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A competência material da Justiça do Trabalho conforme atual interpretação do Supremo Tribunal Federal.

Análise da ADI 2135 à luz da Constituição, das leis processuais, da doutrina e da própria jurisprudência do STF

A competência material da Justiça do Trabalho conforme atual interpretação do Supremo Tribunal Federal. Análise da ADI 2135 à luz da Constituição, das leis processuais, da doutrina e da própria jurisprudência do STF

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O STF, à luz da ADI 2135, vem decidindo pela incompetência da Justiça do Trabalho nos processos entre trabalhadores e Poder Público, pela suposta inadmissibilidade de regime celetista nos entes estatais.

Resumo:

O propósito do presente estudo dirige-se à análise crítica das decisões do STF tomadas à luz da ADI 2135 e Reclamações posteriores, onde se vem decidindo pela incompetência da Justiça do Trabalho para processar e julgar quaisquer feitos entre trabalhadores e o Poder Público, com fundamento na suposta inadmissibilidade, pelo regime constitucional atual, de celebração de contrato de trabalho (regime celetista) entre Estado e indivíduo. Para chegar ao nosso objetivo, incursaremos pela doutrina e jurisprudência construídas desde a promulgação da Constituição de 1988, passando por breve análise das Emendas Constitucionais n. 19 e 45, até adentrarmos à ADI 3395 e, por fim, mais detidamente, à ADI 2135/DF.

Palavras-chave: ADI 2135; competência material; incompetência; Justiça do Trabalho; contrato de trabalho; regime jurídico; regime estatutário; regime celetista; trabalhador temporário; ADI 3395; EC 19; EC 45; EC 51.


1. Introdução

O tema "competência da Justiça do Trabalho" tem inspirado doutrinadores e juristas a acalorados debates desde o surgimento da nova ordem constitucional. Contudo, com o advento da Emenda Constitucional n. 45/2004, tais discussões sofreram sensível amenização, haja vista que, com a emenda, incorporaram-se ao texto constitucional as várias teses majoritárias dantes defendidas. No entanto, nos três anos seguintes, o Supremo Tribunal Federal, no julgamento de duas ações diretas, desestabilizou inteiramente o que já se dava por consagrado no que tange à matéria da competência da Justiça laboral. O primeiro abalo veio logo após a promulgação da EC 45, com a ADI 3395, em 2005; o segundo, mais recente e bem mais grave, surgiu com o julgamento, ainda liminar, da ADI 2135, em 2007. Desde então, a jurisprudência nacional encontra-se à deriva no que pertine à questão, e mesmo o próprio STF não entende à unanimidade o tema.

Com efeito, faz-se necessário o estudo crítico do problema, perpassando-se, de início, pela matéria da competência material e residual da Justiça do Trabalho.


2. Competência jurisdicional ratione materiae da Justiça do Trabalho – breves considerações.

A competência do órgão jurisdicional, do ponto de vista constitucional e legal, é definida em razão de várias subdivisões. Tais subdivisões são critérios de fixação da competência, agrupados, conforme o entendimento de cada doutrinador, em três, quatro ou cinco planos, sendo o mais importante deles, para efeito deste artigo, o critério material. Ressalva-se a existência de outros, desimportantes neste estudo.

Ao procurar identificar o órgão jurisdicional que teria competência para processar e julgar a causa, o intérprete (juiz, advogado, parte) norteia-se, de início, pelo critério material. Tal critério é de cognição bem simples, bastando para superá-lo o conhecimento da estrutura judiciária nacional: se a matéria é trabalhista, a competência é da Justiça do Trabalho; se a matéria é eleitoral, a competência é da Justiça Eleitoral; se a matéria é comum (assim entendida como toda aquela que não seja concernente às justiças especializadas da União), tem competência a Justiça Comum.

O primeiro problema a ser examinado pertine à proximidade entre o Direito do Trabalho e o Direito Civil, e a questão que se coloca, corriqueira na doutrina processual laboral, é a seguinte: ajuizada a demanda na Justiça do Trabalho, como saber se esta é realmente a justiça competente para o caso concreto, se se desconhece o mérito, ainda carente de apreciação? Noutras palavras: se o juiz do trabalho ainda não apreciou a natureza da relação jurídica material – se trabalhista ou outra qualquer, o que fará por ocasião da instrução e da sentença – como se afirmar que era a Justiça do Trabalho a competente, desde o início, para o processamento do feito?

Esse ponto de conflito do Direito Processual decerto que diminuiu com a ampliação da competência da Justiça do Trabalho, havida com a EC 45/2004, que incluiu na competência jurisdicional trabalhista várias relações jurídicas que sempre estiveram imersas na esfera da Justiça Comum, inobstante detivessem natureza marcadamente laboral, como as relações envolvendo os trabalhadores autônomos em geral.

Com efeito, a EC 45/2004 consagrou em definitivo um delineio que já se tinha jurisprudencialmente: a Justiça do Trabalho deveria ser a competente para processar e julgar as causas relativas a quaisquer relações de trabalho. A EC 45 consagrou uma justiça verdadeiramente do trabalho, em detrimento da mera justiça do emprego que se tinha antes. A espécie de direito material regente (se cível ou trabalhista ou administrativa; se relação de trabalho lato sensu ou relação de emprego) não mais seria óbice à análise do caso concreto pela Justiça do Trabalho. Se a relação jurídica detivesse cunho laboral, isto é, se a relação jurídica analisada tivesse como objeto principal o trabalho humano, regida ela ou não pelas normas específicas do Direito do Trabalho, atraída estaria a competência da justiça especializada.

Foge ao tema deste estudo analisar com detalhes o teor e os aspectos históricos envolvidos na elaboração da EC 45/2004, até porque o material doutrinário que se construiu nestes seis anos sobre o tema já é razoavelmente farto. Importa saber é que a referida emenda contribuiu grandemente para a solução do primeiro problema que se pôs linhas atrás. Com todas as relações de trabalho inclusas genericamente na competência da justiça trabalhista, a apreciação de seu mérito configuraria mero exaurimento da causa, pois certamente a competência já estaria definida. Pouquíssimas relações laborais ainda fugiriam à competência da justiça especializada, depois da promulgação da emenda, a exemplo do contrato de representação comercial, que, para parte da doutrina, ainda persiste nos domínios da Justiça Comum, por expressa previsão legal (Lei 4.886/65, art. 39).

