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O papel da advocacia pública no Estado Democrático de Direito

O papel da advocacia pública no Estado Democrático de Direito

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Delimita-se a real função institucional da Advocacia Pública, essencial à justiça, de defender o Estado enquanto efetivador do interesse público.

SUMÁRIO: 1. Introdução; 2. A relação entre o público e o privado no paradigma do Estado Democrático de Direito: premissas para a delimitação do interesse tutelado pela Advocacia Pública; 3. Da Advocacia Pública na Constituição da República de 1988: seu papel no Estado Democrático de Direito; 4. Das funções institucionais do Advogado Público: consultiva e contenciosa; 5. Da autonomia da Advocacia Pública em relação aos governantes/Administradores dos entes presentados – uma necessidade lógica no atual paradigma; 6. Conclusões


RESUMO

Trata-se de artigo jurídico que busca fixar o papel da Advocacia Pública no atual paradigma constitucional vigente no Brasil – o do Estado Democrático de Direito. Com isso, delimita-se a real função institucional da Advocacia Pública, essencial à justiça, de defender o Estado enquanto efetivador do interesse público. Nega-se, assim, a subordinação do Advogado Público aos dirigentes, administradores ou, até mesmo, ao Chefe do Poder Executivo, sendo que tais autoridades somente serão defendidas por aquela instituição na medida em que atuarem em sintonia com os anseios populares plasmados na Constituição da República e nas leis vigentes.

Palavras-Chave: Advocacia Pública. Paradigmas constitucionais. Estado Democrático de Direito. Autonomia. interesses públicos e privados.

Abstract: This article aims to define the role of the State Attorneys in Brazil’s current constitutional paradigm – the democratic rule-of-law State. Through that, it is possible to mark out the real institutional role of the State Attorneys, essential to justice, in defending the State as the agent that carries out the public interest. It is therefore denied any subordination between the State Attorneys and the chair persons, managers or even the President, for these authorities shall only be legally defended inasmuch as they perform accordingly to the public needs inscribed in the Constitution and governing laws.

Key-Words: State Attorneys. Constitutional Paradigms. Democratic Rule of Law State. Autonomy. Public and Private Interests.


1. Introdução

Conforme sabido, vigia, no passado, notadamente no período absolutista, a teoria segundo a qual o Estado seria irresponsável por seus atos. Tanto assim é que se tornaram comuns expressões como "Le roi ne peut mal faire", na França, ou "The king can do not wrong", na Inglaterra. Em tradução livre, o rei não pode errar ou o rei nunca erra [01].

Ultrapassado esse período, o Estado passou a responder pelos atos que seus servidores ou Administradores praticavam em face do cidadão. Nesse contexto, imperioso se fez que o Estado, agora sujeito não só de direitos, mas também, e principalmente, de obrigações, fizesse-se presente em demandas judiciais. Para tanto, precisava de um órgão especializado em tal mister.

Eis que surge a figura do Advogado Público, enquanto pessoa dotada de capacidade postulatória apta a representar [02], judicial e extrajudicialmente, o Estado em todas as ocasiões em que sua presença se fizesse necessária.

Com a crescente conscientização popular acerca de seus direitos, houve um vultoso incremento da participação do Estado em demandas judiciais. Pode-se dizer, inclusive, que o Estado [03] é, hoje, a pessoa que mais está presente, como parte, principalmente como réu, em ações judiciais.

Daí a importância de se estudar, com o devido cuidado e atenção, o verdadeiro papel da Advocacia Pública. E tal estudo deve ser feito, como não poderia deixar de ser, valendo-se das lentes do paradigma jurídico vigente – o do Estado Democrático de Direito.

Tal pressuposto influenciará decisivamente nas conclusões a que se pretende chegar com o presente artigo, porquanto, a depender do paradigma adotado, um mesmo instituto pode ter os mais díspares significados e um órgão, as mais divergentes funções.

Para comprovar tal assertiva, iniciar-se-á definindo o que vem a ser paradigma para, em seguida, delinear os contornos do atualmente vigente.

Feito isso, analisar-se-ão as diversas funções da Advocacia Pública no Estado Democrático de Direito, explicitando, assim, o seu papel nesse atual paradigma.

Todo esse esforço tem por objetivo tentar responder à seguinte indagação/problema: saber se o papel do Advogado Público deve se restringir à defesa dos interesses manifestados pelos governantes/administradores ou se o mesmo tem por função defender o Estado em sentido amplo, cujo poder emana do povo. Noutros termos, pergunta-se: seria o Advogado Público um órgão de defesa do governo ou do Estado?

Buscar-se-á responder a tal indagação valendo-se, como marco teórico, da teoria discursiva de Jürgen Habermas, o qual, ao descrever o paradigma do Estado Democrático de Direito, definiu-o a partir do entrelaçamento das esferas pública e privada, superando, com isso, tal separação. O público não mais se identifica com o interesse manifestado pelo governante, tal como ocorria no Estado Social. O privado, por sua vez, não é limitado pelos interesses individuais egoísticos dos cidadãos. No Estado Democrático de Direito, o interesse público só o é se respeitar os interesses privados dos cidadãos. O privado, por sua vez, só é legítimo na medida em que respeita os anseios coletivos (lembre-se, neste ponto, por exemplo, da função social da propriedade).

De todo o exposto, já restou evidente que a hipótese que se tentará comprovar com o presente trabalho consiste na afirmação de que o papel da Advocacia Pública é promover a defesa do interesse público, cujo conteúdo pode ser alcançado a partir da efetivação dos direitos e garantias fundamentais plasmados na Constituição. Tais interesses podem ou não coincidir com os dos governantes, mas, independentemente disso, o Advogado Público deve obediência tão-somente à Constituição e às leis válidas. Nesse sentido, o governante deve ser defendido apenas se sua atuação estiver em consonância com os princípios e regras vigentes em nosso ordenamento jurídico.

Definido o escopo e o plano para se o alcançar, iniciem-se os trabalhos!


2. A relação entre o público e o privado no paradigma do Estado Democrático de Direito: premissas para a delimitação do interesse tutelado pela Advocacia Pública

Todo trabalho, seja ele científico ou não, necessita de um ponto de partida.

Além disso, é necessário que o seu protagonista tenha uma série de conhecimentos e experiências prévias que nortearão a sua empreitada, os quais influenciarão diretamente no resultado final da mesma. Afinal, tais experiências e pressupostos prévios definirão o caminho a ser tomado para se alcançar a meta visada.

É justamente essa dupla função – a de ponto de partida e a de pressuposto para a pesquisa – que desempenha o paradigma [04].

Dito isso, atente-se que, para Thomas Kuhn [05], o termo paradigma pode ter dois significados:

De um lado, indica toda a constelação de crenças, valores, técnicas etc., partilhados pelos membros de uma comunidade determinada. De outro, denota um tipo de elemento dessa constelação: as soluções concretas de quebra-cabeças que, empregadas como modelos ou exemplos, podem substituir regras explícitas como base para a solução dos restantes quebra-cabeças da ciência normal. [06]

A par dessas duas acepções, pode-se dizer que o paradigma constitui o ponto de partida para qualquer análise ou interpretação que se pretenda fazer de algo. Enquanto pressuposto do intérprete, o paradigma interfere direta e decisivamente na conclusão alcançada. Afinal, como ensina o Prof. Marcelo Cattoni:

Toda interpretação, assim como toda atividade humana, dá-se num contexto histórico, pressupõe paradigmas e, para usar uma expressão de Habermas, um pano de fundo de mundos da vida compartilháveis [HABERMAS, The theory of communicative action], que simplesmente não podem ser, em sua totalidade, colocados entre parênteses, através de uma atividade de distanciamento ou abstração, porque o ser humano não pode abstrair-se de si mesmo, não pode fugir à sua condição de ser de linguagem; "paradigmas", "mundos da vida" compartilháveis, embora plurais, são condições para a interpretação, são condições de comunicação. [07]

Noutros termos, é ele, o paradigma, que define a partir do que o pesquisador está desenvolvendo sua teoria.

Transferindo essa noção para a Ciência do Direito, pode-se afirmar, com Habermas, que o Estado moderno viveu, ao longo da história, sob três paradigmas distintos, quais sejam, o do Estado Social, o do Estado Liberal e, por fim, o do Estado Democrático de Direito.

A depender do paradigma adotado pelo jurista, a interpretação da legislação vigente poderá variar, tendo em vista os diferentes pressupostos ou pontos de partida de que se valerá. Afinal:

(...) os paradigmas contêm ideologias ou visões de mundo que fornecem uma série de pressupostos necessários à interpretação concreta de direitos. Por exemplo, conceitos jurídicos como liberdade e igualdade são extremamente dependentes dessa discussão paradigmática. As diferentes interpretações que liberais e socialistas chegaram o demonstra. [08]

Nesse ensejo, note-se que a constituição, enquanto manifestação da vontade do verdadeiro titular do poder – o povo – deve, embora isso nem sempre ocorra, espelhar o paradigma adotado pela comunidade que busca reger.

Quando o paradigma vivenciado por certa sociedade é previsto na Constituição vigente, passa ele a ser um paradigma constitucional. Noutros termos, passa de paradigma sociológico, constituído pelas crenças, tradições e visões de mundo de uma determinada comunidade, para um paradigma jurídico.

No caso brasileiro, a Constituição, ao proclamar que todo poder emana do povo (artigo 1º, parágrafo único), instituiu o Estado Democrático de Direito, elegendo-o como o paradigma que deve nortear a atuação do Estado em todas as suas esferas.

Qualquer instituto, órgão ou ente Estatal deve agir segundo esse paradigma, sob pena de incorrer em inconstitucionalidade. Nesse sentido:

(...) atentar contra a Democracia é atentar contra a ordem constitucional, enquanto expressão normativa da vontade popular.

Por escolha constitucional brasileira, a Democracia apresenta-se como marco insubstituível da prática jurídica social, sendo inegociável, senão com o rompimento da atual ordem constitucional.

Atos despóticos são, assim, atos ilícitos. [09]

Antes de adentrar o paradigma vigente, contudo, cumpre dizer que o Estado Democrático de Direito foi precedido, modernamente, por dois outros paradigmas constitucionais – o do Estado de Direito (ou Liberal) e o do Estado Social.

O primeiro [10] instituiu uma ruptura com o antigo modelo medieval de castas [11], bem como com o modelo Absolutista, do Estado Nação, que se sucedeu.

É um paradigma que entende a liberdade como a possibilidade de fazer tudo aquilo que um mínimo de leis não proíbam, diz Locke e Montesquieu. (...) é a liberdade de ter, a liberdade dos burgueses, dos modernos. (...)

Essa idéia de liberdade se assenta, obviamente, na propriedade, na idéia de igualdade de uma sociedade que afirma que todos os seus membros são proprietários, no mínimo de si próprios, pois mais ninguém pode ser propriedade de outrem e, assim, todos são sujeitos de Direito. [12]

Naquele momento, portanto, os direitos a serem garantidos pelas declarações constitucionais que nasciam eram concebidos como liberdades negativas, protegendo o cidadão contra o arbítrio estatal. O papel do Estado, então, assume feição meramente regulatória, "reservando ao mercado a tarefa de promover a distribuição equânime de oportunidades e benefícios" [13]. Nesse sentido, afirma Habermas:

Segundo este modelo, uma sociedade econômica, institucionalizada através do direito privado (principalmente através dos direitos de propriedade e da liberdade de contratos), deveria ser desacoplada do Estado enquanto esfera de realização do bem comum e entregue à ação espontânea de mecanismos de mercado. Essa sociedade de direito privado era trabalhada conforme a autonomia dos sujeitos de direito, os quais, enquanto participantes do mercado, tentam encontrar sua felicidade através da busca possivelmente racional de interesses próprios. [14]

O maravilhamento com tal modelo, contudo, chegou ao fim. A excessiva liberdade da iniciativa privada acabou por ensejar uma "não liberdade", com a exploração exacerbada da classe trabalhadora por aqueles que detinham o poder econômico [15], culminando, após muita luta social [16], no surgimento do próximo paradigma, qual seja, o do Estado Social ou do Bem-Estar Social.

