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A infração administrativa de não exigência de prova de idade em produtos e eventos não classificados como "livres"

A infração administrativa de não exigência de prova de idade em produtos e eventos não classificados como "livres"

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INTRODUÇÃO – Aqui trato da indispensabilidade da exigência de documento de identidade para fazer bem cumprir as normas do Estatuto da Criança e do Adolescente, bem como regulamentos dele derivados, como os Alvarás e Portarias Judiciais baixados por Juiz da Infância e da Juventude.

Resultou, este breve estudo, da necessidade de subsidiar reflexões internas por conta de diversos incidentes em que, ocorrendo fiscalização do Comissariado de Justiça em eventos ou estabelecimentos, em seu interior eram flagrados jovens que não portavam qualquer identificação. Concluo pela existência de infração na simples não exigência de documento comprobatório da data de nascimento, ainda que os jovens abordados pudessem posteriormente provar idade adequada à faixa etária do evento.


I - INTERESSE PÚBLICO NO PORTE DE DOCUMENTOS DE IDENTIFICAÇÃO PELO CIDADÃO EM GERAL

Em tempos de temores e dificuldades na área da segurança pública torna-se cautela desejável e imprescindível o porte de documentos de identificação por qualquer cidadão. Nenhuma lei prescreve tal obrigação, e é bom que não o faça, pois ninguém está livre de, por exemplo, ter ido ao clube nadar despreocupadamente e ter deixado o documento em sua bolsa no vestiário. Não seria razoável que tal compreensível lapso gerasse qualquer forma de sanção. Mas o bom senso deve orientar os comportamentos, não só para que não esqueça seus documentos, aquele que tem o hábito de levá-los consigo, como ainda para estimular os que assim não o fazem, para que passem a fazê-lo. E também por razão prática, como veremos abaixo.

À autoridade policial é dado, no cumprimento de seus encargos – como os previstos no art. 244 do Código de Processo Penal - em averiguações, "blitzes" e "batidas", exigir apresentação de documento de identificação do abordado. A contrapartida é que seria desejável que o abordado, de pronto, apresentasse tal identificação. Entretanto, como dito, inexiste lei sobre o tema. A Constituição garante que ninguém é obrigado a fazer ou deixar de fazer qualquer coisa a não ser por força de lei (art. 5º,II). Como se resolve, então, essa aparente dicotomia? O policial exerce função de interesse público. Na fundada busca por um suspeito, pode abordar as pessoas, proceder à sua revista e requisitar sua identificação. Mas não sendo o cidadão obrigado a portá-la e, em caso de portá-la, desobrigado de apresentá-la, como fica o equilíbrio entre este direito individual e o interesse público de que a identificação se faça?

Resulta ser facultado ao policial, havendo fundado receio (a ser devidamente justificado, sob pena de o agente público responder por abuso de autoridade) conduzir o abordado até uma Delegacia de Polícia, para proceder à sua identificação através de sarqueamento. Imaginemos a situação da ocupação policial no Morro do Alemão. Nada justificaria a recusa de um transeunte em identificar-se em operação daquela monta, de realce histórico para a segurança pública do Rio de Janeiro. Por isso, a possibilidade da condução policial.

Logo, vê-se que ao exercício do "direito" de não portar ou se recursar a apresentar identificação corresponde a possibilidade do constrangimento legal de ser conduzido à sede policial para verificações. Assim, para evitar tal transtorno, a praxe é que os cidadãos em geral buscam acautelar-se e portar documentos.

Diga-se, inclusive que as próprias organizações de Direitos Humanos, embora alertem para o possível abuso policial na exigência de documentos, advertem claramente, como faz o CDHS – Centro de Direitos Humanos de Sapopemba (em cartilha disponível na internet: www.ovp-sp.org/cartilha_abordagem_policial.htm ) "Recomenda-se andar com documentos".


II - INTERESSE PÚBLICO NO PORTE DE DOCUMENTOS DE IDENTIFICAÇÃO PELO CIDADÃO MENOR DE 18 ANOS

Sempre repito que o ECA não é a lei de branduras imaginada por seus críticos, não sendo, como repete o costumeiro ataque, uma mera lei de "direitos". É, acima de tudo, uma lei de cidadania do menor de 18 anos de idade. E o exercício da cidadania, além de trazer obrigações, demanda identificação civil.

