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O poder de polícia das Forças Armadas no exercício da segurança pública

O poder de polícia das Forças Armadas no exercício da segurança pública

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RESUMO

O trabalho científico enfrenta a questão da legitimidade do poder de polícia das Forças Armadas na atuação na área de Segurança Pública, analisando as disposições contidas na Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 e na Lei Complementar nº 97, de 09 de junho de 1999. Serão destacados princípios e conceitos administrativo-constitucionais, para melhor compreender as atribuições e competências das instituições destinadas à defesa do Estado e à paz social. Com o aumento da violência nos grandes centros urbanos e a falência das forças policiais no combate ao crime organizado, algumas autoridades buscam auxílio da União, mediante o emprego das Forças Armadas, como tentativa de uma solução ao clamor da coletividade pela paz social. Contudo, o ordenamento jurídico em vigor determina a observância de certas formalidades, ao contemplar às Forças Nacionais o poder de polícia na atuação da segurança pública. Nesse seguimento, a Câmara analisa a PEC nº. 319/08, do deputado Antonio Carlos Pannunzio, do PSDB-SP, que propõe a legitimidade das Forças Armadas para exercer o poder de polícia em todo o território nacional, quando se tratar de segurança pública.

Palavras-chave: Poder de polícia. Forças Armadas. Segurança Pública.

Sumário: 1. Introdução - 2. Poder de polícia - 3. Da defesa do Estado e das instituições democráticas - 4. Segurança pública - 5. Emprego das Forças Armadas - 6. Considerações finais - 7. Referências.


1. INTRODUÇÃO

As autoridades públicas, diante dos vários conflitos urbanos decorrentes do crescimento desordenado da violência e da criminalidade, têm se mostrado preocupadas com a ineficiência dos órgãos de segurança de pública.

Com esse enfoque, cresce o debate jurídico em prol da atuação das Forças Armadas na área de segurança pública, em colaboração com os Estados Federados, no objetivo da garantia da lei e da ordem, tomando por fundamento a disciplina do artigo 142, da CRFB/88.

Pode-se relatar a missão das Forças Armadas no combate ao crime organizado no Estado do Rio de Janeiro, a pedido do governador Sérgio Cabral, como noticiado na Folha de São Paulo, em matéria publicada no dia 08 de janeiro de 2007, pela colunista Eliane Catanhêde [01],

GOVERNO FEDERAL decidiu empregar as Forças Armadas no combate ao crime organizado no Rio, que o próprio presidente Luiz Inácio Lula da Silva chamou de "terrorismo", mas não tem noção sobre as formas e os limites, como fica evidente na entrevista concedida pelo ministro Waldir Pires à Folha, na sexta-feira.

O governador Sérgio Cabral (PMDB-RJ) pediu ajuda, Lula e Pires responderam afirmativamente e anunciaram o envio de tropas da Força Nacional (formada por policiais de elite de diferentes Estados) e a inclusão das Forças Armadas no gabinete integrado de segurança do Estado. Postar soldados ostensivamente ou não nas ruas, porém, virou um tortuoso exercício semântico.

Em nota divulgada pelo Planalto após encontro com Lula, ministros e oficiais militares, na quinta, o governo disse que vai "intensificar a presença" das Forças Armadas no Rio. O que vem a ser isso na prática? Ninguém sabe ao certo.

Segundo Pires, 5.000 soldados do Exército, da Marinha e da Aeronáutica já sediados no Rio estão de prontidão, instruídos para "proteger prédios públicos federais", e não apenas o entorno dos quartéis, caso haja ameaça. O que pode ser muito ou pode ser nada.

Nos comandos militares, há duas certezas: é preciso agir, mas só se o governo lhes der respaldo jurídico. O grande temor é que as três Forças sejam alvo de uma avalanche de inquéritos e processos do Ministério Público e da Justiça por "extrapolarem suas funções".

A Constituição não prevê o uso militar para garantia da lei e da ordem, a não ser em casos específicos, como um pedido do governador, declarando o Estado incapaz de controlar a situação e admitindo a intervenção. Mudanças legais estão em estudo.

Pires, 80, tem enfrentado uma sucessão de crises na área da Defesa: o maior acidente da história da aviação brasileira, operação-padrão dos controladores de vôo, atritos com a Aeronáutica e o caos dos aeroportos. As novas crises podem se deslocar da área da FAB para a do Exército, com os ataques "terroristas" no Sudeste.

Diante da premissa, cinge-se a questão na análise da legitimidade do poder de polícia conferido às Forças Armadas na garantia da lei e da paz social, partindo das disposições contidas na Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 e na Lei Complementar nº 97, de 09 de junho de 1999.

Considerando alguns aspectos do poder de polícia estatal e da concepção de ordem pública, busca-se delinear o alcance da norma constitucional, ao disciplinar o emprego das Forças Armadas para a garantia da lei e da ordem. Para subsidiar as pesquisas foram realizadas leituras bibliográficas, buscando como fontes o aparato doutrinário, repertório jurisprudencial, legislação e documentos eletrônicos.


2. PODER DE POLÍCIA

O poder de polícia é a faculdade da administração pública de condicionar e restringir o uso e o gozo de bens, atividades e direitos individuais, em benefício da coletividade ou do próprio Estado.

O termo "polícia", nos ensinamentos de Átila Da Rold Roesler [02], surgiu na Idade Média, durante o período feudal, quando o príncipe era detentor de um poder conhecido como jus politiae, designando tudo o que era necessário à ordem da sociedade civil sob autoridade do Estado. Com essa acepção clássica, a atividade de polícia compreendia atos que limitavam o exercício dos direitos individuais em benefício da segurança da cidade [03].

O Código Tributário Nacional traz, no seu artigo 78 e parágrafo único, o conceito legal do instituto:

Art. 78. Considera-se poder de polícia atividade da administração pública que, limitando ou disciplinando direito, interesse ou liberdade, regula a prática de ato ou abstenção de fato, em razão de interesse público concernente à segurança, à higiene, à ordem, aos costumes, à disciplina da produção e do mercado, ao exercício de atividades econômicas dependentes de concessão ou autorização do Poder Público, à tranqüilidade pública ou ao respeito à propriedade e aos direitos individuais ou coletivos.