Dessarte, imaginemos o seguinte exemplo: determinado trabalhador, representante comercial, esperançoso para se ver incluído no diploma protetivo da CLT, ajuizou demanda contra seu tomador dos serviços, alegando presentes os caracteres clássicos da relação de emprego, dizendo-se, portanto, empregado. Ora, tratando-se de representação comercial, a competência para o julgamento da causa é da Justiça Comum. Contudo, o juiz do trabalho ainda não sabe de que se trata. A princípio, ele tem em mãos uma causa para a qual se julga, ao menos inicialmente, o juiz competente. O magistrado só se aperceberá da real natureza da relação jurídica havida entre as partes quando da análise meritória da lide, aperfeiçoada com a instrução processual. E sua conclusão acerca dessa relação jurídica só poderá se manifestar por sentença. Ou seja: o juiz do trabalho é competente em toda e qualquer causa que se lhe apresente, até que se defina sua competência ou incompetência. Trata-se da denominada competência residual. O juiz trabalhista é sempre competente, nem que o seja apenas para se declarar incompetente. Só então os autos, se incompetente concluir o juízo, devem ser remetidos à Justiça Comum. Cuida-se de uma premissa inafastável: não se poderia exigir que o trabalhador ajuizasse a demanda na Justiça Comum, quando ele próprio se considerasse empregado. Aceitar tal proposição equivaleria a subverter a ordem lógica do processo, haja vista que cabe ao juiz do trabalho dizer se certa relação jurídica está sujeita a sua competência especializada ou não.

Com essa premissa, que é uma realidade processual fática, constrói-se a idéia de que a fixação da competência jurisdicional em razão da matéria (competência material ou competência ratione materiae) se dá em face da natureza das alegações deduzidas em juízo, isto é, da causa de pedir e do pedido. Sempre foi assim, mesmo antes da EC 45/2004. E, assim, casos haverá em que se identificará de plano a competência e, noutros, a fixação definitiva da competência dependerá de apreciação mais detida do mérito. Em ambas as situações, porém, a competência foi inicialmente alocada em razão da causa de pedir e do pedido suscitados.

Sobre o tema, explica LEITE (2008, p. 190):

"A competência em razão da matéria no processo do trabalho é delimitada em virtude da natureza da relação jurídica deduzida em juízo. Tem-se entendido que a determinação da competência material é fixada em decorrência da causa de pedir e do pedido. Assim, se o autor da demanda aduz que a relação material é a regida pela CLT e formula pedidos de natureza trabalhista, só há um órgão do Poder Judiciário que tem competência para processar e julgar tal demanda: a Justiça do Trabalho".

E prossegue o autor citando jurisprudência do próprio STF (CC 6.959-6. Relator Min. SEPÚLVEDA PERTENCE. DJ 22/02/1991).

No mesmo sentido, DIDIER JR. (2007, p. 106):

"É pela natureza da relação jurídica substancial deduzida em juízo que se faz a distribuição da competência pelo critério objetivo. (...) O legislador vale-se dos elementos da demanda como critérios para distribuir a competência (...). A competência em razão da matéria é determinada pela natureza da relação jurídica controvertida, definida pelo fato jurídico que lhe dá ensejo (vara de família, vara criminal, vara cível, etc.)".

Percebamos: quando se trata de critério de fixação de competência, a justiça especializada é sempre preferencial à comum. Primeiro se verifica a eventual especificidade da matéria para, em caso de negativa, encaminhá-la ao juízo ordinário. Não fosse assim, a sistemática da justiça brasileira recairia no seguinte absurdo: o juiz comum analisaria se a relação material é realmente especializada ou não e, declarando que o é, remeteria os autos à Justiça do Trabalho, com o mérito já julgado. Ao juiz trabalhista competiria apenas efetuar os cálculos pertinentes. Teríamos então um juiz comum examinando matéria para a qual não teria competência e um juiz especializado impedido de examinar a matéria que seria de sua competência, haja vista que já foi decidida por outro, incompetente, em decisão transitada em julgado. Evidente que tal proceder se afiguraria ilógico.

Assim, à guisa de conclusão deste primeiro tópico, tem-se que a competência material é fixada, pelo menos de início, em razão da natureza das relações materiais deduzidas em juízo, isto é, da causa de pedir e do pedido. Portanto, ajuizando o trabalhador uma reclamação trabalhista em que se diz empregado, perdura, em razão da causa de pedir e do pedido, a competência material do juiz do trabalho, ao menos até que se verifique a inveridicidade dos fatos alegados na inicial, se for o caso. Trata-se da competência residual.

Muito bem. Para finalizar este tópico, devemos frisar que, depois da promulgação da EC 45/004, o Supremo Tribunal Federal, nos autos da ADI 3395/DF, referendou a medida cautelar anteriormente deferida pelo então presidente Nelson Jobim, em que se declarou que a Justiça do Trabalho era incompetente para processar e julgar as relações jurídicas de natureza estatutária, isto é, aquelas existentes entre os servidores e a Administração Pública (ADI 3395/DF. Rel. Min. CÉZAR PELUSO. Pleno. DJ 10/11/2006). A partir de então, a contrario sensu da redação claríssima do art. 114, I, da Constituição Federal, extraiu-se grosseiramente da competência da Justiça especializada a relação jurídica estatutária, inobstante se trate de indiscutível relação de trabalho. Com as decisões tomadas nos autos da ADI 3395, iniciava-se a confusão interpretativa em que se encontra hoje o STF acerca do tema.


3. A ADI 3395 e sua incompatibilidade com a EC 45/2004

Não é propriamente objeto deste estudo a análise cuidadosa da ADI 3395, senão como fator de compreensão da atual confusão jurisprudencial que fez o STF sobre a matéria. Para que possamos chegar à ADI 2135, é importante tecer comentários breves sobre esta outra Ação Direta, bem como sobre as emendas constitucionais n. 19 e 45.

