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Interpretação da Constituição conforme a lei entendida como liberdade de conformação do legislador dos preceitos constitucionais

Interpretação da Constituição conforme a lei entendida como liberdade de conformação do legislador dos preceitos constitucionais

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O princípio da interpretação da Constituição conforme a lei, que recebe escassa atenção, não provoca subversão da hierarquia normativa, e sim um eficiente mecanismo de auxílio à concretização dos preceitos constitucionais.

Resumo

Trata-se de uma análise do princípio da Interpretação da Constituição conforme a Lei, o qual recebe escassa atenção dos doutrinadores, tentando-se provar que o mesmo não provoca uma subversão da hierarquia normativa, e sim seria um eficiente mecanismo de auxílio à concretização dos preceitos constitucionais. Diferentemente do que pensam os poucos estudiosos que analisam o tema, pretende-se, nesse trabalho, uma equiparação da Interpretação da Constituição conforme a Lei com a liberdade que o legislador infraconstitucional possui de conformar o texto constitucional.

Ressalta-se, todavia, que concomitantemente ao poder conferido ao legislador infraconstitucional, há a atuação do Tribunal Constitucional, que deverá sempre declarar inconstitucional a atuação legislativa que não tenha a Constituição como base, observando-se por fim, que tal cânone interpretativo já vem sendo utilizado pelos tribunais pátrios.

Palavras-Chave: Interpretação Constitucional – Interpretação conforme a Constituição – Interpretação da Constituição conforme a Lei – Liberdade de conformação do Legislador

Sumário : 1 - INTRODUÇÃO . 2 – INTERPRETAÇÃO CONSTITUCIONAL . 3 – INTERPRETAÇÃO CONFORME A CONSTITUIÇÃO . 3.1 – LIMITES DA INTERPRETAÇÃO CONFORME A CONSTITUIÇÃO . 3.2 – REPERCUSSÕES NA INTERPRETAÇÃO CONSTITUCIONAL: INTERPRETAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO CONFORME A LEI . 4 – ENTENDIMENTOS DOUTRINÁRIOS ACERCA DA INTERPRETAÇÃO DA CONSITUIÇÃO CONFORME A LEI . 4.1 – POSICIONAMENTO DE PETER HÄBERLE . 4.2 – POSICIONAMENTO DE WALTER LEISNER. . 4.3 – POSICIONAMENTO DE PETER LERCHE . 4.4 – POSICIONAMENTO DE JOSE JOAQUIM GOMES CANOTILHO . 5 – INTERPRETAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO CONFORME A LEI COMO LIBERDADE DE CONFORMAÇÃO DO LEGISLADOR . 6 – UTILIZAÇÃO DA INTERPRETAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO CONFORME A LEI NO ORDENAMENTO JURÍDICO BRASILEIRO . 7 – CONCLUSÃO . 8 – REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS


1 – Introdução

Nas páginas que se seguem, o que se pretende é a realização de uma análise, embora de forma a não se esgotar o tema em todas as suas minúcias, da problemática da Interpretação da Constituição conforme a Lei. Tal assunto, embora de relevância ímpar, não vem merecendo a atenção devida pela doutrina, precipuamente no que se refere à doutrina pátria.

De modo geral, a mera citação desse cânone interpretativo causa, muitas vezes, aversão em doutrina e jurisprudência, que vislumbram o princípio simplesmente com uma subversão da hierarquia normativa, por fazer com que a Constituição, que é a norma que se encontra no ápice da pirâmide normativa, seja interpretada por normas de grau hierárquico inferior.

O que se pretende aqui é a desmistificação de tal concepção, ressaltando a importância que tal interpretação pode desempenhar para uma correta compreensão da Lei Fundamental, e propor que talvez seja o nomen iuris que cause certa repulsa no que tange à sua utilização nos diferentes ordenamentos jurídicos.

Para chegarmos ao cerne do trabalho, contudo, primeiramente afigurou-se oportuno, no capítulo inicial, proceder-se a uma rápida visualização da importância da Interpretação Constitucional como um todo para se precisar de maneira adequada o conteúdo do texto constitucional.

Em seguida, no segundo capítulo, há uma noção do que seja a Interpretação Conforme a Constituição, tema que vem sendo corriqueiramente enunciado pelos mais renomados constitucionalistas ao redor do globo como um dos mais importantes métodos de interpretação, devendo-se, todavia, mencionar os equívocos relacionados a essa questão, realizando no último item do capítulo um gancho com o tema do presente trabalho.

O capítulo terceiro adentra propriamente na análise da Interpretação da Constituição conforme a Lei, relatando o que quatro grandes constitucionalistas alienígenas entendem sobre esse cânone interpretativo, havendo também uma breve menção do posicionamento de Luis Roberto Barroso, um dos poucos constitucionalistas pátrios a relatar sobre o tema.

Por seu turno, pretende-se demonstrar no capítulo quarto, um posicionamento particular sobre a Interpretação da Constituição conforme a Lei, provando-se que a mesma não causa uma ruptura da hierarquia normativa, pois tal interpretação deve ser entendida com um sinônimo da já conhecida e amplamente utilizada liberdade que o legislador possui de conformar os preceitos constitucionais, ressaltando também o papel que os Tribunais Constitucionais devem desempenhar no concernente à fiscalização dessa atividade realizada pelo legislador.

Nessa esteira, o capítulo subseqüente demonstra que a Interpretação da Constituição conforme a Lei já vem sendo utilizada no ordenamento nacional, mesmo não sendo empregada a noção que aqui se pretende imputar ao tema, inclusive com decisões da nossa Corte Superior, e também de outros tribunais pátrios.

Em derradeiro é que se defende um emprego cada vez maior desse cânone interpretativo, devendo-se obviamente, ter sempre a Constituição como fundamento.


2 - Interpretação Constitucional

As palavras e, principalmente, os preceitos normativos são dotados de certa imprecisão, em face da pluralidade de significados de um mesmo termo, o que se leva a concluir que a interpretação é sempre um pressuposto necessário para a aplicação da regra jurídica.

Da mesma forma que as leis, a Constituição também deve ser interpretada, pois, de acordo com Miranda (1996), apenas dessa maneira conseguiremos transcender de uma leitura política, ideológica ou simplesmente empírica para uma leitura jurídica do texto constitucional. Só assim torna-se viável o encontro da norma ou do seu sentido, vislumbrando-se ser a interpretação indispensável tanto ao texto constitucional quanto às leis em geral.

Toda interpretação possui natureza necessariamente problemática, porque em seu âmbito deve o intérprete considerar os diferentes significados possíveis de um termo, ou de uma seqüência de palavras, para escolher, afinal, aquele que lhe pareça o correto. Reforça Larenz (1997) que seria um erro aceitar que os textos jurídicos só carecem de interpretação quando surgem como particularmente obscuros, ou contraditórios, porque todos os textos são suscetíveis de interpretação, não retratando essa necessidade um defeito, evitável mediante uma extremamente precisa redação, mas sim um dado da realidade que continuará a subsistir enquanto as leis, sentenças, resoluções e mesmo os contratos não forem redigidos exclusivamente em linguagem codificada.

