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Pós-positivismo: ensaio propedêutico para uma epistemologia jurídica aposta aos princípios

Pós-positivismo: ensaio propedêutico para uma epistemologia jurídica aposta aos princípios

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Resumo: O presente trabalho tem por escopo a discussão filosófica do pós-positivismo, visando demonstrar que sua incidência percorre trajetórias situadas para além do campo da mera experiência jurídica, portanto, trazendo às claras o entendimento de que a prevalência do elemento humano ou ontológico no centro da discussão jurídica certifica uma abordagem necessariamente ampla do ser diante das complexidades da sociedade pós-moderna. Neste intuito, veremos que as ligações entre princípio, homem e Direito são naturais, íntimas e imutáveis, à medida que todos estão compostos num círculo dialógico essencial, que faz valer a tese humanista primordial acerca da presença do fator dignidade no âmbito da epistemologia jurídica.

Palavras-chave: pós-positivismo – Direito – ontologia – fenomenologia – princípios.


PROLEGÔMENOS

Um estudo mais proveitoso faz-se necessário sobre o chamado pós-positivismo. De plano, avaliamos que o termo designa um movimento filosófico cujo objetivo é romper com os dogmas lógico-formais da experiência jurídica concreta.

Abre-se, no complicado caminho da legislação posta, novo horizonte tendente à aproximação da realidade de efeitos jurídicos com os domínios pressupostos dos princípios humanos, porquanto, fundamentais e imanentes. A reaproximação entre Direito e Moral, sobretudo do fator humano da dignidade, certifica que o ser enquanto ser prevalece no sentido de busca pelo dever-ser, à medida que se torna a justificativa de busca pelo ideal do espírito humano, qual seja a afirmação de que se encontra no âmago de sua constatação, a exultação de valores pressupostos ligados intrinsecamente à sua existência mesma.

A pessoa não deve ser mais um dado de mera personalidade jurídica, como representa, a partir de agora, o epíteto nuclear do mundo jurídico, extraindo-lhe, enquanto base primeira, os significados perpétuos de sua dignidade. Para tanto, logra o pós-positivismo, estudar os elementos transcendentais da razão humana relativos aos princípios ideais para sua convivência em sociedade, de tal sorte que o quesito social, que se lhe foi impresso pelo curso da história, consiste no resultado final da composição do Direito voltado à apreciação da condição humana, especialmente como ser individual dotado de prerrogativas e, posteriormente, comunitário dotando-o de deveres cívicos de co-responsabilidade e co-protagonismo no cenário complexo da pós-modernidade.


I-BREVE PANORÂMICA HISTÓRICA

Com efeito, a pós-modernidade está a nos demonstrar a constante necessidade de repensar os desígnios da vida prática e os valores do espírito humano. As interfaces do convívio intersubjetivo fazem com as ciências voltem-se à reunião e ao debate consciente pela re-estruturação do pensamento científico, haja vista que o modelo outrora propugnado no século XX resta infrutífero frente à dinâmica contemporânea dos fatos sociais. Se um dia o pensamento fora questionado, à luz da filosofia cartesiana, como o paradigma verdadeiro do conhecimento, deveras secularizado, mecanicista e individualizante, certamente que a emergência do século XXI estampa a insatisfação e a vontade de quebra com tais algemas, ainda que, em verdade, a pós-modernidade começa a ganhar relevo justamente a partir da década de 40 do século XX, quando os debates sobre Direitos Humanos representaram o pavor frente às atrocidades cometidas em tempos conturbados de guerras e instabilidades políticas. [01] Convém ressaltar que o processo de realce dos Direitos Humanos logrou empreender-se pelas veredas de um século que ainda não demonstrava profundas preocupações para com tais questões, a exemplo dos eventos sucedâneos à década mencionada.

Daí, no limiar do novo século XXI, outorgou-se à reflexão um dever esquecido de validar a atitude moral, a prevalência do caráter cívico da cidadania, a autoridade dos preceitos humanos como dignidade, integridade, segurança, respeito, etc., a concretização do debate político tencionado à consecução do bem-comum no Estado, a revitalização da vida equilibrada, a rediscussão do papel das instituições públicas como símbolos do Estado Democrático e, dentre tantos outros, finalmente, a urgência de um Estado Humanista de Direito como símbolo abarcante de todos os elementos supracitados.

Sobremaneira, entender o que se diz por re-valorização dos valores é, sobretudo, o mesmo que dizer sobre a re-valorização da pessoa humana. O valor da pessoa humana é aquele proveniente de sua experiência histórica enquanto ser, cujo núcleo mesmo é dever ser. [02]É um propósito que a própria evolução histórica lhe traz, tornando-o produto de uma busca infinita pela adequação do meio a seu desempenho espiritual, isto é, que traz em si o valor-fonte de todos os valores como aspecto presente de sua estrutura natural humana que se relaciona dialeticamente com os fatos e acontecimentos da vida prática intersubjetiva, no implemento de novos meios e modos de viver e conviver pacificamente.

Decorre que, com efeito, somos sociáveis por natureza, ou seja, somos a condição de possibilidade de existência da sociedade, no entanto, a consciência de ser pessoa não depende, outrossim, da experiência sócio-coletiva, como está ligada ao aspecto transcendental, portanto, a priori, de sermos pessoas. "[...] A pessoa, como autoconsciência espiritual, é o valor que dá sentido a todo evolver histórico, ou seja, o valor a cuja atualização tendem os renovados esforços do homem em sua faina civilizadora." [03] Desta maneira, assumir a função de valor-fonte para a pessoa humana permite explicar por que não existem diferenças extremas entre os seres por exemplo, à medida que, se existe algo de diferenciador entre uma pessoa e outra, é apenas o resultado de um processo cultural relativamente diverso onde a produção desse efeito fora justamente retirada da apreciação histórica do valor uno do ser humano, consequentemente relativo ao ambiente social em que esteve inserido.

