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A possibilidade de invalidação judicial das decisões finais do Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (CARF), quando favoráveis ao contribuinte

A possibilidade de invalidação judicial das decisões finais do Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (CARF), quando favoráveis ao contribuinte

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Resumo: Através de diretrizes e bases principiológicas,reflete-se sobre a possibilidade de invalidar judicialmente uma decisão definitiva no âmbito do processo administrativo fiscal, que tenha sido favorável ao sujeito passivo da relação tributária. Em respeito ao princípio constitucional da inafastabilidade do controle judicial, e sem descurar do princípio da segurança jurídica, conclui-se que não se pode conferir às decisões das cortes administrativas um poder de imutabilidade absoluto que sequer existe nas decisões judiciais.

Sumário: 1 Introdução 2.1 Parecer PGFN/CRJ nº 1.087/2004 2.2 A relevância do princípio de acesso à justiça 2.3 Natureza das decisões do CARF 2.4 Princípio da Autotutela Administrativa 2.5 A problemática do Polo Passivo da Ação Anulatória Fazendária 3 Conclusão – Referências bibliográficas


1 Introdução

A questão em debate cinge-se à investigação sobre a possibilidade do questionamento em sede judicial por parte da Fazenda Pública face às decisões administrativas finais do Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (CARF), que tenham sido favoráveis ao contribuinte ou responsável tributário.

A doutrina não é completamente uníssona sobre o tema. [01]

A nosso sentir, os elementos axiológicos em confronto na presente questão sãoo princípio da segurança jurídica versus o princípio da garantia jurisdicional (previsto no art. 5°, XXXV da CF/88).

É cediço que do "princípio da segurança jurídica" tem-se a origem da intangibilidade da coisa julgada, do ato jurídico perfeito e do direito adquirido, bem como de outros institutos fundamentais como a prescrição e a decadência previstos no plano infraconstitucional. É considerado por muitos um princípio implícito do sistema jurídico pátrio, constante de forma indireta no preâmbulo da Magna Carta, bem como no art. 5º caput e inciso XXXVI.

Por outro lado, o "princípio da inafastabilidade do controle judicial" é também uma garantia expressa, ofertada pela nossa Carta Magna no sentido de que nenhuma lei excluirá da apreciação judicial lesão ou mera ameaça a direito, sob pena de incorrer em vício de inconstitucionalidade. Trata-se de uma cláusula pétrea de nossa ordem constitucional.

Perpassando pela análise do parecer PGFN/CRJ nº 1087/2004 e da natureza jurídica das decisões do CARF, buscar-se-á resolver o dilema proposto no presente artigo, respeitando-se um destes princípios jurídicos acima elencados, sem incorrermos na violação completa ou parcial do outro.


2.1 O Parecer PGFN/CRJ nº 1087/2004

A primeira informação que deve ser trazida à baila é que a própria União, através da aprovação de seu Ministro da Fazenda, reconheceu esta possibilidade referente ao questionamento judicial no âmbito do processo administrativo federal, através do Parecer nº 1.087 (DOU 23.08.2004), da lavra da Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional.

O parecer em epígrafe tem em sua origem um antecedente histórico que envolve julgado do extinto Conselho de Contribuintes que se mostrou favorável a recurso de Fundo de Previdência Privada (FPP). Sob a égide da Constituição anterior, esta entidade fechada e sem fins lucrativos obteve sentença favorável proferida em mandado de segurança.

A referida ação mandamental foi impetrada com o intuito de afastar a incidência de imposto de renda retido na fonte (IRRF) sobre os rendimentos de suas aplicações financeiras, e se amparava no argumento de que estava protegida pela imunidade prevista na alínea "c" do inciso III do art. 19 da Constituição da República de 1967, com a redação da EC nº 1, de 1969.

Contudo, logo após a prolação da sentença que concedeu a segurança, adveio a promulgação da Constituição Cidadã de 1988, que em seu art. 150, inciso VI, alínea "c", restringiu a imunidade do imposto de renda às instituições de assistência social sem fins lucrativos, quedando-se silente em relação às instituições de previdência privada complementar.

A Secretaria da Receita Federal, por sua vez, autuou o referido fundo, tendo em vista que a referida instituição deixou de efetuar recolhimentos do imposto entre jan/1995 a dez/1997. Esta, por sua vez, defendeu-se no âmbito administrativo, obtendo provimento perante o Conselho de Contribuintes, em votação unânime.