Pode-se dizer que a interpretação decorre da dúvida suscitada ao intérprete, em face da multiplicidade de significados de um mesmo termo jurídico, sendo interessante nesse ponto reproduzir as palavras de Hesse (1991, p.35) que com maestria, ao se referir à necessidade, significação e finalidade da interpretação, em especial da interpretação constitucional, assevera que "ali onde não há dúvidas não se interpreta". [01]

Entrando propriamente no campo do Direito Constitucional, adquire aqui a interpretação uma importância ainda mais fundamental, devido ao caráter aberto e amplo das normas constitucionais, surgindo problemas com muito mais freqüência do que em outros setores do ordenamento jurídico cujas normas possuem um detalhamento maior.

A interpretação visa disciplinar o conteúdo das normas constitucionais e atualizar o texto constitucional, sendo de uma precisão ímpar os dizeres do mestre português Miranda (1996 – p.257):

"A interpretação constitucional tem de ter em conta condicionalismos e fins políticos inelutáveis e irredutíveis, mas não pode visar outra coisa que não sejam os preceitos e princípios jurídicos que lhes correspondem. Tem de olhar para a realidade constitucional, mas tem de a saber tomar como sujeita ao influxo da norma e não como mera realidade de facto. Tem de racionalizar sem formalizar. Tem de estar atenta aos valores sem dissolver a lei constitucional no subjetivismo ou na emoção política. Tem de se fazer mediante a circulação norma – realidade constitucional – valor."

Posto isso, percebemos que a interpretação dos dispositivos constitucionais é imprescindível, tendo por escopo concretizar e realizar a Constituição, conferindo-se completude ao sistema jurídico e atendendo-se às necessidades sociais vigentes.

Para fins deste trabalho, adotaremos a posição de Hesse (1991 – p.24) de que "A interpretação Constitucional é ‘concretização’" [02]. É inteiramente plausível afirmar que a interpretação constitucional é concretização, já que o intérprete deve preencher, completar e precisar o espaço normativo de determinado preceito constitucional, especialmente carecido de concretização, a fim de tornar possível a solução, por esse preceito, dos problemas concretos.

Ainda nos embasando nos ensinamentos de Hesse (1991) podemos depreender que a concretização só se torna possível quando nos deparamos com um problema concreto. O intérprete tem que colocar ao lado do problema a norma que pretende entender, se quer determinar de uma maneira correta o seu conteúdo. Acrescenta ainda o mestre de Freiburg (1991, p.25) que, "não existe interpretação constitucional independente dos problemas concretos", devendo o intérprete, dessa forma, utilizar apenas pontos de vista relacionados ao problema em seu trabalho de concretização.

É cediço na doutrina majoritária que, normalmente, se procedermos apenas à interpretação do texto normativo constitucional, não atingiremos uma concretização suficientemente exata do mesmo, devendo ser usado todo o "âmbito normativo" para o deslinde do problema em questão, ou em outras palavras, procurar sempre resolver os problemas concretos com a interação de várias normas.

Não é objetivo do presente trabalho tecer a minúcias os diferentes métodos e princípios utilizados pelos operadores do direito para procederem à atividade interpretativa. Mas cabe ressaltar, contudo, com amparo em Canotilho (2003) que atualmente a interpretação constitucional é um conjunto de métodos e princípios desenvolvidos pela doutrina e pela jurisprudência, com base em premissas e critérios diferentes, todavia complementares, o que corrobora o caráter unitário da interpretação.

Dentre os diferentes métodos e princípios interpretativos, merece destaque o chamado Princípio da Interpretação conforme a Constituição, por ser não só uma regra de interpretação, mas também por estar situado no âmbito do controle de constitucionalidade, conforme já enfatizou o nosso Supremo Tribunal Federal [03].


3 – Interpretação conforme a Constituição

À guisa de introdução ao tema, merece destaque a conceituação de um grande constitucionalista alemão (MÜLLER, p.119, 2004):

"Segundo esse princípio, deve-se sempre interpretar uma norma legal de maneira que ela esteja de acordo com os princípios constitucionais. Havendo mais possibilidades de interpretação normativa, deve ser definitiva aquela na qual a regulação legal dirige-se conformemente à Constituição. O princípio une, por conseguinte, a interpretação do texto normativo com o controle de normas" [04]

Praticamente todos os intérpretes dos diversos ordenamentos jurídicos utilizam o princípio em comento para auxiliar no labor hermenêutico, contudo, o mesmo necessita de uma análise muito mais acurada do que à primeira vista se possa imaginar.

Primeiramente, podemos depreender desse enunciado que não se trata de um princípio de interpretação da Constituição, mas sim de um princípio pelo qual interpretaremos as leis ordinárias em conformidade com o texto constitucional.

Entendido em sentido amplo, não significa esse princípio que entre duas interpretações possíveis da mesma norma deve-se optar por aquela que a torne compatível com a Constituição. Isso porque o princípio da interpretação conforme a Constituição também se justifica nos casos em que nenhuma das interpretações possíveis da lei conduz à sua inconstitucionalidade. Nessa seara, serve o apelo à Constituição para escolher aquela interpretação que mais se coaduna com o estabelecido pelo legislador constitucional. Com isso percebemos que mais do que um princípio conexo com a fiscalização da constitucionalidade das leis, trata-se de um princípio regra de aplicação da lei em geral.

É muito difundida a tese, particularmente na seara jurisprudencial, de que a interpretação conforme a Constituição alicerça-se numa presunção iuris tantum de constitucionalidade das leis. Singelamente isso quer dizer que em caso de dúvida sobre determinado dispositivo legal, deve-se entender que o legislador quis a solução conforme a Constituição. Tal presunção de constitucionalidade, no entanto, é inapropriada, pois tal fato, como lembrado por Medeiros (1999), não conseguiria explicar a admissibilidade de uma interpretação do direito ordinário anterior em conformidade com a nova Constituição.

Outra concepção para fundamentar o apelo à Constituição é o chamado princípio da conservação dos atos jurídicos, propugnando que se deve trazer o sentido de uma norma tanto quanto possível para dentro do sentido da norma constitucional e segundo Mendes (1998, p.268) "essa presunção de legitimidade parte do princípio de que o legislador busca positivar uma norma constitucional", sendo conseqüência que em caso de dúvida a lei deverá ser interpretada conforme a Constituição. Não pode isso, contudo, servir de fundamento ao princípio da interpretação conforme a Constituição, pois se afigura evidente que quando não estiver em causa uma interpretação inconstitucional, não há que se falar em conservação de normas.

