretorquivelmente respeitada. Na verdade, o Direito Alternativo correlaciona paz social com uma sociedade radicalmente democrática, onde todos, indistintamente, tenham as mesmas oportunidades de sucesso e vida digna.

Dessa maneira, talvez a mais importante das bases do Direito Alternativo concentra-se na hipótese de que a lei deve ser encarada não como o único referencial de aplicação do Direito, e sim como o ponto de partida do processo interpretativo, o qual também deve se socorrer de formulações filosóficas, sociológicas, culturais, sociais, econômicas, enfim de todas aquelas que sirvam a tornar melhor compreendida a realidade fática posta em juízo. Afinal, deve-se sempre salientar que o grande compromisso do operador do Direito é com o próprio Direito e não com a norma.

Assim, repise-se, o que se percebe é que o Direito Alternativo apresenta-se com a nítida função de remodelar a ordem jurídica vigente, a qual, através de seu discurso dogmático baseado no silogismo jurídico tradicional e no racionalismo científico, segregou o Direito da realidade.

O Movimento do Direito Alternativo vem, desde seu surgimento, gerando polêmicas quanto aos fundamentos do Direito. Entretanto, é preciso enxergá-lo não como uma tentativa de deslegalizar as relações sociais. Ao contrário, o que tenciona o Movimento é pôr o ordenamento jurídico a serviço da justiça material e não apenas da justiça formal. O Direito Alternativo não simplesmente critica a ordem vigente. Busca subterfúgios, aconselha e sugere mudanças.

Por fim, impende ressaltar que a hermenêutica alternativista, muito embora requisitante de um conhecimento multidisciplinar por parte do intérprete, sobremaneira no que concerne aos postulados constitucionais, filosóficos e sociológicos, não se eleva às raias da impossível contemplação prática, posto bastar ao aplicados ter em mente a teleologia do Direito e não unicamente da norma.


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ANDRADE, Lédio Rosa de. Introdução ao direito alternativo brasileiro. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 1996.

ARRUDA ALVIM, José Manuel de. Código de Processo Civil comentado. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1975.

ARRUDA. JR., Edmundo Lima de. Introdução à sociologia jurídica alternativa. São Paulo: Acadêmica, 1991.

CARVALHO, Amilton Bueno de. Direito Alternativo: teoria e prática. 5 ed. Rio de Janeiro: Lumen Júris, 2004.

FALCÃO, Joaquim de Arruda. Democratização e serviços legais. In: Direito e Justiça. A função social do Judiciário. São Paulo: Ática, 1989.

HERKENHOF, João Baptista. Para onde vai o Direito?: reflexões sobre o papel do Direito e do jurista. 3 ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2001.

IHERING, Rudolf Von. A luta pelo direito. 13. ed. Tradução de João Vasconcelos. Rio de Janeiro: Forense, 1994.

KELSEN, Hans. Teoria pura do direito. Tradução de João Baptista Machado. São Paulo: Martins Fontes, 1997.

MAGALHÃES FILHO, Glauco Barreira. Hermenêutica e unidade axiológica da Constituição. Belo Horizonte: Mandamentos, 2001.

MARQUES, José Frederico. Manual de direito processual civil. 9 ed. Campinas: Millenium, 2003, p. 07, v. 1.

PORTANOVA, Rui. Motivações ideológicas da sentença. 5 ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2003.

REALE, Miguel. Lições preliminares do direito. 26. ed. São Paulo: Saraiva, 2002.


Notas

  1. KELSEN, Hans. Teoria pura do direito. Tradução de João Baptista Machado. São Paulo: Martins Fontes, 1997, p. 88-89.
  2. REALE, Miguel. Lições preliminares do direito. 26. ed. São Paulo: Saraiva, 2002, p. 17.
  3. KELSEN, Hans. Teoria pura do direito. Tradução de João Baptista Machado. São Paulo: Martins Fontes, 1997, p. 61.
  4. PORTANOVA, Rui. Motivações ideológicas da sentença. 5. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2003, p. 33.
  5. Quanto a isso, leu IHERING, Rudolf Von. A luta pelo direito. 13. ed. Tradução de João Vasconcelos. Rio de Janeiro: Forense, 1994.
  6. ARRUDA ALVIM, José Manuel de. Código de Processo Civil comentado. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1975, p. 207, v. 1.
  7. MARQUES, José Frederico. Manual de direito processual civil. 9 ed. Campinas: Millenium, 2003, p. 07, v. 1.
  8. CARVALHO, Amilton Bueno de. Direito Alternativo: teoria e prática. 5 ed. Rio de Janeiro: Lumen Júris, 2004.
  9. Lédio Rosa de Andrade, em Introdução ao Direito alternativo brasileiro. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 1996, p. 115, aponta que a nomenclatura "juízes orgânicos" advém da expressão "Intelectual Orgânico", utilizada por Antonio Gramsci. Pode-se crer também que essa denominação se deu em virtude da significação que carrega a palavra. Pelo FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. Miniaurélio: o minidicionário da língua portuguesa. 6. ed. Curitiba: Posigraf, 2004, p. 518, orgânico é, a partir de uma de suas sinonímias, algo "que é natural ou inato, ou profundamente arraigado, e não planejado ou imposto do exterior". Entende-se que o mais importante, para o caso em comento, dos significados acima explicitados é aquele que se refere à não intervenção do exterior. Ora, caso os magistrados gaúchos se deixassem influenciar pelas ingerências externas, com certeza não teriam optado pela atuação sempre em busca da justiça material e substancial. O que vinha maciçamente de fora era e infelizmente ainda é o oposto do que apregoavam e ainda acreditam. O apego irracional aos comandos normativos era fator externo, porém desprezado, ao círculo dos juristas que até então se identificavam por orgânicos.
  10. CARVALHO, Amilton Bueno de. Direito Alternativo: teoria e prática. 5 ed. Rio de Janeiro: Lumen Júris, 2004, p. 50.
  11. Segundo o professor Glauco Barreira Magalhães Filho (2001, p. 107), "no Estado Democrático de Direito, a liberdade não é apenas negativa, ou seja, liberdade de fazer o que a lei não proíbe ou obriga, mas a liberdade positiva, que consiste na remoção dos impedimentos (econômicos, sociais e políticos) que possam embaraçar a plena realização da personalidade humana".
  12. PORTANOVA, Rui. Motivações ideológicas da sentença. 5 ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2003, p. 85.
  13. HERKENHOF, João Baptista. Para onde vai o Direito?: reflexões sobre o papel do Direito e do jurista. 3 ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2001, p. 49.
  14. CARVALHO, Amilton Bueno de. Direito Alternativo: teoria e prática. 5 ed. Rio de Janeiro: Lumen Júris, 2004, p. 56.
  15. FALCÃO, Joaquim de Arruda. Democratização e serviços legais. In: Direito e Justiça. A função social do Judiciário. São Paulo: Ática, 1989, p. 151.
  16. ARRUDA. JR., Edmundo Lima de. Introdução à sociologia jurídica alternativa. São Paulo: Acadêmica, 1991, p. 184-185.


Informações sobre o texto

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

BOAVENTURA, Luís de Camões Lima. Direito alternativo e suas repercussões na ordem jurídica tradicional. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 15, n. 2718, 10 dez. 2010. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/18004. Acesso em: 26 abr. 2024.