O valor fundamental é a pessoa humana. É válido de per si e justificável em sua própria razão. Os meios pelos quais o positivismo jurídico, mormente, dedicou-se à exclusão do dever ser moral na realidade do Direito, fez com que fosse possível utilizar da legalidade para sustentar as atrocidades cometidas contra outros seres humanos. Neste caso, o valor fundamental não era o da pessoa humana, propriamente dita, mas, na verdade, era o valor imposto como fundamental daqueles dominantes do poder, enquanto regra e norma a ser obedecida.

A estrutura deveras formal do Direito impedia que se lhe sobrepusesse cabedal materialmente ligado à humanidade com que o mesmo deveria, naturalmente, laborar, dando espaço para que ideologias tantas fizessem da autoridade legislativa o meio de exploração irracional da liberdade regulatória do Estado ante aos desígnios degradantes de políticas raciais e utópicas de dominação em massa. Fatos de tamanho calibre contribuíram para que se formasse uma corrente desbravadora dos Direito Humanos – donde o reconhecimento multilateral de validade universal consistia na intenção de interromper a evolução de um colapso global mais gravoso e destruidor. A ordem haveria de ser restabelecida através da rubrica dos Estados soberanos nos tratados internacionais e à subordinação aos tribunais de Direitos Humanos – só assim a realidade de um mundo em guerra e fragilizado pelas irracionalidades poderia sobreviver às armas e mediocridades produzidas por ele mesmo. Torna-se, portanto, universal a valorização da dignidade da pessoa humana, seguindo-se tratativas correlatas aos direitos e deveres provenientes dessa base principiológica, no desejo de alavancar um modelo político-social menos liberal e mais intervencionista, sobretudo às questões de equilíbrio e preservação sociais.

Parecia, pois, que a tradição albergada pelos ideários da Revolução Francesa demonstrava uma burguesia obstinada em se tornar senhora absoluta da lei, da ordem social, da política e da economia, deixando claro que um arquétipo de liberdade, fraternidade e igualdade haveria de ser buscado tão-somente pela evolução do pensamento ao longo dos anos subseqüentes, descabendo, desta maneira, um sucesso irremediável que fosse proporcional às utopias apregoadas na época. As consequencias dessa súbita ascensão desencadearam-se em diversos setores, especialmente no campo da política, da economia e, pois, do Direito. Isso porque a ruptura com o modelo absolutista acabou por gerar um modelo social onde a propriedade privada e os limiares do capitalismo hoje conhecido pudessem tomar conta da ordem e da lei, ocasionando em resultados múltiplos no campo das ciências sociais e do pensamento moderno. Rousseau supôs que antes de seu estado contratual, enquanto formação da sociedade vigorou um estado de natureza, com efeito, anterior à consolidação da existência jurídica e social da propriedade privada e das desigualdades daí decorrentes. Para ele o primeiro momento no qual podemos identificar a origem legítima da desigualdade é o nascimento da propriedade. Vejamos:

"O primeiro que, tendo cercado um terreno, achou por bem dizer ‘Isto me pertence’, e encontrou gente simplória o bastante para nele crer, foi o verdadeiro fundador da sociedade civil. Quantos crimes, guerras, assassínios, quantas misérias e horrores não teria poupado ao gênero humano aquele que, arrancando as estacas ou atulhando os valos, tivesse bradado a seus semelhantes: ‘Guardai-vos de escutar esse impostor; vós estareis perdidos, se esquecerdes que os frutos são de todos, e que a terra não de ninguém." [04]

Em Locke, como característica de seu liberalismo político, a propriedade privada se justifica em nome do trabalho e da poupança, "nesses termos, seria a matriz do liberalismo proprietista e conservador, ideologia de notória longa duração". [05] Talvez esta percepção problemática da ideologia liberal fora percebida por Rousseau, quando em seu Contrato Social diz que "O homem nasceu livre, e em toda parte está acorrentado." [06] Certamente, o influxo da ideologia da propriedade acabou por desvelar novas ideologias concretamente sobrepostas à ascensão da burguesia no cenário político e social, de modo a criar um movimento de completa abolição dos preceitos outrora apregoados pela ilustração. É bem verdade, enfim, que chegamos ao século XXI com um incrível desejo de desprendimento em relação às desigualdades, efetivamente no caminho de permanecer livres no pensamento na comunhão da terra e da natureza – ainda que poucos compartilhem de tal posicionamento. Este, inclusive, foi o intento de Rousseau para rebelar-se contra todas as formas de despotismo, como que Bacon, Voltaire e os enciclopedistas, ainda que em outro contexto. É indiscutível a postura revolucionária de Rousseau, situando-se quase que às avessas da doutrina de Montesquieu, mentor de um historicismo relativista de longa duração. [07] Por exemplo, quanto às leis, proclama:

"As leis têm um grandíssima relação com a maneira como os diversos povos proporcionam a sua subsistência. É necessário um código de leis mais extenso para um povo que se apega ao comércio e ao mar do que para um povo que se contenta com o cultivo de suas terras. E um código maior para este último do que para um povo que vive de sua caça." [08]