Uma vez mais se apoiando nos ensinamentos de Medeiros (1999), o princípio da interpretação conforme a Constituição pode ser entendido como um instrumento hermenêutico de conhecimento de normas constitucionais para a apreciação do conteúdo legal, por conseguinte, é encarado mais como um princípio de prevalência normativo-vertical do que meramente um princípio de conservação de normas.

Refletindo sobre o que foi dito no parágrafo precedente, a interpretação conforme a Constituição nada mais é nesse sentido do que uma concretização da interpretação sistemático-teleológica, uma vez que as disposições legais não devem ser interpretadas isoladamente, mas em consonância não só com as demais disposições constantes da mesma lei (conexão horizontal), mas com todo o ordenamento jurídico, primordialmente com a Constituição (conexão vertical). Destarte, interpretar, aplicar e concretizar conforme a lei fundamental é considerar as normas hierarquicamente superiores da Constituição como elemento fundamental na determinação do conteúdo das normas infraconstitucionais. Deixa-se aqui, dessa forma, de ser "um princípio de conservação para se considerar um princípio de prevalência normativo-vertical e de integração hierárquico-normativo" (CANOTILHO, 1994, p. 406).

Quando foram reproduzidos no início dessa seção os dizeres de Muller, no qual o autor relata que a interpretação conforme a Constituição também possui um caráter de controle normativo, tal fato ocorre quando o princípio serve para afastar um sentindo inconstitucional de determinada norma, repudiando-se em verdade certa interpretação da lei, contendo, como se nota, uma decisão de inconstitucionalidade, que pode ser tácita ou expressa.

E essa possibilidade da interpretação conforme a Constituição rejeitar uma lei com fundamento em inconstitucionalidade, também se irradia nas relações entre os órgãos de fiscalização da constitucionalidade em geral e o legislador, já que o referido princípio pode se converter num meio dos órgãos de controle se substituírem ao legislador, devendo-se estabelecer claramente os limites da interpretação conforme a Constituição, porque não é plausível dizer "que quem tem competência para proferir uma decisão de inconstitucionalidade de um preceito legal pode, por maior razão, optar por uma decisão interpretativa" (MEDEIROS, p.300, 1999).

3.1 – Limites da Interpretação conforme a Constituição

É corrente na doutrina o entendimento de que a interpretação conforme a Constituição não permite a criação de um sentido que não decorra razoavelmente do texto legal, sendo facilmente encontrado entre os autores que se detêm ao tema, a constatação de que o princípio não constitui instrumento de salvação da lei ao custo de uma interpretação forçada, o que configuraria em última análise um verdadeiro exercício legislativo.

Barroso (1998, p. 185) também compartilha desse entendimento ao afirmar que "não é possível ao intérprete torcer o sentido das palavras nem adulterar a clara intenção do legislador".

Também no campo jurisprudencial do Supremo Tribunal Federal, está assentado que a interpretação conforme a Constituição possui como limites tanto a expressão literal da lei [05] quanto à vontade do legislador, contudo, a perquirição dessa vontade vislumbra-se como de difícil investigação e de certa forma até mesmo inútil, pois em tal vontade estaria enraizada a concepção do momento histórico em que foi produzida a lei, e como sabido, a interpretação evolui-se juntamente com o desenrolar da história e de seus acontecimentos, vindo a ser aplicada a situações para as quais não fora nem mesmo imaginada. A lei não tem um sentido em si mesmo, independente do intérprete, sendo este que confere significado à lei.

Mas a questão do limite da interpretação conforme a Constituição é ainda mais interessante quando nos deparamos com a questão do apelo à Constituição permitir uma interpretação corretiva da lei, já que, segundo Medeiros (1999, p.304) "uma interpretação conforme a Constituição inclusivamente de relevo correctivo, susceptível de recuperar nas normas legais a constitucionalidade falhada (por erro ou por alteração das circunstâncias), desde que fosse esse sentido constitucional manifestamente na intenção da norma corrigenda".

Apoiando-se uma vez mais nas sábias palavras de Medeiros (1999, p.305) que assevera que "os limites literais possíveis não constituem, de per si, limites à interpretação lato sensu correctiva da lei, porque, nesta sede, à letra se pode preferir o sentido que a letra traiu". Isso quer dizer apenas que, na verdade, mais importante do que o sentido literal da lei é a sua razão de ser, o seu fim, configurando-se inadmissível que uma interpretação conforme a Constituição em sentido estrito que, embora em concordância com o dispositivo literal do texto legal, contrarie a intenção inequívoca do legislador ou da lei.

Mas ainda que o intérprete corrija a letra da lei, recusando a aplicação da lei a hipóteses claramente abrangidas por seu texto literal, a interpretação conforme a Constituição, como dito por Claus-Wilhem Canaris, reproduzido em Medeiros (1999, p.316) não pode servir pra corrigir os "erros jurídico-políticos do legislador ou para contrariar o teor e o sentido da lei". A interpretação corretiva da lei em conformidade com a Constituição não deve se configurar em uma revisão da lei em conformidade com a Constituição.

3.2 – Repercussões na Interpretação Constitucional: Interpretação da Constituição Conforme a lei

Com o objetivo de proceder a uma conexão com o tema do presente trabalho, qual seja a Interpretação da Constituição conforme a lei, mister se faz relembrarmos as sábias palavras do mestre alemão Hesse (1991) para quem a interpretação conforme a Constituição exigiria a interpretação da Constituição da mesma forma que da lei, e como o seu grande objetivo era a manutenção dessa lei no ordenamento jurídico, a interpretação conforme também deveria realizar uma interpretação da Constituição visando sua adequação ao sentido ao qual o legislador a tenha concretizado. Assim que, segundo Hesse (1991, p.32) "Daí que a interpretação conforme a Constituição seja, em seu efeito reflexo sobre a interpretação da Constituição, interpretação da Constituição conforme a lei", [06] [07] servindo como um princípio suplementar da interpretação constitucional e confirmando a estreita relação entre a Constituição e as leis e consequentemente a unidade do ordenamento jurídico.


4 – Entendimentos doutrinários acerca da Interpretação da Constituição conforme a Lei

O presente método hermenêutico é objeto de severas críticas pela grande maioria dos doutrinadores pátrios e alienígenas, que o consideram uma subversão da hierarquia normativa, o que redundaria em uma "legalidade da Constituição" ao invés da tradicional constitucionalidade das leis.

Segundo Canotilho (1994) tal fenômeno hermenêutico ocorreria quando o legislador ordinário se valeria das normas infraconstitucionais para determinar o sentido dos textos constitucionais, principalmente daquelas normas que possuíssem um alto grau de "generalidade" e "indeterminabilidade". Tal fato seria possível uma vez que o direito ordinário estaria mais próximo da realidade e de seus problemas concretos.