À época da promulgação da Constituição de 1988, seu art. 39 dispunha expressamente que os entes federados (União, Estados, DF, Municípios), bem assim suas autarquias e fundações, deveriam instituir regime jurídico único para seus servidores. O regime constitucional anterior (CF/67) permitia à Administração direta ou indireta admitir ou contratar. Noutras palavras, sob o pálio da Constituição de 1967, o Poder Público poderia arregimentar trabalhadores pelo regime administrativo ou pelo regime celetista.

O constituinte de 1988 procurou modificar esse panorama de duplo regime, imprimindo exigência às pessoas jurídicas de direito público no sentido de que o uniformizassem. A partir da atual carta, não mais seria possível ao Poder Público (Administração direta, autárquica e fundacional) manter contratos de trabalho. A intenção do legislador foi a de unificar o regime jurídico para o estatutário. Surgiu então a noção de regime único. A despeito de alguns que entendam possa ser esse regime único o celetista, pensamos que se trata do estatutário, de natureza administrativa, que é o regime estatal por excelência. A figura do Estado-empregador é historicamente nova, posterior à noção de Estado-monarca, Estado-imperial, e isso é per si suficiente para concluir que o art. 39 tratava do regime típico de Estado, isto é, de estatuto. Não faria sentido o Estado se despojar de seu poder de império nas relações com os seus servidores.

Além dessa obrigatoriedade de instituição do regime jurídico único, de natureza estatutária, a Constituição de 1988 trouxe ainda uma outra novidade. A Constituição de 1967 não exigia o concurso público para as contratações, ou seja, para a arregimentação de trabalhadores pelo regime celetista. Essa exigência de certame para o provimento de empregos surgiu com a Carta de 1988. É certo que para a Administração direta, autárquica e fundacional essa novidade pouco importava, porquanto não lhe seria mais permitido celebrar contrato de trabalho. A norma interessava, a priori, apenas à Administração indireta de direito privado. Empresas públicas e sociedades de economia mista eram e são estatais sujeitas ao regime privado; assim, não estavam abrangidas pela regra do regime único. No entanto, ficavam pela CF/88 obrigadas a realizar o concurso.

Pois bem. Como dissemos, a Constituição Federal atual determinou, sem prazo, conforme redação de seu art. 39, que os entes de direito público elaborassem seu regime único. Contudo, passados quase dez anos de sua promulgação, grande parte dos entes federados, mormente os Municípios, ainda não haviam cumprido a norma constitucional. Movido por essa realidade fática e pela ideologia do Estado gerencial então reinante, o constituinte derivado editou a Emenda Constitucional n. 19, de 05/06//1998. A EC 19 extinguiu a obrigatoriedade do regime jurídico único. Sua nova redação não mais fazia remissão a qualquer necessidade de unificação. Passou-se assim a entender, corretamente, que o Poder Público se desobrigara de unificar o regime. A Administração direta e indireta poderia, agora, com a EC 19, arregimentar validamente trabalhadores tanto pelo regime administrativo quanto pelo regime celetista, salvo os entes que já houvessem editado sua legislação unificadora.

Em verdade, a EC 19 só incluiu na tecnologia jurídica constitucional uma realidade fática pré-existente: havia entes que não unificaram seu regime jurídico. Logo, permaneciam presentes no cotidiano do serviço público, em vários lugares do país, categorias de servidores stricto sensu e categorias de trabalhadores celetistas prestando labor ao mesmo ente federado.

Àquela época, entre 1988 e 2004, a Justiça do Trabalho, ao se deparar com ações movidas contra o Poder Público, apenas apreciava as relações laborais celetistas. A maior parte da doutrina e jurisprudência nacionais entendia que o art. 114, em sua redação original, só dava permissão à justiça obreira para processar e julgar os feitos entre empregados e empregadores. Assim, desde a promulgação da Constituição (05/10/1988) - que mandou unificar o regime - e depois, com o advento da EC 19 (05/06/1998) - que permitiu a dualidade de regime, mas apenas confirmando uma situação fática que já existia, porquanto vários entes federados não haviam mesmo elaborado seu regime único - a Justiça do Trabalho só apreciava as relações regidas pela CLT. Eis a redação original do art. 114, verbis:

"Art. 114. Compete à Justiça do Trabalho conciliar e julgar os dissídios individuais e coletivos entre trabalhadores e empregadores, abrangidos os entes de direito público externo e da administração pública direta e indireta dos Municípios, do Distrito Federal, dos Estados e da União, e, na forma da lei, outras controvérsias decorrentes da relação de trabalho, bem como os litígios que tenham origem no cumprimento de suas próprias sentenças, inclusive coletivas".

Em fins de dezembro de 2004 sobreveio a EC 45 que, como já dito anteriormente, trouxe para a seara laboral a generalidade das relações de trabalho, incluindo a estatutária. Eis a redação do art. 114, I, da CF/88, com a alteração da EC 45:

"Art. 114. Compete à Justiça do Trabalho processar e julgar: 

I. as ações oriundas da relação de trabalho, abrangidos os entes de direito público externo e da administração pública direta e indireta da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios; (...)".

Agora, não se falava mais de "dissídios entre trabalhadores e empregadores", mas de "relação de trabalho", apenas. Ficava evidente que a EC 45, imprimindo nova redação ao art. 114 constitucional, ao enfatizar que competia à justiça trabalhista julgar relações de trabalho, abrangidos os entes da Administração Pública direta e indireta, incluía em sua competência a relação estatutária, porque a celetista, não se tinha dúvida, já o era. Isto é de clareza total quando se busca a redação original da própria emenda, em que constava exclusão expressa dos servidores estatutários; trecho que se removeu depois, redundando na redação acima, disposta na atual carta política.