Passamos as décadas e adentramos num período de insatisfação – aliás, como já dito. Afinal, as instituições careciam de novas apreciações frente à nova ordem mundial; por conseguinte, uma ordem mundial formada não pelos tratados de Direitos Humanos – este foi o critério formal – mas pelo desenvolvimento da comunicação e interdependência entre os Estados soberanos. Abandona-se uma explicação absoluta para o sentido da soberania nacional, inaugurando a Era das mitigações e das influências multilaterais nos assuntos internos. Claramente, não é o desiderato dos Direitos Humanos trazerem consigo os ideais dos poderes que visam somente o imperialismo de suas máquinas economicamente mais evoluídas, todavia, alterar o mandamento jurisdicional de um Estado soberano, quando eivado de vício perante a consolidação da pessoa humana como valor fundamental de sua própria existência, torna-se altamente recomendado e auspicioso para o cumprimento eficaz das disposições inatas do Direito humanista e globalizado. Além disto, o Direito não se encerra em si mesmo, como é movido pelo fluxo histórico, especialmente sobre a interpretação dos valores vigentes. Logo, o movimento histórico que fez com que hoje possamos enfrentar uma epistemologia um tanto quanto diferenciada a respeito do Direito, dito pós-positivo, é aquele que se comunica direta e dialogicamente com o presente, à medida que os desenvolvimentos do pensamento, ou da racionalidade, entrelaçam-se complexamente com os fatos precedentes, atuais e tendentes, distribuindo, através do movimento espiral, o progresso da reflexão jusfilosófica subordinada à discussão equilibrada frente às demais ciências. Neste sentido, vale o ensinamento de Hegel, de tal sorte que, do autor, retiramos fundamento filosófico para empreender um pós-positivismo, enquanto aspecto histórico, ligado às evoluções temporais e espaciais da humanidade, tanto em termos de racionalidade, como em termos de emancipação cívica, política e econômica. [09]

"[...] o fruto do desenvolvimento é o resultado do movimento, mas enquanto é só resultado de um degrau, é como que o derradeiro desses degraus; ao mesmo tempo, é o ponto de partida e o primeiro dum sucessivo desenvolvimento. Diz Goethe, e com razão, num passo de suas obras: o que se formou de súbito se transforma: a matéria que, como formada, tem forma, torna a ser matéria para nova forma. O conceito, em que o espírito, dobrando-se sobre si mesmo, se compreendeu, e que é a sua essência, essa sua formação, esse seu ser, novamente destacado dele, toma-o como objeto, e de novo lhe aplica a sua atividade; e a direção do seu pensamento sobre ele dá ao mesmo a forma e determinação do pensamento. Assim, esse proceder forma ulteriormente o já formado, comunica-lhe maiores informações, torna-o mais determinado, mais formado e mais profundo. Esse movimento é, enquanto concreto, uma série de desenvolvimentos, que se não deve representar à maneira duma linha reta dirigida sobre si mesmo e cuja periferia é uma grande quantidade de círculos, em que é ao mesmo tempo uma grande série de desenvolvimentos que giram sobre si mesmos." [10]

A dialética espiral de Hegel, por outro lado, deve ser encarada com parcimônia e, dessa maneira, não constitui a consideração única acerca da história, seja para a evolução da razão, do conhecimento ou do próprio homem. Avaliamos a história como um importante correspondente para a pesquisa social, sobretudo na composição do novo e autêntico, todavia, os fatores históricos haverão por representar os dados para que possamos pensar o ser humano enquanto determinação subjetiva ao mesmo tempo em que se encontra presente na comunidade social. Os vértices verticais e horizontais comunicam-se ao pensamento razoável, o que, tanto não exclui a apreciação do outrora ocorrido, como não aloca para o exterior da contenda os problemas e dúvidas sobrepostos na contemporaneidade. O homem como ser temporal que é não abandona sua subjetividade, sua individualidade racional, sua possibilidade de esclarecimento e sua capacidade crítica e reflexiva, inobstante, o escopo desta nova racionalidade esteja na obtenção, ou re-obtenção, da apropriação da alteridade e da dignidade transversal, aquela que se imerge no necessário reconhecimento da integralidade existencial do outro. O devir é mérito do pensamento do antes somado às carências do agora, meditados sobre a tese da complexidade plural das ciências e das técnicas clássicas e hodiernas.

Emerge um tempo de individualismo, de ecletismo, relativismo, da força da mitigação e do questionamento sem fundamento (uma única verdade), corolários construídos pela formação burguesa desenfreada e pela manifestação preponderante da conjectura capitalista motivada pelo poder alienante e de ímpeto alienador. Deixou o capital de ser fruto da mercadoria para ser fruto do conhecimento e da informação. Conhecemos o conhecimento, simplesmente por conhecê-lo – o prazer pela contemplação e o saber pelo saber resta completamente isolado.

Sobre os princípios temos que ponderar o fato de que se de tantas regras postas precisamos para discuti-los, significa que estamos incutidos numa cultura própria que assegura ser este o melhor caminho para a perfeição dos mesmos. Tal cultura obstina por ratificar o caráter sempre a posteriori da ordem de princípios fundamentais e, se no caso brasileiro, há princípios evidentemente explícitos como no caso da Constituição da República, estes nada mais representam do que uma consequencia do processo genético-constitucional pátrio, num momento onde os influxos de direitos e garantias fundamentais floresciam após o conturbado século XX. É mais uma ideologia importada de países culturalmente mais preparados para a vida consoante aos mandamentos principiológicos de base humanista do que propriamente a consolidação destes como provenientes do seio social brasileiro.

Não quer dizer, por outro lado, que tal atitude ausenta-se em benefícios práticos, no entanto, a desconformidade do texto constitucional de 88, e da pregação ideológica a partir de seu nascimento, enquanto arquétipo estético de direitos fundamentais com a realidade jurisdicional hodierna faz-nos pensar a respeito de um ordenamento por natureza sujeito às atribulações de um modelo político essencialmente construído pela luta e pela força da vontade de esquerda. Efeito inequívoco desta constatação, no sentido de que a Constituição de 88 ergueu-se como epíteto do momento onde foi preciso existir um rompimento político para a inauguração de um novo paradigma jurídico-organizador, são as dezenas de emendas e leis ordinárias supervenientes, respectivamente, à alteração do texto originário e suplementação interpretativa, mandamental e prática das disposições inaugurais e, oportunamente, dos imperativos transitórios.