Desta decisão foi interposto recurso hierárquico pela Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional, porquanto não era mais cabível a interposição de recurso para a Câmara Superior. Todavia, este recurso foi obstado posteriormente em virtude da impetração de mandado de segurança pelo contribuinte, que obteve a concessão da segurança, sob o argumento central de que não seria lícito ao Ministro da Fazenda cassar uma decisão, por ter o Conselho de Contribuintes meramente se equivocado na aplicação hermenêutica do Direito.

Ante todo o expendido, a Coordenação de Assuntos Tributários (CAT) da Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional solicitou análise acerca da possibilidade de questionar perante a Justiça as decisões dos conselhos de contribuintes, dando-se origem ao mencionado parecer.

Segue abaixo o despacho do Exmo. Sr. Ministro da Fazenda que consubstancia a conclusão a que chegou o Parecer PGFN/CRJ nº 1.087/2004 acerca da questão em comento:

"Despacho: Aprovo o Parecer PGFN/CRJ Nº 1087 /2004, de 19 de julho de 2004, pelo qual ficou esclarecido que: 1) existe, sim, a possibilidade jurídica de as decisões do Conselho de Contribuintes do Ministério da Fazenda, que lesarem o patrimônio público, serem submetidas ao crivo do Poder Judiciário, pela Administração Pública, quanto à sua legalidade, juridicidade, ou diante de erro de fato. 2) podem ser intentadas: ação de conhecimento, mandado de segurança, ação civil pública ou ação popular. 3) a ação de rito ordinário e o mandado de segurança podem ser propostos pela Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional, por meio de sua Unidade do foro da ação; a ação civil pública pode ser proposta pelo órgão competente; já a ação popular somente pode ser proposta por cidadão, nos termos da Constituição Federal."

Posteriormente à publicação do referido parecer, foi baixada a Portaria PGFN nº 820/2004 com o intuito de regulamentá-lo, estabelecendo de forma mais pormenorizada as hipóteses de submissão de decisões administrativas ao controle judicial. O artigo 2º desta Portaria prevê a possibilidade de anular judicialmente uma decisão administrativa definitiva em razão de sua ilegalidade (afastamento da aplicação de leis ou decretos), antijuridicidade (violação a princípios), em caso de grave lesão ao Fisco ou de relevante matéria jurídica.

No parecer já se afirmava que os atos administrativos podem ser controlados judicialmente tanto no plano da legalidade quanto no plano da juridicidade. Este último, vale reiterar, diz respeito à razoabilidade e à observância aos princípios jurídicos implícitos ou expressos na Carta Federal.

Ressalte-se que as hipóteses acima mencionadas se coadunam perfeitamente com o sistema jurídico pátrio, uma vez que não abrangem a anulação judicial por mera conveniência ou oportunidade da Administração Pública, que fica restrita ao campo discricionário do administrador.

Para o prestigioso mestre Hugo de Brito Machado, o advento do referido parecer revela"a intenção de desmoralizar, certamente para justificar futura proposta de extinção desses órgãos de julgamento administrativo, que tão relevantes serviços prestam ao País na solução de conflitos inevitáveis na relação tributária." [02]

Em que pese o alerta do eminente professor, ousamos dissentir de seu posicionamento.

Conferir às decisões definitivas de órgãos administrativos o poder de imutabilidade inerente à coisa julgada judicial, vulnerando e deixando descoberta a Fazenda Pública, pode ser justamente a causa motivadora de futura e eventual proposta de extinção de órgãos julgadores como o Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (CARF).

Frise-se, ainda, que a seara administrativa será sempre franqueada aos questionamentos dos administrados, por força dos dispositivos constantes do art. 5º, incisos LV [03] e XXXIV, alínea ‘a’ [04] da Constituição da República, que são cláusulas pétreas de nossa ordem constitucional.

Conforme demonstraremos ao longo do trabalho, consideramos que a possibilidade prevista no supracitado parecer, no sentido de ampliar o acesso da Fazenda Pública ao Poder Judiciário homenageia os princípios constitucionais da isonomia e da inafastabilidade da jurisdição, que possuem inegável estatura em nosso sistema jurídico; além de harmonizar as duas etapas processuais tributárias, a administrativa e a judicial.


2.2 A relevância do princípio de acesso à Justiça

A questão abordada no presente trabalho não é tratada de forma expressa por nenhum dispositivo legal. Seria, portanto, leviano imaginarmos que se chegará a uma solução adequada juridicamente sem a utilização hermenêutica dos princípios jurídicos, inegáveis normas regentes e fundantes de nosso ordenamento jurídico.