No entanto, o STF, nos autos de uma Ação Direta de Inconstitucionalidade movida por uma associação de juízes federais temerosos pela perda de parcela de sua jurisdição, cedeu às pressões coorporativistas e terminou por julgar procedente o pedido, conferindo ao art. 114, I, da CF/88 o que se denomina de interpretação conforme, excluindo da competência da Justiça do Trabalho as relações de natureza estatutária (ADI 3395/DF. Rel. Min. CÉZAR PELUSO. Pleno. DJ 10/11/2006). A nós mais nos parece interpretação "disforme", haja vista que por meio de ação judicial se legitimou o descumprimento de clara norma constitucional, a despeito de doutrina, inclusive laboral, que apóie a decisão (FAVA, 2005, p. 195; CARVALHO FILHO, 2005, p. 484), sob a escusa de que as normas preponderantes sobre aquelas relações são de natureza administrativa. Esse pensamento, aliás, é semelhante ao que se entendia antes da EC 45 quanto às relações de trabalho autônomo, regidas que são pelo Direito Civil: se não se trata de CLT, não deve ser da alçada do juiz do trabalho. Esse "dogma" de tratar a Justiça do Trabalho como a "justiça do emprego", a "justiça do contrato de trabalho", e seus magistrados como "juízes de CLT" ainda é fortemente imberbe no pensamento dos juristas de escolas mais conservadoras e não são os seis anos de aniversário da emenda que farão deletar, ainda, esta forma de pensar. Como já se disse no cotidiano jurídico dos tribunais: competência traduz idéia de poder!

Enfim, em face da dualidade de regime - não surgida, mas aceita com o advento da EC 19 - porém, em razão da ADI 3395, a Justiça do Trabalho, incompetente que foi declarada para julgar as relações estatutárias, passou a decidir a questão da competência material, nos processos a ela submetidos, como sempre fez: provada nos autos a existência e a vigência do regime estatutário, que é formal e imprescinde de lei instituidora, a competência seria da Justiça Comum; não provados nos autos esses elementos, presumir-se-ia o regime celetista, prosseguindo ela no julgamento do feito.

Sobre essa presunção, há quem a critique, justamente por ser o regime administrativo o típico de Estado. Logo, uma vez figurando no pólo passivo da demanda um ente público, a presunção deveria recair sobre o regime estatutário, e não sobre o regime da CLT. Contudo, não se vislumbra regime administrativo sem estatuto. Nos termos da redação original do art. 39 da Constituição, não existe um estatuto genérico, de cunho nacional (como a CLT está para o regime celetista), mas apenas um federal, os estaduais e os municipais, cada qual vigente em sua parcela de autonomia político-administrativa. Daí porque não é possível presumir a existência do regime administrativo. A presença deste requer um estatuto vigente; há uma forma a ser adotada: a edição e publicação de lei instituidora do estatuto no âmbito daquele ente federado. Já o regime celetista, por outro lado, é informal. O diploma celetista é nacional, e o contrato de trabalho pode ser celebrado verbalmente, apenas (contrato realidade).

Poder-se-ia perguntar: e o concurso público? Não traduz o concurso uma forma a ser seguida? Evidente que sim, mas ele não é o traço distintivo entre os dois regimes, porquanto a CF/88 o exige para ambos. Casos há em que não haverá concurso. O que distingue os regimes são os traços peculiares de cada um, como a necessidade (quanto ao regime administrativo) de estatuto vigente na esfera do ente público demandado. Ora, tal necessidade não há quando se fala de regime celetista, vez que a CLT é uma lei nacional. O concurso, por sua vez, é uma característica em comum, que pode ou não estar presente (como nas situações de cargo em comissão, no regime administrativo, e nas de contrato nulo, no celetista).

Ademais, partindo-se da presunção pelo regime público apenas por que figurasse no pólo passivo a Administração, seria forçoso concluir que toda e qualquer demanda trabalhista contra o Poder Público deveria ser aforada, de início, na Justiça Comum. A tese de quem assim preconiza, se adotada, subverteria a ordem lógica processual que já comentamos: a de que a competência jurisdicional é sempre preferencialmente da Justiça especializada (competência residual). E como é fixada essa competência inicial ou residual? Através dos fatos e pretensões alegados em juízo, isto é, da causa de pedir e do pedido.

Repetimos, sempre foi assim. Até agora, não discutimos nenhuma novidade.

Entrementes, em 02/08/2007, o plenário do STF, nos autos da ADI 2135 (Rel. Min. ELLEN GRACIE. Pleno. Julgto 02/08/2007. DJ 07/03/2008), reconheceu o vício de inconstitucionalidade formal de que padecia a EC 19/1998, conferindo efeito repristinatório à antiga redação do art. 39 da Constituição Federal. Noutras palavras, voltou a exigência da unicidade de regime. E partindo dessa premissa, passou a entender o Supremo Tribunal que não há nem jamais haveria a possibilidade de a Justiça do Trabalho processar e julgar qualquer feito contra o Poder Público.


4. Ação Direta de Inconstitucionalidade n. 2135 – análise crítica da decisão do STF

Eis a ementa da decisão:

"MEDIDA CAUTELAR EM AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. PODER CONSTITUINTE REFORMADOR. PROCESSO LEGISLATIVO. EMENDA CONSTITUCIONAL 19, DE 04.06.1998. ART. 39, CAPUT, DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL. SERVIDORES PÚBLICOS. REGIME JURÍDICO ÚNICO. PROPOSTA DE IMPLEMENTAÇÃO, DURANTE A ATIVIDADE CONSTITUINTE DERIVADA, DA FIGURA DO CONTRATO DE EMPREGO PÚBLICO. INOVAÇÃO QUE NÃO OBTEVE A APROVAÇÃO DA MAIORIA DE TRÊS QUINTOS DOS MEMBROS DA CÂMARA DOS DEPUTADOS QUANDO DA APRECIAÇÃO, EM PRIMEIRO TURNO, DO DESTAQUE PARA VOTAÇÃO EM SEPARADO (DVS) Nº 9. SUBSTITUIÇÃO, NA ELABORAÇÃO DA PROPOSTA LEVADA A SEGUNDO TURNO, DA REDAÇÃO ORIGINAL DO CAPUT DO ART. 39 PELO TEXTO INICIALMENTE PREVISTO PARA O PARÁGRAFO 2º DO MESMO DISPOSITIVO, NOS TERMOS DO SUBSTITUTIVO APROVADO. SUPRESSÃO, DO TEXTO CONSTITUCIONAL, DA EXPRESSA MENÇÃO AO SISTEMA DE REGIME JURÍDICO ÚNICO DOS SERVIDORES DA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA. RECONHECIMENTO, PELA MAIORIA DO PLENÁRIO DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL, DA PLAUSIBILIDADE DA ALEGAÇÃO DE VÍCIO FORMAL POR OFENSA AO ART. 60, § 2º, DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL. RELEVÂNCIA JURÍDICA DAS DEMAIS ALEGAÇÕES DE INCONSTITUCIONALIDADE FORMAL E MATERIAL REJEITADA POR UNANIMIDADE. 1. A matéria votada em destaque na Câmara dos Deputados no DVS nº 9 não foi aprovada em primeiro turno, pois obteve apenas 298 votos e não os 308 necessários. Manteve-se, assim, o então vigente caput do art. 39, que tratava do regime jurídico único, incompatível com a figura do emprego público. 2. O deslocamento do texto do § 2º do art. 39, nos termos do substitutivo aprovado, para o caput desse mesmo dispositivo representou, assim, uma tentativa de superar a não aprovação do DVS nº 9 e evitar a permanência do regime jurídico único previsto na redação original suprimida, circunstância que permitiu a implementação do contrato de emprego público ainda que à revelia da regra constitucional que exige o quorum de três quintos para aprovação de qualquer mudança constitucional. 3. Pedido de medida cautelar deferido, dessa forma, quanto ao caput do art. 39 da Constituição Federal, ressalvando-se, em decorrência dos efeitos ex nunc da decisão, a subsistência, até o julgamento definitivo da ação, da validade dos atos anteriormente praticados com base em legislações eventualmente editadas durante a vigência do dispositivo ora suspenso. 4. Ação direta julgada prejudicada quanto ao art. 26 da EC 19/98, pelo exaurimento do prazo estipulado para sua vigência. 5. Vícios formais e materiais dos demais dispositivos constitucionais impugnados, todos oriundos da EC 19/98, aparentemente inexistentes ante a constatação de que as mudanças de redação promovidas no curso do processo legislativo não alteraram substancialmente o sentido das proposições ao final aprovadas e de que não há direito adquirido à manutenção de regime jurídico anterior. 6. Pedido de medida cautelar parcialmente deferido" (ADI 2135. Relator Min. NÉRI DA SILVEIRA. Relatora para acórdão Min.ª ELLEN GRACIE. Relatora atual Min. CARMEN LÚCIA. Julgto. 02/08/2007. DJ 07/03/2008).

Percebamos, logo de início, que o Supremo adotou uma norma meramente programática como realidade fática: se o regime deve ser único, não existe regime celetista no âmbito do Poder Público. O Supremo Tribunal Federal simplesmente ignorou a realidade! E aí o intérprete pode se questionar: se não há regime celetista, se tal regime simplesmente não existe, se jamais foi aceito pelo ordenamento constitucional, como então situar juridicamente aqueles milhares de trabalhadores em todo país que laboram em municípios onde não há estatuto? Eis a engenhosa resposta da corte suprema, que afastou qualquer fio de lógica que pudesse costurar os retalhos de todo esse novo direcionamento jurisprudencial: trata-se de contratação temporária, nos moldes do art. 37, IX, da CF.

O primeiro ponto interessante é que a decisão tomada nos autos da ADI 2135 contradiz inteiramente o que foi decidido na ADI 3395, que, por sua vez, já havia ido de encontro ao texto constitucional. De início, o art. 114, I, da CF incluía na competência da Justiça do Trabalho a generalidade das relações de trabalho, incluídas aquelas celebradas com o Poder Público, sem qualquer restrição. A restrição existia no texto constante da própria emenda e que foi excluído antes de sua promulgação. Para o STF, contudo, foi só conferir a tal "interpretação conforme" e excluir manu militari a competência assim mesmo. Assim, pelo que foi decidido na ADI 3395, a Justiça do Trabalho continuava sem competência jurisdicional para julgar as relações de natureza estatutária, mantidas entre trabalhadores e o Poder Público. Do que se conclui que o art. 114, I, da CF, segundo o STF, mesmo com a redação conferida pela EC 45/2004, repetiu com outras palavras o óbvio: que ali só se mantinha na competência trabalhista as relações laborais celetistas. No entanto, agora, com a ADI 2135, o STF vem afirmar que o ordenamento constitucional jamais permitiu que o regime celetista pudesse ser implementado no âmbito dos entes federados. Esse entendimento termina por excluir, completamente, toda a eficácia de uma norma constitucional, qual seja, o art. 114, agora em sua redação original, que se colaciona, novamente: "compete à Justiça do Trabalho conciliar e julgar os dissídios individuais e coletivos entre trabalhadores e empregadores, abrangidos os entes de direito público externo e da administração pública direta e indireta dos Municípios, do Distrito Federal, dos Estados e da União, e, na forma da lei, outras controvérsias (...)". Se a ADI 3395 anulou em parte o texto do art. 114, I, reformado pela EC 45, agora se chegou ao absurdo de deletar inteiramente o art. 114 da história constitucional. O STF, com a nova decisão, simplesmente disse que este dispositivo não existe, nunca existiu!

O segundo ponto trágico: o STF mandou para o limbo jurídico os trabalhadores admitidos pelos entes federados que não elaboraram seu regime único. Se eles não podem ser celetistas, seriam o que então? Temporários, disse o STF, nos autos da famigerada Reclamação 4490/PB:

"EMENTA: AGRAVOS REGIMENTAIS EM RECLAMAÇÃO. ADI 3.395/DF. CONTRATO TEMPORÁRIO. REGIME JURÍDICO-ADMINISTRATIVO. 2. No julgamento da medida cautelar na ADI n° 3.395/DF, entendeu Tribunal que o disposto no art. 114, I, da Constituição da República, não abrange as causas instauradas entre o Poder Público e servidor que lhe seja vinculado por relação jurídico-estatutária, entendida esta como a relação de cunho jurídico-administrativo. Os contratos temporários firmados pelo Poder Público com base no estatuto jurídico de seus servidores submetem-se ao regime jurídico-administrativo". (Proc. STF AgREG Rcl. 4990/PB. Pleno. Relator Min. GILMAR MENDES. DJ 13/02/2008).