O Brasil passou pela sua própria "revolução francesa" ao elaborar o texto constitucional de 88, visto a premente necessidade de se positivar os direitos assecuratórios do modelo democrático-participativo, cabendo ao povo a escolha de seu próprio destino. Diferencia-se, sobretudo, no fato de que enquanto no contexto francês do século XVIII objetivou-se a ascensão da burguesia como propósito escondido na malha do discurso ideal-revolucionário da ilustração. Afora esse dado, a proeminência global e dimensão do feito desencadearam na ascensão do direito de pleitear por melhores condições de vida a partir da vontade da maioria. No caso brasileiro, o intrincado processo emancipatório do Direito e da soberania popular, portanto, carregou não uma burguesia que aspirava a um posto mais alto na sociedade, já que o seu percurso ascensionista vinha sendo desenhado conforme o desenvolvimento proveniente da abertura econômica em meados do século XX, o que nos levar a crer que, realmente, cumpriu o texto constitucional o papel de ser o ápice de uma revolução histórica pela soberania popular. Isso não quer dizer, por outro lado, que a ordem de princípios fora igualmente construída com idêntico vigor, no sentido de ênfase na perfeição prática, tão-somente necessidades concretas em resposta às manifestações histórico-revolucionárias comentadas, dando azo, inclusive, para o desprestígio de falar que os princípios são regras e, por isso, devem ser observados e cumpridos simplesmente.


II-GENEALOGIA DA DIGNIDADE

Tão discutido, levantado e utilizado é o princípio da dignidade do homem. Qual seria, pois, seu fundamento inicial, senão uma inequívoca noção de essência e princípio? É deveras uma alteridade intrínseca e imanente ao interior mesmo do ser humano a capacidade de ser digno, de dar-se, sobretudo, à causa do outro, ao respeito e reconhecimento do outro. Que outra base poderia gozar de tão bela filosofia, ao mesmo tempo em que se constitui, em si, como sustentáculo primeiro de todos os demais princípios?

Com efeito, os gregos muito se preocuparam com o estudo do cosmos, e sua filosofia fora fundamentalmente lastreada numa ontologia, quer dizer, na maior parte do tempo, especialmente a partir de Parmênides e Heráclito e após, com Platão e Aristóteles, o ser sempre ocupou lugar de destaque no pensamento helênico. De alguma forma o ser existia, seja por causa da natureza, seja por causa de um Deus pré-existente, no entanto, a natureza ou Deus poderia apenas, pela sua força, criar o homem, logo, criar apenas o homem, e não propriamente a sua dignidade. Isso quer dizer que, desta perspectiva, o homem existente não é dotado de dignidade, tão-somente pelo fato de estar no mundo. A dignidade vem a surgir quando mais de um homem acabou por se relacionar em grupo, tornando o tratamento intersubjetivo entre os mesmos carente de uma diretriz implícita que é a dignidade. Essa visão natural e evolucionista do homem permite, pois, dizer que da primeira moléstia ocorrida contra a integridade física do homem (ou moral), e, por assim ser, do surgimento da primeira desigualdade primitiva propriamente dita, há que, aí, reconhecermos a genealogia do Direito e, por conseguinte, da dignidade, no entanto, em sua face de reclamação, quer dizer, primeiro foi preciso mitigá-la, depois, reconhecê-la. Por outro lado, se aceitarmos um criacionismo divino, o homem fora feito à imagem de Deus e, portanto, uma dignidade, ao menos contingente (formal e quiçá material) poderia ser-lhe atribuída.

Posteriormente, com a evolução natural do pensamento, com base nas necessidades específicas do homem primitivo, foi-se vislumbrando uma maior complexidade das relações, implicando em sucessivas alterações no comportamento e na construção do Direito apto a dar segurança às relações privadas e sociais. Claro que esse processo foi longo, todavia, o reconhecimento primeiro da dignidade obteve-se com a constatação de que, num grupo, mais de um homem não poderia governar, ou seja, não existia democracia, mas autocracia. Nesse momento, o líder dotado de maior desenvolvimento e esclarecimento racional gerou um mandamus em relação aos demais. Suas arbitrariedades e más escolhas para o grupo desencadearam mitigações na dignidade do grupo e o pensamento inicial sobre integridade ou sobre o que é certo e errado, em termos de vida boa, começou a aparecer – evidenciando a dignidade.

Igualmente, as moléstias entre grupos, como outrora comentadas, sedimentaram desequilíbrios de tratamento, estampando o questionamento de merecimento e desmerecimento das ações cometidas e sofridas. Daí que, o nascimento da desigualdade, da primeira e mesmo que mais superficial dignidade, levou o homem a questionar sobre si, como sujeito de agressões físicas, morais ou até mesmo políticas, portanto, quanto à sua dignidade – ainda que indiretamente e sem saber propriamente.

O Direito, certamente, nasce das desigualdades evidentes, logo, também a dignidade ganha expressão com sua lógica mitigação através destes mesmos processos. Por esse motivo, na base do Direito há a dignidade e, como a dignidade é do homem, logicamente, ao homem pertence o Direito. É o princípio por natureza histórica do homem, algo que, deveras lhe é íntimo, pois é um ser capaz de pensar e racionalizar, do contrário, jamais poderia evidenciar as moléstias na sua integralidade física, psíquica, moral e social, jamais, desta maneira, descobrindo sua essência – verdadeiramente.