Dando-nos uma idéia sobre a extensão e a envergadura do princípio do "direito à jurisdição", previsto no art. 5º, XXXV, da CF/88, Cleide Previtalli Cais vaticina que o mesmo "configura a explosão máxima do Estado de Direito, outorgando o exercício do direito de ação, mediante o preenchimento de suas condições, visando a aplicação da norma e a conseqüente solução dos conflitos. [05]"

Trata-se, portanto, de uma sublime garantia constitucional que preceitua de forma enfática que, em havendo lesão ou ameaça de lesão ao direito, nada poderá afastar e ninguém será afastado da apreciação do Judiciário. Nas palavras de Hugo de Brito Machado, "trata-se da mais elementar e mais fundamental de todas as garantias jurídicas, que pode ser considerada, em termos bem simples, como o direito de ter direito. [06]"

Não nos filiamos, portanto, ao entendimento de parte da doutrina e jurisprudência atual de que a garantia em exame tem como objetivo somente a proteção do administrado, ao argumento de que o rol de direitos previsto no art. 5º da Magna Carta protege somente os cidadãos. Como bem dito acima, trata-se da mais elementar e fundamental das garantias jurídicas, e como tal não pode ser interditada à Fazenda Pública sob qualquer aspecto, sob pena de incorremos em uma interpretação preconceituosa que viola diretamente o princípio da isonomia e a própria higidez da relação jurídico-tributária.

Na esteira do entendimento explicitado, vale transcrever o escólio de Edvaldo Brito:

"[...] o acesso ao Judiciário, como direito público subjetivo de ação, também, não poderia ser impedido à administração, apesar de ser tentadora a interpretação no sentido de que o disposto no inciso XXXV do art. 5° da Constituição seria um direito fundamental do administrado e não da administração. Contudo, se prevalecesse essa interpretação, ela estaria em desacordo com o próprio sistema constitucional implantado entre nós que privilegia um princípio, o da isonomia, que se põe acima de todos os outros. [07]"

O autor, de forma acertada, sublinha a necessidade de estender a universalização do acesso à justiça também aos entes públicos, com fulcro no princípio da isonomia, o qual restaria estiolado ao negar aos mesmos o direito de anular as decisões administrativas favoráveis ao contribuinte.

Por mais exótica e aparentemente ilógica que nos possa parecer a possibilidade de um órgão do Ministério da Fazenda (Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional) intentar uma ação judicial em face de uma decisão prolatada por outro órgão do próprio Ministério da Fazenda (CARF), estamos que tal possibilidade deve subsistir em respeito ao interesse público e aos demais princípios constitucionais já elencados.

Como bem ressalta James Marins em seu lúcido comentário acerca do princípio da tutela judicial efetiva em matéria tributária: "Ao Estado também haverá de corresponder princípio apto para que suas finalidades arrecadatórias não se vejam frustradas pelo conjunto protetivo que se confere ao contribuinte. Afinal, como disse Carnelutti, o Estado é um credor particularmente digno de tutela. [08]"


2.3 A natureza jurídica das decisões do CARF (Conselho Administrativo de Recursos Fiscais)

O Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (CARF), instituído pela Lei nº 11.941/09, é um órgão colegiado, localizado no âmbito do Ministério da Fazenda, responsável por dirimir em âmbito recursal os conflitos instaurados administrativamente entre os contribuintes e o fisco oriundos das Delegacias de Julgamento em relação ao crédito tributário.

Uma das modificações introduzidas pela Lei nº 11.941/09 no Decreto 70.235/72, foi a extinção dos Conselhos de Contribuintes, reduzindo os quatro órgãos recursais de julgamento administrativo (1º CC, 2º CC, 3º CC e CSRF) em apenas um órgão – o CARF. A garantia ao "duplo grau de jurisdição" em julgamentos administrativos se encontra prevista no art. 5º, LV, da CF/88, e se consubstancia em mero desdobramento do princípio da ampla defesa.

No plano administrativo existem formalidades que visam, dentre outras coisas, assegurar um mínimo de imparcialidade na apreciação da questão litigiosa, de modo a evitar que a Administração decida tão somente em favor de seus próprios interesses, buscando-se a promoção de um julgamento pautado estritamente nos fatos e ditames legais. Mirando-se nesta imparcialidade, a composição do CARF é paritária, isto é, cada um dos colegiados de julgamento é integrado em igual número, dividido por representantes da Fazenda Nacional (Auditores-Fiscais) e representantes dos contribuintes.

Entretanto, insta destacar que os membros deste Conselho não possuem as garantias institucionais inerentes aos magistrados, e sequer usufruem da mesma posição de imparcialidade, vez que ou são servidores do Fisco ou são indicados por órgãos de classe dos contribuintes. Assim sendo, uma das principais características do processo administrativo é a não configuração de uma clássica relação processual triangular, na medida em que, nesta esfera, a Administração Pública é parte e atua como órgão julgador ao mesmo tempo.