Parágrafo único. Considera-se regular o exercício do poder de polícia quando desempenhado pelo órgão competente nos limites da lei aplicável, com observância do processo legal e, tratando-se de atividade que a lei tenha como discricionária, sem abuso ou desvio de poder. [grifo nosso]

Nesse contexto, a Administração Pública, mediante atuação dos órgãos competentes, exerce o poder de polícia sob duas vertentes: as funções de polícia administrativa, que incide sobre os bens, direitos ou atividades, e as funções de polícia de segurança pública, que visa resguardar as liberdades.

A Escola Superior de Guerra [04] traz disciplina semelhante, assim explicitando no seu manual:

Na administração pública, o Poder Executivo exerce o chamado Poder de Polícia, que engloba duas relevantes funções: a polícia administrativa e a polícia de Segurança Pública. A primeira consiste no poder estatal de disciplinar, tendo em vista o interesse público, diversas atividades da sociedade, tais como os setores da saúde pública, costumes, comunicações, atividades econômicas, situação de estrangeiros, exercício profissional, uso e fruição da propriedade. A segunda, correspondendo ao dever do Estado em oferecer condições de segurança à sociedade, seja no plano pessoal seja no coletivo, consiste no poder-dever estatal de prevenir e reprimir o crime e a criminalidade.

O poder de polícia tem por objetivo controlar toda atividade que possa afetar a coletividade ou por em risco a segurança nacional. Dessa forma, cada cidadão cede parcelas mínimas de seus direitos à comunidade e o Estado lhe retribui em segurança, ordem, higiene, sossego, moralidade e outros benefícios públicos propiciadores do conforto individual e do bem-estar geral.

O poder de polícia tem atributos específicos e peculiares ao seu exercício, compreendido como tais a discricionariedade, a auto-executoriedade e a coercibilidade.

Pelo atributo da discricionariedade, cabe à Administração Pública o livre arbítrio, exercendo o poder de polícia com os meios adequados para atingir a proteção do interesse público.

Para efetivar as restrições individuais em favor do interesse público, o Estado se utiliza do poder discricionário [05], valendo-se da avaliação da oportunidade e conveniência para a prática do ato, encontrando como limite a observância dos preceitos legais [06] vigentes.

Na lição do prof. Luís Roberto Barroso [07]:

A oportunidade, a conveniência e o próprio mérito do ato administrativo discricionário não poderão ser apurados de modo afastado desses princípios, que funcionam como critérios objetivos da legalidade do ato administrativo e devem estar presentes na liberdade de escolha do administrador público. O poder discricionário encontra limites não apenas na finalidade legal da norma que o instituiu, mas também, e primordialmente, nas normas constitucionais.

A lei disponibiliza à autoridade várias formas de agir, escolhendo a que melhor se ajusta à realidade, conforme a necessidade do caso concreto. No uso da liberdade legal de valoração das atividades policiadas e na graduação das sanções aplicáveis, é que reside a discricionariedade do poder de polícia da Administração.

A auto-executoriedade é a faculdade inerente ao ente estatal de executar diretamente a sua decisão. Este atributo autoriza a prática do ato de polícia pela própria administração, sem a exigência de prévia autorização judicial.

A decisão administrativa se impõe ao particular ainda que contra a sua vontade, como reflexo da atividade administrativa que verifica o cumprimento dos comandos legais e regulamentares. Na hipótese de inobservância, adota as providências necessárias à imediata cessação da ilicitude, mediante a coerção estatal.

Entende-se por coercibilidade a imposição forçada das medidas adotadas pela Administração, que se utiliza de meios sancionadores, admitindo-se até o emprego da força pública para o seu cumprimento, quando resistido pelo administrado.

A coerção é o mecanismo de execução dos atos administrativos, podendo se revelar pela apreensão de mercadorias comercializadas sem autorização legal, a interdição de estabelecimento que não atenda às normas de segurança ou higiene, a ordem de interrupção de um espetáculo teatral obsceno, a demolição de uma construção que ameaça ruir, a dissolução de passeata sem prévio aviso à autoridade competente.

Na lição do professor Emerson Garcia [08], enquanto a auto-executoriedade acompanha os atos administrativos, sendo inerente à regra de competência e à presunção de veracidade, a coerção exige a verificação de três circunstâncias: que o comportamento omissivo ou comissivo do particular decorra de imposição legal, que haja inobservância dessa imposição legal e que estejam presentes, no exercício do poder de polícia, os requisitos de todo e qualquer ato administrativo.


3. DA DEFESA DO ESTADO E DAS INSTITUIÇÕES DEMOCRÁTICAS

A Constituição Brasileira, no Título V, trata da defesa do Estado e das instituições democráticas, instituindo os órgãos dotados de forças coercitivas no desempenho da Segurança Nacional e na manutenção da ordem pública, em defesa da soberania, do estado democrático de direito e da paz social. É a legitimação do Estado, que estende sua soberania perante o surgimento de situações de emergências excepcionais.

Ordem pública [09] deve ser compreendida como:

[...] a situação e o estado de legalidade normal, em que as autoridades exercem suas precípuas atribuições e os cidadãos as respeitam e acatam, sem constrangimento ou protesto. Não se confunde com a ordem jurídica, embora seja uma consequência desta e tenha sua existência formal justamente dela derivada.

O estado de defesa [10] é medida de defesa do Estado, destinada a preservar a ordem pública e a paz social instaurada por instabilidades institucionais ou calamidades de grandes proporções, objetivando restaurar a normalidade constitucional. Nessa condição, o Presidente da República está investido de poderes especiais para suspender algumas das garantias individuais asseguradas na Carta Magna, com o intuito de restabelecer a ordem, ouvindo previamente o Conselho da República e o Conselho de Defesa Nacional.