Para Barroso (1999) toda atividade legislativa ordinária seria em última análise um instrumento de atuação da Constituição, de desenvolvimento de suas normas e consequentemente de realização de seus fins. Por isso há a constatação de que o legislador regularmente interpreta a Constituição, havendo como já realçado por Hesse e anteriormente relatado, uma relação simétrica entre a interpretação conforme a Constituição e a interpretação da Constituição conforme a lei. Ainda nos respaldando nos dizeres de Barroso (1999, p. 181):

"Quando o Judiciário desprezando outras possibilidades interpretativas prestigia a que fora escolhida pelo legislador, está, em verdade, endossando a interpretação da Constituição conforme a lei. Mas tal deferência [08] há de cessar onde não seja possível transigir com a vontade cristalina emanada do texto constitucional"

A interpretação dos dispositivos constitucionais conforme a lei, pelo que se depreende do ensinamento acima transcrito, tem total cabimento quando do sistema constitucional não se é permitido deduzir o significado exato do conceito utilizado pelo Constituinte.

A criação do termo se deve ao jurista alemão Walter Leisner, que em 1964 publicou o livro "Da constitucionalidade das leis para a legalidade da Constituição" [09], tendo o mesmo, contudo, uma opinião completamente contrária ao fenômeno.

Ainda em solo germânico, outros dois renomados juristas se detiveram à análise do tema, cada qual com um ponto de vista particular, ambos divergentes todavia, da orientação de Leisner. E em solo lusitano, Canotilho também expressou o seu entendimento.

Afigura-se interessante, pois, uma sucinta análise do que pensam esses juristas sobre o tema ora em debate.

4.1 – Posicionamento de Peter Häberle

Häberle inclina-se contra um entendimento jurídico-individual liberal da Constituição e dos direitos fundamentais, vendo o legislador como preponderantemente autorizado a influenciar, tanto direta quanto indiretamente, a compreensão constitucional, até mesmo no que tange aos direitos fundamentais. Ele argumenta ainda contra a tradicional limitação da compreensão dos direitos fundamentais e também contra a crescente restrição da reserva de legislação.

Decisivo para a interpretação constitucional de acordo com o direito legal ordinário é para Häberle (1983) a compreensão dos direitos fundamentais, que teriam uma visão "institucional", ou seja, uma referência maior para a comunidade, ao invés da orientação dominante desde a Revolução Francesa dos direitos fundamentais como ideais jurídico-individuais. O autor assevera que todos parecem ignorar que o legislador não é apenas um potencial oponente dos direitos fundamentais, e do direito em si, mas que é sim, atualmente, um garantidor desses direitos ao configurá-los em suas normas, porque "a configuração realizaria o objetivo da Constituição que é a realização dos direitos fundamentais na vida social. E para atingir esse objetivo a Constituição necessitaria da legislação como um meio para a realidade social" (HÄBERLE 1983, p. 184).

Häberle elaborou a tese segundo a qual toda limitação dos direitos fundamentais conteria uma parte de determinação de seu conteúdo. Assim, o legislador que limita os direitos fundamentais, estaria também com isso, determinando seus conteúdos e vice-versa, uma afirmação que para o autor significaria uma legitimação para restrições dos direitos fundamentais através do legislador ordinário.

Serve também como fundamento para a sua peculiar visão da atuação do legislador ordinário, o fato de Häberle vislumbrar uma valorização "teórico-jurídica" do instituto da Reserva Legal, que para ele é entendido pela doutrina de uma maneira equivocada, pois prejudicaria o conteúdo jurídico-valorativo dos direitos fundamentais.

Conclui-se desses ensinamentos que Häberle concede um demasiado espaço para a atuação do legislador infraconstitucional na determinação dos conceitos constitucionais.

4.2 – Posicionamento de Walter Leisner

Leisner representa a posição extremamente contrária à de Häberle. Enquanto esse último, como já anteriormente relatado, possuía uma confiança quase sem limites no legislador, a posição de Leisner é gravada principalmente de desconfiança em relação à legislação ordinária, que representaria uma aguda ameaça à validade e ao conteúdo da Constituição escrita, o que ocasionaria uma inversão da ordem normativa: da Lei para a Constituição ao invés da Constituição para a Lei.

A obra desse autor germânico discute a relação entre o Direito Constitucional e as normas não-constitucionais, e afirma a ocorrência de uma "degradante infiltração" no Direito Constitucional por essas normas, "infiltração" essa que deveria ser combatida com um fortalecimento conceitual de Autonomia da Constituição. Para Leisner (1964), "autonomia" nesse sentido significaria que as normas constitucionais se explicam por conta própria e manteriam uma força capaz de moldar o direito infraconstitucional.

É ainda da opinião de que as disposições constitucionais não poderiam ter seu sentido preenchido por normas infraconstitucionais, pois qualquer referência à lei ordinária tornaria a Constituição dispensável (LEISNER 1964), sendo ele o responsável por cunhar a expressão "Constituição de acordo com as Leis" para expressar esse fenômeno, que seria um risco à independência da Constituição como norma superior.

Leisner acredita que, para se evitar o preenchimento da Constituição pelo legislador infraconstitucional, haveria a necessidade de se optar pelos chamados conceitos constitucionais autônomos, que seriam: a) conceitos que a própria Constituição define; b) conceitos tipicamente constitucionais, conhecidos e compreendidos primariamente pela Constituição; c) conceitos que, não obstante serem tradicionalmente constitucionais, ganham na lei fundamental uma decisiva caracterização; e d) conceitos que embora pressupõem uma complementação legal são sobretudo caracterizados a partir da Constituição.

Todavia, concorda Leisner que realmente há escassez de conceitos constitucionais completamente autônomos em relação ao direito infraconstitucional, no que tange ao conteúdo, ressaltando o autor, que a autonomia da Constituição poderia ser então, decisivamente garantida a partir de uma Teoria da Constituição mais forte e independente, o que reforça sua grande crítica ao tema, que é o fato de proceder-se sempre ao preenchimento dos conceitos constitucionais através de elementos do direito inferior, sem o esforço de realizar-se primeiramente uma interpretação constitucional autêntica.

Em sua obra, Leisner também se refere à reserva legal, possuindo, contudo, uma visão completamente diferente daquela exposta por Häberle. Embora afirme que a reserva legal seria a única forma legítima de uma Constituição de acordo com as leis, uma vez que a mesma é expressamente reconhecida pela dogmática constitucional, rechaça essa ampliação da reserva legal, pois a mesma acabaria por desencadear uma aberta "repressão constitucional" (LEISNER, 1964, p.40) ao relativizar, ou até mesmo suprimir, conceitos constitucionais em prol de preceitos infraconstitucionais.