Esse novo paradigma, como ensina André Del Negri:

(...) efetivou-se por meio de um Estado intervencionista, mais atuante e preocupado em estimular o crescimento e o desenvolvimento das inúmeras atividades ligadas às áreas da saúde, educação, cultura, família e previdência social. Chega-se, assim, à conclusão de que, no Brasil, esse paradigma socializante teve início com a Constituição de 1934. Nesse marco teórico, o Estado abandonou sua posição de espectador, passando a interferir nos serviços públicos com uma linha de crescimento constante nos empregos e nos impostos arrecadados, ocasionando, conseqüentemente, um maior "bem-estar" à sociedade (as aspas servem aqui para lembrar que, talvez, o Estado Social seja a radicalização do Estado Liberal, ao criar meios compensatórios para ter o controle de massas. Às vezes, criam-se emprego e renda tão-somente para calar o cidadão). [17]

É sabido, no entanto, que o Estado Social não conseguiu, igualmente, cumprir os grandiosos propósitos que inspiraram sua criação. Ao contrário, a pobreza da população e a disparidade social só aumentaram com o tempo. A diferença é que, além de uma pequena parcela de abastados que explorava a mão-de-obra da maioria desfavorecida, exsurgiu, paralelamente, uma figura gigantesca e centralizadora – o próprio Estado [18]. E, como bem adverte Kant, autor de uma das mais completas e coerentes teorias do Estado de Direito:

(...) um governo fundado sob o princípio da benevolência para com o povo, tal como o governo de um pai para com os filhos, isto é, um governo paternalista (imperium paternale), é o pior despotismo que se possa imaginar. [19]

Dito isso, cumpre observar que ambos os paradigmas – o Liberal e o Social – estabeleciam, como traço comum, uma nítida distinção entre o público e o privado [20]. Como bem salienta o Prof. Menelick:

O conceito básico era o mesmo, em um ou em outro, mudava-se simplesmente a seta valorativa. No primeiro, o privado é excelente e o público é péssimo. No segundo, o público é excelente e o privado é péssimo. De toda sorte, no entanto, o privado é e continua a ser em ambos o reino do egoísmo encarnado no indivíduo e o público o do interesse geral sempre consubstanciado no Estado. [21]

Todavia, essa relação entre o público e o privado é profundamente alterada no Estado Democrático de Direito.

A distinção entre ambos não é mais tão nítida. Pelo contrário, cada vez mais o público e o privado se confundem, formando uma amálgama em permanente tensão. Há, na verdade, uma relação de interdependência, conflito e comunicação perenes entre o público e o privado, nascendo daí a noção de cidadania.

Aliás, parece não haver dúvida, ao menos teoricamente, de que o paradigma jurídico-constitucional adotado por nosso ordenamento é o do Estado Democrático de Direito. Tal paradigma serve de norte para a estruturação de todo o sistema jurídico, o qual não poderá inobservá-lo em nenhuma de suas fases, haja vista o Princípio da Supremacia da Constituição e o controle de constitucionalidade irrestrito das leis.

Contudo, tal conclusão, que é decorrência lógica clara da Constituição da República ao dizer que todo poder emana do povo (parágrafo único do seu artigo 1º), parece passar despercebida para muitos intérpretes-aplicadores do Direito, que o continuam aplicando como se ainda vivêssemos no ultrapassado Estado Social ou, até mesmo, no Estado Liberal.

No entanto, não é lícito, no paradigma vigente, entregar-se ao governante o papel de tradutor da vontade popular, o que aconteceria se se permitisse que ele julgasse segundo seus "elevados" conhecimentos acerca da sociedade. A vontade normativa não pode ser entregue a uma autoridade [22]. O povo, ao votar, não elege um intérprete da consciência popular (à semelhança do Führer nazista) [23], delegando seu poder ao Estado [24]. Isso ocorria no ultrapassado Estado Social, não agora.

Em outras palavras, é preciso, no paradigma democrático, conferir ao destinatário a oportunidade de discutir os fundamentos da norma jurídica para, até mesmo, se for o caso, rejeitá-la.

Imperioso esclarecer, contudo, que não se está defendendo uma chamada "Teoria Crítica do Direito" [25], no equivocado sentido de que o mesmo poderia ser aplicado inclusive contra legem. Afinal, conforme sabido, a Constituição da República também integra o ordenamento jurídico, situando-se, aliás, em seu ápice. Vale dizer, interpretar uma norma segundo o entendimento popular é um imperativo constitucional. Julgar-se-ia contra legem, na verdade, se não se atentasse a tal comando [26].

Tal modelo foi proposto, dentre outros, por Jürgen Habermas, em sua Teoria Discursiva da Democracia [27], que servirá como marco teórico para os presentes estudos.

Ao propor tal paradigma, Habermas buscou o entrelaçamento e a comunicação permanente entre as esferas pública e privada, superando, na verdade, tal separação [28]. Trata-se de uma relação de complementaridade, em que "os cidadãos, ao darem-se conta de sua autonomia pública, têm que estabelecer os limites da autonomia privada, a qual qualifica as pessoas privadas para o seu papel de cidadão" [29].

Toma relevo a Teoria Discursiva do Direito, que possui espeque na argumentação de que a legitimidade do Direito pode servir aos propósitos da almejada integração social, desde que aflorado através de um processo racional de formação da opinião e da vontade, pautado pela defesa do pluralismo e tolerância aos distintos posicionamentos e argumentos, sob uma perspectiva inclusivista. [30]

Vale dizer, aos cidadãos deve ser dada a mais ampla oportunidade de participar do processo de construção do direito. Sua atividade não deve se limitar ao mero exercício do direito de voto. Dá-se também, e principalmente, a partir dos meios processuais, judicial ou administrativamente, que devem ser postos a sua disposição. Nesse sentido, ensina Habermas:

A legitimidade do direito apóia-se, em última instância, num arranjo comunicativo: enquanto participantes de discursos racionais, os parceiros do direito devem poder examinar se uma norma controvertida encontra ou poderia encontrar o assentimento de todos os possíveis atingidos. [31]

Conforme já dito, no paradigma do Estado Democrático de Direito, público e privado não podem se contrapor ou se separar [32]. Ao contrário, devem se relacionar permanentemente, em uma constante e saudável tensão [33], que só pode ser resolvida perante o caso concreto [34].

A relação entre as autonomias pública e privada foi profundamente alterada. Hoje, o público não mais se identifica unicamente com o Estado. Afinal, é o povo o titular do poder. É ele quem decide, valendo-se dos instrumentos democráticos de participação na tomada de decisão política, o seu futuro, e não uma autoridade de cunho paternalista, tal como ocorria no Estado Social. Como ensina Friedrich Müller:

O termo "democracia" não deriva apenas etimologicamente de "povo". Estados democráticos chamam-se governos "do povo" ["Volks"herrschaften]; eles se justificam afirmando que em última instância o povo estaria "governando" ["herrscht"].

Todas as razões do exercício democrático do poder e da violência, todas as razões da crítica da democracia dependem desse ponto de partida. [35]

E arremata:

O discurso de legitimação de uma democracia não só obriga a mesma a ser democrática no seu conteúdo – abstraindo do fato de que o significado desse adjetivo "democrático" pode ser matéria de grandes controvérsias. Ele deveria sobretudo realizar também no seu próprio procedimento o que designa, deveria, portanto, ser correlativamente estruturado, i. é: não formular afirmações em bloco, que se imunizam contra a discussão, não apresentar-se qual dedução cogente, não falar por intermédio de resultados antecipados. Muito pelo contrário, a legitimidade – como também a normatividade jurídica – é um processo e não uma substância, uma essência ou mesmo uma qualidade de textos. [36]

Vale repetir, o público não mais se identifica com a figura do Estado. O privado, por seu turno, não se limita aos interesses individuais e egoísticos do indivíduo. E é tendo em vista tal perspectiva que o intérprete-aplicador do direito deve aplicá-lo e compreendê-lo.

(...) a democracia requer o reconhecimento eqüiprimordial das dimensões pública e privada. Também as esferas pública e privada são dimensões em permanente tensão e interdependentes (...)

Existem dimensões públicas que hoje atravessam mesmo os recintos mais privados, e o próprio público é uma esfera que não pode ser confundida com a do Estado, reatando-se, outra vez, com aquela noção de povo que não pode ser visto como consciência coletiva ou algo desse tipo, mas, a rigor, requer ser enfocado como fluxos comunicativos, como possibilidade de participação, enfim, toda uma complexidade doutrinária que é requerida hoje para darmos conta dos desafios que temos que enfrentar. [37]

Transferindo esses pressupostos para o tema do presente trabalho, chegada é a hora de se voltar os olhos, especificamente, para o papel da Advocacia Pública sob a única ótica possível e lícita na atual ordem constitucional brasileira – a do Estado Democrático de Direito.


3. Da Advocacia Pública [38] na Constituição da República de 1988: seu papel no Estado Democrático de Direito

A existência de um órgão com a específica finalidade de presentar o Estado em juízo é algo relativamente novo na história brasileira.

Afinal, antes da Constituição de 1988, o Ministério Público cumulava em si a dupla função de defesa da sociedade e de advocacia de Estado.

No âmbito federal, em meados dos anos 30, criaram-se as autarquias, que eram defendidas por seus procuradores ou advogados, os quais, com a Lei n.º 7.659/45, passaram a gozar das mesmas prerrogativas conferidas aos Procuradores da República. O Ministério Público, por sua vez, fixou-se na defesa da União.

Em 1986, com o Decreto n.º 93.237, foi instituída a Advocacia Consultiva da União, composta pela Procuradoria Geral da Fazenda Nacional (do Ministério da Fazenda), pelas Consultorias Jurídicas, pelos órgãos jurídicos dos Gabinetes Militar e Civil da Presidência da República, pelas Procuradorias Gerais e departamentos jurídicos das autarquias e fundações federais, e pelos órgãos jurídicos das empresas públicas, sociedades de economia mista e demais entidades controladas, direta ou indiretamente pela União [39].

Contudo, a função de defender o Estado em Juízo (advocacia contenciosa) continuava entre as atribuições do Ministério Público, juntamente com a defesa da sociedade. Tal situação, não raras vezes, gerava profundos conflitos de interesses dentro daquela instituição. Afinal, em algumas situações, o parquet poderia, em tese, exercer a função de autor em uma demanda em face do Estado e, nessa mesma demanda, defender este último.

Atento a tal discrepância, o Constituinte de 1988 reorganizou o Ministério Público da União e criou a Advocacia-Geral da União e a Defensoria Pública da União.

Ao Ministério Público reservou-se a função de defesa da ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses sociais e individuais indisponíveis (artigo 127, CR/1988).

À Defensoria Pública, a de orientação jurídica e defesa, em todos os graus, dos necessitados (artigo 134).

Finalmente, à Advocacia-Geral da União reservou-se a tarefa de representar a União, judicial e extrajudicialmente, bem como a de prestar consultoria e assessoramente jurídico ao Poder Executivo (artigo 131).

Em resumo, o Ministério Público defende a sociedade (direitos coletivos, individuais homogêneos e individuais indisponíveis); a Defensoria Pública, os mais pobres e necessitados e; a Advocacia Pública, o Estado.

Como visto, embora tenham hoje papéis bem distintos e separados, a origem dessas três funções essenciais à justiça advém de um tronco comum – o Ministério Público. A Advocacia e a Defensoria Pública ficaram com parcela das atribuições que antes cabiam ao parquet. Vale destacar que tal gênese comum justifica muitas das conclusões a que se chegará com o presente trabalho. Afinal, todos eles foram criados com a inspiração de defender os interesses da sociedade em geral, cada um a seu modo.

Dito isso, mister se faz situar, em uma análise sistemática, o lugar reservado à Advocacia Pública na Constituição da República/88.

Vê-se que a CR/88 dispõe, em seu Título IV, acerca da organização dos poderes. Reservou, então, o Capítulo I ao Poder Legislativo; o Capítulo II, ao Poder Executivo; o III, ao Judiciário e; finalmente, o Capítulo IV, às funções essenciais à justiça.

Note-se que o Constituinte não inseriu as funções essenciais à justiça em um dos clássicos três poderes [40]. Não. Elas estão em um capítulo à parte.

Ora, por princípio hermenêutico, é sabido que nenhuma disposição legal, ainda mais em se tratando de norma constitucional, deve ser tratada como inútil. Da mesma forma, a organização sistemática de um diploma legal deve sempre balizar a compreensão do mesmo pelo intérprete.