Assim sendo, em razão das inúmeras particularidades presentes na etapa processual administrativa, não nos parece ser possível falar no fenômeno da coisa julgada nos mesmos moldes da coisa julgada em nível judicial. A nosso ver, o nomen iuris "coisa julgada" sequer merece ser utilizado no âmbito administrativo. Na esteira deste entendimento, grande parte da doutrina defende que o que se verifica nas decisões administrativas é uma preclusão de seus efeitos internos (preclusão administrativa) e não a caracterização da coisa julgada propriamente dita.

Sobre o assunto, oportuna a transcrição de elucidativo ensinamento do festejado autor Hely Lopes Meirelles:

"[...] o que ocorre nas decisões administrativas finais é, apenas, preclusão administrativa, ou a irretratabilidade do ato perante a própria Administração. É a sua imodificabilidade na via administrativa, para a estabilidade das relações entre as partes. Por isso, não atinge nem afeta situações ou direito de terceiros, mas permanece imodificável entre a Administração e o administrado destinatário da decisão interna do Poder Público. A Lei n° 9.784/99, como já acentuado, determina que se respeitem os efeitos da preclusão administrativa, quando trata da revisão de ofício do ato ilegal (art.63, § 2º). Essa imodificabilidade não é efeito da coisa julgada administrativa, mas é conseqüência da preclusão das vias de impugnação interna (recurso administrativo) dos atos decisórios da própria Administração. Exauridos os meios de impugnação administrativa torna-se irretratável, administrativamente, a última decisão, mas nem por isso deixa de ser atacável por via judicial. [09]"

O que se está a afirmar é que esta característica da definitividade no âmbito administrativo possui muito mais aspectos de uma preclusão administrativa, vez que fica restrita ao próprio âmbito administrativo. O próprio art. 156 do CTN, que elenca as hipóteses de extinção do crédito, através do seu inciso IX, apresenta a ressalva sobre a possibilidade de ajuizamento de ação anulatória em face de decisões definitivas no âmbito administrativo [10], e não faz qualquer menção de ser contribuinte o único a poder utilizá-la.

Ressalve-se, no entanto, que em virtude da eficácia preclusiva de que se revestem tais decisões, não podem ser elas alteradas ou reapreciadas judicialmente por mera conveniência e oportunidade da Administração Pública. Tal hipótese, de forma escorreita, não se encontra prevista no Parecer PGFN/CRJ nº 1.087 de 2004.

Desta feita, importa enfatizar que as decisões judiciais e administrativas possuem uma natureza distinta, tendo em vista que as últimas, via de regra, sujeitam-se à possibilidade de reapreciação por outra esfera de Poder (Judiciário), na medida em que prolatadas por órgão do Estado cuja principal função consiste em executar os comandos da lei e não em aplicá-la diante do caso concreto através uma típica atividade jurisdicional.

Corroborando a tese acima esposada, acerca da natureza administrativa das decisões do CARF, é importante destacar que no âmbito do processo administrativo fiscal federal, os órgãos julgadores são proibidos por lei de afastar a aplicação de uma lei ao argumento de pretensa inconstitucionalidade [11]. É totalmente justificável o posicionamento do legislador, porquanto é sabido que somente os membros do Poder Judiciário apresentam as prerrogativas e garantias institucionais (imparcialidade, independência e autonomia) necessárias para praticar um ato de tal envergadura e com tantas implicações.

Imagine-se, no entanto, uma hipótese teratológica de uma decisão administrativa definitiva de mérito que tenha indevidamente (e ilegalmente, como vimos) rechaçado a aplicação de um dispositivo legal que beneficiaria a Fazenda Pública sob o fundamento de inconstitucionalidade. Pergunta-se: Esta decisão administrativa que violou literal disposição de lei não poderia nunca ser desconstituída? Ela mereceria uma qualidade de imutabilidade que sequer existe nas decisões do próprio Poder Judiciário? Estes questionamentos se nos apresentam de extrema utilidade no descortinar de nossa visão acerca da incalculável temeridade de se impedir, sob qualquer aspecto, o amplo e universal acesso à Justiça.

Por outro lado, não podemos olvidar que a definitividade das decisões oriundas do processo administrativo tributário repercute mesmo que indiretamente no planejamento tributário das empresas. Esta irreformabilidade administrativa pode se consubstanciar em instrumento de técnica elisiva, o qual pode ser manejado para diminuir a carga tributária e, por conseguinte, maximizar os lucros. É cediço que em sede administrativa se possui um custo e uma espera ainda muito inferiores aos de um processo judicial.