Antes desse novel entendimento, todos aqueles que prestassem serviços ao Poder Público sem prévia aprovação em concurso público eram considerados pela Justiça do Trabalho como celetistas, por falta de uma formalidade constitucional, tendo-se em vista ainda que o regime da CLT é informal. No entanto, o concurso, hoje, é exigido para qualquer dos regimes ("cargos e empregos", diz a Constituição; art. 37, II). Vê-se que até seria razoável admitir como temporário aquele que é flagrado pelo Judiciário laborando para o Poder Público sem concurso, desde que existente o regime único, mas esse entender fica absolutamente inviável quando o trabalhador labora em Município que sequer implementou seu regime jurídico. Se "os contratos temporários firmados pelo Poder Público com base no estatuto jurídico de seus servidores submetem-se ao regime jurídico-administrativo", como diz o STFnaReclamação n. 4990, como então julgar a lide, afirmando ser o reclamante um trabalhador temporário, sujeito a regime administrativo, quando não houver estatuto? Sem estatuto, não existe regime jurídico administrativo! E sem regime jurídico administrativo, como afirmar que o indivíduo é temporário?

A festejada doutrina administrativista dissecou há muito o tema:

"O regime especial visa a disciplinar uma categoria específica de servidores: os servidores temporários (...) o recrutamento desse tipo de servidores tem escora no art. 37, IX, da CF, mas algumas observações devem ser feitas em relação ao regime especial. De início, cabe analisar a questão sobre o instrumento que vai formar as regras disciplinadoras. O texto constitucional usa a expressão ‘a lei estabelecerá’, indicando desde logo que se trata de norma constitucional de eficácia limitada (...). Indaga-se, todavia: qual lei? Como se trata de recrutamento que pode traduzir interesse para algumas pessoas federativas e desinteresse para outras, deve-se entender que a lei reguladora deverá ser a da pessoa federativa que pretender a inclusão dessa categoria de servidores" (CARVALHO FILHO, 2005, p. 487).

A problemática surgida com a ADI 2135 não reside no efeito repristinatório em si, conferido à antiga redação do art. 39. Toda a controvérsia está, isto sim, na interpretação errônea que o STF vem conferindo (mais uma vez) às normas constitucionais que tratam da competência material da justiça trabalhista. Parece simplesmente absurdo ao STF enxergar o Poder Público figurando no pólo passivo de uma ação trabalhista.

Partindo da proposição (verdadeira) de que, com a declaração de inconstitucionalidade da EC 19, retornou ao ordenamento jurídico a redação original do art. 39 (que impunha o regime único), o STF chegou à conclusão (errada) de que o regime constitucional jamais permitiu que o Poder Público mantivesse trabalhadores sob o regime celetista. O STF parte de uma premissa verdadeira, mas chega a uma conclusão inovadora e completamente contraditória a toda uma construção doutrinária e jurisprudencial sobre o tema, nestes (até a data da ADI 2135) quase vinte anos de história constitucional.

Não se põe em dúvida aqui a inconstitucionalidade da EC 19. No entanto, ao afirmar o STF que "manteve-se, assim, o então vigente caput do art. 39, que tratava do regime jurídico único, incompatível com a figura do emprego público", desenvolveu-se incorretamente o tema. O regime único, de fato, faria revestir de incompatibilidade a figura do emprego público com o Estado, desde que houvesse sido elaborado. Por tudo o que já expomos, não seria possível concluir pelo regime estatutário sem estatuto. Se não existe regime único, deve-se concluir pelo regime informal, celetista, pois outra saída jurídica não há. A EC 19 apenas veio ratificar uma situação fática pré-existente: a de que centenas de entes federados não haviam, dez anos depois da promulgação constitucional, editado ainda seu regime administrativo. Não interpretamos a EC 19 como proposta de inclusão da figura do emprego público no ordenamento constitucional. Tal figura, a rigor, sempre existiu, desde as cartas anteriores. Ao entender a EC 19 com esse caráter inovador, e uma vez declarando sua inconstitucionalidade, o Supremo concluiu que não se admite contrato de trabalho no âmbito do Poder Público. No seu entender: não se admite, nem jamais se admitiu.

A pior exposição de idéias não está na decisão tomada nos autos da ADI 2135. Está nos julgados que a sucederam: as Reclamações. É que, com a "brecha" criada na sistemática trabalhista-processual pelo raciocínio da corte, dezenas de Reclamações constitucionais foram interpostas naquele tribunal, traduzindo tentativas dos entes federados de relocarem as ações trabalhistas em que respondiam como reclamados para as dependências da Justiça Comum, sabidamente menos comprometida com a celeridade processual. Nestas reclamações pode-se vislumbrar toda a sorte de argumentos erigidos contra quase duas dezenas de anos de doutrina e jurisprudência. Vejamos alguns desses julgados; o primeiro deles, em face de processos em trâmite no Tribunal Regional do Trabalho da 22ª Região (Piauí), de cujo quadro fazemos parte:

"(...) Após a decisão proferida na ADI n.2.135 MC, DJ de 7.3.08, em que foram suspensos os efeitos da EC 19/98, não haveria como o sistema jurídico-administrativo brasileiro comportar a contratação pelo regime da CLT (...)" (Proc. STF Reclamação nº 4786-5/PI. Relator Min. EROS GRAU. DJ 22/09/2008).

Nesta Reclamação de n. 4786-5/PI, o STF determinou que fosse remetida à Justiça Comum mais de uma centena de processos em que figurava como reclamado o Município piauiense de Regeneração.

Noutra Reclamação, a de nº 5381-4/AM, o Ministro Cezar Peluso, acompanhando o relator, assim entendeu:

"(...) Em suma, não há possibilidade, na relação jurídica entre servidor e o Poder Público, seja ele permanente ou temporário, de ser regido senão pela legislação administrativa. Chame-se a isso relação estatutária, jurídico administrativa, ou outro nome qualquer, o certo é que não há relação contratual sujeita à CLT (...) Como a Emenda 19 caiu, nós voltamos ao regime original da Constituição, que não admite relação sujeita à CLT, que é de caráter tipicamente privado, entre servidor público, seja estável ou temporário, e a Administração Pública (...)". (Proc. STF Reclamação nº 5381-5/AM. Relator Min. CARLOS BRITTO. DJ 08/08/2008).