Nesse diapasão, imperioso concluir que não foi por acaso que a Constituição da República brasileira decidiu situar as funções essenciais à justiça fora da organização dos demais poderes.

Na verdade, ao assim fazer, pretendeu dizer que a essas funções, que são essenciais à justiça, reserva-se a importantíssima tarefa de auxiliar, aproximar democraticamente e, porque não dizer, fiscalizar os demais poderes instituídos.

Não se trata propriamente de um quarto poder, como outrora foi dito. Afinal, o poder é um só, que pertence ao povo (artigo 1º, parágrafo único, da CR/88).

Na verdade, aos órgãos cujas funções são consideradas essenciais à justiça incumbe a tarefa de, em um exercício dialógico de intercomunicação e diálogo próprio do Estado Democrático de Direito, tentar unir e direcionar as funções Executiva, Legislativa e Judiciária no sentido de atender aos anseios do verdadeiro titular do poder – o povo.

Noutros termos, se a divisão tripartite dos poderes tende a separá-los física e ideologicamente [41], as funções essenciais à justiça funcionam como uma espécie de "cola", preenchendo os espaços vazios entre os mesmos. Com isso, tenta-se formar uma amálgama, em um só corpo, constituindo-se, assim, o Estado Democrático de Direito.

O Ministério Público, a Advocacia Pública e Privada, bem como a Defensoria Pública não são órgãos do Poder Executivo [42], como se costuma afirmar. Nem tampouco integram o Judiciário. Na verdade, tais órgãos transitam permanentemente entre os poderes da República. Ora em um, ora em outro. Em um movimento constante e pendular de tensão e aproximação.

Aliás, talvez seja essa a razão da dificuldade da frustrada tentativa, fadada ao fracasso, de se os situar, organicamente, em um dos poderes. A própria Constituição da República afastou, como visto, tal possibilidade.

Tal circunstância, contudo, parece ter passado desapercebida pelo Supremo Tribunal Federal quando julgou a ADI n.º 291/MT. Nela, aquela Corte Superior, de início, deferiu pedido liminar [43] para suspender a eficácia das expressões constantes da Constituição do Estado do Mato Grosso que conferiam à Advocacia Pública prerrogativas semelhantes às do Ministério Público, tais como, escolha do Procurador-Geral dentre os integrantes da carreira e independência no exercício de suas funções institucionais. Com a relatoria do Ministro Moreira Alves, entendeu-se que "o desvinculamento da Procuradoria do Estado com relação ao Chefe do Poder Executivo estadual causa sérios prejuízos à administração pública do estado-membro". No julgamento definitivo, exarado em 07/04/2010 pelo Pleno [44], manteve-se essa posição [45].

Tal entendimento, no entanto, não se amolda ao atual paradigma constitucional, vez que obriga, por via transversa, a Advocacia Pública a defender o Chefe do Executivo mesmo quando este agir contrariamente aos interesses públicos extraídos da própria Constituição.

Todavia, vale repetir, a Advocacia Pública, uma das funções essenciais à justiça, não integra o Poder Executivo. Tanto isso é verdade que a mesma não presenta somente o Executivo. Quando o ato impugnado for praticado pelo Judiciário ou pelo Legislativo, quem atua em nome do Estado também é, igualmente, um Advogado Público. É ele, e só ele, quem possui capacidade de postular em juízo em nome da entidade pública.

Nesse quadro, não se pode dizer, sem erro, que o advogado público é órgão do Executivo. Seu papel constitucional ultrapassa tal limitação.

Enquanto função essencial de justiça, ele deve, sim, auxiliar os demais poderes na implementação de suas políticas públicas e interesses institucionais. Mas o faz em prol do interesse Estatal/público, que pode ou não coincidir com o do governante.

Não se quer dizer, com isso, que o advogado público deve reiteradamente contrariar os Administradores. Pelo contrário. Sua função é orientar a atuação deles de forma a fazê-la se pautar pela legalidade e pelos anseios constitucionais.

Como se verá adiante, sua tarefa não é dizer simplesmente "não" ao governante. Melhor seria dizer, para cumprir sua missão constitucional, dizer "dessa forma não é possível, mas dessa outra, respeitados o contraditório e a ampla defesa, bem como os demais princípios constitucionais e legais, é, sim, possível".

Fixadas todas essas premissas, indispensáveis para se alcançar o objetivo visado, passe-se à análise do papel da advocacia pública no paradigma do Estado Democrático de Direito.

De início, lembre-se de que a advocacia, seja ela pública ou privada, é função essencial da justiça. Aliás, como bem salienta o Prof. José Afonso da Silva:

A advocacia não é apenas uma profissão, é também um munus e "uma árdua fatiga posta a serviço da justiça". O advogado, servidor ou auxiliar da Justiça, é um dos elementos da administração democrática da Justiça. Por isso, sempre mereceu o ódio e a ameaça dos poderosos. Frederico, o Grande, que chamava os advogados de "sanguessugas e venenosos répteis", prometia "enforcar sem piedade nem contemplação de qualquer espécie" aquele que viesse pedir graça ou indulto para um soldado, enquanto Napoleão ameaçava "cortar a língua a todo advogado que a utilizasse contra o governo". Bem sabem os ditadores reais ou potenciais que os advogados, como disse Calamandrei, são as "supersensíveis antenas da justiça". E esta sempre estará do lado contrário de onde se situa o autoritarismo. [46]

O advogado é, de uma certa forma, o tradutor dos interesses das pessoas que representa. Vale dizer, ele, após ouvir os fatos narrados pela parte e os interesses que a mesma intenta atingir, traduz tal narrativa para uma linguagem técnica-jurídica, na forma da legislação vigente. Daí dizer-se que o advogado:

(...) examina o fenômeno jurídico ao vivo, colhe-o diretamente na vida real, em toda a sua riqueza de detalhes, em toda a sua gama de cores, com toda a sua carga de aspirações, emoções e interesses conflitantes. Só o advogado, e particularmente antes da lide ou fora dela, é obrigado à análise do fato jurídico sob todos os seus ângulos, em seu pleno fieri, na sua dinâmica cambiante. [47]

Dito isso, cumpre dizer que, conquanto sejam ambas funções essenciais à justiça, algumas características distinguem a Advocacia Pública da privada. Tanto assim é que a própria Constituição da República colocou-as em Seções distintas [48].

O advogado privado atua representando o seu cliente. Vale dizer, ele age mediante delegação de poderes conferida, voluntariamente, por uma pessoa, que o faz pelo instrumento de mandato (procuração).

Ressalvada sua independência técnica, uma vez admitido o encargo, também voluntariamente, de defender os interesses de seu cliente, deverá fazê-lo com todos os meios e recursos disponíveis, incansavelmente, segundo as diretrizes traçadas por aquele que o contratou.

Já o advogado público atua presentando a pessoa jurídica de direito público que lhe é afeta. Ou seja, esse ente se faz presente pelo advogado público. Noutros termos, ele é a própria pessoa jurídica em juízo. Seu poder de presentação não decorre de um mandato, mas, sim, da própria lei.

Além disso, o advogado público não decide se quer ou não defender aquela entidade, tal como ocorre com o advogado privado. Tal função (poder-dever) decorre de lei, e não de ato de vontade. O aspecto volitivo limita-se ao momento de decidir se a pessoa, aprovada em concurso público de provas e títulos, quer ou não preencher tal cargo. Feito isso, resta-lhe uma função, da qual não pode se furtar de exercer.

No esteio do que já foi dito, o Advogado Público não é um profissional contratado pelo governante para representar seus interesses em juízo. A natureza pública de sua investidura no cargo impede tal exegese.

Tanto assim é que a sua capacidade de presentar a pessoa jurídica de direito público que lhe é afeta não decorre de um mandato, plasmado em uma procuração. Tal função (poder-dever) de fazer o órgão público presente em juízo decorre, como já dito, diretamente de lei.

O Advogado Público, então, tal como os demais servidores públicos, é um agente que deve pautar sua atuação tendo em vista o interesse público, e não o interesse do governante. Ele é, em última análise, um servidor do público.

Afinal, como visto, no paradigma do Estado Democrático de Direito, o público não se confunde com o Estado, nem tampouco com o governante. É justamente daí que decorre a conclusão de que o advogado público, considerando-se como tal aquele devidamente investido em cargo público efetivo [49], defende os interesses do cidadão, genericamente considerado, enquanto servidor [do] público que é.

Enquanto tal, deve sempre balizar sua atuação pelos princípios e normas que regem a atividade administrativa. É, em última análise, à lei, aqui incluída a Constituição, que o advogado público deve realmente obediência.

Não se está aqui descurando da existência de uma hierarquia administrativa. É sabido que a organização dos agentes públicos estatais é feita de forma escalonada e hierarquizada. E não é diferente com o advogado público.

Contudo, tendo em vista o status de função essencial à justiça da Advocacia Pública, não pode ela estar sujeita ou subordinada à vontade dos governantes. Nesse sentido, ensina o Prof. Aldemário Araújo Castro:

O exercício da independência técnica (relativa) dos advogados públicos e o viés construtivo das manifestações consultivas e contenciosas reclamam um certo distanciamento dos "interesses imediatos" (e dos "humores imediatos") dos gestores e administradores. Não é concebível, salvo dentro da triste lógica da advocacia de Governo, uma relação hierárquica, de subordinação, do advogado público em relação à "cadeia de comando" funcional de determinado órgão, ministério ou entidade. [50]

Em idêntico sentido, sugere André Luiz Batista Neves:

A solução passa, certamente, pela garantia de independência funcional aos Procuradores – já há muito intuída como necessária pelo legislador, como, por exemplo, na possibilidade de atuação da pessoa jurídica de direito público ao lado do autor de ação popular, caso isso se afigure útil ao interesse público [art. 6º, §3º, da Lei nº 4.717, de 29.06.1965] – e pelo resgate de seu papel cívico. Como rememora Pereira e Silva, "não se concebe que ainda hoje a função do Procurador do Estado, para significativa parcela da população, seja confundida como a do advogado do governo, ou seja, que a sua atividade se vincule a interesses efêmeros, e não a interesses perenes: os interesses públicos" [Reinaldo Pereira e Silva, "A Função Social do Procurador do Estado" in Revista Seqüência (CCJ/UFSC), Nº 31 (http://infojur.ccj.ufsc.br/Pereira_e_Silva-A_funcao_social_do_procurador_do_estado.htm - 03.06.1999). [51]

Vale dizer, o advogado público, se está subordinado a alguém, está-o apenas dentro de sua própria estrutura hierárquica. Noutros termos, deve obedecer apenas às diretrizes traçadas pela própria Advocacia Pública, de forma a tornar mais homogênea e coerente sua atuação. E, mesmo assim, se tais normas de homogeneização estiverem em sintonia com a legislação pátria.

Nunca ao chefe do Executivo, sob pena de inviabilizar o exercício da tarefa que lhe incumbiu o legislador constituinte – de velar e auxiliar a justiça, ou melhor, na implementação do Estado Democrático de Direito.

Nesse sentido, afigura-se no mínimo questionável a validade constitucional do Decreto n.º 7.153, de 09/04/2010 (DOU 12/04/10) [52], que permite a defesa, pela AGU, de gestores da administração federal em processos em tramitação no TCU. Tal vício já foi, inclusive, apontado em nota de Sindicato de Auditores Federais, que, acertadamente, criticou a norma:

Essa previsão infralegal poderá instaurar um conflito de interesse sem precedente entre os gestores e o Estado Brasileiro, pois a Constituição atribui à AGU a defesa judicial e extrajudicial da União, não a defesa de seus gestores pela consumação de atos irregulares. Em outras palavras, significa dizer que o dispositivo em questão poderá, na prática, resultar no uso da estrutura da AGU contra os interesses próprios da União discutidos nos processos que tramitam no TCU. A pergunta que fica no ar é: A AGU é mantida pela União para exercer a Advocacia de Estado ou a indesejável missão de Advocacia de Governo (ou dos governantes)? [53]

Tal desconfiança procede na medida em que a extensão da possibilidade de defesa de gestores da Administração pela AGU é, na mencionada norma, bastante ampla e genérica. E, no entanto, o papel da Advocacia Pública deve restringir-se à defesa da entidade estatal, cuja criação e funcionamento só se justifica tendo em vista o interesse público, que não se confunde com o interesse do governante, Administrador ou gestor.