Contudo, não restam dúvidas de que as decisões de órgãos administrativos como o Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (CARF) revestem-se da natureza de ato administrativo, porquanto emanam da manifestação de vontade da Administração Pública visando a constituir, resguardar, conservar ou extinguir direitos, e impor obrigações a si própria ou a terceiros.

Isto significa dizer que, no âmbito jurisdicional é que se pode falar numa verdadeira definitividade das decisões prolatadas, enquanto no administrativo essa irreformabilidade resta inarredavelmente mitigada pela garantia do acesso à justiça, prevista no art. 5º, inciso XXXV, da Carta Constitucional. Somente a tutela jurisdicional, portanto, possui o caráter da irreformabilidade propriamente dita.

E se só o Poder Judiciário detém o monopólio da jurisdição judicial, ou seja, de decidir com força de coisa julgada, não é possível conceber-se a interdição da própria Administração fazê-lo em âmbito judicial, sob pena de criação de Cortes Administrativas dotadas de verdadeiros super-poderes. Se as próprias decisões judiciais podem ser desconstituídas por meio da ação rescisória, temos que não se pode conceder aos Tribunais Administrativos poderes maiores que os do próprio Poder Judiciário.

Não merece acolhida, ainda, o argumento de que o dispositivo legal previsto no art. 45 do Decreto 70.235/1972 impede qualquer pretensão anulatória por parte da Fazenda Pública. O referido dispositivo preceitua o seguinte: "No caso de decisão definitiva favorável ao sujeito passivo, cumpre à autoridade preparadora exonerá-lo, de ofício, dos gravames decorrentes do litígio."

Tal artigo é muito utilizado pela corrente defensora da imutabilidade absoluta das decisões administrativas favoráveis ao contribuinte, porém a esta não socorre. A autoridade poderá tranquilamente exonerar o sujeito passivo de eventuais gravames advindos da lide administrativa (como, por exemplo, levantar eventual depósito recursal) sem que isto implique necessariamente na impossibilidade do ajuizamento de eventual ação anulatória fazendária. A ordenança prevista no dispositivo não é, portanto, inconciliável com a possibilidade de ajuizamento de uma ação por parte da Fazenda Pública.

Assim sendo, por força da indiscutível natureza administrativa das decisões do CARF, nos deparamos diante de mais um argumento significativo que nos direciona no sentido de não haver qualquer violação ao princípio da segurança jurídica no questionamento judicial aventado, porquanto preservada incólume a coisa julgada (art. 5º, XXXVI da CF/88).


2.4 Princípio da Autotutela administrativa

É mister destacar que, desta forma, não se está olvidando acerca da existência da autotulela administrativa (ou autotutela vinculada), previsto expressamente no art. 53 da Le nº 9784/99 [12]. Por este princípio é sabido, por exemplo, que a própria Administração Tributária pode efetuar a revisão de ofício de um lançamento tributário, em todas as hipóteses previstas no art. 149 do CTN [13].

A jurisprudência pátria, especificamente sobre a possibilidade de interposição de recurso hierárquico ao Ministro da Fazenda, mormente através do posicionamento firmado pelo Superior Tribunal de Justiça, reconheceu a definitividade das decisões prolatadas por órgãos julgadores administrativos, ressalvando, porém, as eivadas de vício ou ilegalidades patentes [14], e desde que respeitados o contraditório e a ampla defesa. No entanto, cabe ressaltar que não é objetivo deste artigo a análise acerca da possibilidade da interposição de recurso hierárquico para o Ministro da Fazenda, mas tão somente do controle judicial efetivo das decisões do Conselho Administrativo de Recursos Fiscais.

Não merece guarida, ainda, o argumento de alguns no sentido de que admitir o conhecimento de ação desta natureza significaria reconhecer que a constituição do crédito tributário fosse procedida por membros do Judiciário, e que isto violaria a lógica da separação de poderes. O que estiolaria a lógica da separação de poderes, data venia, é justamente admitir que um órgão do poder executivo como o CARF possua poderes jurisdicionais e que qualquer ato administrativo possa se ver livre de um controle judicial sobre sua legalidade (normas-regra) e até mesmo sobre sua juridicidade (normas-princípio).

Assim sendo, reiteramos que merece ser rechaçada a idéia que preconiza que o lançamento tributário, a despeito de ser ato administrativo vinculado, obrigatório, exclusivo, indelegável e que visa à constituição do crédito tributário, seria efetuado pela autoridade judicial. Ocorreria, pelo contrário, tão somente uma espécie de repristinação do lançamento outrora invalidado administrativamente. O que se está a afirmar, veja-se, é que a apreciação judicial (controle judicial) deve sempre ser ressalvada, porquanto é cediço que a invalidação dos atos administrativos cabe tanto à Administração Pública quanto ao Poder Judiciário. Não é outro o sentido da súmula 473 do STF [15].