Se Rousseau viu no nascimento da propriedade privada o limiar da desigualdade, viu a parte somenos importante da desigualdade verdadeira, de tal sorte que esta já ocorrera, se utilizarmos do seu exemplo, da manifestação de um poder de sobreposição unilateral de vontade que não foi discutida ou dialogada com os demais. Porém, esta deveria resultar numa variamente meramente econômica da desigualdade, quando, na verdade, desigual foi qualquer tratamento conferido a outro homem, desde o começo dos tempos e das civilizações, capaz de gerar óbice ao equilíbrio digno da existência do homem em si e para si.

A partir de tais argumentos a dignidade é necessariamente a essência do homem, pois, se não fosse, sequer seria descoberta quando fosse o homem, enquanto ser que é, atravessado, corrompido ou violentado por conduta lesiva a si. A dignidade é ao mesmo tempo sensorial e racional. Sente-se a moléstia e entendem-se, tão-logo, seus efeitos práticos. Não houve um homem puro no começo, mas um homem com pouco desenvolvimento da razão. A expressão mais evidente da dignidade, com efeito, é a vida e a sua preservação, cujo conceito há que ser observado numa conjugação ponderada através do trinômio: vida, existência e dignidade.

Mas seu processo de evolução não é retilíneo, devido ao fato de que alguns eventos ocorrentes no curso da história fazem com que a consciência sensorial e racional da dignidade seja em si mitigada, ou seja, quase que esquecida e abrandada. Isso ocorre quando culturas apregoadas sem qualquer critério crítico quanto à validade, fonte e até mesmo quanto à veracidade, vem à tona e se espalham pelas grandes massas, dominando o cenário. Com isso, gera-se o predomínio do corpo existencial infundado e da acomodação irracional nas coisas supérfluas. É o que acontece hoje. Por isso, o pós-positivismo vem, antes de tudo, recobrar a racionalidade sobre a sensibilidade originada a partir das mitigações que temos sofrido em termos de desigualdade econômica e, sobretudo, política e social.

Com efeito, a racionalidade há que ser contingente quanto à importância do princípio, de tal sorte que a empresa que visa torná-la meio para consecução de uma hermenêutica principiológica, deveras correta será ao passo que corresponda à ação prática de converter em práxis o que, a priori, se mostra como abstrato. Tão logo, um Direito de Dignidade precede à existência concreta de um suposto conceito de dignidade. Aquele dá, verdadeiramente, o esteio para que este se transforme em ato fenomenológico, inobstante, o movimento recíproco seja o regozijo do amor em relação à perfeição evidente de sua criatura. Como é cediço, não pertence a criatura ao universo de sua própria individualidade, como, por outro lado, afirma a característica marcante daquilo que a tornou em dado existente – destarte, é a nova atitude, porém transfigurada, de um ato pleno que é o criador. A criatura é, mormente, a contingência da essência de seu criador. Entre a dignidade e o amor, pois, há uma relação conectada de reciprocidade, mas o que torna possível a criação da dignidade é a possibilidade do homem enxergar e aceitar sua própria natureza.

Os entrelaces da história cumpriram o papel de desgastar a essência de amor da dignidade, afastando a criatura de seu criador, à medida que a razão exacerbadamente preocupada com os fins materiais da existência sobrepunha seu poder mandamental ao conceito então gerado. Vemos não mais uma essentia na dignidade, como apenas seu aspecto racional e, acima disto, racionalizante. É, nestes dias, um instrumento de um Direito objetivo cuja substância deixou de ser o homem, para se transformar num elemento, cuja necessidade de positivação é evidente, pertencente à regra e à ordem do Poder.

Há que se reconhecer, pois, o lastro essencial de dignidade inato à experiência jurídica entre sujeitos, sobretudo valorizada à sua face pressuposta, portanto, figura, o respectivo conceito, como dogma irretratável do fundamento mesmo do homem o qual, à sua imagem fez-se posto um Direito, mas que, em contrapartida, à sua superfície, perpetrou-se, pelo regozijo ulterior da racionalidade mecânica, na ruptura de um ente criado com seu criador inicial, outrora concebido com desiderato eminentemente ligado ao núcleo de ser do homem, que é a dignidade, a bondade e a benevolência.

Daí, por conseguinte, é improvável acreditar, ou provar, na (e sobre) a existência de um poder tamanha e exclusivamente empreendido pelo pensamento lógico que fosse capaz de criar, ao longo do tempo, um homem eivado por um sentimento de domínio a partir do uso, paradoxal, do Direito enquanto cumprimento eficaz de um ímpeto contrário ao que é bom. O homem é por natureza essencial bom, no entanto, sua vontade de domínio sobre o outro, que pode ter gerado a ideia de maldade é, sobretudo, um sentimento inicial de conformidade material com desígnios sensoriais e psicossociais próprios a cada homem – é, na verdade, o que torna cada um diferente do outro, os gostos e as vontades; a diferença, por outro lado, está na capacidade de um ou outro homem conseguir fazer valer sua posição frente aos demais, aí, sem dúvida, elementos de eloqüência e retórica, senão quaisquer vocações inatas à liderança e à política possam, efetivamente, explicar esse complicado fenômeno.

A causa deste impasse dá-se pela crença de que o Direito e as demais ciências sociais podem salvar o homem por si mesmo, ao invés de se acreditar na capacidade do homem de criar e recriar sua realidade, partindo, do seu próprio ato reflexivo – na verdade, um olhar para o interior que pertence a todos igualmente, em forma e matéria, no intuito de, enfim, evidenciar que tanto o poder quanto seus frutos passam e, no último suspiro, sobrevém apenas ideias e lembranças deterioradas. Talvez valha mais a pena esforçar-se pelas questões fundamentais, para que assim, consigamos nos aproximar da verdade, mas não tocá-la ou obtê-la pelo físico, tão-somente pelo espírito que nos habita, e que, de nós, é indissociável.