Afinal, o advogado público, em última análise, defende o Estado, e não o governante. É tendo em vista tal pressuposto que o mesmo deve pautar sua atuação, a qual, conforme sabido, é dividida em consultiva e contenciosa, como se passa a explicitar.


4. Das funções institucionais do Advogado Público: consultiva e contenciosa

No exercício gerencial da coisa pública, é comum que o Administrador se depare com situações que suscitam dúvidas jurídicas quanto à forma e, até mesmo, quanto ao conteúdo dos atos que pretende praticar.

É justamente nesse contexto que se insere a atividade consultiva do advogado público. Por ela, o advogado público orienta juridicamente o Administrador para que o mesmo aja em sintonia com a legislação, os princípios que norteiam a atividade administrativa e, principalmente, com a Constituição da República.

Contudo, no esteio do que já foi dito, o advogado público, no Estado Democrático de Direito, não deve atuar como mero legitimador jurídico dos atos praticados pelo governante. No atual paradigma, a atividade consultiva se transmudou em uma autêntica forma de controle de legalidade e legitimidade da atuação da Administração Pública [54].

Aliás, ao menos potencialmente, o controle exercido pela Advocacia Pública é a mais eficiente e aconselhável forma de exercício do controle, já que possui feições essencialmente preventivas. Nesse sentido:

É possível afirmar, sem dúvidas ou receios: o mais eficiente controle de juridicidade da Administração Pública pode estar, se provida de meios necessários, na Advocacia Pública. Indaga-se, quem, além da Advocacia Pública, consegue, por exemplo, evitar ou se antecipar ao desvio ou abuso administrativo? [55]

Mas, para isso, é preciso amparar o advogado público de uma série de garantias e prerrogativas que lhe permitam exercer sua atividade livre de constrangimentos ou pressões, de forma a se submeter unicamente às leis e à Constituição. Mais uma vez, oportuna a transcrição do que disse o professor Aldemário Araújo Castro a respeito:

A fixação de garantias e prerrogativas para o exercício das atividades da Advocacia Pública não surge como uma outorga de favores ou privilégios inaceitáveis, particularmente quando se observa a sua nobre missão de sustentar e aperfeiçoar o Estado Democrático de Direito, zelando pela incolumidade dos interesses públicos primários.

Afinal, a possibilidade efetiva de contrariar interesses os mais diversos, desde aqueles dos governantes do momento até poderosas manifestações econômicas privadas, reclama a existência de proteções institucionais ao desempenho retilíneo das atribuições da Advocacia Pública.

Assim, as garantias e as prerrogativas dos membros da Advocacia Pública revelam-se meios ou instrumentos de realização plena do interesse público submetido, de uma forma ou de outra, ao crivo de análise dos vários segmentos da Advocacia Pública. [56]

Afinal, sem essas garantias e prerrogativas, pode o advogado público ver-se obrigado, como às vezes ocorre, a apenas chancelar o ato administrativo ilegal, dando-lhe as vestes de aparente legalidade com o seu parecer.

Todavia, para bem exercer sua função, que é essencial à justiça, o advogado público deve ser protegido contra o direcionamento que o governante tende a querer dar a sua atividade consultiva.

É verdade que essa função de controle de legalidade dos atos administrativos não é, como sabido, exclusiva da Advocacia Pública. O Ministério Público e o cidadão em geral, por meio de ação popular, também possuem tal legitimidade.

Contudo, a atuação desses últimos é exercida de forma muito mais repressiva do que preventiva. Vale dizer, é um controle que se exerce, normalmente, após a prática do ato, e não antes, evitando-o, como seria aconselhável.

É justamente essa a diferença que torna o controle exercido pela Advocacia Pública especial – o fato de ser, na maioria das vezes, preventivo, impedindo que o ato ilegal venha a ser implementado.

Com isso, previnem-se ilegalidades e, como corolário lógico, diminuem-se litígios judiciais impugnando o ato que, sem esse controle, seria praticado.

A isso se some mais uma característica que torna o controle exercido pela Advocacia Pública especial. Normalmente, quando o Ministério Público ou o cidadão impugnam um ato administrativo ilegal, eles apenas pedem que o ato seja anulado, com as conseqüências jurídicas que disso advirão. E só.

O advogado público, no entanto, deve ir além.

Para exercer em sua totalidade sua função institucional, o advogado público, após dizer que o ato, na forma como pretendido, é ilegal, deve orientar o Administrador acerca da forma como conseguirá, lícita e legitimamente, alcançar seu escopo.

Afinal, não é o advogado público quem define as políticas públicas a serem adotadas pelo governo. Quem o faz é o cidadão, diretamente ou por meio dos seus representantes eleitos.

Nesse contexto, se o governante intenta implementar determinada política pública, mas pretende fazê-lo de uma forma ilegal, o advogado público deve orientá-lo quanto à forma como poderá, licitamente, atingir seu objetivo.

Conforme já dito, é dizer, ao invés de simplesmente "não pode", que "dessa forma não é possível, mas, dessa outra, sim, o é".

Isso, é claro, se a meta a ser atingida estiver em conformidade com o interesse público plasmado na Constituição da República e na legislação. Se, ao contrário, o Administrador pretender apenas beneficiar-se, em interesse próprio, com o ato que pretende praticar, ao advogado público incumbe a missão de rejeitá-lo sumariamente.

Se, contudo, a despeito do filtro exercido pela atuação consultiva, determinado ato administrativo vier a ser impugnado judicialmente, cumpre ao advogado público presentar, em juízo, o ente que o praticou.

Trata-se, aqui, da chamada atuação contenciosa da Advocacia Pública.

Por ela, efetivam-se os princípios constitucionais do contraditório e da ampla defesa, indispensáveis para a formação legítima das decisões judiciais. Como ensina Aroldo Plínio Gonçalves:

(...) destinatários já não precisam recear pelas preferências ideológicas dos juízes, porque, participando do iter da formação do ato final, terão sua dignidade e sua liberdade reconhecidas e poderão compreender que um direito é assegurado, uma condenação é imposta, ou um pretenso direito é negado não em nome de quaisquer nomes, mas apenas em nome do Direito, construído pela própria sociedade ou que tenha sua existência por ela consentida. [57]

Quanto à importância do contraditório na formação do provimento judicial, ensina Dhenis Cruz Madeira:

Após o magistério de Elio Fazzalari e Aroldo Plínio Gonçalves, já se pode afirmar que o destinatário do provimento, ou seja, aquele que sofre os efeitos da decisão, deve se reconhecer, também, como co-autor do ato decisional, sendo certo que o contraditório, aferido na esfera procedimental, deve ser referente lógico do provimento. Nesse sentido, o provimento não é fruto da vontade de uma autoridade ancoreta, eis que o julgador se sujeita, tal como as partes, às imposições normativas que regem a função jurisdicional. A função jurisdicional deve sempre propiciar às partes a possibilidade de fiscalização irrestrita dos atos processuais que a alicerça, eis que, como precitado, todo poder emana do povo, e os destinatários devem também se apresentar como co-autores do provimento [58].

Nesse mesmo sentido, arremata Lênio Luiz Streck:

(...) além de outros princípios (devido processo legal e igualdade, por exemplo), a garantia que cada cidadão tem de que a decisão estará devidamente fundamentada – porque cada ato de aplicação judicial é um ato de jurisdição constitucional – está umbilicalmente ligada (e dependente) à garantia do contraditório, que assume uma especificidade radical nesta quadra da história, isto é, o contraditório passa a ser a garantia da possibilidade de influência (e efetiva participação) das partes na formação da resposta judicial, questão que se refletirá na fundamentação da decisão, que deve explicitar o iter percorrido no processo, tornando a decisão visível e apta ao controle social-jurisdicional (inclusive, a toda evidência, transparente à apreciação que a doutrina deve fazer sobre as decisões judiciais). [59]

É nesse contexto que se insere a atividade contenciosa do advogado público. Ao propor uma pessoa uma demanda em face do Estado, deve ele apresentar todos os argumentos jurídicos, se existentes, contrários à pretensão deduzida. E é dessa discussão dialógica entre autor e réu que nascerá o provimento judicial.

O Estado, ao se manifestar, em nome do povo, portanto, deve traduzir pronunciamento jurisdicional intrinsecamente ajustado à estrutura principiológica do devido processo constitucional, agindo, sempre, de acordo com a estrutura do devido processo legal, como pronunciamento que se realiza em contraditório entre as partes, garantindo, assim, a adequada participação dos destinatários da norma na formação do ato estatal. [60]

Daí a importância de o advogado público, mesmo que pessoalmente não concorde com o mérito [61] do ato impugnado, se for ele juridicamente válido e legítimo, apresentar todos os argumentos para defendê-lo em juízo. Primeiro porque não é o advogado público quem define as políticas públicas do Estado, mas, sim, a Constituição e o povo. Segundo porque, assim agindo, estará ele efetivando os princípios constitucionais do contraditório e da ampla defesa na formação do provimento jurisdicional.

Contudo, no Estado Democrático de Direito, tal defesa não pode ser cega e irrestrita. Aquela velha noção de que o advogado público recorre, até as últimas instâncias, contra qualquer decisão que for contrária ao ente presentado, ou que defende qualquer ato administrativo, por mais ilegal que seja, não se ajusta ao paradigma vigente [62].

Ao contrário, é dever do advogado público, ao se deparar com ato manifestamente ilegal, reconhecer tal vício, mesmo que tal atitude implique deixar a parte contrária ver julgado procedente seu pleito deduzido em juízo. Aliás, nesse caso, o advogado público deve, até mesmo, reconhecer a procedência do pedido contrário.

Tal atitude decorre não só do Estado Democrático de Direito, mas também dos princípios da moralidade administrativa e da boa-fé que devem nortear a atuação estatal. Nesse sentido, adverte Maurício Ferreira Cunha:

O que não se pode, aliás, não se deve, é possibilitar ao mesmo Estado que, na qualidade de único responsável pelo exercício da dita soberania, assim agindo em nome do povo, extrapole suas determinações, de forma arbitrária, deixando de perceber as linhas mestras que devem direcionar seu papel de órgão controlador e feitor do bem-estar social. [63]

Segundo tal raciocínio, é preciso que se abandone, imediatamente, aquela concepção, tão conhecida e criticada pelos advogados privados, muitas vezes, infelizmente, com razão, de que o advogado público é um procrastinador nato, que recorre por recorrer. Tal postura afigura-se, a par de um gravame ao erário, absolutamente inconstitucional.

Assim se afirma porque os interesses meramente patrimoniais do Estado são secundários, e não primários. A distinção, feita pela doutrina administrativista italiana, é lembrada por Celso Antônio Bandeira de Mello, que ensina:

Também assim melhor se compreenderá a distinção corrente na doutrina italiana entre interesses públicos ou interesses primários – que são interesses da coletividade como um todo – e interesses secundários, que o Estado (pelo só fato de ser sujeito de direitos) poderia ter como qualquer outra pessoa, isto é, independentemente de sua qualidade de servidor de interesses de terceiros: os das coletividades. Poderia, portanto, ter o interesse secundário de resistir ao pagamento de indenizações, ainda que precedentes, ou de denegar pretensões bem fundadas que os administrados lhe fizessem, ou de cobrar tributos ou tarifas por valores exagerados. Não estaria, entretanto, atendendo ao interesse público, ao interesse primário, isto é, àquele que a lei aponta como sendo o interesse da coletividade: o da observância da ordem jurídica estabelecida a título de bem curar o interesse de todos. [64]

Destaque-se, neste ponto, que os interesses secundários da Administração somente podem ser atendidos na medida em que coincidam com os primários. São, como o próprio nomen iuris indica, secundários. Nesse sentido, poder-se-ia, inclusive, abandonar a distinção entre os interesses primários e secundários, porquanto, na verdade, há apenas um interesse a ser visado pelo Estado – o público.

Nessa linha de raciocínio, a interposição de recursos meramente procrastinatórios, para adiar pagamento certo, buscando preservar interesse secundário da Administração (patrimonial), em detrimento do interesse primário de respeito às normas determinadoras do adimplemento da indenização, é inconstitucional, ainda que reflexamente, uma vez que viola o princípio constitucional-administrativo implícito da finalidade [65] e, porque não dizer, da moralidade administrativa.