Ademais, este entendimento encontra-se alinhado com o princípio harmonização processual, de fundamental importância ao direito processual tributário. Este princípio tem como escopo evitar e, eventualmente, corrigir os desacertos tão freqüentes no confronto entre as duas etapas processuais tributárias, a administrativa e a judicial.

Diante do exposto, reitera-se o convencimento de que nenhum ato do poder público poderá ser subtraído do exame judicial, seja de que categoria for e provenha de qualquer agente, órgão ou poder.


2.5 A problemática do polo passivo da ação anulatória fazendária

A partir da premissa acima, no sentido da possibilidade de apreciação judicial das decisões administrativas finais favoráveis ao contribuinte, uma tormentosa questão que se coloca é quem assumiria a condição de réu na ação em que a Fazenda Pública pede a anulação de uma decisão administrativa definitiva.

É indiscutível o fato de que, em âmbito federal, o Conselho de Contribuintes, atual Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (Lei nº 11.941/09), não possui personalidade jurídica e, portanto, não poderá ser réu de uma eventual ação do Fisco.

Tanto a administração executiva quanto a administração judicante são meros órgãos administrativos criados por descentralização de atividades em busca de uma maior eficiência. Não se está, portanto, olvidando o fato de que o Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (CARF) e a própria Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional são órgãos da União, ambos subordinados administrativamente ao Ministério da Fazenda.

Na esteira deste raciocínio, não há como vislumbrar ainda que as pessoas físicas dos conselheiros e do próprio Ministro da Fazenda possam ser responsabilizadas e, por conseguinte, demandadas neste tipo de ação. Tampouco a União, porquanto restaria configurada uma lide em que autor e réu se confundiriam.

O contribuinte favorecido, por sua vez, poderá alegar ilegitimidade passiva sob o fundamento de que não está resistindo à pretensão fazendária, de que não há, in casu, aclássica noção de "pretensão resistida".

Entendemos, contudo, que esta ação judicial fazendária deve ser enxergada nos mesmos moldes de uma ação rescisória. A referida ação não se amolda, como sabido, na clássica noção de "pretensão resistida" de que tanto se ocupam os processualistas. Como bem ensina Humberto Theodoro Júnior "o réu da ação rescisória será a parte contrária do processo em que se proferiu a sentença impugnada, ou seus sucessores. [16]"

A partir deste ensinamento de Humberto Theodoro, podemos asseverar que a Fazenda Pública, mutatis mutandis, deve ajuizar a referida ação anulatória em face dos próprios contribuintes que se beneficiaram da decisão prolatada pelo órgão administrativo. No caso em debate, fica claro, portanto, que os contribuintes (ou responsáveis tributários) favorecidos da decisão administrativa deverão ocupar o polo passivo desta eventual demanda fazendária.

Sobre as condições da ação, estamos que não há falar em falta de interesse de agir, uma vez que deverá haver a demonstração de uma ilegalidade ou prejuízo patente ao Fisco, e tampouco se pode agasalhar a alegação de ilegitimidade passiva, porquanto esta ação anulatória estatal deve ser concebida nos moldes da ação rescisória, que também não possui em seu cerne uma pretensão resistida.

Como bem ressalta Arruda Alvim:

"Entre nós não aceitável ou defensável a idéia de que, em certas circunstâncias seria suficiente o processo administrativo para, em função do seu resultado, aceitar-se como definitiva a decisão administrativa, de que não houve lesão. Se é assim, mesmo pendente um processo perante a Administração Pública, será possível rediscutir-se a mesma controvérsia perante o Judiciário, desde que haja a demonstração de possível lesão a direito." [17]

Esta ação anulatória, como vimos, equivaleria à ação rescisória, no sentido de que a Fazenda Pública tencionaria a simples desconstituição da decisão administrativa. Em se considerando procedente o pedido da aludida ação, ocorreria uma verdadeira "repristinação" da validade do lançamento que fora anulado em sede administrativa. Desta forma, não se está afrontando a redação do art. 142 do CTN [18], restando esvaziado o argumento de que o lançamento (ato privativo da Administração) seria praticado por membros do Poder Judiciário.

No concernente à competência do juízo, estamos que esta ação anulatória deve ser ajuizada nas varas de execução fiscal, onde os houver, assim como ocorre em relação às cautelares fiscais.