Art. 136. O Presidente da República pode, ouvidos o Conselho da República e o Conselho de Defesa Nacional, decretar estado de defesa para preservar ou prontamente restabelecer, em locais restritos e determinados, a ordem pública ou a paz social ameaçadas por grave e iminente instabilidade institucional ou atingidas por calamidades de grandes proporções na natureza.

O estado de defesa é modalidade mais branda do que o estado de sítio e não exige para sua decretação a autorização do Congresso Nacional. O Presidente da República deve apenas submetê-lo ao Legislativo, no prazo de vinte e quatro horas, para verificação de sua legalidade, como determina o parágrafo 4º, do artigo 136, da CRFB/88. O decreto presidencial deverá determinar o prazo de sua duração; especificar as áreas abrangidas e indicar as medidas coercitivas.

O objetivo principal do estado de defesa é preservar ou restabelecer a ordem e a paz social, diante da grave e imediata instabilidade institucional ou calamidades de grandes proporções na natureza.

As garantias constitucionais controladas durante o estado de defesa estão relacionadas no parágrafo 1º, do artigo 136, da CRFB/88 e se concretizam pela restrição aos direitos de reunião, sigilo de correspondência e comunicação telegráfica e telefônica; ocupação e uso temporário de bens e serviços públicos, quando se tratar de calamidade pública; prisão por crime contra o Estado, determinada diretamente pelo executor do estado de defesa, que não poderá ser superior a 10 dias e deverá ser imediatamente comunicada ao juiz competente, vedando-se a incomunicabilidade do preso.

O estado de sítio [11] é medida de defesa do Estado que consiste na suspensão temporária das garantias constitucionais, em área delimitada ou em todo o território brasileiro, objetivando preservar ou restaurar a normalidade constitucional, perturbada por grave comoção nacional ou em situação de guerra declarada.

A Constituição determina que o Presidente da República solicite a autorização do Congresso Nacional para instauração do estado de sítio, depois de ouvido o Conselho da República e o Conselho de Defesa Nacional.

Art. 137. O Presidente da República pode, ouvidos o Conselho da República e o Conselho de Defesa Nacional, solicitar ao Congresso Nacional autorização para decretar o estado de sítio nos casos de:

I - comoção grave de repercussão nacional ou ocorrência de fatos que comprovem a ineficácia de medida tomada durante o estado de defesa;

II - declaração de estado de guerra ou resposta à agressão armada estrangeira.

O estado de sítio é decretado objetivando preservar ou restaurar a normalidade constitucional, perturbada pela comoção grave de repercussão nacional; ineficácia da medida tomada durante o estado de defesa; declaração de estado de guerra ou resposta à agressão armada estrangeira.

As garantias constitucionais que se sujeitam ao estado de sítio estão elencadas no artigo 139, da CRFB/88, e caracterizam-se pela obrigação de permanência em localidade determinada; detenção em edifício não destinado a acusados ou condenados por crimes comuns; restrições relativas à inviolabilidade de correspondência, ao sigilo de comunicações, à prestação de informações e à liberdade de imprensa, radiodifusão e televisão; suspensão da liberdade de reunião; busca e apreensão em domicílio; intervenção nas empresas de serviços públicos; requisição de bens.

Os mecanismos de defesa da Constituição alargam a esfera de atuação legítima do Estado, valendo-se da suspensão das garantias de direitos fundamentais para implementar a ordem da lei e da paz pública. Todavia a restrição de direitos deve ser encarada em momentos extremos, como os pontuados pelo o constituinte, sob pena de um dos poderes do Estado parecer mais fortalecido que os demais, no limite estreito do autoritarismo.

No ensinamento do professor Luís Roberto Barroso [12]:

A Constituição de 1988 representa o ponto culminante dessa trajetória, catalizando o esforço de inúmeras gerações de brasileiros contra o autoritarismo, a exclusão social e o patrimonialismo, estigmas da formação nacional.

O estado de defesa e estado de sítio são sistemas de defesa das crises, que se justificam, como visto, pelos princípios da necessidade e da temporariedade na finalidade de manter ou restabelecer a normalidade constitucional.


4. SEGURANÇA PÚBLICA

Segurança pública é inerente ao poder de polícia da Administração, sendo conceituada Diogo de Figueiredo Moreira Neto [13] como a garantia da ordem pública interna:

[…] o estado de paz social que experimenta a população, decorrente do grau de garantia individual ou coletiva propiciado pelo poder público, que envolve, além das garantias de segurança, tranqüilidade e salubridade, as noções de ordem moral, estética, política e econômica independentemente de manifestações visíveis de desordem.

A Constituição da República Federativa do Brasil, no seu Título V, denominado "Da Defesa do Estado e das Instituições Democráticas", dedicou o Capítulo III para tratar da segurança pública, identificando no seu artigo 144 o conjunto de órgãos responsáveis pela preservação da ordem pública e da incolumidade das pessoas e do patrimônio.

Art. 144. A segurança pública, dever do Estado, direito e responsabilidade de todos, é exercida para a preservação da ordem pública e da incolumidade das pessoas e do patrimônio, através dos seguintes órgãos:

I - polícia federal;

II - polícia rodoviária federal;

III - polícia ferroviária federal;

IV - polícias civis;

V - polícias militares e corpos de bombeiros militares.

Os órgãos de segurança pública, a saber, a Polícia Federal, a Polícia Rodoviária Federal, a Polícia Ferroviária Federal, as Polícias Civis, as Polícias Militares e os Corpos de Bombeiros Militares, são os designados pelo constituinte para o exercício da atividade de prevenção e controle da criminalidade e da violência, como explicitado nos parágrafos 1º ao 7º, do artigo 144, da CRFB/88:

Art. 144. [...]