Tal conduta é, ainda, gravosa ao erário, na medida em que o Advogado Público poderia usar seu tempo para se concentrar em teses que têm chance real de êxito, fazendo-o de forma mais eficiente e satisfatória. Além disso, os juros e eventuais condenações por litigância de má-fé acabam por tornar a condenação imposta ainda mais gravosa do que se tivesse sido paga já no início da demanda.

Ademais, conforme já dito, o advogado público é, antes de tudo, um servidor público e, como tal, deve reportar-se sempre ao seu verdadeiro "patrão" – o povo.

Ao se sustentar, contudo, que o papel do advogado público, no atual paradigma, é defender o interesse público não se quer dizer que deve ele, sempre, reconhecer a procedência do pedido deduzido pela parte adversa. Afinal, se o interesse público não mais se identifica com o do Estado, igualmente não se confunde com o interesse individual da parte contrária. É o interesse genérica e coletivamente considerado. E quem define esse interesse é a Constituição e a população em geral.

Em síntese, o advogado público deve, em sua atuação contenciosa, defender a legalidade, mesmo que isso implique contrariar os interesses dos governantes.

Por fim, cumpre explicitar a atuação da Advocacia Pública na defesa dos interesses difusos e coletivos.

A Lei n.º 7.347/85, que disciplina a ação civil pública, dispõe que:

Art. 1º Regem-se pelas disposições desta Lei, sem prejuízo da ação popular, as ações de responsabilidade por danos morais e patrimoniais causados:

I- ao meio-ambiente;

II- ao consumidor;

III- aos bens e direitos de valor artístico, estético, histórico, turístico e paisagístico;

IV- à ordem urbanística;

V- a qualquer outro interesse difuso ou coletivo;

VI- por infração da ordem econômica e da economia popular; (...)

Art. 5º A ação principal e a cautelar poderão ser propostas pelo Ministério Público, pela União, pelos Estados e Municípios. Poderão também ser propostas por autarquia, empresa pública, fundação, sociedade de economia mista ou por associação (...)

§2º Fica facultado ao Poder Público e a outras associações legitimadas nos termos deste artigo habilitar-se como litisconsortes de qualquer das partes.

Vê-se, pois, que a Administração Pública Direta e Indireta, presentada pela Advocacia Pública, é legitimada ativa para propor ação civil pública para a tutela de direitos e interesses difusos e coletivos.

Nada mais lógico e coerente com o papel do poder público no Estado Democrático de Direito.

Afinal, se o Estado existe justamente para garantir e efetivar os direitos conquistados historicamente pelo cidadão, bem como para facilitar e permitir a sua efetiva e permanente participação nesse processo, em perfeita sintonia com tal paradigma está a legitimidade de o Estado poder propor demandas com o escopo de alcançar satisfatoriamente tal objetivo.

É claro que, nessa hipótese, deve-se averiguar se, no caso concreto, há a chamada adequada representação, também conhecida como pertinência temática. Vale dizer, a entidade pública deverá ter sido criada com o escopo específico de defender e resguardar os direitos e interesses que busca, com a ação civil pública, ver satisfeitos. Nesse sentido:

(...) entendemos que também os entes públicos legitimados (administração direta e indireta) deverão igualmente sujeitar-se a essa averiguação [quanto ao cumprimento do requisito da adequada representação ou da pertinência temática], quando pertinente. Esse é o magistério de Hugo Nigro Mazzilli: "a) as entidades e órgãos da administração pública direta ou indireta, ainda que sem personalidade jurídica, devem estar especificamente destinados à defesa dos interesses transindividuais, objetivados na ação civil pública ou coletiva que, como legitimados ativos, pretendem propor". [66]

Nesse sentido, o IBAMA, por exemplo, tem legitimidade ativa para propor ação civil pública em defesa do direito difuso a um meio ambiente saudável, mas não para defender o patrimônio histórico e urbanístico nacional. Para isso, quem tem legitimidade é o IPHAN.

Entendemos que, quando não há um órgão ou pessoa jurídica de direito público que tenha sido criada com o fim específico de proteger determinado bem de interesse difuso ou coletivo, é a Administração Direta (União, Estados, Municípios e Distrito Federal) legitimada a propor a respectiva ação civil pública para resguardá-lo. Isso, é claro, concorrentemente com os demais legitimados ativos (Ministério Público, cidadão etc).

Por fim, cumpre esclarecer que não é só por meio de ações civis públicas que o poder público pode defender interesses difusos e coletivos. Afinal, ao fiscalizar e impor penalidades àqueles que descumprem normas de ordem ambiental ou urbanística, por exemplo, nada mais está o Estado do que defendendo aqueles direitos.

E, quando a parte não cumpre voluntariamente sua obrigação, pagando a multa fixada ou fazendo a obra determinada, incumbe à Advocacia Pública tomar as medidas judiciais cabíveis para impor seu adimplemento.


5. Da autonomia da Advocacia Pública em relação aos governantes/Administradores dos entes presentados – uma necessidade lógica no atual paradigma

Deflui-se do exposto que o advogado público tem por função institucional auxiliar o Estado na implementação do Estado Democrático de Direito.

Tal conclusão tem por pressuposto reconhecer a força normativa do preceito constitucional que diz que todo poder emana do povo (artigo 1º, parágrafo único). E é tendo em vista os interesses do titular do poder que os agentes públicos, tal como os advogados públicos, devem balizar sua atuação.

Ocorre que o advogado público, no exercício de seu mister, freqüentemente se depara com atos administrativos contrários a esse preceito, violando leis, regras ou princípios constitucionais.

Nesses casos, conforme já dito, é dever institucional do advogado público apontar a irregularidade, seja previamente, em sua atividade consultiva, seja posteriormente, em sua atividade contenciosa.

No entanto, assim agindo, estará o advogado público, muitas vezes, contrariando os interesses dos governantes ou Administradores superiores das entidades que presenta.

Em situações como essa, o advogado público não se pode ver compelido a agir dessa ou daquela forma pelo Administrador. Vale dizer, este último não pode direcionar a atividade do advogado público, sob pena de inviabilizar o cumprimento da função essencial da qual foi incumbido pelo legislador constituinte.

Em suma, a autonomia funcional do advogado público é pressuposto indispensável para o exercício completo de sua função constitucional.

Não pode ele se ver constrangido, em momento algum, em sua atividade pelo Administrador.

No âmbito consultivo, deve ele, ao se deparar com alguma pretensão ilegal ou ilegítima, opinar pela abstenção da prática do ato pretendido, sem sofrer qualquer espécie de retaliação por sua conduta. Em seu parecer, o advogado público não pode agir apenas para dar supedâneo legal ao ato pretendido pelo Administrador.

Em sua atuação contenciosa, por sua vez, o advogado público, ao ver impugnado um ato claramente ilegal, deve ter autonomia para reconhecer tal vício.

É tendo em vista tais pressupostos que deve ser interpretado o artigo 131 da Constituição, quando diz:

Art. 131. A Advocacia-Geral da União é instituição que, diretamente ou através de órgão vinculado, representa a União, judicial e extrajudicialmente, cabendo-lhe, nos termos da lei complementar que dispuser sobre sua organização e funcionamento, as atividades de consultoria e assessoramento jurídico do Poder Executivo.

Vale dizer, se é verdade que lhe cabe a função consultiva do Poder Executivo e de defesa genérica da União em juízo [67], igualmente o é que tal função deve ser exercida, no paradigma do Estado Democrático de Direito, de forma livre e autônoma, tendo em vista os anseios da população, plasmados na Constituição da República, e não necessariamente os dos governantes.

Nesse sentido, afigura-se, no entender do autor, desaconselhável o preceito contido no §1º do artigo 131 da Constituição, que diz que o Advogado-Geral da União, chefe da Advocacia-Geral da União, é de livre nomeação (e exoneração) pelo Presidente da República. Tal circunstância pode ferir a indispensável autonomia da Advocacia Pública no exercício da importantíssima função que lhe reservou a Constituição da República.

Se a Constituição quis dar ao Presidente da República um assessor jurídico especial, que o fizesse por meio da criação de um cargo, por exemplo, de Assessor Jurídico da Presidência da República. Esse sim de livre nomeação e exoneração pelo chefe do Executivo. Entende-se, contudo, que tal atividade nunca poderia ter sido conferida ao maior cargo da Advocacia-Geral da União, enquanto função essencial à justiça, sob pena de inviabilizar o cumprimento eficiente de tal tarefa.

De lege ferenda, poder-se-ia prever, tal como ocorre com o Ministério Público, outra função essencial à justiça, para preservar o sistema de freios e contrapesos das funções de Estado, que os membros da própria Advocacia Pública formassem lista tríplice para, dentre eles, o chefe do Executivo nomeasse o Advogado-Geral da União, que teria mandato por período fixo.

Trata-se, contudo, de mera sugestão, a depender de alteração da Constituição da República pelo legislador constituinte derivado.


6. Conclusões

Conclui-se, de todo o exposto, que a Advocacia Pública, no exercício de sua função, essencial à justiça, deve ficar atenta ao paradigma jurídico-institucional adotado pela Constituição da República – o do Estado Democrático de Direito.

Nesse paradigma, não mais são cabíveis quaisquer espécies de apropriações do interesse público feitas pelos governantes ou Administradores. Afinal, não são eles os tradutores dos anseios populares, decidindo, solitariamente, a melhor forma de efetivar seus interesses.

O público, na atual ordem constitucional, não se confunde com a vontade (privada) do governante. Qualquer atividade do Administrador só será legítima se estiver em consonância com as regras e princípios plasmados na Constituição e nas leis válidas, sempre tendo em vista o atendimento dos interesses do verdadeiro e único titular do poder – o povo.

É tendo em vista tais balizas que o Advogado Público deve pautar sua atuação. Só assim sua função será, efetivamente, essencial à justiça.

O dever da Advocacia Pública é defender o Estado, enquanto pessoa jurídica criada única e exclusivamente para atender os anseios, plasmados na Constituição, do povo. E, no esteio do que já foi dito, não é o governante quem dirá quais anseios são esses. Daí porque não se pode dizer, sem erro, que o Advogado Público é um defensor do governante ou Administrador. Isso ocorrerá tão-somente se a atitude destes últimos estiver relacionada com o atendimento do interesse do Estado, efetivando direitos e garantias fundamentais, e só nesse caso.

Nesse sentido, não se afigura legítima a atuação da Advocacia Pública em defesa de interesses privados ou, até mesmo, partidários dos governantes.

Não se insere entre as funções da Advocacia Pública responder a demandas propostas em face do Chefe do Poder Executivo quando este atua em interesse próprio ou de seu partido político. Aliás, tal conduta, que só empobrece, perante a sociedade, a importantíssima função reservada à Advocacia Pública pela Constituição, já vem sendo criticada, com razão, por importantes setores da sociedade, dentre os quais vale destaque a Ordem dos Advogados do Brasil [68]. A imprensa já vem destacando, outrossim, tal desvirtuamento [69].

É preciso resgatar o verdadeiro papel da Advocacia Pública no Estado Democrático de Direito – defender o Estado, na medida traçada pela Constituição da República.

Enquanto servidor público que é, o Advogado Público deve pautar sua atuação de forma a atender aos anseios do seu verdadeiro "patrão" – o povo.

Mas, pode-se perguntar, como saber quais são os interesses da população? Já se disse que não são os manifestados, solitariamente, pelos governantes. Como, então, identificá-los considerando as mais díspares opiniões e vontades de cada cidadão? Não resta outra alternativa senão considerar aqueles plasmados nos princípios e regras constitucionais, sempre respeitando os direitos e garantias fundamentais lá expressos. Deve-se, ainda, ampliar os mecanismos de participação popular na formação das decisões legislativas, administrativas e judiciais. Nesses dois últimos âmbitos, a Advocacia Pública pode, e deve, tentar efetivar tal participação, garantindo, sempre, o devido processo legal e o exercício, como corolário lógico, do contraditório e da ampla defesa pelos cidadãos. Só assim será possível cumprir, efetivamente, o papel reservado pela Constituição da República à Advocacia Pública, sempre tendo por pressuposto o paradigma jurídico que a norteia – o do Estado Democrático de Direito.