3 Conclusão

Ante o expendido, e respeitando-se os limites previstos no Parecer PGFN/CRJ nº 1.087/2004, inarredável se mostra a possibilidade do questionamento judicial por parte da Fazenda Pública em face de decisão administrativa favorável ao contribuinte, em homenagem ao princípio da inafastabilidade do controle jurisdicional, insculpido no art. 5º, XXXV, da Constituição da República de 1988.

Verificou-se que o princípio do amplo acesso à jurisdição é, de fato, o mais elementar e fundamental das garantias constitucionais, porquanto de nada valeriam os demais direitos e garantias, se não se tivesse a segurança de que o Poder Judiciário estaria sempre acessível no seu mister de solucionar eventuais conflitos decorrentes de uma lesão ou ameaça a direito.

Como restou observado, não há falar em violação ao princípio da segurança jurídica no caso, sendo que as decisões do Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (CARF) possuem natureza administrativa, e não jurisdicional. Desta forma, rechaçada se encontra a tese de afronta à coisa julgada, quando se busca a apreciação judicial de uma decisão favorável ao contribuinte - mesmo que definitiva e irreformável no plano administrativo.

Demonstrou-se, ainda, que o efetivo e amplo controle judicial das decisões do CARF significaria uma mera "repristinação" do lançamento outrora invalidado, não implicando, portanto, a idéia de invasão da competência privativa da autoridade tributária, através de um suposto lançamento de créditos realizado por juízes e tribunais.

Com relação à indagação acerca de quem seria o réu da ação anulatória fazendária, concluiu-se que o próprio contribuinte (ou responsável tributário) favorecido pela decisum administrativo definitivo seria a parte legítima para ocupar o polo passivo, nos moldes do que é estabelecido pela legislação processual para a ação rescisória. A clássica noção de "pretensão resistida" restaria superada na aludida ação estatal.

Por fim, oportuno trazer à colação os irretocáveis ensinamentos de James Marins no sentido de que:

"as garantias constitucionais tributárias não se apresentam como meras garantias dos contribuintes, mas se afiguram como garantias da própria relação jurídico-tributária e, desse modo, ao garantir sua higidez constitucional, garantem o próprio Estado e logo garantem a própria sociedade. A visão unilateral relativa às garantias dos contribuintes é primária e preconceituosa. [19]"


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ARRUDA, Alvim. Tratado de Direito Processual Civil, vol.1, São Paulo: RT, 1990

BRITO, Edvaldo. Problemas de processo judicial tributário. ROCHA, Valdir de Oliveira (Coord.). São Paulo: Dialética, 1999. v. 3.

CAIS, Cleide Previtalli. O processo tributário. 5 edição. São Paulo: RT, 2007;

FIGUEIREDO, Lúcia Valle. Curso de Direito Administrativo. São Paulo: EditoraMalheiros, 1994.

JÚNIOR, Humberto Theodoro. Curso de Direito Processual Civil. Vol. 1. 51ª Edição. Rio de Janeiro: Forense, 2010.

MACHADO, Hugo de Brito. Curso de Direito Tributário. 31ª Ed. Revista, atualizada e ampliada. São Paulo: Malheiros Editores, 2010;

MARINS, James. Direito Processual Tributário Brasileiro. 5ª edição. São Paulo: Dialética, 2010;

MEIRELLES, Hely Lopes. Direito Administrativo brasileiro. 17. edição. São Paulo:Editora Malheiros, 1992.


Notas

  1. Favoráveis ao questionamento judicialsãoAurélio Pitanga Seixas Filho, Edvaldo Brito, Rubens Gomes de Sousa, Carlos da Rocha Guimarães, Gilberto de Ulhôa Canto e Lídia Maria Lopes Rodrigues Ribas. Desfavoráveis situam-se Paulo de Barros Carvalho, Eduardo de Moraes Sabbag, Hugo de Brito Machado, Hugo de Brito Machado Segundo, Lúcia Valle Figueiredo, Marciano Seabra de Godói, Ricardo Lobo Torres, Sacha Calmon Navarro Coelho e Ives Gandra Martins.
  2. MACHADO, Hugo de Brito. Curso de Direito Tributário. 31ª Ed. Revista, atualizada e ampliada. São Paulo: Malheiros Editores, 2010, p. 495
  3. "LV: Aos litigantes, em processo judicial ou administartivo,e aos acusados em geral são assegurados o contraditório e a ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes."
  4. "XXXIV: São a todos assegurados, independente do pagamento de taxas:
  5. a)o direito de petição aos Poderes Públicos em defesa de direitos ou contra ilegalidade ou abuso de poder"