Assim, inclusive pelo aumento tanto do ato infracional, quanto das agressões e maus-tratos a crianças e adolescentes, nada impede que todos os argumentos do capítulo antecedente valham também para o menor de idade. Mas aqui, a coisa vai muito além. Não se trata de mera identificação para bem geral e proteção pública, mas para proteção do próprio indivíduo criança ou adolescente. Isto porque ao se constatar a menoridade, há um dispositivo complexo de direitos e precauções que imediatamente é acionado para proteção desse cidadão especialmente protegido pelo ordenamento.

Para melhor compreensão do caso, indispensável a transcrição dos normativos envolvidos no raciocínio. Inicialmente, o art. 80 do ECA:

Art. 70. É dever de todos prevenir a ocorrência de ameaça ou violação dos direitos da criança e do adolescente.

Este artigo institui, na Lei Especial, o "princípio da precaução", que indica a necessidade de coibir-se ao máximo possível o risco de violação de direitos. Se algo apenas sugere a mera possibilidade de danos a crianças e adolescentes, ele não deve se realizar. Aqui é considerada a "condição peculiar da criança e do adolescente como pessoas em desenvolvimento" (art. 6º do ECA).

Somam-se as determinações do capítulo II - "Da Prevenção Especial", do ECA. Ali se estabelecem vedações e deveres dos fornecedores de produtos e serviços como: classificação etária de espetáculos, adequação de horário de exibição de produtos televisivos, cautelas de embalamento e exposição de produtos eróticos e pornográficos, impedimento de acesso de menores de 18 anos a estabelecimentos de jogos e de sinuca ou bilhar, proibição de venda de armas, bebidas, produtos que causem dependência química, bilhetes lotéricos, e normas a observar em viagens de crianças e adolescentes.

Ou seja, nem todo produto, bem ou serviço é indicado para uso, desfrute ou consumo de crianças e adolescentes. Há que defini-los. Nos que não forem adequados, há que realizar vedação de disponibilização, exibição e acesso a este público ainda em formação biopsíquica. E como se garante que isso ocorra?

Ora, a Lei estabelece, logo ao seu início, o seu público alvo: crianças e adolescentes, conforme definido no art. 2º do ECA: criança é aquele que tem menos de 12 anos de idade. A partir daí, define-se o adolescente, até que complete 18 anos.

Não se descuide que as obrigações de cuidado e precaução se originam de mandamento constitucional. O art. 227 da CF88 estabelece a diretriz da proteção integral à criança e ao adolescente:

Art. 227 - É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança e ao adolescente, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão.

Então, temos: uma parcela específica da população, a merecer proteção constitucional em caráter de absoluta prioridade, e uma lei que especifica característica etária, a identificar os destinatários dessa norma. E como se afere legalmente se alguém é criança ou adolescente, se tem 09 ou 16 anos? Pela sempre enganosa aparência, pela muitas vezes comprometida declaração própria, pela nem sempre confiável informação de terceiro? Claro que tais aspectos podem contribuir para a evidência, mas o que a garante é a documentação que permita tanto a identificação do sujeito como a prova da sua idade. Não há outro meio.

Damásio E. de Jesus, em seu Código de Processo Penal Anotado (Saraiva, 2004), transcreve na pag.146 no comentário ao art. 155, fala de Espínola Filho, também autor de Código de Processo Penal Brasileiro Anotado (Borsoi, 1955), em que aquele autor ensina: "a idade, como as outras situações do estado civil, hão de ser documentadas" (grifei).

Veja-se que assim tem firmado a jurisprudência pátria. A Primeira Câmara Criminal do Tribunal de Justiça de Minas Gerais, em Acórdão relatado pelo Desembargador Sérgio Braga, ao julgar improcedente a apelação nº 1.0335.03.900298-5/001 de comerciante que vendera bebida alcoólica a menor de idade, firmou:

Infringe o Art. 243 do Estatuto da Criança e do Adolescente o comerciante que vende bebida alcoólica a menores, agindo de forma negligente ao não pedir documentos de identidade aos adolescentes. (grifei)

A preocupação não é apenas brasileira. O Conselho da União Européia, em Recomendação disponível na Internet, lavrada em 05/06/2001, "sobre o consumo de álcool pelos jovens, em especial por crianças e adolescentes", assim disse:

O CONSELHO DA UNIÃO EUROPEIA (…) RECOMENDA: I. Na elaboração das suas estratégias e na adopção de medidas de regulamentação ou outras que sejam adequadas às suas circunstâncias particulares, no âmbito de uma abordagem comum em toda a Comunidade, no que diz respeito aos jovens e ao álcool, e que tenham especialmente em conta as crianças e os adolescentes, os Estados-Membros devem, sempre que necessário com o apoio da Comissão: (…) 9. Dar prioridade a acções contra a venda ilegal de álcool a consumidores menores e, sempre que se justificar exigir uma prova de idade;" (grifei)

Essas preocupações europeias deveriam também se tornar mais presentes nos comércios de produtos não recomendados ou vedados a menores de idade em nosso país. Pesquisa publicada na internet (www.scielo.br/pdf/rsp/v41n3/5705.pdf), sob o título "ÁLCOOL E ADOLESCENTES: ESTUDO PARA IMPLEMENTAR POLÍTICAS MUNICIPAIS", de autoria de Denise Leite Vieira, Marcelo Ribeiro, Marcos Romano e Ronaldo R. Laranjeira, aferiu que:

Considerando apenas os estudantes menores de 18 anos, 55% afirmaram que já compraram bebida alcoólica, e apenas 1,1% dos alunos relatou que tentaram comprar, mas não conseguiram por serem menores de idade.

Além disso:

Quase 55% dos estudantes responderam que pelo menos a metade dos estabelecimentos que eles conhecem venderia bebida alcoólica sem pedir-lhes documento de identidade (...)

São inúmeras as leis que estabelecem critérios etários para o usufruto de direitos e/ou para acesso a bens e serviços e que, portanto, exigem a apresentação da documentação comprobatória da idade. Ao menor de idade NÃO É PERMITIDO, por exemplo:

- COMPRAR ARMAS (só aos 25 anos, conforme o art. 28 Lei 10.826/03);

- COMPRAR ARMAS, MUNIÇÕES E EXPLOSIVOS, BEBIDAS ALCOÓLICAS, SUBSTÂNCIAS QUE CAUSEM DEPENDÊNCIAS, FOGOS DE ARTIFÍCIO, REVISTAS E PUBLICAÇÕES ERÓTICAS OU PORNOGRÁFICAS, BILHETES LOTÉRICOS E SIMILARES (conforme o artigo 81 do ECA);

- HOSPEDAR-SE EM MOTEL (conforme a interpretação do artigo 82 do ECA);

- ENTRAR EM ESPETÁCULOS INADEQUADOS À SUA FAIXA ETÁRIA, principalmente em casos de vedação absoluta, como é o caso dos eventos com classificação indicativa para dezoito anos. (conforme art. 74 e 75 do ECA);

- FREQÜENTAR ESTABELECIMENTO QUE EXPLORE BILHAR, SINUCA OU CONGÊNERE OU CASA DE JOGOS, ainda que nesta ocorram apostas apenas eventuais (art. 80 do ECA);

- ADOTAR (somente aos 21 anos, conforme artigo 42);

- HABILITAR-SE À DIREÇÃO DE VEÍCULOS automotores (somente quando "penalmente imputável", conforme art. 140, I do Código Brasileiro de Trânsito);

- COMPRAR CIGARROS (Lei Estadual 2.733/97);

- FAZER TATUAGENS OU APLICAR ADORNOS QUE PERFUREM A PELE OU MEMBRO DO CORPO HUMANO, como brincos, argolas ou alfinetes, excetuados brincos nos lóbulos das orelhas (Lei Estadual 2.907/98);

- COMPRAR TINTA SPRAY (Lei Estadual 2.588/96);

- COMPRAR BENZINA, ÉTER OU ACETONA (Lei Estadual 2.779/97);

- PRATICAR OU ADQUIRIR JOGOS QUE CONTENHAM QUALQUER MODALIDADE DE LUTA OU ESTÍMULO À VIOLÊNCIA, seja em fliperama, jogos de realidade virtual e simuladores (Lei Estadual. 2.918/98).

Ora, tais dispositivos só poderão ser observados corretamente se houver a exigência da apresentação do documento para a prova de idade. É caso clássico de "obrigação-meio" (exigência de documento) que permite o cumprimento de "obrigação-fim" (não vender produtos inadequados a menores de idade).