Se o Direito for, com efeito, o objeto de conhecimento do homem enquanto ser judicante da vida organizada, e que é, através dele, judicado em reciprocidade, creio ser a essência de tal objeto feito à imagem do homem que o conhece amplamente, portanto, entre o homem e o Direito há uma relação estreita a qual permite dizer que ambos foram constítuidos a partir de uma única essência, que é a dignidade, no entanto, ocorreram desdobramentos lógicos, visto à necessidade do homem viver e estar em comunidade, que por isso também representam consequencias lógicas da razão de existir do Direito, que é a liberdade. O ponto onde o Direito virou poder para o homem ao invés de continuar a ser o que de fato é, ou seja, imagem de sua essência, ou melhor, de sua dignidade, foi quando se esqueceu do princípio que lho é inato, conferindo ao Direito o papel único de servir às ilusões que tal esquecimento provocou. Tão-logo, a causa primeira desse suposto esquecimento foi o pensamento do homem haver sido separada em corpo e alma - com efeito, ao corpo pertence dignidade contingente quanto à sua integridade, no entanto, esteja na alma o essencial da dignidade que tanto sustenta o corolário de amor, como autoafirmação e sensibilidade, como o ser-para-o-outro enquanto demonstração mesma de alteridade. O Direito para voltar a ser conjugado a partir do princípio da dignidade, há que, primeiramente, resultar de uma reflexão humana acerca de sua própria alma, não como dado extrínseco à sua vida corpórea, como elemento indissociável de sua existência e coexistência.

Dissemos que o Direito judica e é judicado pelo, por e sobre o homem. É um imóvel abstrato movido por um ente dotado de essência, portanto, como tudo que é criado leva as características razoavelmente mínimas do seu criador, com efeito, o Direito acha-se proporcional à hermenêutica primeira que o homem faz de si.

O Direito é a aparência da qual corresponde uma essência. Não é um fenômeno unicamente em si, como especialmente, é um fenômeno que se mostra ao homem, daí que é um espelho concreto. O ser em si do Direito, se assim podemos dizer, é, pois, o ser para-si do homem, logo, sua externalidade. Por isso todo direito é humano e afirmar que existem, como tanto se diz, uma nova dimensão ou geração de direitos, na verdade, há a reformulação do homem compreender a si mesmo como movedor do Direito e, dessa maneira, enxergar a relação presente entre seu aspecto corpóreo com seu aspecto espiritual - unidos numa sensibilidade íntima capaz de fazer brotar a argumentação da dignidade. Se virmos uma nova onde de direitos vistos como universais, humanos lato sensu, trata-se, sobretudo, de um tautologismo engendrado pela reflexividade existencial do homem.


III-ONTOLOGIA FENOMENOLÓGICA DOS PRINCÍPIOS

Ultrapassada a barreira histórica, não se vê outra saída que não a (re) discussão dos princípios no cenário jurídico brasileiro, à medida que o pós-positivismo não é, mormente, um teorema aposto ao campo do Direito, como certifica um diálogo em sede complexa entre os diversos ramos do saber social, na tentativa de enfim compatibilizar a nossa ordem de princípios com os seus reais, válidos e legítimos efeitos, a partir é claro, do conhecimento e reconhecimento irretratável da fonte de onde promanam. Sem dúvida, afigura como ponderado o raciocínio de não que há outra fonte de tamanha densidade se não o próprio homem, considerado como ser em si. Esse, pois, é o caminho determinante a partir de agora. "Segue-se, evidentemente, que o dualismo do ser e do aparecer não podem encontrar legitimidade na filosofia." [11] A rigor desta terminologia, ser é o homem e o aparecer, portanto, sua expressão, é o Direito.

Daí que, o Direito é a aparência fenomenológica que contém os princípios. "A aparência não esconde a essência, mas a revela: ela é a essência." [12] Os princípios são, pois, a essência do Direito. Mas, como a aparência é naturalmente a expressão concreta da essência, o Direito é, com efeito, o princípio e nele encontra sua unidade e validade. Destarte, o próprio Direito é uma realidade abstrata se vista isolada da ação do homem e, a priori, o Direito é em si, um fenômeno pressuposto que carrega também outro fenômeno (o principiológico); a diferença é que o fenômeno principiológico está ligado ao homem em si mesmo considerado, enquanto que o fenômeno jurídico, ou experiência jurídica, é a externalidade da ação secundária e, pois, a posteriori, da composição existencial, e material, do homem. [13]

O princípio é a correspondência lógica de uma condição peculiar do homem e sua estrutura encontra-se além do ato mesmo de pensá-lo como válido e eficaz, posto que subsista e coexista com a existência mesma do homem. Certamente, não existe homem a quem não corresponda nenhum princípio, por outro lado, existe o homem sequer concebido a quem não corresponda, ainda, princípio, porém, nesse caso, apenas como potência. Mas para isso, há que aceitarmos uma criação inicial e tal foi quando o homem, enfim, teve consciência de si mesmo no tempo e no espaço enquanto ser e em relação às demais esferas de vida e realidades. Desta maneira, o princípio não precede à existência do homem, como lho é subordinado pela consciência. Como fruto dessa consciência surge da obscuridade do inconsciente, ou do ainda não consciente, a percepção primeira da sua própria dignidade de pessoa em potência e em ato. A potência certifica o caminho do ato e não existe equívoco nesta proposição, já que visa à perfeição de um dado, ou elemento, que, por natureza, lho é íntimo. Por este motivo, o ser proveniente da concepção é dotado de potência e já nesse estágio, se lhe associa o princípio da dignidade e os respectivos desdobramentos garantidores de sua existência em ato. Resumindo, ou melhorando a tese: do ser dotado de dignidade só deriva outro ser igualmente dotado de dignidade, tão-logo, desde a concepção é ser, por equivalência lógica. Daí que o não-ser é o não-concebido, pois, se fosse, na verdade seria ser, e, por isso mesmo, dotado de princípio (dignidade).