§ 1º A polícia federal, instituída por lei como órgão permanente, organizado e mantido pela União e estruturado em carreira, destina-se a:

I - apurar infrações penais contra a ordem política e social ou em detrimento de bens, serviços e interesses da União ou de suas entidades autárquicas e empresas públicas, assim como outras infrações cuja prática tenha repercussão interestadual ou internacional e exija repressão uniforme, segundo se dispuser em lei;

II - prevenir e reprimir o tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins, o contrabando e o descaminho, sem prejuízo da ação fazendária e de outros órgãos públicos nas respectivas áreas de competência;

III - exercer as funções de polícia marítima, aérea e de fronteiras;

III - exercer as funções de polícia marítima, aeroportuária e de fronteiras;

IV - exercer, com exclusividade, as funções de polícia judiciária da União.

§ 2º A polícia rodoviária federal, órgão permanente, organizado e mantido pela União e estruturado em carreira, destina-se, na forma da lei, ao patrulhamento ostensivo das rodovias federais.

§ 3º A polícia ferroviária federal, órgão permanente, organizado e mantido pela União e estruturado em carreira, destina-se, na forma da lei, ao patrulhamento ostensivo das ferrovias federais.

§ 4º - Às polícias civis, dirigidas por delegados de polícia de carreira, incumbem, ressalvada a competência da União, as funções de polícia judiciária e a apuração de infrações penais, exceto as militares.

§ 5º - Às polícias militares cabem a polícia ostensiva e a preservação da ordem pública; aos corpos de bombeiros militares, além das atribuições definidas em lei, incumbe a execução de atividades de defesa civil.

§ 6º - As polícias militares e corpos de bombeiros militares, forças auxiliares e reserva do Exército, subordinam-se, juntamente com as polícias civis, aos Governadores dos Estados, do Distrito Federal e dos Territórios.

§ 7º - A lei disciplinará a organização e o funcionamento dos órgãos responsáveis pela segurança pública, de maneira a garantir a eficiência de suas atividades. [grifo nosso]

As atividades desempenhadas pelos órgãos elencados não se confundem com defesa nacional, que se destina à preservação da soberania, à defesa do mar territorial, e do espaço aéreo, cuja função é de reserva das Forças Armadas. No entanto, o constituinte de 1988 valorizou o principal aspecto da ordem pública, qual seja a segurança pública [14], e o Estado, no seu dever de agir, conferiu esta dignidade constitucional aos órgãos policiais.


5. FORÇAS ARMADAS

As Forças Armadas são instituições permanentes e regulares, pautadas na hierarquia e na disciplina, constituídas pelo Exército, pela Marinha e pela Aeronáutica, sob a autoridade do Presidente da República. Sua missão institucional é defender a Pátria e garantir o Estado Democrático de Direito, representado pelo povo e para o povo, mediante os poderes constituídos. No entanto, em situações anômalas, poderá ser chamado para garantia da lei e da ordem.

Esse preceito é de ordem constitucional e está estabelecido no caput, do artigo 142, da Lei Maior:

Art. 142. As Forças Armadas, constituídas pela Marinha, pelo Exército e pela Aeronáutica, são instituições nacionais permanentes e regulares, organizadas com base na hierarquia e na disciplina, sob a autoridade suprema do Presidente da República, e destinam-se à defesa da Pátria, à garantia dos poderes constitucionais e, por iniciativa de qualquer destes, da lei e da ordem.

O professor Manoel Gonçalves Ferreira Filho [15] conceitua as Forças Armadas como um corpo especial da Administração Pública, oposto ao setor civil por sua militarização, pelo enquadramento hierárquico de seus membros em unidades armadas e preparadas para o combate.

As Forças Armadas garantem o desenvolvimento das atividades estatais contra as investidas de outros países, cabendo à Marinha de Guerra resguardar o espaço marítimo, à Aeronáutica zelar pela extensão aérea e ao Exército Brasileiro cuidar da dimensão terrestre.

As Forças Armadas têm como finalidade precípua a garantia da segurança Externa do Estado, e da garantia dos poderes constitucionais, aí compreendidos o Executivo, o Legislativo e o Judiciário, razão por que detêm a concentração do poderio bélico. Somente em situações extremas é que atuarão na segurança da lei e da ordem interna.

A Carta Maior estabelece no parágrafo 1º, do seu artigo 142, que ficará a cargo de lei complementar a disciplina das normas gerais adotadas na organização, no preparo e no emprego das Forças Armadas.

Nesse sentido, foi editada a Lei Complementar nº 97, de 09 de junho de 1999, posteriormente alterada pela Lei Complementar nº 117, de 02 de setembro de 2004, que disciplina o emprego das tropas federais nas operações de garantia dos poderes constitucionais, da lei e da ordem, como medida excepcional.

A LC nº. 97/99 normatiza os requisitos e condições de atuação das Forças Armadas, cuja decisão de iniciar a execução das medidas consideradas necessárias à defesa da lei e da ordem é de competência e responsabilidade do Presidente da República. Estes preceitos se depreendem da leitura do artigo 15, da LC nº. 97/99:

Art. 15. O emprego das Forças Armadas na defesa da Pátria e na garantia dos poderes constitucionais, da lei e da ordem, e na participação em operações de paz, é de responsabilidade do Presidente da República, que determinará ao Ministro de Estado da Defesa a ativação de órgãos operacionais, observada a seguinte forma de subordinação: [...]

§ 1o Compete ao Presidente da República a decisão do emprego das Forças Armadas, por iniciativa própria ou em atendimento a pedido manifestado por quaisquer dos poderes constitucionais, por intermédio dos Presidentes do Supremo Tribunal Federal, do Senado Federal ou da Câmara dos Deputados.

§ 2o A atuação das Forças Armadas, na garantia da lei e da ordem, por iniciativa de quaisquer dos poderes constitucionais, ocorrerá de acordo com as diretrizes baixadas em ato do Presidente da República, após esgotados os instrumentos destinados à preservação da ordem pública e da incolumidade das pessoas e do patrimônio, relacionados no art. 144 da Constituição Federal.

§ 3o Consideram-se esgotados os instrumentos relacionados no art. 144 da Constituição Federal quando, em determinado momento, forem eles formalmente reconhecidos pelo respectivo Chefe do Poder Executivo Federal ou Estadual como indisponíveis, inexistentes ou insuficientes ao desempenho regular de sua missão constitucional.