III – O DOCUMENTO EXIGÍVEL

Sempre se discute sobre qual seria o documento adequado, exigível ou indispensável para tais casos, eis que não é obrigatória a existência de RG para o menor de 18 anos.

Na Vara da Infância e da Juventude de Teresópolis, a MMª Juíza Drª Inês Joaquina Sant'Ana Santos Coutinho baixou Portaria Judicial, sob o nº 03/2006, com a qual disciplina a participação e presença de crianças e adolescentes em eventos e estabelecimentos dispondo aos realizadores deveres específicos de cuidado. Diga-se que o mencionado provimento vem de ser mantido pelo STJ, que recusou recurso especial impetrado pelo Ministério Público, contra a mesma, inconformado com a decisão prolatada pelo Conselho da Magistratura, desfavorável à sua apelação, nos autos que tramitaram na origem sob o nº 2006.061.006391-2. Acresça-se mais, o provimento em questão foi editado em conformidade com os ritos e modos estabelecidos pelo próprio Conselho da Magistratura em sua Resolução nº 30/006, para a edição.

Um bom modelo de como lidar com essa questão da documentação se extrai do art. 7º e parágrafos da Portaria nº 003/2006 , de Teresópolis, que diz:

Art. 7º. DOCUMENTOS PARA PROVA DE IDADE - Para os fins desta Portaria a prova de idade se faz mediante apresentação de documento de identidade original emitido por entidade oficial, permitindo-se ainda a apresentação da certidão de nascimento, desde que acompanhada de carteira escolar emitida por colégio regularmente estabelecido, do qual conste fotografia da criança ou adolescente.

Parágrafo Primeiro. Para os fins desta Portaria não fazem prova de idade a fotocópia, ainda que autenticada, de documento de identidade e ou a carteira de identificação emitida por associação ou cooperativa estudantil, mesmo que em original;

Parágrafo Segundo. As cautelas aqui recomendadas deverão ser tomadas pelos estabelecimentos e promotores de evento ou atividade igualmente em relação ao jovem que aparentar ser menor de 18 anos e não portar documento.

Ainda na prática atual da Comarca de Teresópolis, a disposição acima em geral se complementa pelos dizeres do Alvará, quando concedido. Expedição do alvará é exercício do especial poder de polícia do Juiz da Infância e da Juventude (art. 249 do ECA) que, estabelecendo faixa etária para evento ou estabelecimento, torna exigível a apresentação ao porteiro, do documento de identificação, válido e indispensável ao fiel cumprimento da licença/ordem administrativa. O requerente de alvará que assim não proceda está a infringir as normas protetivas da infância e da juventude, pois o alvará, se lhe dá uma licença administrativa, também lhe estabelece obrigações.

Em geral, os Alvarás firmados naquele Juízo dispõe: "AUTORIZAa entrada e permanência de adolescentes, desacompanhada de seu responsável legal, conforme faixa etária acima, no evento referido, devidamente documentado" (grifei). De que documento se trata? Daqueles previstos no art. 7º da Portaria nº 003/06, acima transcrito.


IV - A INFRAÇÃO ADMINISTRATIVA DA NÃO EXIGÊNCIA DO DOCMENTO DE IDENTIDADE

A diretriz da proteção integral à infância e à juventude (art. 227 da Constituição Federal) é, necessariamente, preventiva, à luz do art. 70 do ECA, que instituiu o princípio da precaução, na Lei Especial. Descabe, ao contrário de outras searas, aguardar-se a ilicitude consumada. Reprime-se, desde já, a mera ameaça.

Por conta desse raciocínio, não pode qualquer prestador de serviço, fornecedor de produto, promotor de evento desportivo, cultural ou de lazer, sempre que dito serviço, produto ou evento envolver classificação etária, deixar de observar a cautela básica da requisição do documento para prova de idade.

Seria teratológico imaginar que a garantia dos direitos infantojuvenis pudesse ser delegada à simples impressão pessoal de qualquer indivíduo quanto à idade da suposta criança ou adolescente, sem prova documental, e ainda mais, agravada a análise de que se trata pelo fato de ocorrer sob o fundo de um interesse lucrativo no ingresso do maior número de clientes ou venda ao maior número de fregueses possível.