Por muito tempo tais raciocínios foram esquecidos pelas veredas do positivismo lógico e, posteriormente, pelo positivismo jurídico. Malgrado a importância estabilizadora do Direito Posto, tendo lançado as bases da segurança, da legalidade e do Estado moderno, devemos nos preocupar para que o Direito volte a olhar para si, não como fim, mas como meio de, finalmente, dialogar com a natureza daquele a quem serve e a quem deve obediência: o homem. O positivismo deu grande poder ao Direito e pouco poder ao homem. O pós-positivismo busca a retomada do poder para o homem, para o homem enquanto ser, dotado de dignidade.

Este fato nos impede, portanto, de desconsiderar de qualquer Direito Posto, especialmente em relação à regra jurídica – já que é a continuidade lógica de normas puras de Direito pré-existentes e, mormente, uma necessidade logística para a operacionalização destas em questões de prevalência, incidência, limitação, poder, autoridade, restrição, permissão, concessão, validação, negação, anulação, nulificação, controle, punição, estabilização etc. – o caráter eminentemente principiológico que carrega consigo. Se há princípio na norma que dá origem à regra, nessa, por conseguinte, há um princípio que se deduz, bastando, no entanto, a ciência do local de sua gênese.

O princípio é um fenômeno acima de tudo ontológico e seu conhecimento pressupõe o conhecimento do ser humano enquanto ser, e enquanto parte integrante de um sistema de outros seres humanos e seres não-humanos. O princípio é humano por contingência – nele encontra-se o elemento que o liga ao homem, contudo não significa que é apreciado ao bel prazer daquele que o move (o homem), pelo fato de que só é princípio se originado na realidade pressuposta da dignidade; portanto em termos de dignidade, no seu conceito, pela e em função (da) razoabilidade, indica um tratamento bom que preserve a integridade física, psíquica, moral, social, relacional, ambiental e racional do homem – tal é o limite de sua perfeição, tal é o bastidor de seu fenômeno; algo que subverta essa natureza, sem dúvida, não é princípio.

Daí que o princípio nasce com o homem, por ele sobrevive e por ele ganha eficácia. Torna-se fenômeno por sua vontade e razão através da positivação, mas, igualmente, o Direito Posto é, sobretudo, um fenômeno parcial do princípio, à medida que se considerarmos o homem como fonte mesma do princípio (dos princípios) ele, portanto, será a própria expressão de sua existência. No entanto, um dado cultural não pode ser olvidado que é o motivo do Direito Posto – na verdade a necessidade de regularizar as condições sociais do homem, sua economia, seus poderes políticos etc., fizeram do Direito um mecanismo produtor de tal segurança. Serviu o Direito por muito tempo à regularização do que outrora estava esfacelado. O princípio tornou-se Direito, sem saber deste processo, e quando vemos princípios de fato positivados é um grande tautologismo. Positivamos princípios (leia-se direitos), desde os tempos de seu surgimento no debate racional, porque não estamos preparados moral, cívica, ética e racionalmente para uma vida desregulada do ponto de vista estritamente legislativo.

A autoridade do Direito Posto veio como o esteio da falibilidade do homem em gerir pela consciência de si (voltada para si própria) e para si (voltada para o mundo externo do que a pensa) da dignidade. O vício nesse processo causou a hipertrofia legislativa, o descrédito da lei e a queda do positivismo epistemologicamente deslocado dos demais temas, até então considerados como metajurídicos. Afigura-se como necessário (re) pensar os desígnios do Direito Posto à luz do absoluto Direito Pressuposto. Talvez, ainda não estejamos preparados (e certamente não estamos) para uma vida sem regras positivas e sem punição para as transgressões respectivas, visto que somente em um mundo dotado de esclarecimento, à maneira kantiana, poderíamos lograr êxito num empreendimento jurídico essencialmente principiológico, haja vista que, nesse patamar, bastaria a reflexão e o consenso para a resolução das desídias surgidas. Parece, outrossim, que este sonho encontra-se cada vez mais distante da realidade, seja pelo crescimento desenfreado do progresso, cuja facticidade nos torna dependentes, seja pelo aumento da complexidade das relações agora ganhadoras do status de transnacionais, ou, sobretudo, de ambos os fatores conjugados, que tornam o ideal de um Direito Pressuposto prevalecente mera utopia, ou pior, algo situado além da metafísica – como realidade inconcebível sequer no plano da abstração.

O pós-positivismo, além das vantagens comentadas, há que promover a retomada da esperança na vida concreta. Não que seja algo, efetivo, sólido e concretamente, possível de ser posto em prática, não obstante, constitua, ao menos, um excelente caminho a ser percorrido e deveras compensador e confortante de ser acreditado. No mínimo, traz um novo ideal, uma nova iluminação a ser confrontada com os velhos e clássicos paradigmas.