§ 4o Na hipótese de emprego nas condições previstas no § 3o deste artigo, após mensagem do Presidente da República, serão ativados os órgãos operacionais das Forças Armadas, que desenvolverão, de forma episódica, em área previamente estabelecida e por tempo limitado, as ações de caráter preventivo e repressivo necessárias para assegurar o resultado das operações na garantia da lei e da ordem.

§ 5o Determinado o emprego das Forças Armadas na garantia da lei e da ordem, caberá à autoridade competente, mediante ato formal, transferir o controle operacional dos órgãos de segurança pública necessários ao desenvolvimento das ações para a autoridade encarregada das operações, a qual deverá constituir um centro de coordenação de operações, composto por representantes dos órgãos públicos sob seu controle operacional ou com interesses afins. [grifo nosso]

O Chefe da República baixará as diretrizes mediante mensagem de ativação dos órgãos operacionais das Forças Armadas, traçando as ações de caráter preventivo e repressivo necessárias para assegurar o resultado das operações na garantida da lei e da ordem. A atuação das forças federais não será um evento autônomo, mas incidente ao contexto do caso concreto, em colaboração aos órgãos de segurança pública. A área de atuação será previamente estabelecida e por tempo limitado à necessidade do restabelecimento do controle da ordem pública.

Cabe ao Presidente da República, na qualidade da autoridade hierárquica suprema, a responsabilidade pela decisão de empregar as tropas no combate da violência civil, mesmo nas hipóteses de atenção a pedido expresso de quaisquer dos Poderes Constituídos, seja do presidente do Supremo Tribunal Federal ou dos presidentes das casas do Congresso Nacional.

O reconhecimento da inoperabilidade dos órgãos da polícia pública não se deduz, mesmo que evidente. Trata-se de ato formal de reconhecimento pelo respectivo ente público, que deverá declarar expressamente a indisponibilidade, a inexistência ou a insuficiência no desempenho regular de sua missão constitucional de preservar a ordem pública e a incolumidade das pessoas e do patrimônio, requisito fundamental à atuação das Forças Armadas.

O controle operacional dos órgãos de segurança pública será transferido ao Presidente da República, que constituirá um centro de coordenação das operações necessárias à execução da garantia da lei e da ordem pública, composto por representantes dos demais órgãos públicos.

No artigo 16, da LC nº. 97/99, o legislador determina que a missão das Forças Armadas seja de natureza subsidiária, na qualidade de colaboradoras do desenvolvimento nacional e da defesa civil.

O professor José Afonso da Silva [16] (1999, p. 746) ensina que:

subsidiariamente e eventualmente lhes incumbe a defesa da lei e da ordem, porque essa defesa é de competência primária das forças de segurança pública, que compreendem a polícia federal e as polícias civil e militar dos Estados e do Distrito Federal. Sua interferência na defesa da lei e da ordem depende, além do mais, de convocação dos legitimados representantes de qualquer dos poderes federais: Presidente da Mesa do Congresso Nacional, República da República ou Presidente do Supremo Tribunal Federal. Ministro não é poder constitucional. Juiz de Direito não é poder constitucional. Juiz Federal não é poder constitucional. Deputado não é poder constitucional. Senador não é poder constitucional. São simples membros dos poderes e não os representam. Portanto, a atuação das Forças Armadas convocada por Juiz de direito ou por Juiz Federal, ou mesmo por algum Ministro do Superior tribunal de Justiça ou até mesmo do Ministro do Supremo Tribunal Federal, é inconstitucional e arbitrária, porque estas autoridades, por mais importantes que sejam, não representam qualquer dos poderes constitucionais federais. [grifo nosso]

Infere-se que o legislador, ao atribuir às Tropas a responsabilidade pela "garantia da lei e da ordem", retrata situações ímpares, evidenciadas pelo colapso no combate à criminalidade e diante do quadro de incapacidade ou de insuficiência operacional dos órgãos de segurança pública no restabelecimento da ordem.

A Marinha, a Aeronáutica e o Exército, cada qual no seu papel institucional, assumirão a função de colaboradores no restabelecimento da ordem, nos limites traçados pelo Presidente da República.

A Marinha do Brasil tem o dever subsidiário de controle e fiscalização do cumprimento das leis no mar e nas águas continentais, bem como oferecer apoios de logística, de inteligência, de comunicações e de instrução, conforme a necessidade do caso concreto.

A disciplina de atuação da Força Naval está prevista no artigo 17, da LC nº. 97/99:

Art. 17. Cabe à Marinha, como atribuições subsidiárias particulares:

[...]

IV - implementar e fiscalizar o cumprimento de leis e regulamentos, no mar e nas águas interiores, em coordenação com outros órgãos do Poder Executivo, federal ou estadual, quando se fizer necessária, em razão de competências específicas.

V– cooperar com os órgãos federais, quando se fizer necessário, na repressão aos delitos de repercussão nacional ou internacional, quanto ao uso do mar, águas interiores e de áreas portuárias, na forma de apoio logístico, de inteligência, de comunicações e de instrução. [grifo nosso]

A Força Aérea Brasileira tem como missão subsidiária a cooperação nos delitos de grande repercussão nacional e internacional, oferecendo apoio logístico, de inteligência, de comunicações e de instrução. Também, é responsável pelo controle do tráfego aéreo ilegal, no combate dos delitos de tráfico ilegal de drogas, armas, munições e passageiros, como determina o artigo 18, da LC nº. 97/99

Art. 18. Cabe à Aeronáutica, como atribuições subsidiárias particulares: (...)