Diferindo uma vez mais da orientação de Häberle, assevera Leisner (1964, p.52) que "uma completa institucionalização da Constituição subverteria não apenas os direitos fundamentais, mas também toda a Constituição, a partir de uma ‘infiltração conceitual’ da legislação infraconstitucional nos preceitos constitucionais". [10]

Ao final de seu livro, cita Leisner (1964, p.64 e ss) 17 sugestões de solução para a problemática ora em questão, dentre as quais podemos assinalar: a) a imposição de um esgotamento das possibilidades de interpretação autônoma dos conceitos constitucionais antes de se passar ao auxílio legal; b) os conceitos legais devem ser interpretados no sentido constitucional (muitas vezes atécnico) e não no sentido pretensamente técnico, encontrado no direito infraconstitucional; c) a Constituição deve ser vista como um todo, havendo, consequentemente, um fortalecimento da teoria constitucional, o que impediria o "movimento de institucionalização" do Direito Constitucional; dentre várias outras.

Um grave problema da análise de Leisner reside no fato de que ele não concede o valor devido à Constituição como um produto da experiência histórica, perdendo assim de vista a tradição jurídica. O autor, como já precedentemente relatado, baseia-se numa Constituição extremamente "pura", que, posto isso, ficaria isenta dos influxos das evoluções históricas, perdendo consequentemente sua vitalidade e força atuante. Esse ideal de uma "superconstituição" proposto por Leisner faz com que o diploma constitucional não possua um de seus compromissos históricos, qual seja, o poder de refletir em suas normas as diversas alterações políticas e intelectuais que ocorrem na sociedade ao longo do tempo, resultando, consequentemente, que o entendimento que se obtém a partir de uma interpretação constitucional de uma Constituição completamente fechada a alterações advindas da legislação infraconstitucional, com o passar dos tempos, não se coadunaria com a realidade.

Inobstante isso, Leisner parece propor uma forçada separação entre a Constituição e seu conteúdo de um lado, e as normas jurídicas infraconstitucionais de outro, vendo o diploma constitucional como fechado. E sabemos que se afigura facilmente comprovável que numerosos preceitos infraconstitucionais participam do processo de transformação constitucional, passando a autêntico conteúdo normativo da Constituição.

Por fim cabe mais uma crítica. A desconfiança de Leisner no legislador e na própria sociedade é infundada, porque um sistema constitucional não será nunca bem recebido se o mesmo não admite ser influenciado pelo processo de modificação que ocorre na sociedade através das legislações infraconstitucionais.

4.3 – Posicionamento de Peter Lerche

Esse autor, diferentemente de Leisner, não enxerga a Constituição constituída sozinha no ordenamento jurídico, mas sim como um "concentrado" de todos os preceitos infraconstitucionais que caracterizam uma importante esfera do Direito. Lerche tem o legislador infraconstitucional (embora em limites bem definidos), como autorizado a influenciar a compreensão constitucional a partir de mudanças legislativas ordinárias.

Ao se aceitar a Constituição como "concentrada", tem-se que admitir que qualquer alteração fática das noções jurídicas infraconstitucionais, desencadearia, automaticamente, mudanças no teor constitucional. O questionamento só ocorreria em relação à existência de limites para tanto.

É corrente a indagação se institutos importantes como a propriedade, o direito sucessório, dentre outros, poderiam adquirir status constitucional se interpretados unicamente a partir da legislação ordinária, mesmo que essa nova interpretação não observasse os limites impostos pela Constituição. Lerche aduz que, nesses casos, a mudança ideológica da Constituição só poderia ocorrer quando a legislação ordinária fizesse referência aos postulados da Constituição, o que leva à conclusão de que há para o autor uma desvalorização da legislação ordinária vigente como expressão unilateral do interesse societário, ocasionando consequentemente, uma valorização da Constituição como base para o estabelecimento de preceitos futuros.

A função da Constituição como "concentrado" garante, segundo Lerche (1971), continuidade e, ao mesmo tempo, flexibilidade ao desenvolvimento jurídico tanto no plano da compreensão constitucional quanto no plano da legislação ordinária, pois, se de um lado deve extrair da compreensão constitucional arbitrariedades interpretativas, de outro lado deve deixar a Constituição suficientemente aberta para evitar que a mesma permaneça "endurecida" por interpretações demasiado conservadoras. Em suma, há assim, certa "maleabilidade" (LERCHE, 1971, p. 291) para que o ordenamento jurídico infraconstitucional, ao se atualizar, influencie a Constituição, mas tal "maleabilidade" deve ocorrer desde que se respeitem os princípios basilares constantes na Lei Fundamental, o que impediria qualquer menção à inversão da ordem normativa.

4.4 – Posicionamento de José Joaquim Gomes Canotilho

O mestre português ao adentrar no tema, faz referência à questão do reenvio constitucional, pois a Constituição "reenviaria" para as leis, em virtude da "abertura", "incompletude" ou "indeterminabilidade" das normas constitucionais, a função de concretização desses preceitos constitucionais.

Para o autor, tal método hermenêutico possuiria preponderantemente duas vantagens: a) quando se tratassem de leis relativamente antigas que posteriormente lograssem status constitucional; b) e principalmente em relação às hipóteses de alteração de sentido da Constituição plasmadas nessas leis ordinárias, uma vez que essas por estarem em contato direto com a realidade e seus problemas concretos, "transforma-se em ‘indicativos’ das alterações de sentido e em operadores de concretização das normas constitucionais cujo sentido se alterou. Do direito infraconstitucional partir-se-ia para a concretização da Constituição" (CANOTILHO, 2003, p. 1234).

Retornando à questão dos reenvios constitucionais, assevera o mestre de Coimbra que muitas dessas remissões constitucionais para as leis significariam na realidade uma abertura para que a legislação infraconstitucional procedesse a uma concretização dos preceitos constitucionais. Qual nada, o reenvio aberto para o preenchimento da Constituição segundo as leis não é, como comumente dito pela doutrina, uma abertura para qualquer conformação legal, uma vez que o cerne da regulamentação legal deve ser materialmente determinado por outros princípios expressa ou implicitamente disciplinados na Lei Fundamental. Por tais razões, a relativização da Constituição através da lei não é ainda um instrumento de inversão normativa.

Contudo, apoiando-se nos ensinamentos de Leisner, afirma Canotilho (1994) que um alargamento incontrolado dessas remissões, o que ocasionaria concomitantemente em um alargamento da noção de constituição material, é uma via perigosa, pois ai sim poderia ocasionar uma subversão da pirâmide normativa através do recurso freqüente à complementação normativa infraconstitucional. Como solução para tal fato, necessário seria evitar que esse conceito material de constituição fosse "ocupado pelo direito infraconstitucional, pelos seus conceitos, as suas teorias e as suas tradições" (CANOTILHO, 1994, p.410).