Com efeito, o Direito, na pós-modernidade, adjudicou para si a cogente observância dos princípios naturalmente ontológicos, podendo-se falar num ímpeto de rompimento tanto em relação às doutrinas sócio-positivistas como jurídico-positivistas. Em verdade, não há lógica em vermos o Direito como fato descolado da realidade social, política e econômica, no entanto, como inequívoco sustentáculo que limita de um modo ou outro o uso racional das liberdades contingentes em tais setores. Tampouco, haveremos por continuar no caminho de dizer um Direito impreterivelmente legalista, quer dizer, que se baseia unicamente num ordenamento positivo. Além disto, se Kelsen viu a existência de uma norma hipotética fundamental, a qual confere, pois, alento para o Direito Posto dentro do Estado, haveremos por conceber, aproveitando o paradigma, um novo fundamento, um novo eixo mantenedor da ordem jurídica, e, sobre o qual, certamente, não se vislumbra outra modulagem senão à conformidade exata do Direito ao Princípio. Como, portanto, o Princípio é o ser do homem, que por sua vez é a dignidade, não assiste razão à afirmação de diferença entre o ser do homem objetivo do ser do Direito – na verdade, fenômenos distintos quanto à destinação, contudo unidos por um vínculo pleno chamado de Princípio. O trinômio Princípio, Homem e Direito deve ser objeto de estudo do pós-positivismo, no sentido de tentar uma nova conciliação entres estes três pólos. Assim sendo, o Direito precisa ser revestido de princípios e, a partir de então, constituir a empresa pela qual a solução dos litígios será consequencia mesma de um ordenamento empenhado na valorização do ser do homem, ou melhor, sua essência em-si, a dignidade.

Imaginar um pós-positivismo como movimento ideológico é, sobretudo, uma ilusão, à medida que um Direito construído e praticado conforme os princípios ligados ao ser do homem não abre espaço para inseguranças ou arbitrariedades do julgador ou do intérprete do Direito, desde que, por outro lado, tenha neste ato propriamente hermenêutico a iluminação de que os critérios para as soluções e, enfim, para se alcançar a justeza na prestação jurisdicional, independe, com efeito, de uma interpretação eminentemente de regras, como, do contrário, numa ciência moldada à matéria essencial do Direito mesmo, como já dito, a dignidade, logo o Homem; por conseguinte, a diretriz mestra própria desta nova ciência da interpretação, mas agora aposta à realidade ontológica do ser (homem), dita filosófica, tornar-se-á eficaz diante de uma visão particular do homem e da situação fática por este participada, de tal sorte que o Direito não deve constituir absoluta e unicamente a comunhão objetiva ou objetivadora da vontade de bem-comum, como precisa constituir-se em uma base de relativa mitigação, relativa, pois, à concretização do justo, segundo é claro, a análise contundente do meio biopsicossocial dos interessados, assim como o caráter antropológico que torna o princípio único ao caso, a partir de sua extensa e perpétua universalidade abstrata.


Notas

  1. Cf. HOBSBAWN, Eric. Era dos extremos: o breve século XX: 1914-1991. 2ª ed. Trad. Marcos Santarrita. São Paulo: Companhia das Letras, 2005, p. 537: "O Breve Século XX acabou em problemas para os quais ninguém tinha, nem dizia ter, soluções. Enquanto tateavam o caminho para o terceiro milênio em meio ao nevoeiro global que os cercava, os cidadãos do fin-de-siècle só sabiam ao certo que acabara uma era da história. E muito pouco mais."
  2. Cf. REALE, Miguel. Filosofia do Direito. 20ª Ed. Saraiva: São Paulo, 2010, p. 213: "O homem, cujo ser é o seu dever ser, construiu o mundo da cultura à sua imagem e semelhança, razão pela qual todo bem cultural só é enquanto deve ser, e a "intencionalidade da consciência" se projeta e se revela como intencionalidade transcendental na história das civilizações, isto é, como invariante axiológica fundamental."
  3. Idem, ibidem, p. 214.
  4. ROUSSEAU, Jean-Jacques. Discurso sobre a origem da desigualdade. São Paulo: Escala, 2010.
  5. BOSI, Alfredo. Ideologia e Contraideologia. São Paulo: Companhia das Letras, 2010, p. 27.
  6. .ROUSSEAU, Jean-Jacques O Contrato Social. São Paulo: Martins Fontes, 2008.
  7. BOSI, Alfredo. Op. cit.,p. 40.
  8. Apud BOSI, Alfredo. Op. cit., p. 41.
  9. Com efeito, a proposta histórico-filosófica de Hegel vem, de uma vez por todas, para refutar as teses de Condorcet, para quem o desenvolvimento do progresso proceder-se-ia em linha reta, e, também, do pensador italiano Giambattista Vico, com seu sistema do corsi e recorsi, quase que um vaivém da história e do progresso.
  10. A passagem é extraída do texto Conceito da História da Filosofia, parte do "Discurso inaugural" proferido em Heidelberg em 18 de outubro de 1816. Trad. Antônio Pinto de Carvalho, em Hegel, São Paulo: Abril, col. Os Pensadores, 1974, p.344-45.
  11. SARTE, Jean-Paul. Op. cit., p. 15
  12. Idem, ibidem, p. 17.
  13. As questões de poder, portanto, são discutidas no âmbito secundário da ação do homem em sociedade com outros homens.

Autor

  • Luiz Felipe Nobre Braga

    Mestre em Direito pela Faculdade de Direito do Sul de Minas; Advogado; Consultor e Parecerista; Professor de Direito Constitucional e Lógica Jurídica na Faculdade Santa Lúcia em Mogi Mirim-SP; Professor convidado da pós-graduação em Direito Processual Civil e no MBA em Gestão Pública, da Faculdade Pitágoras em Poços de Caldas/MG. Autor dos livros: "Ser e Princípio - ontologia fundamental e hermenêutica para a reconstrução do pensamento do Direito", Ed. Lumen Júris, 2018; "Direito Existencial das Famílias", Ed. Lumen Juris-RJ, 2014; "Educar, Viver e Sonhar - Dimensões Jurídicas, sociais e psicopedagógicas da educação pós-moderna", Ed. Publit, 2011; e "Metapoesia", Ed. Protexto, 2013.

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BRAGA, Luiz Felipe Nobre. Pós-positivismo: ensaio propedêutico para uma epistemologia jurídica aposta aos princípios. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 16, n. 2771, 1 fev. 2011. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/18395. Acesso em: 26 abr. 2024.