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Medidas provisórias: uma crítica às nossas instituições

Medidas provisórias: uma crítica às nossas instituições

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1. AS MEDIDAS PROVISÓRIAS

Com a promulgação da Constituição Federal, em 05.10.88, criou-se uma nova espécie normativa em nosso sistema (art. 59, V, da CF/88), em substituição ao malfadado decreto-lei dos tempos autoritários da Era Militar. Estabeleceu-se, então, a possibilidade de o Presidente da República adotar, em caso de relevância e urgência, medidas provisórias com força de lei (art. 62 da Constituição). Ficou previsto, também, que estas medidas devem ser submetidas de imediato à apreciação do Congresso Nacional e que a sua não conversão em lei, no prazo de trinta dias, acarreta a perda da eficácia, desde a edição (art. 62, par. único da Constituição).

Pois bem, estas disposições que parecem tão clarividentes ao mais leigo dos leitores, não estão sendo interpretadas desta forma pelos Poderes Executivo e Legislativo e, em certas ocasiões, pelo Poder Judiciário, o que tem provocado severos prejuízos aos cidadãos e às instituições democráticas do país.

Os governos dos Srs. José Sarney, Fernando Collor de Mello, Itamar Franco e, principalmente, Fernando Cardoso têm transformado este nobre tipo normativo num assombroso meio de oprimir o cidadão e submetê-lo a privações inconstitucionais, como por exemplo o confisco das contas-correntes e das poupanças, que fazia parte do "brilhante plano econômico" elaborado pelos então Ministros Zélia Cardoso e Antonio Kandir - hoje Ministro do Sr. FHC.


2. AS PRÁTICAS GOVERNAMENTAIS

Fechando os olhos à realidade e fazendo tábula rasa do Texto Constitucional, os governantes têm praticado verdadeiros despautérios no uso da medida provisória. O mecanismo legiferante tem sido utilizado para situações sem a mínima urgência e, muito menos, relevância, como para autorizar comendas e conceder isenções. Em outros casos, tem servido aos propósitos nada elogiáveis de proibir a concessão de liminares em processos judiciais, confiscar o dinheiro do povo e suprimir direitos consolidados por legislações amplamente debatidas na sociedade e no Congresso Nacional. E, na quase unanimidade dos casos, o que é para ser provisório se torna definitivo, vigorando infinitamente no tempo, através de sucessivas e indefinidas reedições, sem que haja a necessária submissão ao crivo do Poder Legislativo (art. 62 da CF/88).

A política legislativa adotada pelo Governo Federal, sem dúvida, não está respaldada pelos ditames e princípios de nosso e dos demais sistemas constitucionais modernos. Tem respaldo apenas -como bem observou o Prof. Celso Antonio Bandeira de Mello- em "interpretações ´kafkanianas´ que sempre aparecem quando se trata de fornecer amparo para abusos do Executivo" ("Curso de Direito Administrativo", 9ª edição, Malheiros, p. 79).

Numa análise superficial do tema, constatar-se-á, sem nenhuma dificuldade, que a conduta tem violado frontalmente os arts. 1º, parágrafo único, 2º e 5º, incisos II, XXXVI e LIV; e, sobretudo, a regra contida no art. 62, e seu parágrafo único, da Carta da República.


3. A QUEBRA DO PRINCÍPIO DA INDEPENDÊNCIA DOS PODERES

O uso excessivo de medidas provisórias -em atos de reedição que se sucedem indefinidamente no tempo- tem conseqüências institucionais preocupantes, como a quebra do sistema de tripartição de poderes, consagrado no art. 2º da Carta Magna de 1988.

No Estado Democrático de Direito o poder de legislar pertence privativamente ao Parlamento, inclusive no caso dos procedimentos provisórios, que devem obrigatoriamente submeter-se à análise da Casa Popular. E isso decorre diretamente da titularidade do poder conferida pelo povo e ao povo, dos quais os Parlamentares são meros representantes legitimados pelo voto. Em nosso país, vigora este sistema, não por outro motivo consagrado já no art. 1º e seu parágrafo único da Constituição Cidadã.

A apropriação institucional desta função pelo Poder Executivo, que se tem verificado em nosso país, com indevida ocupação do espaço constitucionalmente reservado ao Congresso Nacional, vem provocando graves e preocupantes distorções de caráter político-jurídico. Não temos medo de criticas ao afirmar que vivemos, hoje, numa "ditadura mascarada", na qual o Governo Federal, não satisfeito com as funções executivas, se apoderou das legislativas, e -mais grave- procura minimizar a atuação do Poder Judiciário. A divisão dos poderes políticos em nosso país não existe ou, quando muito, é bipartida, pois o Poder Legislativo está omisso diante da apropriação de sua competência pelo Poder Executivo.

Poderes independentes e harmônicos, como preceitua o art. 2º da Carta Política, é coisa que não temos há muito tempo em nosso país. E esta preocupação não é somente nossa, mas da maior parte da comunidade jurídica nacional, que está temerosa com a forma de agir do Poder Executivo. É opinião quase unânime entre os juristas pátrios - tirante é claro alguns que trabalham para o governo- que a reedição de medidas provisórias é um "disparate", uma afronta ao Poder Legislativo e ao princípio da separação de poderes, bem como configura-se num manifesto extravasamento da competência constitucional atribuída ao Presidente da República.

Aliás, não por outro motivo, o Ministro Celso Mello, Presidente da Suprema Corte, em recente decisão, concluiu que incumbe ao Poder Judiciário "iniciar o processo de reação institucional contra o uso excessivo de medidas provisória pelo Presidente da República". (ADIn nº 1.687-0 - julgado em 6.11.97).


4. O DEVER DO CIDADÃO

O mínimo que se pode esperar é que esta posição corajosa seja consolidada nos julgamentos futuros do Pretório Excelso, como única forma de ilegitimar a conduta do Poder Executivo e pressionar o Poder Legislativo, no sentido de discutir e votar, o mais rápido possível, a legislação que regulamenta a edição de medidas provisórias. Não que se esteja levantando dúvida a respeito da plena aplicabilidade do dispositivo constitucional (art. 62), mas em decorrência da situação de insegurança odiosa criada pela prática dos governos que dela fizeram uso.

Afora isso, é importante frisar a importância da conscientização do povo a respeito deste problema. Sem dúvida, este processo de reação cabe ao Poder Judiciário - dentro do sistema de "checks and balances". Todavia, é o cidadão quem tem o poder de iniciativa desta reação. O Judiciário, como se sabe, não pode atuar "ex officio"; precisa ser provocado para sentenciar. O homem comum possui esta disposição sobre a demanda, sobre o processo, e até mesmo sobre o voto. É o cidadão quem tem a arma, os meios legais, para coibir os abusos dos maus administradores. Ele tem legitimidade para provocar a manifestação do Poder Judiciário, para pressionar os Parlamentares e para exigir do Presidente da República o cumprimento da Constituição.


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Informações sobre o texto

Artigo publicado no caderno Direito & Justiça, encarte do Jornal do Comércio, Porto Alegre, 11/06/98

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

DIAS, Luiz Claudio Portinho. Medidas provisórias: uma crítica às nossas instituições. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 3, n. 27, 23 dez. 1998. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/183. Acesso em: 29 mar. 2024.