VI – cooperar com os órgãos federais, quando se fizer necessário, na repressão aos delitos de repercussão nacional e internacional, quanto ao uso do espaço aéreo e de áreas aeroportuárias, na forma de apoio logístico, de inteligência, de comunicações e de instrução;

VII – atuar, de maneira contínua e permanente, por meio das ações de controle do espaço aéreo brasileiro, contra todos os tipos de tráfego aéreo ilícito, com ênfase nos envolvidos no tráfico de drogas, armas, munições e passageiros ilegais, agindo em operação combinada com organismos de fiscalização competentes, aos quais caberá a tarefa de agir após a aterragem das aeronaves envolvidas em tráfego aéreo ilícito. [grifo nosso]

No controle do tráfego aéreo, se destaca a Lei do Abate, que permite a derrubada das aeronaves que eventualmente invadir o espaço aéreo brasileiro. É a Lei nº. 9.614, de 05 de março de 1998, que alterou o enunciado do artigo 303, da Lei nº. 7.565, de 19 de dezembro de 1986:

Art. 303. A aeronave poderá ser detida por autoridades aeronáuticas, fazendárias ou de Polícia Federal, nos seguintes casos:

[...]

§ 2º Esgotados os meios coercitivos legalmente previstos, a aeronave será classificada como hostil, ficando sujeita à medida de destruição, nos casos dos incisos do caput deste artigo e após autorização do Presidente da República ou a autoridade por ele delegada.

O dispositivo enuncia o poder de polícia da Força Aérea Brasileira, no controle do espaço aéreo que, autorizada pelo Presidente da República, poderá abater a aeronave em voo irregular e que resiste às ordens de pouso no local indicado.

O Exército Brasileiro, na sua missão subsidiária, auxilia os órgãos de segurança pública com os apoios de logística, de inteligência, de comunicações e de instrução e, no exercício do seu poder de polícia, age nas faixas lindeiras, reprimindo os crimes transfronteiriços e ambientais, como determina o artigo 17-A, LC nº. 97/99:

Art. 17-A. Cabe ao Exército, além de outras ações pertinentes, como atribuições subsidiárias particulares:

[...]

III – cooperar com órgãos federais, quando se fizer necessário, na repressão aos delitos de repercussão nacional e internacional, no território nacional, na forma de apoio logístico, de inteligência, de comunicações e de instrução;

IV – atuar, por meio de ações preventivas e repressivas, na faixa de fronteira terrestre, contra delitos transfronteiriços e ambientais, isoladamente ou em coordenação com outros órgãos do Poder Executivo, executando, dentre outras, as ações de:

a) patrulhamento;

b) revista de pessoas, de veículos terrestres, de embarcações e de aeronaves; e

c) prisões em flagrante delito. [grifo nosso]

O poder de polícia conferido às Forças Armadas não é a regra nas questões de segurança pública, revelando-se estas em situações especiais juridicamente previstas na lei. No entanto, o dispositivo é alvo de cerrados debates, alguns sustentando a inconstitucionalidade do inciso IV, do artigo 17-A, incluído pela Lei Complementar nº. 117, de 2004, sob o argumento de que a prevenção e a repressão de crimes de faixa de fronteira, assim como os delitos ambientais, cabem exclusivamente à Polícia Federal, por determinação expressa da Constituição.

O professor João Rodrigues Arruda [17], ao tratar do assunto, leciona:

Mesmo sendo o Presidente da República a autoridade que detém o poder de policia federal no mais alto nível e também o comandante-em-chefe das Forças Armadas, não pode ele transferir as atribuições de uma para outras das instituições. Nem o Congresso Nacional pode fazê-lo. A barreira intransponível é a Constituição, que fixou as missões que cabem a cada uma delas. As Forças Armadas no artigo 142 e a Polícia Federal no artigo 144.

Atento aos acontecimentos, o legislador já se posiciona no sentido de ampliar o poder de polícia das Forças Armadas na tarefa de zelar pelo bem-estar social, conferindo-lhes atribuição precípua e não mais subsidiária, mediante a Proposta de Emenda à Constituição 319/08 [18], do deputado Antonio Carlos Pannunzio, do PSDB-SP.

PROPOSTA DE EMENDA CONSTITUCIONAL Nº, DE 2008

(Do Sr. Antonio Carlos Pannunzio e outros)

Acresce dispositivo relativo à garantia da integridade territorial nacional.

As Mesas da Câmara dos Deputados e do Senado Federal, nos termos do § 3o do art. 60 da Constituição da República, promulgam a seguinte Emenda ao texto constitucional:

Art. 1º. O art. 142 da Constituição passa a vigorar acrescido do seguinte § 1º. A:

"§ 1º. A - No cumprimento das suas destinações constitucionais, é assegurado às Forças Armadas, o exercício do poder de polícia em qualquer área do território nacional, independentemente da posse, propriedade, finalidade ou qualquer gravame que sobre ela recaia."

Art. 2º. Esta Emenda Constitucional entra em vigor na data da sua publicação. [grifo nosso]

A PEC nº. 319/08 aguarda o parecer da Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania da Câmara dos Deputados.

O deputado Antonio Carlos Pannunzio [19] defende a possibilidade das Forças Armadas exercerem o poder de polícia em toda a extensão territorial, observando que a paz social deriva da autoridade, enquanto Estado soberano. E, assim exemplifica:

Ela precisa ser afirmada como uma necessidade imperativa, sob pena de se admitir a formação de situações de anomia, justamente onde as condições naturais - como é o caso das fronteiras ao Norte - dificultam o acesso e a presença dos mecanismos tradicionais com os quais a autoridade do Estado é exercida.

No mesmo sentido, quando do incidente no Morro da Providência, no Estado do Rio de Janeiro, em junho de 2008, quando da atuação do Exército Brasileiro na segurança das obras do "Cimento Social", um projeto do governo federal, os deputados Raul Jungmann, do PPS-PE, e Jair Bolsonaro, do PP-RJ, defenderam a necessidade de previsão constitucional para conceder poder de polícia a militares do Exército, conforme noticiado por Camila Jungles [20]:

Morro da Providência

Os deputados Raul Jungmann (PPS-PE) e Jair Bolsonaro (PP-RJ) defenderam no ano passado a regulamentação de artigo da Constituição que concede poder de polícia a militares do Exército.