Como reticência à utilização desse cânome interpretativo, o autor relata que a Constituição passaria a ser entendida não só como um espaço normativo aberto, mas também como um campo neutro, onde o legislador iria introduzindo alterações. E Canotilho (2003) vai mais além ao afirmar que pode ocorrer dessa interpretação da Constituição conforme as leis ser uma interpretação inconstitucional, pois as leis pretéritas podem ter ganhado uma significação completamente diferente na Constituição, ou porque as novas leis podem ter introduzido alterações de sentido inconstitucionais.


5 – Interpretação da Constituição conforme a Lei como Liberdade de Conformação do Legislador

Depois de esclarecer o que alguns dos mais renomados constitucionalistas pensam a respeito da Interpretação da Constituição conforme a Lei, cabe nesse momento, a defesa de um ponto de vista particular e, para tanto, os ensinamentos de Canotilho uma vez mais servirão como diretrizes. Como o próprio título do presente capítulo cristalinamente demonstra, se tentará mostrar nas páginas subseqüentes, que a Interpretação da Constituição conforme a lei nada mais é do que a já conhecida e amplamente aceita liberdade que o legislador infraconstitucional possui de conformar o texto constitucional, devendo-se nesse instante uma análise desse fenômeno.

É sabido que os preceitos constitucionais são modos de ordenação de uma realidade presente, mas com dimensão para o futuro, devendo-se tais preceitos possuir abertura, flexibilidade, extensão e indeterminabilidade de modo a possibilitar uma conformação compatível com a natureza da direção política e uma adaptação concreta do programa constitucional.

Canotilho (1994, p.193) acrescenta ainda que:

"ao se falar de normas abertas, pretende-se dizer que as normas constitucionais devem ser planificadamente indeterminadas, de modo a deixarem aos órgãos responsáveis pela sua concretização o espaço de liberdade decisória necessário à adequação da norma perante uma realidade multiforme e cambiante".

Importante também é a definição de qual a função desempenhada pelo legislador no que se refere à relação material entre a Constituição e a lei. Adota-se aqui a noção de lei como conformação do texto constitucional [11]. Assim, as normas constitucionais seriam entendidas como preceitos gerais, possuindo o legislador um amplo poder para ponderar, valorar e comparar os fins dos preceitos constitucionais. Embora o legislador seja jurídico-constitucionalmente vinculado, ele pode desempenhar uma atividade criadora, que não estaria reduzida a mero esquema de execução e aplicação das normas constitucionais.

As normas constitucionais não são, em grande parte, programas condicionais os quais se possam reduzir ao esquema "se – então", mas são, ao invés disso, programas-fins que necessitam para a sua realização, de uma ampla liberdade de escolha pelo legislador dos meios aptos a atingirem os fins. É a chamada liberdade de conformação do legislador. [12]

A grande crítica à utilização da Interpretação da Constituição conforme a lei é que esse método interpretativo levaria a uma inversão da hierarquia normativa, ocorrendo uma "legalização da Constituição" em detrimento da constitucionalização das leis. Todavia, entender esse método hermenêutico como nada mais que a liberdade de conformação do legislador não leva a tal conclusão, uma vez que o legislador ao atuar, tem como base, sempre, o texto constitucional. Isso porque é cediço que a lei, no Estado de Direito Democrático-Constitucional não é um ato livre dentro da Constituição; é um ato, positiva e negativamente determinado pela Lei Fundamental. E realmente, utilizar a legislação infraconstitucional para interpretar a Lei Suprema, nada mais é do que dar poder ao legislador de conformar a Constituição. Trata-se, posto isso, de situações idênticas que recebem apenas denominação diversa.

Dois argumentos podem ser mencionados para a utilização da liberdade de conformação do legislador (e consequentemente para a interpretação da Constituição conforme a lei) nos ordenamentos hoje vigentes, quais sejam: a) o legislador possui legitimidade democrática imediata, assegurada pelo princípio democrático, pois o referido princípio assegura à instância legiferante uma fundamental liberdade de decisão para a realização de sua atividade; b) derivação também da "própria componente formal do conceito de Estado de Direito, na medida em que o princípio da segurança jurídica, como valor indissociável da estadualidade, jogaria a favor da presunção de conformidade material da actuação do legislador e, consequentemente, da sua liberdade de conformação"(CANOTILHO, 1994, p.238/9). Isso porque, quando muito, as normas constitucionais representarão apenas uma "vinculação negativa", mas não uma imposição de concretização ou execução.

Quando se centra a discussão na natureza das normas ao invés da posição constitucional do legislador, o resultado da utilização da liberdade de conformação do legislador não se altera, porque os múltiplos fatores e interesses a ponderar pelo legislador exigem não um Estado-garantia estático, mas sim um Estado-legislativo criador e suficientemente livre da determinação dos meios para a consecução dos fins mais ou menos definidos pela Constituição. Ademais, algumas normas constitucionais devem ser entendidas, como ressalta Canotilho (1994, p.240) como "um ‘guia’, um ‘itinerário’ onde não cabem todos os espaços concretos. A concretização constitucional seria, nesta perspectiva, um acto constitutivo e criador. Mais do que um acto cognitivo, tratar-se-ia de um acto volitivo".

Ao se interpretar a Constituição a partir da legislação infraconstitucional, pode o legislador, por possuir uma liberdade de conformação dos preceitos, proceder a excessos. Contudo, nesse instante, ressalta-se a importância dos Tribunais Constitucionais, que devem declarar a inconstitucionalidade da lei elaborada pelo legislativo quando esta afrontar o texto constitucional. Canotilho (1994) relata que a liberdade de conformação do legislador também é confirmada a partir da questão do problema do controle da atividade legislativa, devendo-se nesse momento ser defendida, contudo, uma posição limitada do poder conferido a esses Tribunais Constitucionais. A indeterminação objetiva das normas vinculantes deixa ao legislador um espaço para decisões politicamente motivadas, dessa forma, tal motivação política deve ser subtraída da fiscalização pelo Judiciário, com o objetivo de se evitar a transformação do controle judicial em político. Assim, melhor seria se houvesse um "controle dos ‘limites externos’ dos actos legislativos, mas não uma ‘devassa’ das considerações políticas subjacentes ao acto legislativo"(CANOTILHO, 1994, p.240).

Esclarecedores são, uma vez mais, os dizeres de Canotilho (1994, p. 265), que merecem ser aqui literalmente relatados:

"Não está em causa um ‘dever de boa-lei’, mas o dever de observância dos fins constitucionais, concretamente plasmados em normas constitucionais impositivas, heteronomamente vinculantes das escolhas discricionariamente feitas pelo legislador. Por outras palavras: o legislador, através das determinantes autônomas, continua a valorar autonomamente as circunstâncias de facto e as finalidades sócias, políticas e econômicas de determinado acto legislativo. Quando, porém, a constituição impõe concretamente a obtenção de certos fins e traça as directivas materiais para a sua obtenção, impõem-se que, a nível da interpretação da lei, se capte a eventual desconformidade do acto legislativo, por contraditoriedade, não pertinência ou incongruência com os fins e directivas materiais da constituição. A fiscalização constitucional não se transforma em juízo de mérito (inadequação, inoportunidade ou deficiência da lei para atingir certos fins), pois isso pressuporia uma substituição inadmissível do legislador pelo juiz na selecção das determinantes autônomas."