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Notas

  1. MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de Direito Administrativo. 25. ed. rev. e atual. São Paulo: Malheiros, 2008, p. 985.
  2. Oportuna, neste ponto, a observação de Leonardo José Carneiro da Cunha ao dizer, com espeque em Pontes de Miranda, que, "na verdade, a Procuradoria Judicial e seus procuradores constituem um órgão da Fazenda Pública. Então, o advogado público quando atua perante os órgãos do Poder Judiciário é a Fazenda Pública presente em juízo. Em outras palavras, a Fazenda Pública se faz presente em juízo por seus procuradores. Segundo clássica distinção feita por Pontes de Miranda, os advogados públicos presentam a Fazenda Pública em juízo, não sendo correto aludir-se a representação." (CUNHA, Leonardo José Carneiro da. A Fazenda Pública em Juízo. 6. ed. rev. ampl. e atual. São Paulo: Dialética, 2008, p. 20). Feita a ressalva, esclareça-se que, doravante, passar-se-á a utilizar o termo presentação, por ser ele mais técnico e coerente com a moderna função da Advocacia Pública.
  3. Com a expressão genérica "Estado", quer-se fazer menção a todos os entes integrantes da Administração Pública direta e indireta (União, Estados, Municípios, Distrito Federal, suas autarquias, fundações e, até mesmo, em alguns casos, empresas públicas e sociedades de economia mista).
  4. "O termo paradigma é originário do grego paradeigma e encontra em Platão sua concepção mais remota como idéia de modelo ou exemplo. Como noção epistemológica contemporânea, contudo, tem sua gênese na Filosofia da Ciência, de onde é colhida, a partir de escólios de Gadamer, pelo físico Kuhn, que lhe fixa o conceito e desenvolve formulações teóricas destinadas às ciências exatas, associando realizações científicas a problemas e soluções modelares." (CARVALHO, Carlos Eduardo Araújo de. Legitimidade dos Provimentos: Fundamentos da Ordem Jurídica Democrática. Curitiba: Juruá, 2009, p. 216).
  5. "A teoria hermenêutica gadameriana representa o alicerce para a apropriação da noção de pré-compreensões (preconceitos) que impregnam o sujeito, já que constituem o pano de fundo que informa sua visão de mundo, enquanto Kuhn, em sua obra A Estrutura das Revoluções Científicas, acolhendo aquela noção, projeta a visada (sic) dos elementos estruturantes do paradigma como componentes de um corpo teórico dominante, acatados historicamente na dinâmica social e que, por isso mesmo, exercem função reguladora da ciência e determinam sua dinâmica e seu desenvolvimento." (PIRES, Maria Coeli Simôes. Direito Adquirido e a ordem pública: Segurança Jurídica e Transformação Democrática. Belo Horizonte: Del Rey, 2005, p. 22, apud CARVALHO, op. cit., p. 216).
  6. KUHN, Thomas S. A estrutura das revoluções científicas. 8ª Ed. São Paulo: Perspectiva, 2003, p. 219-220.
  7. CATTONI DE OLIVEIRA, Marcelo Andrade. Direito Processual Constitucional. Belo Horizonte: Mandamentos, 2001,p. 143-144.
  8. MARTINS, Argemiro Cardoso Moreira. A noção de administração pública e os critérios de sua atuação. Obtida via internet. www.cead.unb.br/agu. Brasília, 25 de agosto de 2009, 11h, p. 8.
  9. MADEIRA, Dhenis Cruz. Processo de Conhecimento & Cognição: uma inserção no estado democrático de direito. Curitiba: Juruá, 2008, p. 35.
  10. O Estado moderno tem como primeiro paradigma o Estado Liberal. "É a partir das Revoluções burguesas, a Revolução norte americana de 1776 e a revolução Francesa de 1789, que foram consagrados os princípios liberais políticos e principalmente econômicos para a afirmação do Estado Liberal." (MAGALHÃES, José Luiz Quadros de. Direito Constitucional. Belo Horizonte: Mandamentos, 2000. T. I, p. 67, apud CARVALHO, op. cit., p. 221).
  11. Na verdade, a divisão por estratos da sociedade política já era vista desde a democracia grega, mais precisamente na polis ateniense entre 510 e 323 a. C. "E é paradoxal – para os modernos, mas de modo algum para os antigos – que essa libertação [das formas tradicionais de exercício do poder, tais como a monarquia, a aristocracia e a tirania], com a implementação do governo democrático (que era direto, e não representativo), ocorresse sob o signo da desigualdade no plano vertical (que coexistia, portanto, com a igualdade no plano horizontal da sociedade política). Com a experiência ateniense, consolida-se a diferenciação por estratos, que será paradigmática em todo o mundo antigo e continuará a inspirar a organização social nos períodos medieval e pré-moderno. O que importa notar, nessa distinção de papéis sociais, é o fato de que apenas os cidadãos – homens adultos nascidos em Atenas, filhos de homens livres oriundos de famílias locais – participavam da esfera deliberativa." (PAIXÃO, Cristiano. Arqueologia de uma distinção: o público e o privado na experiência histórica do direito. In: PEREIRA, Cláudia Fernanda Oliveira (org.). O novo direito administrativo brasileiro. Belo Horizonte: Forum, 2003, p. 3-4).
  12. CARVALHO NETTO, Menelick de. Público e Privado na perspectiva constitucional contemporânea. Obtida via internet. www.cead.unb.br/agu. Brasília, 25 de agosto de 2009, 11h, 2009,p. 10.
  13. PAIXÃO, op. cit., p. 17.
  14. HABERMAS. Direito e Democracia – Entre a Faticidade e a Validade. 1997, p. 102, apud CARVALHO, op. cit., p. 227.
  15. "Em verdade, houve duas etapas na evolução do movimento liberal e do Estado Liberal: a primeira, a da conquista da liberdade; a segunda, a da exploração da liberdade." (CARVALHO, op. cit., p. 228).
  16. "O resultado dessa atomização social, como não poderia deixar de ser, foi a brutal pauperização das massas proletárias, já na primeira metade do século XIX. Ela acabou, afinal, por suscitar a indignação dos espíritos bem formados e a provocar a indispensável organização da classe trabalhadora. A Constituição francesa de 1848, retomando o espírito de certas normas das Constituições de 1791 e 1793, reconheceu algumas exigências econômicas sociais. Mas a plena afirmação desses novos direitos humanos só veio a ocorrer no século XX, com a Constituição mexicana de 1917 e a Constituição de Weimar de 1919." (COMPARATO, Fábio Konder. A afirmação histórica dos direitos humanos. São Paulo: Saraiva, 2001, p. 51, apud COURA, Alexandre de Castro. Reflexões acerca da (in)efectivação dos direitos fundamentais sociais no Brasil e do controle judicial de políticas públicas. Oficina do Centro de Estudos Sociais – CES – da Universidade de Coimbra n.º 314, 2008, p. 10).
  17. DEL NEGRI, André. Teoria da Constituição e do Direito Constitucional. Belo Horizonte: Fórum, 2009, p. 69-70.
  18. "A crise de cidadania decorre da carência, gradativamente percebida, de participação efetiva do público nos processos de deliberação da sociedade política. A identificação do público com o estatal acabou por limitar a participação política ao voto. E isso se aduziu uma estrutura burocrática centralizada e distanciada da dinâmica vital da sociedade. A associação entre público e estatal acarretou a construção de uma relação entre indivíduo e Estado que pode ser equiparada à relação travada entre uma instituição prestadora de serviços (e bens) e seus clientes. Como é sabido ao menos desde o início do século XX, o distanciamento, a impessoalidade e a hierarquização são atributos básicos do ‘tipo puro’ de dominação que se consolidou no Ocidente desencantado." (PAIXÃO, Cristiano. Arqueologia de uma distinção: o público e o privado na experiência histórica do direito. In: PEREIRA, Cláudia Fernanda Oliveira (org.). O novo direito administrativo brasileiro. Belo Horizonte: Forum, 2003, p. 23).
  19. KANT. Sobre o dito popular "Isto pode ser justo em teoria mas não vale para a prática" (1793). Tradução (italiana): G. Solari e G. Vidari, Utet. Torino, 1956, p. 255 apud BOBBIO, Norberto. O futuro da democracia. 8. ed. rev. e ampl. Tradução de Marco Aurélio Nogueira. São Paulo: Paz e Terra, 2000, p. 177.
  20. Tal distinção já era nítida na sociedade grega: "Na mentalidade e na vida social atenienses, o privado é a dimensão da sobrevivência, da luta pela manutenção dos seres vivos e de suas famílias, da luta em face da escassez. Nesse plano de existência, o homem não difere muito de outras espécies de seres vivos, que precisam recorrer à natureza para encontrar a subsistência. A casa é o lugar em que essa contínua luta e conservação da vida e saúde se manifesta. Daí a etimologia da expressão moderna economia (oikia + nomos, ou seja, a lei da casa). (...) A materialização da vida pública ocorre por intermédio da emancipação propiciada pelo exercício de todas as potencialidades do homem como cidadão. A ágora, local das discussões em torno das questões fundamentais da polis, é o espaço (não apenas no sentido físico) em que essa potencialidade poderá ser ativada (...). Nesses contextos de discussão, encontro e argumentação, o homem grego se vê livre das amarras (típicas da dimensão privada) que o transformavam num ser desprovido, ao menos em parte, de sua liberdade, e realiza tudo aquilo que seria conhecido, no futuro, como o ‘ideal grego’, a conjugação de várias formas de sociabilidade numa polis democrática." (PAIXÃO, op. cit., p. 4-5).
  21. CARVALHO NETTO, op. cit., p. 18.
  22. MADEIRA, op. cit., p. 21.
  23. MADEIRA, op. cit, p. 23.
  24. "(...) o poder discricionário da Administração não é sinônimo de uma autorização em branco dos administrados dado à mesma, mas que, ao contrário, tratam-se de conceitos determináveis, que sempre são aplicados em uma certa situação concreta dada, e que as especificidades da situação de aplicação exigem, a cada caso, uma única e determinada postura ou ação jurídica e constitucionalmente vinculada da Administração [Günther, discricionariedade administrativa e discurso de aplicação]." (CARVALHO NETTO, Menelick de. A contribuição do Direito Administrativo enfocado da ótica do administrado para uma reflexão acerca dos fundamentos do controle de constitucionalidade das leis no Brasil: um pequeno exercício de Teoria da Constituição. [s.l. : s.n. 20--?]. Obtida via internet. www.cead.unb.br/agu. Brasília, 25 de agosto de 2009, 11h).
  25. "Com denominações comuns – ‘critical legal studies’, ‘critique Du droit’, ‘uso alternativo Del derecho’, ‘direito insurgente’ – esses movimentos convocavam em manifestos a um reinserção do direito na política, impulsionados por um protagonismo que derivava em geral da crítica marxista a uma atitude militante, sob a perspectiva ora de um ‘jusnaturalismo de combate’, ora de um ‘positivismo ético." (SOUZA JÚNIOR, José Geraldo de. Sociologia Jurídica: condições sociais e possibilidades teóricas. Porto Alegre: Sérgio Antônio Fabris Editor, 2002, p. 23-24).
  26. Interessante crítica às Teorias Críticas do Direito é encontrada, dentre outros, em ROCHA, Leonel Severo. Epistemologia Jurídica e Democracia. São Leopoldo: Ed. Unisinos, 1998, p. 53-62.
  27. Cf. CATTONI DE OLIVEIRA, Marcelo Andrade. Devido Processo Legislativo: Uma justificação democrática do controle jurisdicional de constitucionalidade das leis e do processo legislativo. Belo Horizonte: Mandamentos, 2000,p. 74-79.
  28. "Observa-se, pois, que as esferas do público e privado, tratadas, tanto no paradigma do Estado Liberal quanto no do Estado Social como opostas (modificando-se apenas a direção da ‘seta valorativa’), passam , num cenário de construção do paradigma do Estado Democrático de Direito, a ser vistas como complementares, eqüiprimordiais. E é essa mesma relação de eqüiprimordialidade que norteará a redefinição da dicotomia direito público-direito privado. Numa sociedade complexa, algumas distinções conceituais tornam-se fluidas e variáveis. O direito privado passa a ter espaços – antes inteiramente preservados de qualquer disposição de ordem normativa – regulamentados em lei. Isso se torna visível especialmente no direito de família. E, da mesma forma, algumas das disciplinas antes classificadas como de direito público passam a assumir uma feição cada vez mais aberta à possibilidade de argumentação, à inserção de elementos ligados à iniciativa individual. Um exemplo ilustrativo são as normas que autorizam transação penal ou suspensão da punibilidade em face da admissão da prática do ilícito." (PAIXÃO, op. cit., p. 26).
  29. HABERMAS, Jürgen. Direito e Democracia – entre a facticidade e a validade. Tradução de Flávio Bueno Siebeneichler. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1997, v. 2, p. 157.
  30. CRUZ, Álvaro Ricardo de Souza. Direito Administrativo em enfoque: as contribuições da Teoria Discursiva de Jürgen Habermas. Fórum Administrativo – Direito Público – FADM, Belo Horizonte, n. 70, ano 6 dez. 2006. Disponível em: <http://www.editoraforum.com.br/sist/conteudo/lista_conteudo.asp?FIDT_CONTEUDO=38457>. Acesso em: 11 jul. 2007, p. 5.
  31. HABERMAS, op. cit,v. 1, p. 138.
  32. "Tendo sido criado o espaço de discussão dos interlocutores, se diz então da impossibilidade da cisão das autonomias pública e privada: não há como achar por bem que todos os participantes adotarão papéis definidos de forma perene, sem que haja um intercâmbio entre eles. Há um remodelamento da própria esfera pública, que reclama a participação incessante dos cidadãos, que abandona a postura de cliente, bem como também não ignora a necessidade da intervenção estatal na sociedade civil em determinados momentos. É esta a novidade do Paradigma do Estado Democrático de Direito." (CRUZ, op. cit., p. 6).
  33. Muito oportuna a transcrição, embora longa, de excerto de interessante artigo produzido por Chantal Mouffe: "É inegável que a realização completa da lógica da democracia, que é uma lógica da identidade e da equivalência, toma-se impossível pela lógica liberal do pluralismo e da diferença, já que essa última obsta o estabelecimento de um sistema total de identificações.
  34. Essas duas lógicas são, portanto, incompatíveis, mas isso não implica que a democracia pluralista esteja fadada ao fracasso. Muito pelo contrário, podemos considerar que é precisamente a existência dessa permanente tensão entre a lógica da identidade e a lógica da diferença que faz da democracia um regime particularmente adaptado ao caráter indeterminado e incerto da política moderna. Pois é indubitável que é através da articulação do liberalismo com a democracia que a construir cada identidade como positividade e como diferença, subvertendo necessariamente, desse modo, o projeto de totalização ao qual visa a lógica democrática da equivalência. (...)