Como vimos, a necessidade de porte de documentos para o cidadão em geral, embora não se traduza em obrigação legal específica, é corriqueira e pacificada, pelo fato de ser condição essencial para o exercício da cidadania, bem como para permitir ao administrador público o melhor gerenciamento de suas funções, exigência do bem comum. Por isso, é ato de exercício do poder de polícia do administrador público, a emissão de documentos de identificação, bem como a exigência da sua apresentação. A esta, na prática, ninguém deveria se furtar, a não ser sob o risco do desconforto de comparecer à sede policial, como vimos. Inclusive aqui estaria a base para a garantia constitucional do Art. 5º, LVIII, que estabelece que "o civilmente identificado não será submetido a identificação criminal, salvo nas hipóteses previstas em lei".

Dissemos: o alvará concedido pelo do Juiz da Infância e da Juventude (art. 249 do ECA) estabelecendo faixa etária para acesso a evento ou estabelecimento torna exigível a apresentação do documento de identificação, podendo a obrigação vir claramente descrita. Entretanto, mesmo que o Alvará não a explicite, a obrigação da exigência de documento está implícita, óbvia, necessária ao cumprimento da obrigação de impedimento do acesso de menores de idade a produto ou serviço.

Portanto, a mim parece evidente que, mesmo não havendo disposição explícita em Alvará ou Portaria (quando seu descumprimento torna a infração evidente), a não exigência de documento de identidade em evento que não seja de indicação etária "livre", constitui infração administrativa. Assim concluo da leitura sistêmica do Estatuto da Criança e do Adolescente, conduzida pelo princípio da precaução, pelo princípio da generalidade da obrigação da proteção infanto-juvenil, ambos consignados no art. 70, e reforçada pelo artigo 2º, que define a condição etária da criança e do adolescente, bem como pelos artigos que estabelecem os cuidados e precauções específicos para fornecimento de bens, produtos e serviços a esse segmento populacional.

No caso, a infração se enquadraria no art. 258 do ECA:

Art. 258. Deixar o responsável pelo estabelecimento ou o empresário de observar o que dispõe esta Lei sobre o acesso de criança ou adolescente aos locais de diversão, ou sobre sua participação no espetáculo: Pena - multa de três a vinte salários de referência; em caso de reincidência, a autoridade judiciária poderá determinar o fechamento do estabelecimento por até quinze dias.

Veja-se que aqui temos um caso de norma aberta, "em branco", feita para amoldar-se a a esses tempos de sociedade do risco, cada vez mais crescente. Por impossível a tipificação de todas as múltiplas condutas lesivas aos direitos infantojuvenis – campo em que as inovações não cessam de emergir - trabalhou o legislador com a consciência iluminada pelo princípio da precaução.

Diga-se que o ECA prevê, em seu artigo 72 que:

As obrigações previstas nesta Lei não excluem da prevenção especial outras decorrentes dos princípios por ela adotados.

E de onde podem surgir essas obrigações não previstas na Lei? Certamente, um dos caminhos é a ação administrativa do Juiz da Infância e da Juventude!

Diga-se que o Conselho da Magistratura do Rio de Janeiro, na edição da sua Resolução nº 30 acolheu interpretação inovadora do art. 149 do ECA, que estabelece os limites do poder normativo do Juízo menoril por intermédio da edição de alvarás e portarias. A corajosa posição daquele colegiado rompeu a desairosa predominância de posições doutrinárias e jurisprudenciais de que o rol do art. 149 era estrito, pétreo e intocável. Foi um um grande avanço, pois se não se pretende que o Juiz da Infância e da Juventude volte a ser dotado dos múltiplos poderes com que contava o antigo Juiz de Menores, não se pode, no afã de podar a presença administrativa do Magistrado especializado, abrir a lacuna que permite a presença impune do aliciador, do corruptor, do explorador, do violador dos direitos infantojuvenis. No seu arrazoado, a eminente relatora da hipótese, a Desembargadora Letícia Sardas, analisou a excepcionalidade e abrangência do art. 153 do ECA, que permite ao Juiz adotar medida judicial mesmo quando não prevista no Estatuto ou em outra lei. Disse a Relatora:

Evidente que esta norma protetora em branco contém simbolismo maior do que o que aparenta, remetendo não só aos objetivos protecionistas do ECA inseridos no artigo 6º; deixando claro que o artigo 149 do ECA não contem uma norma fechada, mas, principalmente, inserindo o magistrado da infância e da juventude numa trama de co-partícipe dos fins sociais (…) (grifei)

Como se vê, manteve-se o Juiz da Infância e da Juventude como o vigilante garantidor de que eventual lacuna não permita a violação de direito. E o preenchimento da lacuna, ou o complemento da norma protetora em branco, se faz pela ação administrativa do Juiz, seja na expedição de Alvarás e Portarias, seja no ato de fiscalização, quando comparece a campo por seu preposto, o Comissário da Infância e da Juventude. Logo, não se fere o princípio da legalidade, posto que a Lei, ao estatuir norma a ser complementada, atribuindo a um órgão público a função administrativa de complemento dessa norma, e permitindo ao infrator o conhecimento da infração, com sua precisa descrição e oferecimento de adequado contraditório, como ocorre no processamento dos autos de infração, atende às necessidades constitucionais e legais que evitam o arbítrio e o abuso de autoridade.

Assim, se o Auto de Infração, ainda que não previsto de forma específica no Alvará, registra, por exemplo, em evento com restrição etária, que não há serviço de portaria e controle de acesso, ou que não há requisição de documentos para prova de idade dos frequentadores, em meu entendimento, tanto basta para que a norma em branco encontre a tipificação necessária, com a descrição precisa no auto da conduta reprovável. Isso porque se existe restrição etária, há que por necessidade lógica existir o controle de acesso que permita a verificação indispensável.

Não havendo o controle de acesso, seja pela inexistência de serviço de portaria, seja pela não pedida do documento, caracteriza-se o ânimo de infringência da norma, ainda que sem dolo, seja por negligência consciente, seja pela falta de observação do dever de cuidado a que se obriga qualquer promotor de eventos ou dono de estabelecimento, para com os deveres de proteção infanto-juvenil, à luz do Art. 70 do ECA.

Nem se diga que para que a infração se caracterize, necessário se faz constatação da presença de criança ou adolescente fora da faixa etária prevista para o evento. Como tem consagrado a jurisprudência de vários tribunais, trata-se de infração objetiva, de simples conduta ou falta de um agir, independente da comprovação de dano real ou potencial (Vide Apelação Cível nº 70018874727, julgada pela 7ª Câmara Cível do TJ-RS, referindo os artigos 78 e 79 do ECA).


CONCLUSÃO

O fato é que vivemos um tempo em que se multiplicam violações aos direitos infanto-juvenis. A má compreensão do ECA fez vicejar uma cultura permissiva, com omissão das autoridades escolares e parentais. A postura cada vez mais reivindicante de crianças e adolescentes, nem sempre centrados nos propósitos mais elevados da Lei, mas influenciados pelo imediatismo e consumismo geradores de prazer célere, em tempos de comunicação veloz, tem encontrado contrapartida na irresponsabilidade de promotores de eventos e fornecedores de bens e serviços. O pior casamento possível. A voracidade juvenil alimenta os lucros dos inconsequentes, que estimulam cada vez mais a voracidade juvenil, que alimenta os lucros... e assim por diante. É necessário fazer algo.

Essa exigência do documento comprobatório da idade do menor de 18 anos é medida de baixo custo, geradora de conscientização, tanto no adolescente, como em seus responsáveis e nos fornecedores de produtos ou promotores de eventos. Diga-se que a exigência também se fará ao maior de 18, quando – como bem especificou a Portaria da Vara da Infância e da Juventude de Teresópolis – houver dúvida sobre a veracidade da sua declaração etária, o que é comum nestes tempos em que a compleição física dos adolescentes e a puberdade cada vez mais precoce nos deixam em dúvida quando avaliamos a idade apenas pela aparência.

Às vezes, das soluções mais simples e óbvias surgem grandes respostas. Esta – a apresentação obrigatória de documentos comprobatórios de idade, como defendido neste artigo - parece ser uma delas. Para que seja eficaz, imperativo que seu descumprimento seja sancionado como infração administrativa.


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Informações sobre o texto

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

ARAÚJO, Denilson Cardoso de. A infração administrativa de não exigência de prova de idade em produtos e eventos não classificados como "livres". Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 15, n. 2725, 17 dez. 2010. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/18061. Acesso em: 28 mar. 2024.