Quando se fala que a Interpretação da Constituição conforme a lei não subverte a hierarquia normativa, afirma-se que o texto constitucional sempre deverá servir como fundamento para a atuação do legislador infraconstitucional, isso porque existem princípios, os quais Canotilho denomina de determinantes heterônomas [13], que servem como uma espécie de controle, incidente sobre o exercício da função legislativa.

Anteriormente já foi dito que na ordem democrático-constitucional, incumbe ao legislador a tarefa de concretização da Constituição, isso com o escopo de aproximar os preceitos constitucionais da realidade, e que tal tarefa desempenhada pelo legislador pressupõe a observância dos princípios fundamentais do texto constitucional. Contudo, hodiernamente, devem-se compreender essas normas constitucionais diretivas da atuação legislativa, como normas de remissão, atributivas de competência e não como normas impositivas de uma tarefa material. Isso tudo só corrobora o entendimento já plasmado que a atividade legislativa é um meio necessário para a atualização-concretização das normas constitucionais.

Mister se faz também a análise da atuação do legislador no que tange aos direitos fundamentais. A posição aqui adotada será semelhante àquela prolatada por Peter Lerche, afastando-se assim, da opinião de Häberle que concede amplos poderes ao legislador infraconstitucional na conformação dos direitos fundamentais. A relação da lei com os direitos fundamentais reconduz-se a dois esquemas principais: 1) direitos de liberdade (direitos de defesa), na qual se pretende uma omissão dos poderes públicos; 2) direitos econômicos, sociais e culturais (direitos à prestação), na qual é desejável uma atuação legislativa. E é em relação a essa última categoria, que a presença do legislador se fará importante. Não há dúvidas que a falta de dinamização legislativa dos direitos à prestações deve ser entendida como um não-cumprimento inconstitucional.

Nota-se diante de tudo o que foi exposto que a atuação legislativa é imprescindível para a máxima concretização da Lei Fundamental, concretização essa entendida como a liberdade que o legislador possui de conformação dos preceitos constitucionais ou na conceituação do presente trabalho, de usar a legislação infraconstitucional para interpretação a Lei Superior.


6 – Utilização da Interpretação da Constituição conforme a Lei no ordenamento jurídico brasileiro

A seara tributária é a que mais propriamente nos fornece exemplos da utilização desse cânone hermenêutico, e que também permite a visualização de que a interpretação da Constituição conforme a lei nada mais é do que a liberdade de que o legislador possui de poder conformar o texto constitucional. É sabido que a Constituição não cria tributos, ela apenas atribui competência para a criação dos mesmos, por isso se diz que a Constituição traz a hipótese de incidência e a base de cálculo possíveis dos impostos, cabendo ao legislador, no momento do exercício da competência, editar a norma tributária dentro dos limites previamente demarcados pela Constituição. Assim, as relações jurídicas havidas entre o fisco e os contribuintes são disciplinadas pela legislação infraconstitucional. De acordo com os sábios dizeres de Amaro (p.99, 2007):

"Ainda que referidas na Constituição as notas que permitem identificar o perfil genérico do tributo (por exemplo ‘renda’, ‘prestação de serviços’, etc), a efetiva criação de tributo sobre tais situações depende de a competência atribuída a este o àquele ente político ser exercitada, fazendo atuar o mecanismo formal (também previsto na Constituição) hábil à instituição do tributo: a lei".

Nesta esteira, percebe-se que a lei ordinária é o meio apto à instituição de tributos, e consequentemente, de suas modificações e revogações.

Ainda baseado nas palavras de Amaro (2007) tal competência tributária pressupõe a competência para legislar, inovando-se o ordenamento jurídico, contudo, se devem respeitar os balizamentos previamente fixados no texto constitucional, que estabelecerá os limites aos quais a lei instituidora do tributo estará submetida, devendo posto isso, ser o legislador fiel ao padrão de incidência do tributo, pré-traçado na Constituição, o que corrobora todo o disposto no capítulo precedente.

À guisa de exemplos, há a questão da noção de renda. Extrair um conceito de renda no âmbito da Constituição se mostra como uma árdua tarefa, já que o texto constitucional não diz o que renda significa, o que nos leva a inferir que o disposto no art. 153, III, da Constituição não é "de per si" apto a afastar a ação do legislador complementar e ordinário.

O conceito jurídico-tributário de renda deve realmente ser buscado no Direito Positivo, mais precipuamente na legislação infraconstitucional. Inobstante isso, não se pode admitir que o legislador ordinário desfrute de inteira liberdade para considerar renda tudo quanto pretenda tratar como tal para fins tributários, uma vez que a Constituição Federal submete a renda ao princípio geral da capacidade contributiva e aos princípios da generalidade, universalidade e progressividade. Renda deve ser entendida como um ganho patrimonial, uma riqueza nova, decorrente do confronto de entradas e saídas, durante um determinado lapso temporal.

Para clarificar a noção de renda e concomitantemente corroborar o entendimento defendido no capítulo precedente, qual seja, de que a liberdade que o legislador infraconstitucional possui de conformação dos preceitos constitucionais deve pressupor um respeito aos princípios basilares contidos na Carta Magna, e que se tal fato não ocorrer, estará a interpretação elaborada pelo legislador sujeita ao crivo do Pode Judiciário, mister se faz a reprodução das palavras de Pedreira (1969, p.21):

"A Constituição Federal autoriza a União a impor tributos sobre a ‘renda e os proventos de qualquer natureza’. No exercício do Poder Legislativo cabe ao Congresso Nacional definir, na legislação ordinária, o que deve ser entendido por renda, para efeitos de tributação. Mas ao definir a renda tributável o Congresso Nacional tem o seu poder limitado pelo sistema constitucional de distribuição de poder tributário, e fica sujeito à verificação, pelo Poder Judiciário, da conformidade dos conceitos legais com os princípios da Constituição. O Congresso pode restringir ou limitar o conceito de renda e proventos de qualquer natureza constante da Constituição, mas não ampliá-lo além dos limites compatíveis com a distribuição constitucional de rendas."

Em derradeiro, nota-se que o legislador ordinário, embora seja incumbido de criar o conceito de renda, não pode fazê-lo sem limites, devendo proceder a uma especificação do conceito observando-se as diretrizes impostas pela lei fundamental, pois do contrário estaria cometendo uma invalidade jurídica, passível de impugnação via judiciário.