    Entre a visão de uma completa equivalência e de uma pura diferença, a experiência da democracia moderna reside no reconhecimento dessas lógicas contraditórias, bem como na necessidade de sua articulação. Articulação que deve ser constante e cotidianamente recriada e renegociada, não havendo qualquer ponto de equilíbrio ou de harmonia definitiva a ser conquistado. (...)

    Qualquer crença em uma eventual solução definitiva dos conflitos, assim como no desaparecimento da tensão inerente à divisão do sujeito com ele mesmo, longe de fornecer o horizonte necessário ao projeto democrático, efetivamente o coloca em risco. Pois, paradoxalmente, a realização plena da democracia seria precisamente o momento de sua própria destruição. Ela há de ser concebida, portanto, como um bem que não existe, como bem visado, que não pode ser jamais atingido completamente. E é no reconhecimento da impossibilidade de sua conquista total que a democracia moderna atesta que seu projeto se encontra permanentemente vivo e que o pluralismo a habita". (grifos nossos. MOUFFE, Chantal. Pensando a democracia moderna com, e contra Carl Shmitt. Tradução: Menelick de Carvalho Netto. Revue Française de Science Politique, vol. 42, nº I, fev. 92. Cad. Esc. Legisl., Belo Horizonte, 1(2):87-108, jul/dez. 1994. Obtido via internet: http://www.almg.gov.br/index.asp?grupo=servicos&diretorio=cadernosescol&arquivo=cadernos&caderno=2, p. 5).

  35. Interessante a leitura, neste ponto, de OMMATI, José Emílio Medauar. A igualdade no paradigma do Estado Democrático de Direito. Porto Alegre: Sérgio Antônio Fabris Ed., 2004.
  36. MÜLLER, Friedrich. Quem é o povo? A questão fundamental da democracia. 3. ed. rev. e ampl. São Paulo: Max Limonad, 2003, p. 47.
  37. MÜLLER, op. cit., p. 107.
  38. CARVALHO NETTO, Menelick de. Público e Privado na perspectiva constitucional contemporânea. Obtida via internet. www.cead.unb.br/agu. Brasília, 25 de agosto de 2009, 11h, 2009,p. 18-19.
  39. A expressão Advocacia Pública ganhou, entre nós, foro constitucional com a Emenda n.º 19, de 05/06/1998, que alterou o nome da Seção II do Capítulo IV do Título IV da Constituição da República de "Advocacia-Geral da União" para, mais genericamente, "Advocacia Pública".
  40. Cf. OLIVEIRA, José Otaviano de. Advocacia Geral da União: estrutura e funcionamento. Revista Virtual da AGU, Ano VI, n.º 48, de janeiro de 2006. Obtido via internet: http://www.agu.gov.br/sistemas/site/TemplateTexto.aspx?idConteudo=83091&ordenacao=50&id_site=1115. Brasília, 16 de março de 2010, p. 01-02.
  41. Neste ponto, cumpre registrar que, em que pese a redação legal, não se trata de verdadeiros "poderes". Afinal, todo poder pertence ao povo (parágrafo único do artigo 1º da CR/88). Nesse sentido, melhor seria dizer que a organização do Estado é dividida em "funções" (poder-dever). Vale dizer, para melhor organizar a atuação Estatal, devide-se-a, precipuamente, nas funções Executiva, Legislativa e Judiciária. Contudo, tendo em vista a redação constitucional, bem como a nossa tradição publicística, continuar-se-á utilizando o termo "poderes".
  42. "A Montesquieu se deve o ter precisado a classificação das funções do Estado mostrando, igualmente, o fim de tal classificação (BARTHÉLÉMY e DUEZ, ob. cit. P. 140). A divisão das funções estatais, correspondente à existência de três órgãos, é hoje adotada por quase todas as organizações políticas. Com freqüência se recrimina o publicista do Espírito das Leis, à vista dos defeitos que a divisão de poderes (como observa DUGUIT, Traité, de Droit Constitutionnel, vol. II, p. 664, ele jamais usou a expressão ‘separação de poderes’) convertida em separação irracional tem acarretado." (FAGUNDES, Miguel Seabra. O Contrôle dos Atos Administrativos pelo Poder Judiciário. 4.ª ed (atualizada). Rio de Janeiro: Forense, 1967, p. 16)
  43. É claro que, se se tiver em vista a separação material das funções estatais entre legislativa, judicial e administrativa, na forma proposta por Seabra Fagundes, as funções essenciais à justiça exercem atividade materialmente executiva. Afinal, "no sentido material, ou seja, sob o ponto de vista do conteúdo e da finalidade, os atos administrativos são aqueles através dos quais o Estado determina situações jurídicas individuais ou concorre para a sua formação." (FAGUNDES, op. cit., p. 37). Ou ainda, "os atos administrativos apenas realizam o direito pela individualização das regras gerais e abstratas constitutivas do direito positivo" (FAGUNDES, op. cit., p. 20). Contudo, tal classificação leva em conta a natureza jurídica dos atos realizados, independentemente do órgão de onde promana o ato (critério formal ou subjetivo). Ou seja, isso não implica dizer que as funções essenciais à justiça são órgãos do Executivo, no sentido de serem subordinadas à sua estrutura hierárquica, mas apenas que a sua atuação é de natureza materialmente administrativa, já que realiza o direito no caso concreto, sem o poder de fazer coisa julgada.
  44. Ementa: AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. ADVOCACIA DO ESTADO DE MATO GROSSO. PEDIDO DE LIMINAR. - A RELEVÂNCIA JURÍDICA DA ARGÜIÇÃO E OS EMPECILHOS QUE PODEM SURGIR PARA A BOA MARCHA DA ADMINISTRAÇÃO, COM O DESVINCULAMENTO DOS ÓRGÃOS DE DEFESA DO ESTADO COM RELAÇÃO AO CHEFE DO PODER EXECUTIVO, INDICAM A CONVENIENCIA DE QUE SE SUSPENDA, EX NUNC, A EFICACIA DAS DISPOSIÇÕES DA CONSTITUIÇÃO ESTADUAL IMPUGNADAS, ATÉ O JULGAMENTO FINAL DA AÇÃO. - DEFERIMENTO DA MEDIDA LIMINAR. (ADI 291 MC, Relator(a):  Min. MOREIRA ALVES, TRIBUNAL PLENO, julgado em 06/06/1990, DJ 14-09-1990 PP-09422 EMENT VOL-01594-01 PP-00015). Vide inteiro teor em http://redir.stf.jus.br/paginador/paginador.jsp?docTP=AC&docID=346294, obtido via internet em 17/06/2010.
  45. Inteiro teor ainda não disponível pela internet. Contudo, o vídeo do julgamento pode ser obtido em http://www.youtube.com/stf#p/a/u/2/wp6y7N8dpUg.
  46. Vale destacar o voto divergente do Ministro Dias Tóffoli, no qual o mesmo considerou estar em sintonia com a Constituição da República o dispositivo da Constituição Estadual do Mato Grosso que considerava como princípios institucionais da Procuradoria do Estado a unidade, indivisibilidade e autonomia funcional e administrativa. Fundamentou seu voto justamente no fato de a Advocacia Pública estar, na própria Constituição, em Seção distinta dos Poderes Legislativo, Judiciário e Executivo, não podendo, por isso, estar subordinada a este último. A Ministra Cármen Lúcia, embora por fundamentos diversos, acompanhou a divergência, acrescentando, ainda, concordância com a possibilidade de a Constituição Estadual dispor que a nomeação do Procurador-Geral do Estado se faça dentre os integrantes da carreira, após formação de lista tríplice por seus pares.
  47. SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. 19. ed. rev. e atual.São Paulo: Malheiros, 2001, p. 583.
  48. OSÓRIO, Antônio Carlos Elizalde. Situação do Advogado no mundo jurídico. In: PAIVA, Mário Antônio Lobato de (Coord.). A importância do advogado para o direito, a justiça e a sociedade. Rio de Janeiro: Forense, 2000, p. 70.
  49. Título VI – Da organização dos Poderes: Seção II – da Advocacia Pública; Seção III – da advocacia e da Defensoria Pública.
  50. Ressalvam-se, neste ponto, os advogados privados contratados diretamente pelo Administrador para o patrocínio de uma demanda específica. Igualmente, os advogados ocupantes de cargos em comissão, de livre nomeação e exoneração, não podem se enquadrar precisamente na figura do advogado público nos moldes aqui sustentados.
  51. CASTRO, Aldemário Araújo. Advocacia de Estado versus Advocacia de Governo. Obtido via internet. http://www.conteudojuridico.com.br/?colunas&colunista=2052_Aldemario_Castro&ver=591. Belo Horizonte, 6 de abril de 2010, p. 2.
  52. NEVES, André Luiz Batista. Advocacia Pública: problemas e soluções. In: PAIVA, Mário Antônio Lobato de (Coord.). A importância do advogado para o direito, a justiça e a sociedade. Rio de Janeiro: Forense, 2000, p. 53.
  53. DECRETO Nº 7.153, DE 9 DE ABRIL DE 2010
  54. Dispõe sobre a representação e a defesa extrajudicial dos órgãos e entidades da administração federal junto ao Tribunal de Contas da União, por intermédio da Advocacia-Geral da União.

    PRESIDENTE DA REPÚBLICA, no uso da atribuição que lhe confere o art. 84, inciso VI, alínea "a", e tendo em vista o disposto no art. 131, ambos da Constituição,

    DECRETA:

    Art. 1º A Advocacia-Geral da União exercerá a representação e a defesa extrajudicial dos órgãos e entidades da administração federal perante o Tribunal de Contas da União, nos processos em que houver interesse da União, declarado expressamente pelo Advogado-Geral da União, sem prejuízo do exercício do direito de defesa por parte dos agentes públicos sujeitos à sua jurisdição.