A Ministra Carmen Lúcia, nesta mesma Reclamação, também proferiu entendimento com o relator, mormente quanto aos casos de vínculo temporário:

"(...) O Ministério Público do Trabalho entra com a ação civil pública para questionar a falta de concursos desses contratados. Ora, se a Constituição estabelece que esse contrato é temporário para suprir uma necessidade, não pode haver esse questionamento, muito menos no âmbito da Justiça do Trabalho (...)". (Proc. STF Reclamação nº 5381-5/AM. Relator Min. CARLOS BRITTO. DJ 08/08/2008).

Em Recurso Extraordinário movido pela Procuradoria do Estado do Amazonas, no processo STF RE 573.202/AM, julgado treze dias depois da Reclamação 5381/AM acima colacionada, o Ministro Cezar Peluso, em julgamento pelo Plenário, expressou a mesma opinião, com maior contundência:

"(...) Senhor Presidente, sou defensor ardoroso – e há vários precedentes deste Plenário em que deixei isto claro – da tese agora invocada pelo Ministro Marco Aurélio. De fato (...) é a petição inicial, ou seja, os seus termos que definem a competência (...). O princípio é verdadeiro porque supõe que não se pode, no início da causa, discutir os fatos em que se baseia a pretensão. Portanto, não há como aguardar a instrução para saber se os fatos alegados são verdadeiros ou não. Por isso, tais como são afirmados, eles bastam para definir a competência. Não, porém, quando o que está em jogo não é a existência ou inexistência dos fatos postos na causa, mas a tese jurídica que o autor avance (...). Se o autor faz na petição inicial afirmação de uma tese jurídica, aberta ou ostensivamente contrária ao ordenamento, a afirmação de uma tese jurídica não pode mudar a competência decorrente da verdade que o ordenamento jurídico consagra. Porque? Porque senão, em determinadas hipóteses, corre-se o risco de, com a mera tese do autor, alterarem-se as regras de competência! (...) Dar o seguinte exemplo. Suponhamos caso verdadeiramente absurdo no qual o autor afirme que a relação jurídica entre marido e mulher seria regida pelo Direito do Trabalho. Se faz tal afirmação na inicial, nenhum juiz trabalhista pode aceitar a causa, não porque se trate de discutir os fatos, senão porque verifique que, perante o ordenamento jurídico, a tese é absolutamente inaceitável e, portanto, não basta para definir-lhe a competência. A meu ver, com o devido respeito, o que se passa neste caso é o mesmo (...)". (Proc. STF RE 573.202/AM. Relator Min. RICARDO LEWANDOWSKI. DJ 21/08/2008).

Percebe-se que o ilustre ministro intentou colocar no âmbito do impossível jurídico as consagradas teses da contratação celetista pelo Poder Público e da competência residual da Justiça do Trabalho, quando toda uma sistemática constitucional de vinte anos de existência apontava em sentido diverso.

Há mais: a Emenda Constitucional n. 51/2006 permitiu aos gestores locais do SUS em todo o país admitir agentes comunitários de saúde e agentes de combates a endemias por meio de processo seletivo público, mais simplificado que o concurso (CF, art. 198, §4º). A mesma emenda determinou que caberia a lei federal dispor sobre o regime jurídico desse pessoal (CF, art. 198, §5º). Evidente que fosse o regime administrativo o único comportável pela Constituição, tal determinação não teria razão de existir. Noutro giro, a lei regulamentadora foi editada, sendo esta a Lei n. 11.350/2006, que dispõe, em seu art. 8º: "Os Agentes Comunitários de Saúde e os Agentes de Combate às Endemias admitidos pelos gestores locais do SUS e pela Fundação Nacional de Saúde - FUNASA, na forma do disposto no § 4º do art. 198 da Constituição, submetem-se ao regime jurídico estabelecido pela Consolidação das Leis do Trabalho - CLT, salvo se, no caso dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, lei local dispuser de forma diversa". Percebe-se que a lei encontra-se em completa sintonia com o que se entendia da matéria, antes dessas infelizes decisões da corte suprema.

O STF, com esses entendimentos, também há de inutilizar a Lei 9.962/2000, que regulamentava a emenda n. 19 e a situação dos celetistas no âmbito da Administração direta, autárquica e fundacional da União. Aliás, no âmbito da União é até fácil pensar que jamais se admitiu a contratação (o que é uma inverdade, mas por força de argumentação, admitamos). Afinal, a União detém regime jurídico desde 1990. Mas e quanto aos entes federados sem regime jurídico? Os quadros de pessoal de dezenas ou centenas de Municípios do interior do país haverão de ser considerados uma legião de temporários? Se sim, então teremos milhares de trabalhadores temporários admitidos nas funções de motorista, secretária, zelador, vigilante, gari, professor, merendeira, eletricista, etc.; todos laborando para atender necessidades "temporárias" de "excepcional" interesse público (CF, art. 37, IX). E sem lei regulamentadora, diga-se.

Outra problemática diz respeito aos casos em que se discute mudança de regime jurídico. A tese, preconizada outrora pelo próprio STF, é que a competência da Justiça do Trabalho perduraria até o momento da mudança de regime. Dos julgados, citamos um, dentre todos, como exemplo:

"Justiça do Trabalho: competência: reclamação ajuizada antes da transição do regime celetista para estatutário: Competência da Justiça Trabalhista para processar a lide até o momento da referida conversão. Precedentes". (Proc. STF AI AgR 402.635/RS. 1ª T. Relator Min. SEPÚLVEDA PERTENCE. DJ 06/10/2006).

Ao que parece, a prevalecer o entendimento que vem sendo esposado nestas Reclamações, toda essa cadeia jurisprudencial haverá também de ruir.


5. Nosso entendimento no julgamento das reclamatórias que nos são submetidas no Tribunal Regional do Trabalho da 22ª Região – adequação da ADI 2135 ao caso concreto

Acompanhando o novel entendimento preconizado pelo STF, o Tribunal Superior do Trabalho cancelou o enunciado da OJ 205 da SbDI-1 do TST. A referida orientação inscrevia na competência material da Justiça do Trabalho o julgamento de ação em que se pusesse controvérsia acerca do vínculo empregatício entre trabalhador e ente público, e preconizava que a simples presença de lei que disciplinasse a contratação por tempo determinado para atender a necessidade temporária de excepcional interesse público (CF, art. 37, IX) não seria o bastante para deslocar a competência da Justiça do Trabalho, se houvesse desvirtuamento da contratação mediante a prestação de serviços em caráter permanente.