Jungmann, Bolsonaro e os deputados Antonio Carlos Biscaia (PT-RJ) e Hugo Leal (PSC-RJ) fizeram parte de grupo parlamentar que esteve no Rio de Janeiro em junho passado para apurar o envolvimento de 11 militares no assassinato de três jovens no Morro da Providência.

Relatório elaborado pelo grupo afirma que o Exército atuou como polícia durante as obras do projeto Cimento Social. Na época, o relator, deputado Antônio Carlos Biscaia, lembrou que o Exército deveria ter atuado apenas para dar segurança às obras.

Em conversa com os parlamentares, o general Luiz Cesário da Silveira, do Comando Militar do Leste, afirmou que a falta de poder de polícia dificultaria as ações do Exército em áreas urbanas e em comunidades faveladas.

Presidente da Comissão de Segurança Pública, o deputado Raul Jungmann decidiu, então, criar um grupo de trabalho para discutir a regulamentação da Constituição em relação à atuação do Exército na garantia da lei e da ordem.

Biscaia lembrou que, atualmente, a legislação exige solicitação expressa do governo do estado para o uso do Exército na segurança pública.

Percebe-se que os parlamentares já se movimentam no sentido de acabar com a discussão, para ampliar a legitimidade das Forças Armadas no seu munus [21] da garantia da lei e da ordem pública. No entanto, a sistemática constitucional e legal em vigor já permite o emprego das Forças Armadas em situações excepcionais, de atuação subsidiária e transitória na segurança pública.


6. CONSIDERAÇÕES FINAIS

A crescente violência dos grandes centros urbanos, decorrente da criminalidade descomedida, ameaça a eficácia dos mecanismos de segurança pública executados pelos órgãos estatais, os quais foram destinados constitucionalmente pela preservação da lei e da ordem pública.

Diante desses fatídicos incidentes, que rotineiramente são noticiados pelos meios de publicidades, as autoridades estaduais têm buscado auxílio da União, mediante a cooperação das Forças Armadas.

Nesse desempenho, teve grande repercussão nacional o lamentável incidente no Estado do Rio de Janeiro, em junho de 2008, no Morro da Providência, quando da atuação do Exército Brasileiro na segurança das obras do "Cimento Social", que deu origem à Ação Civil Pública nº. 2008.51.01.009581-8 [22], perante a 18ª Vara Federal do Rio de Janeiro, impetrada pela Defensoria Pública da União. A situação aguçou ainda mais os debates a respeito da atuação das Forças Armadas no mister de controlar e reprimir a criminalidade e violência nos grandes centros urbanos.

A Constituição disciplina os estados de anormalidade e da garantia da lei e da ordem no mesmo título de organização, "TÍTULO V – Da Defesa do Estado e das Instituições Democráticas", que está divido em três capítulos, "Do Estado de Defesa e do Estado de Sítio", "Das Forças Armadas" e "Da Segurança Pública".

O artigo 142, in fini, da CRFB/88, ao prever a atuação das Forças Armadas, o faz no Capítulo II, distinto do que trata dos estados de anormalidade, Capítulo I, e da segurança pública, Capítulo III. O constituinte, ao assim disciplinar, positivou-a na disposição mediana, como equilíbrio entre o capítulo que disciplina os estados de defesa e de sítio e o que disciplina a segurança pública.

A legitimidade do poder de polícia das Forças Armadas no exercício da segurança pública se depreende da hermenêutica dos dispositivos constitucionais e da legislação vigente. Buscando-se a mens legis [23], percebe-se que deve ser aplicado o princípio geral de direito de "quem pode o mais, pode o menos". Pois, a quem é permitido defender o Estado nas instabilidades externas, com mais propriedade, está legitimado para defesa da sociedade dos ataques civis.

No entanto, é preciso lembrar que o emprego das Forças Armadas só se legitima em situações excepcionais, tendo em vista que o próprio texto constitucional reserva aos órgãos de segurança pública, quais sejam, polícia federal, polícia rodoviária federal, polícia ferroviária federal, polícia civil, polícia militar e corpos de bombeiros militares, a primazia da preservação da ordem pública e da incolumidade das pessoas e do patrimônio. Essa divisão de tarefas é forma de distribuir as funções entre os órgãos, na manutenção da ordem e dos direitos fundamentais do indivíduo e da coletividade.

O legislador editou a LC nº. 97/99 para disciplina das situações excepcionais, nas quais as Forças Armadas, subsidiarimante, são chamadas a colaborar com as forças policiais no restabelecimento da ordem e da paz social violada.

O reconhecimento formal de indisponibilidade, de inexistência ou de insuficiência de recursos de segurança por parte da autoridade respectiva é a consagração do princípio do pacto federativo pela LC nº. 97/99, pois preceitua a necessidade da deliberação entre os Entes Públicos no emprego das Forças Armadas no momento da crise social instalada. Portanto, não há ingerência da União, mas participação conjunta na operação de restaurar a paz pública, em perfeita solidariedade ao Ente Estatal no momento de insegurança.

Diante da situação, a Câmara dos Deputados já se mobilizou no sentido de ampliar a legitimidade das Forças Armadas, por meio da PEC 319/08, proposta pelo deputado Antonio Carlos Pannunzio, do PSDB-SP. A PEC propõe a alteração do artigo 142, da CRFB/88, para conferir poder de polícia às Forças Armadas no exercício da segurança pública em qualquer área do território nacional.

O enfraquecimento da lei pela desordem social faz nascer o poder paralelo da impunidade, prestigiando indevidamente a criminalidade e, consequentemente, colocando em risco o Estado Democrático. Os noticiários revelam diariamente a falência nos setores de segurança pública, demonstrando que a falta de integração dos órgãos de polícia é uma realidade da sociedade brasileira, muitas vezes fruto da politicagem motivada por sentimentos eleitoreiros. Enquanto isso, preceitos fundamentais mínimos da dignidade da pessoa humana são violados, como o direito à vida, à liberdade, à propriedade, à segurança.