    § 1º A Consultoria-Geral da União da Advocacia-Geral da União será a responsável por exercer a orientação da representação e da defesa extrajudicial da União e dos órgãos e entidades da administração federal direta e indireta perante o Tribunal de Contas da União.

    § 2º A assunção da representação e da defesa extrajudicial, nos termos do caput, dar-se-á de forma gradativa, conforme ato a ser editado pelo Advogado-Geral da União, e não exime os gestores de suas responsabilidades.

    § 3º A defesa dos gestores pela Advocacia-Geral da União, perante o Tribunal de Contas da União, dar-se-á na ocorrência de:

    I - atos praticados no exercício de suas atribuições constitucionais, legais ou regulamentares, no interesse público, especialmente da União e de suas entidades da administração indireta; e

    II - atos praticados em observância dos princípios elencados no caput do art. 37 da Constituição. (...)

  55. Nota de esclarecimento à sociedade: Risco do Uso da AGU contra interesses da União, 20/04/2010, extraído dehttp://www.auditar.org.br/web/?h_pg=blog&bin=view&id=13 em10/06/2010.
  56. O saudoso Miguel Seabra Fagundes, com sua costumeira sabedoria e modernidade, já ensinava: "O contrôle administrativo é um autocontrôle dentro da Administração Pública. Tem por objetivos corrigir os defeitos de funcionamento interno do organismo administrativo, aperfeiçoando-o no interêsse geral, e ensejar reparação a direitos ou interêsses individuais que possam ter sido denegados ou preteridos em conseqüência do êrro ou omissão na aplicação da lei.
  57. Uma das vantagens, ressalta Carlos S. de Barros Júnior, é melhor acobertar o Erário contra reparações futuras, que os erros dos agentes administrativos, reconhecidos em via judicial, poderão acarretar (Recursos Administrativos, Revista de Direito Administrativo, vol. 13, pág. 41)" (FAGUNDES, op. cit., p. 108).

  58. CASTRO, Aldemário Araújo. A Advocacia Pública como Instrumento do Estado Brasileiro no Controle da Juridicidade dos Atos da Administração Pública. Revista da AGU – Advocacia Geral da União. Ano VII, número 15. Brasília, março de 2008, p. 14.
  59. Ibidem, p. 14-15.
  60. GONÇALVES, Plínio. Técnica Processual e teoria do processo. Rio de Janeiro: Aide, 1992, p 196-197.
  61. MADEIRA, op. cit., p. 114-115.
  62. STRECK, Lênio Luiz. Hermenêutica, Constituição e Processo, ou de "como discricionariedade não combina com democracia": o contraponto da resposta correta. In: OLIVEIRA, Marcelo Andrade Cattoni de; MACHADO, Felipe Daniel Amorim (coordenadores). Constituição e processo: a contribuição do processo ao constitucionalismo democrático brasileiro. Belo Horizonte: Del Rey, 2009,p. 18-19.
  63. CUNHA, Maurício Ferreira, As reformas processuais e o processo constitucional. Revista Brasileira de Direito Processual – RBDPro, Belo Horizonte, ano 17, n. 67, p. 79-119, jul./set. 2009, p. 91.
  64. Lembre-se aqui que o mérito administrativo "é a avaliação da conveniência e da oportunidade relativas ao motivo e ao objeto, inspiradoras da prática do ato discricionário. Registre-se que não pode o agente proceder a qualquer avaliação quanto aos demais elementos do ato – competência, a finalidade e a forma, estes vinculados em qualquer hipótese. Mas lhe é lícito valorar os fatores que integram o motivo e que constituem o objeto, com a condição, é claro, de se preordenar o ato ao interesse público" (CARVALHO FILHO, José dos Santos. Manual de Direito Administrativo. 18ª edição. Revista, ampliada e atualizada. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2007, p. 113-114). Em outras palavras, se o agente tiver competência para praticar o ato, fazendo-o sob uma forma juridicamente válida e legítima e atentando-se para o interesse público (finalidade vinculada), o Advogado Público, mesmo que não concorde com a conveniência e oportunidade do mesmo, deverá, em princípio, defendê-lo.
  65. "A defesa de atos de autoridades públicas não pode ser efetivada de forma acrítica, em todos os casos e em quaisquer circunstâncias. Afinal, existem inúmeras situações onde impera a ilegalidade, a imoralidade, a improbidade, a má-fé e o dolo. Esse olhar criterioso está em harmonia com a advocacia de Estado. A tal advocacia de Governo não consegue trabalhar bem a transgressão jurídica (pontual ou "patológica") do gestor. Nesse sentido, a Portaria AGU n. 408, de 2009, editada pelo então Advogado-Geral da União José Antônio Dias Toffoli, bem demonstra o processo de construção de uma advocacia de Estado. O aludido ato, entre outras hipóteses, não viabiliza a defesa judicial de autoridades quando: a) não tenham sido os atos praticados no estrito exercício das atribuições constitucionais, legais ou regulamentares; b) não tenha havido a prévia análise do órgão de consultoria e assessoramento jurídico competente, nas situações em que a legislação assim o exige; c) tenha sido o ato impugnado praticado em dissonância com a orientação, se existente, do órgão de consultoria e assessoramento jurídico competente, que tenha apontado expressamente a inconstitucionalidade ou ilegalidade do ato, salvo se possuir outro fundamento jurídico razoável e legítimo; d) ocorra incompatibilidade com o interesse público no caso concreto; e) identificada conduta com abuso ou desvio de poder, ilegalidade, improbidade ou imoralidade administrativa, especialmente se comprovados e reconhecidos administrativamente por órgão de auditoria ou correição." (CASTRO, Aldemário Araújo. Advocacia de Estado versus Advocacia de Governo. Obtido via internet. http://www.conteudojuridico.com.br/?colunas&colunista=2052_Aldemario_Castro&ver=591. Belo Horizonte, 6 de abril de 2010, 11h,p. 3)
  66. CUNHA, Maurício Ferreira, op. cit., p. 90.
  67. MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de Direito Administrativo, 6 ª Ed. São Paulo: Malheiros, 1995, p. 22, apud NEVES, op. cit., p. 52.
  68. Nesse sentido, conferir NEVES, op. cit., p. 52-53.
  69. ZANETI JÚNIOR, Hermes. Processo Coletivo. Salvador: JusPodivm, 2006, p. 62.
  70. Disse-se "defesa genérica" porque, no âmbito judicial, o Advogado Público defende não só o Executivo, mas, outrossim, o Judiciário e o Legislativo. Afinal, independentemente de qual poder promana o ato jurídico impugnado, a pessoa jurídica que responderá pelo ato será, conforme o caso, a União, o Estado ou o Município. Isso porque, conforme sabido, os poderes Judiciário, Legislativo e Executivo não são pessoas jurídicas, mas sim funções especializadas de Estado.
  71. Brasília, 13/04/2010 - O presidente nacional da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), Ophir Cavalcante, criticou hoje (13), com veemência, a atuação da Advocacia Geral da União (AGU) na defesa de governantes já envolvidos em questões relacionadas às próximas eleições de outubro. Ophir citou o caso específico da multa imposta pelo Tribunal Superior Eleitoral (TSE) ao presidente Luiz Inácio Lula da Silva, por ter feito campanha em prol da candidata Dilma Rousseff. Para Ophir, a AGU confunde o seu papel ao prestar uma advocacia em favor do governante, quando deveria desempenhar uma advocacia de Estado. "Esse desvirtuamento das funções da AGU precisa ser corrigido, pois acaba por diminuir a advocacia pública como um todo", afirma Ophir.
  72. Na opinião do presidente nacional da OAB, se um governante é multado pela Justiça Eleitoral por propaganda antecipada ou por uma conduta não compatível com a legislação, quem tem que defender o governante é o partido, um advogado particular, mas nunca a advocacia do Estado. "Ali não é um ato de gestão pública, mas, sim, um ato de interesse político, de interesse eleitoral", afirmou Ophir Cavalcante. "A advocacia pública peca ao fazer esse tipo de defesa. Reverter esse desvirtuamento é o que deve ser perseguido pela OAB, é o que deve ser buscado por esta Casa", acrescentou.

    As afirmações foram feitas por Ophir ao conduzir a sessão plenária em que se decidiu pela rejeição integral dos quatro projetos de lei que integram o pacote tributário proposto pelo Executivo e que autorizam, por exemplo, fiscais fazendários a confiscarem bens do contribuinte em débito com o Fisco, a realizar a penhora de bens e a quebrar sigilos bancários, independente de autorização judicial. Na avaliação dos integrantes do Plenário da OAB, esses projetos "beiram o totalitarismo e o absolutismo" e também estes não deveriam estar sendo defendidos pela Advocacia Geral da União. "Temos que dar à sociedade a ciência sobre esses projetos de lei. A OAB continuará ativa e altiva na defesa dos postulados constitucionais", complementou Ophir Cavalcante.

  73. Série de vitórias de Lula e de Dilma no TSE acalora discussão sobre papel da AGU na defesa de interesses partidários (Correio Braziliense Online - Brasília/DF - POLÍTICA - 24/03/2010 - 07:00:00)

Diego Abreu

A desenvoltura de Luís Inácio Adams na defesa do presidente Luiz Inácio Lula da Silva e da ministra Dilma Rousseff em acusações de propaganda eleitoral antecipada chama a atenção de especialistas e gera controvérsias no meio jurídico. Gaúcho de 45 anos, o advogado-geral da União tem sido um competente escudeiro do titular do Palácio do Planalto e da pré-candidata petista na corrida às urnas.

Nas batalhas pré-eleitorais no Tribunal Superior Eleitoral (TSE), Dilma é alvo de nove ações movidas por adversários. O presidente, de oito. Adams, responsável pela defesa de ambos, ganhou quatro de forma definitiva. Em duas outras, os dois foram inocentados, mas cabe recurso. Na última quinta-feira, sofreu a única derrota, quando o ministro auxiliar Joelson Dias aplicou multa (1) de R$ 5 mil ao presidente. A punição é decorrente da suspeita de campanha antecipada em favor da ministra durante a inauguração de um complexo poliesportivo em Manguinhos, no Rio de Janeiro, em maio de 2009. O ministro acatou os argumentos do PSDB, autor da ação, de que Lula teria feito do discurso "um palanque para as eleições". A AGU recorreu. Caberá ao plenário do TSE julgar o caso em definitivo.

A dúvida de especialistas, no entanto, é sobre a propriedade de a AGU trabalhar a favor do presidente e da ministra em situações claramente ligadas à vida partidária. O cientista político David Fleischer diz ter dúvidas, mas avaliou que essa é uma prerrogativa constitucional. "Isso também ocorreu com Gilmar Mendes, atual presidente do STF, quando era advogado-geral da União de Fernando Henrique Cardoso. Correto não sei se é, mas é constitucional. Se a oposição achasse incorreto, teria proposto uma ação."

Ex-presidente do STF e do TSE, Carlos Velloso opina que a AGU deve defender o titular do Planalto no que diz respeito à atuação como agente político. Ele pondera que caberia ao Partido dos Trabalhadores representar Lula e Dilma nos processos em que são acusados de campanha antecipada. "Se a acusação é de que está havendo propaganda político-partidária, caberia ao partido, que, em tese, está sendo beneficiado, ou a um advogado particular, defender o presidente da República e a ministra de Estado", afirmou. "Eu penso que a AGU (2) deve, em regra, defender o agente público, o presidente e a ministra, mas não nesses casos de envolvimento em campanha antecipada", completou.(...)

2 - Interesse público

Criada pela Constituição Federal de 1988, a Advocacia-Geral da União (AGU) foi instituída em 1993 para defender e promover o interesse público, por meio da representação judicial e extrajudicial dos órgãos e entidades dos três poderes da República. De acordo com o artigo 131 do texto constitucional, cabe à AGU orientar juridicamente o Poder Executivo, com o objetivo de manter sempre o respeito ao cidadão, às leis e à Constituição.


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MADEIRA, Danilo Cruz. O papel da advocacia pública no Estado Democrático de Direito. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 16, n. 2744, 5 jan. 2011. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/18128. Acesso em: 1 maio 2024.