Com o cancelamento dessa orientação, o TST parece ter aderido à tese do STF de que, figurando no pólo passivo da demanda o Poder Público, em nada seria útil perquirir a natureza ou a durabilidade do vínculo, por incompetência absoluta da Justiça do Trabalho para apreciar a matéria. A questão da competência residual apoiava-se na idéia de permissibilidade do Poder Público de contratar segundo o regime da CLT, o que o Supremo vem procurando extinguir.

A despeito disso, nosso gabinete, integrante do colegiado da 22ª Região trabalhista (TRT/PI), tem entendido que cada caso concreto merece adequação à decisão do STF. Isto porque a corte suprema conferiu modulação aos efeitos da ADI 2135 (vide item 3 da ementa).

Ao decidir o STF que "se ressalvam, em decorrência dos efeitos ex nunc da decisão, a subsistência, até o julgamento definitivo da ação, da validade dos atos anteriormente praticados com base em legislações eventualmente editadas durante a vigência do dispositivo ora suspenso", o STF modulou os efeitos da ação direta para preservar os contratos de trabalho celebrados durante a vigência da emenda. Noutras palavras, da data da publicação da EC 19 (05/10/1988) até o dia anterior ao da data de publicação da decisão na ADI 2135 (07/03/2008), os contratos de trabalho então celebrados devem ser considerados válidos. Deixamos marcado que, a despeito de doutrina (ALEXANDRINO, Marcelo; PAULO, Vicente, 2009, pp. 310 e 312) que não haja atentado para o fato, a data que deve ser considerada para que a ADI 2135 irradie seus efeitos é a de 07/03/2008, data de sua publicação, e não a de 02/08/2007, data de seu julgamento. Nenhuma decisão judicial tem validade sem a devida publicação (CF, art. 93, IX).

Assim, diante desse quadro, temos 4 (quatro) possíveis situações concretas: a) aqueles admitidos sob a égide da Constituição Federal anterior (1967 c/c 1969); b) aqueles contratados entre a data da vigência da Constituição atual até a data anterior à da vigência da EC 19; c) aqueles contratados a partir da vigência da EC 19 até antes da publicação da decisão do STF na ADI 2135; d) aqueles contratados a partir da publicação do julgamento liminar da ADI 2135/DF.

Segundo a decisão tomada nos autos da ADI 2135 e Reclamações posteriores, não há como admitir competência à Justiça do Trabalho para processar e julgar os feitos contra o Poder Público, a partir de 07/03/2008 (data da publicação da liminar na ADI 2135). Como à decisão imprimiram-se efeitos ex nunc, conclui-se que qualquer ação trabalhista que se lhe apresente a partir daquela data (quarta situação em foco) deve ser remetida à Justiça Comum. Segundo o STF, há de se entender como sendo o reclamante um "trabalhador temporário".

A mesma solução deve ser aplicada à segunda situação concreta – a daqueles contratados entre a data da promulgação da CF/88 e a da vigência da EC 19 - pela simples lógica (se é que é possível encontrar alguma nesta mixórdia toda) de que, se são temporários aqueles contratados após a decisão que considerou a emenda inconstitucional, com maior razão hão de ser assim considerados aqueles contratados antes da existência da própria emenda. Logo, para os contratos celebrados entre 05/10/1988 e 04/06/1998 (um dia antes da vigência da EC 19), a Justiça do Trabalho também deveria se declarar incompetente.

Já os trabalhadores enquadrados na primeira e na terceira situação – admissão anterior à CF/88 e admissão na vigência da CF/88, após a promulgação da EC 19 (a partir de 05/06/1998) – indene de dúvidas, podem ser celetistas ou estatutários, porque o ordenamento, nestas duas épocas, permitia o regime jurídico dual, e a decisão liminar da ADI 2135 não alcança estas situações. O julgamento do mérito destas ações pela Justiça do Trabalho dependerá, pois, da análise dos elementos característicos de um ou de outro regime jurídico, remanescendo, nestes casos, a velha regra da competência residual.

Inobstante a adequação conferida a cada caso concreto, aguardamos com ansiedade a decisão final de mérito a ser tomada nos autos dessa ADI 2135, esperando que os ministros Marco Aurélio e Carlos Britto sejam acompanhados em suas divergências pelos demais daquela Casa, a bem do sistema jurídico constitucional e processual e do próprio Judiciário nacional.


6. Bibliografia

ALEXANDRINO, Marcelo; PAULO, Vicente. Direito Administrativo Descomplicado. 17 ed. São Paulo: Método, 2009.

CARVALHO FILHO, José dos Santos. Manual de Direito Administrativo. 14 ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2005.

DIDIER JÚNIOR, Fredie. Direito Processual Civil: Teoria Geral do Processo e Processo de Conhecimento. 8. ed. Salvador: Juspodivm, 2007.

FAVA, Marcos Neves; COUTINHO, Grijaldo Fernandes. Nova Competência da Justiça do Trabalho. São Paulo: LTr, 2005.

LEITE, Carlos Henrique Bezerra. Curso de Direito Processual do Trabalho. 6. ed. São Paulo: LTR, 2008.

MARINONI, Luiz Guilherme. Manual do Processo de Conhecimento. 5 ed. São Paulo: RT, 2006.

MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de Direito Administrativo. 25. ed. rev. atual. São Paulo: Malheiros, 2008.

- Constituição Federal de 1988.

- Supremo Tribunal Federal. Disponível em: <http://www.stf.jus.br/portal/principal/principal.asp>. Acesso em 2010.


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Informações sobre o texto

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

VERÇOSA, Alexandre Herculano. A competência material da Justiça do Trabalho conforme atual interpretação do Supremo Tribunal Federal. Análise da ADI 2135 à luz da Constituição, das leis processuais, da doutrina e da própria jurisprudência do STF. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 16, n. 2780, 10 fev. 2011. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/18459. Acesso em: 28 abr. 2024.