  6. CAIS, Cleide Previtalli. O processo tributário. 5 ed. São Paulo: RT, 2007, p.81
  7. MACHADO, Hugo de Brito. Curso de Direito Tributário. 31ª Ed. Revista, atualizada e ampliada. São Paulo: Malheiros Editores, 2010, p. 488
  8. BRITO, Edvaldo. Problemas do processo judicial tributário. ROCHA, Valdir de Oliveira (Coord.). São Paulo: Dialética, 1999, v. 3, p.114-115.
  9. MARINS, James. Direito Processual Tributário Brasileiro. 5ª edição. São Paulo: Dialética, 2010, p. 80.
  10. MEIRELLES, Hely Lopes, Direito Administrativo Brasileiro. 17ª Ed. São Paulo. Editora Malheiros. 1992, p.76
  11. Art 156, IX do CTN – " Extinguem o crédito tributário: (...) IX – a decisão administrativa irreformável, assim entendida a definitiva na órbita administrativa, que não possa mais ser objeto de ação anulatória.(grifos nossos)"
  12. Decreto nº 70.235/72, art. 26-A: " No âmbito do processo administrativo fiscal, fica vedado aos órgãos de julgamento afastar a aplicação ou deixar de observar tratado, acordo internacional, lei ou decreto, sob o fundamento de inconstitucionalidade." (Redação dada pela Lei nº 11.941, de 2009)
  13. "Lei 9784//99 art. 53. A Administração poderá seus próprios atos, quando eivados de vício de legalidade, e pode revogá-los por motivo de conveniência e oportunidade, respeitados os direitos adquiridos."
  14. Art. 149. O lançamento é efetuado e revisto de ofício pela autoridade administrativa nos seguintes casos: I - quando a lei assim o determine; II - quando a declaração não seja prestada, por quem de direito, no prazo e na forma da legislação tributária; III - quando a pessoa legalmente obrigada, embora tenha prestado declaração nos termos do inciso anterior, deixe de atender, no prazo e na forma da legislação tributária, a pedido de esclarecimento formulado pela autoridade administrativa, recuse-se a prestá-lo ou não o preste satisfatoriamente, a juízo daquela autoridade; IV - quando se comprove falsidade, erro ou omissão quanto a qualquer elemento definido na legislação tributária como sendo de declaração obrigatória; V - quando se comprove omissão ou inexatidão, por parte da pessoa legalmente obrigada, no exercício da atividade a que se refere o artigo seguinte; VI - quando se comprove ação ou omissão do sujeito passivo, ou de terceiro legalmente obrigado, que dê lugar à aplicação de penalidade pecuniária; VII - quando se comprove que o sujeito passivo, ou terceiro em benefício daquele, agiu com dolo, fraude ou simulação; VIII - quando deva ser apreciado fato não conhecido ou não provado por ocasião do lançamento anterior; IX - quando se comprove que, no lançamento anterior, ocorreu fraude ou falta funcional da autoridade que o efetuou, ou omissão, pela mesma autoridade, de ato ou formalidade especial.
  15. RMS 16.902, 2ª Turma, DJ 04.10.2004; MS 8.810, 1ª Seção, DJ 06.10.2003; e RESP 411.428/SC, 1ª Turma, DJ 21.10.2002.
  16. "Súmula 473 STF: A Administração Poe anular seus próprios atos, quando eivados de vícios que os tornem ilegais, porque deles não se originam direitos; ou revogá-los por motivo de conveniência ou oportunidade, respeitados os direitos adquiridos, e ressalvada em todos os casos a apreciação jurisdicional.(grifos nossos)"
  17. JÚNIOR, Humberto Theodoro. Curso de Direito Processual Civil. Vol. 1. 51ª Edição. Rio de Janeiro: Forense, 2010, p. 723.
  18. ARRUDA, Alvim. Tratado de Direito Processual Civil, vol.1, São Paulo: RT, 1990, p.180
  19. "Art. 142: Compete privativamente à autoridade administrativa constituir o crédito tributário pelo lançamento, assim entendido como o procedimento administrativo tendente a verificar a ocorrência do fato gerador da obrigação correspondente, determinar a matéria tributável, calcular o montante do tributo devido, identificar o sujeito passivo e, sendo o caso, propor a aplicação da penalidade."
  20. MARINS, James. Direito Processual Tributário Brasileiro. 5ª edição. São Paulo: Dialética, 2010, p. 225;

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MIGUEL, Luciano Costa. A possibilidade de invalidação judicial das decisões finais do Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (CARF), quando favoráveis ao contribuinte. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 16, n. 2753, 14 jan. 2011. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/18268. Acesso em: 6 maio 2024.