A segurança pública não é função por excelência das Forças Armadas, missão reservada às forças policiais, por força do artigo 144, da CRBF/88. Apesar do contexto social atual, as forças de segurança vêm cumprindo o seu papel na preservação dos direitos fundamentais do cidadão. Sabe-se que a crise na segurança pública decorre das mazelas instaladas nos setores de serviços públicos essenciais e, enquanto não se implantar uma política social séria, com a erradicação das desigualdades, dificilmente o Estado conseguirá contornar a situação de forma eficaz.

O Estado deve zelar pelas garantais individuais e coletivas do seu território, do seu povo, do seu regime político e do seu sistema constitucional, contra a violência das minorias inconformadas e o ataque das ideologias contrárias à ordem jurídica vigente.

Nesse contexto, o emprego das Forças Armadas na solução dos conflitos locais não deve servir como medida paliativa à omissão do Estado, como fundo de campanha em resposta ao clamor da sociedade votante. No entanto, verificada as situações de excepcionalidade da medida, a mensagem do ordenamento jurídico em vigor é pela legitimidade do poder de polícia das Forças Armadas, seja na sua atribuição constitucional principal pela defesa externa, sejam nas missões constitucionais de cooperação aos demais órgãos de segurança, na garantia dos Poderes constituídos e na garantia da lei e da ordem pública.

Por conseguinte, conclui-se que em situações extremas há necessidade de se fortalecer as instituições democráticas, valendo-se, se necessário, do auxílio das Forças Armadas, sem que isso configure ofensa à Carta Republicana. Pois, a segurança pública é garantia do Estado Democrático de Direito, corolário das liberdades e integridades sociais.


REFERÊNCIAS

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Notas

  1. CATANHÊDE, Eliane. A Constituição não prevê o uso militar na garantia da lei e da ordem, a não ser que o governo do Rio se declare incapaz. Folha de São Paulo, São Paulo, 08 jan. 2007. Disponível em: <http://nicufpe.zip.net/arch2007-01-07_2007-01-13.html#2007_01-08_11_27_40-5290638-0>. Acesso em: 09 de abr. 2009.
  2. ROESLER, Átila Da Rold. Novas considerações sobre o poder de polícia. Jus Navigandi, Teresina, ano 11, n. 1470, 11 jul. 2007. Disponível em: <http://jus.com.br/revista/texto/10112>. Acesso em: 08 abr. 2009.
  3. Do grego, polis.
  4. Manual Básico da Escola Superior de Guerra. - Rio de Janeiro: A Escola, 2006, p. 18.
  5. Cabe observar que, em situações peculiares, o poder de polícia pode ser vinculado, como acontece na concessão de licença ou autorização para o exercício de certas atividades. Neste caso, se preenchidos os requisitos legais, o administrado tem o direito de exigir que a Administração Pública pratique o ato.
  6. v. Art. 37. A administração pública direta e indireta de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios obedecerá aos princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência. [grifo nosso]
  7. BARROSO, Luís Roberto. Temas de Direito Constitucional. São Paulo: Renovar, 2005. t. 3, p. 367.
  8. GARCIA, Emerson. As forças armadas e a garantia da lei e da ordem. Revista jurídica, Brasília, vol. 10, n. 92, Out/2008 a Jan/2009, p. 6. Disponível em: <https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/revista/revistajuridica/Artigos/PDF/EmersonGarcia_Rev92.pdf>. Acesso em 08 de abr. de 2009.
  9. SILVA, De Plácido e. Vocabulário Jurídico. 23ª ed. Rio de Janeiro:Editora Forense, 2003, p. 988.
  10. SILVA, José Afonso da. Comentário contextual à Constituição. São Paulo: Ed. Malheiros. 2008, p. 620.
  11. FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves. O Estado de Sítio. Tese de concursos. São Paulo, 1964, p. 121.
  12. BARROSO, Luís Roberto. Vinte anos da Constituição Brasileira de 1988: o estado a que chegamos. Migalhas, São Paulo, 27 nov. 2008. Disponível em: <http://www.migalhas.com.br/mig_imprimir_sem_imagem.aspx?cod=74424>. Acesso em 28 nov. 2008.
  13. NETO, Diogo de Figueiredo Moreira. Direito Administrativo da Segurança Pública. Direito Administrativo da Ordem Pública. 3ª ed, Rio de Janeiro: Forense, 1998, p. 81.
  14. LAZZARINI, Álvaro. Estudos de Direito Administrativo. 2. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1999, p. 57-58.
  15. FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves. Curso de Direito Administrativo. 28. ed. São Paulo: Saraiva, 2002, p. 235.
  16. SILVA, José Afonso. Direito Constitucional Positivo. 16. ed. São Paulo: Malheiros, 1999, p. 746.
  17. ARRUDA, João Rodrigues. O uso político das Forças Armadas. 1. ed. Rio de janeiro: Mauad X, 2007, p. 104.
  18. PANNUNZIO, Antonio Carlos. Proposta de Emenda à Constituição nº. 319, de 2008. Disponível em: <http://www.camara.gov.br/sileg/MostrarIntegra.asp?CodTeor=627323>. Acesso em 10 abr. 2009.
  19. JUNGLES, Camila. PEC assegura poder de polícia às Forças Armadas. Disponível em: <http://www.adpf.org.br/modules/news/article.php?storyid=43506>. Acesso em 10 abr. 2009.
  20. Idem.
  21. Palavra latina, que significa encargo.
  22. Tribunal Regional Federal (2ª Região). Exército deverá permanecer apenas na rua em que estão sendo realizadas obras do projeto "Cimento Social". Notícias, 20 jun 2008. Disponível em: <http://www2.trf2.gov.br/noticias/materia.aspx?id=2487>. Acesso em 14 abr 2009..
  23. Palavra latina, que significa espírito da lei, intenção da lei.

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Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

CORRÊA, Andréa Costa. O poder de polícia das Forças Armadas no exercício da segurança pública. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 16, n. 2771, 1 fev. 2011. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/18396. Acesso em: 29 mar. 2024.