Outro exemplo da utilização da interpretação da Constituição conforme a Lei, embora não se utilize propriamente essa denominação, está presente no recentíssimo Informativo nº 556 do Supremo Tribunal Federal, ao tratar de um Embargos de Declaração em Agravo Regimental em Recurso Extraordinário, da relatoria do Ministro Cezar Peluso em que seguradora sustenta que as receitas de prêmios não integram a base de cálculo da COFINS, porquanto o contrato de seguro não envolve venda de mercadorias ou prestação de serviços.

O Min. Cezar Peluso afirmou que o Tribunal estaria sendo instado a definir, de uma vez por todas, o que seria a noção de faturamento constante do art. 195, I, da CF, na redação que precedeu a EC 20/98. Asseverou que a palavra faturamento teria um conceito histórico, e, demonstrando o confronto entre a teoria que entende faturamento como sinônimo de receita de venda de bens e serviços daquela que o considera resultado das atividades empresariais, reputou a segunda mais conforme ao sentido jurídico-constitucional e à realidade da moderna vida empresarial.

Tendo em conta que a doutrina comercialista mais acatada reconhece, há tempos, a relevância da chamada teoria da empresa e que o conceito básico do moderno direito comercial seria o de atividade empresarial, substituindo a velha noção de ato de comércio, assentou o relator que se deveria formular a idéia de faturamento sob a perspectiva da natureza e das finalidades da atividade empresarial e ressaltou que, apesar de faturamento não traduzir conceito contábil preciso, existiria uma noção que poderia auxiliar a exprimir com precisão o significado suposto pela Constituição, qual seja, a Norma Brasileira de Contabilidade - NBC T.3.3, aprovada pela Resolução do Conselho Federal de Contabilidade 686/90, que dispõe que "3.3.2.3 – A demonstração do resultado evidenciará, no mínimo, e de forma ordenada: a) as receitas decorrentes da exploração das atividades-fins;". Tal definição ofereceria um ponto sustentável de partida metodológica para compreender faturamento como expressão da receita advinda da realização da finalidade da empresa ou do seu objeto social.

Percebe-se com isso que o Ministro utilizou-se de uma Resolução para aferir a noção vigente de faturamento, procedendo dessa forma, a nada mais do que uma interpretação da Constituição a partir de uma norma infraconstitucional, ao entender a expressão faturamento como a soma das receitas oriundas das atividades empresariais típicas. Esta grandeza compreenderia, além das receitas de venda de mercadorias e serviços, as receitas decorrentes do exercício efetivo do objeto social da empresa, independentemente do seu ramo de atividade. Dessa forma, através dessa nova noção de faturamento, as receitas decorrentes de prêmios de seguro ou de intermediação financeira seriam passíveis de tributação por PIS e COFINS por se conterem no âmbito do exato conceito de faturamento depreendido da interpretação da norma constitucional a partir da Resolução supramencionada.

Outros exemplos, todavia, podem ser encontrados em outras áreas do direito, podendo-se mencionar aquela expressão contida no § 1º do art 29-A da Constituição Federal [14], com a redação que lhe foi dada pela Emenda Constitucional nº 25, de 14/02/2000, de se buscar qual o conceito de "folha de pagamento", para se saber quais as parcelas que a integram e se, principalmente, os encargos sociais assumidos por determinada entidade patronal fazem, ou não, parte dela.

Com efeito, o Decreto nº 3.048, de 06 de maio de 1999, que aprovou o Regulamento da Previdência Social, dispõe in verbis:

Art.225. A empresa é também obrigada a:

I - preparar folha de pagamento da remuneração paga, devida ou creditada a todos os segurados a seu serviço, devendo manter, em cada estabelecimento, uma via da respectiva folha e recibos de pagamentos;

....................................................................................................

§ 9º A folha de pagamento de que trata o inciso I do caput, elaborada mensalmente, de forma coletiva por estabelecimento da empresa, por obra de construção civil e por tomador de serviços, com a correspondente totalização, deverá:

I - discriminar o nome dos segurados, indicando cargo, função ou serviço prestado

II – agrupar os segurados por categoria assim entendido: segurado empregado, trabalhador avulso, contribuinte individual

III - destacar o nome das seguradas em gozo de salário-maternidade

IV – destacar as parcelas integrantes e não integrantes da remuneração e os descontos legais e;

V – indicar o número de quotas de salário-família atribuídas a cada segurado empregado ou trabalhador avulso

Os encargos sociais, como se pode verificar, não se incluem dentre os elementos componentes da folha de pagamento.

Por isso a Lei Complementar nº 96/99, distinguiu com absoluta clareza, os conceitos de despesa com pessoal, que são próprias da folha de pagamento, e de despesas totais com pessoal, estando neste abrangidas tanto as despesas constantes da folha de pagamento quanto aquelas concerntes aos encargos sociais e contribuições recolhidas às entidades de previdência.

Por conseguinte, resta evidenciado que o limite de 70% da receita com folha de pagamento, não alcança os encargos sociais, pois se assim não fosse, o legislador teria inserido no texto do art 29-A § 1º da CF a expressão "inclusive os encargos sociais".

Interessante também é a questão enunciada no Inquérito nº2044 – QO, Rel. Min. Sepúlveda Pertence, que trata da competência do Supremo Tribunal Federal para julgar crime cometido por Secretário Especial de Aquicultura e Pesca, declarando o Pretório Excelso sua incompetência para tal fato, por não poder tal secretário ser equiparado ao cargo de Ministro de Estado.

A Suprema Corte nacional, embora seja a última instância do Poder Judiciário pátrio, é a competente para processar e julgar, nos crimes comuns, em única instância, diversos membros do primeiro escalão dos diferentes poderes. No caso ora em tela, o réu passou a exercer o cargo de Secretário Especial de Aqüicultura e Pesca da Presidência da República, usando como argumento o fato de que a Lei 11036, de 22 de dezembro de 2004, estendeu o status de Ministro de Estado, alterando a redação do parágrafo único do art. 25 da Lei 10683 [15], e também o artigo 38 da Lei 10683 e seu §1º [16].

Como se vê, os referidos artigos e parágrafos retratam um exemplo de interpretação da Constituição conforme a Lei, já que o texto constitucional não fala quem são os Ministros de Estado, sendo o legislador ordinário o responsável a proceder a tal especificação.

Todavia, afirmamos no capítulo precedente que essa liberdade que o legislador possui não é ilimitada, devendo-se ter sempre a Lei Fundamental como diretriz, e se em algum momento o legislador infraconstitucional extrapolar essa sua função, essa poderá e deverá passar pelo crivo do Judiciário, que declarará, dessa forma, inconstitucional a atuação legislativa. Tal foi o que se sucedeu no caso em exame.

O Excelentíssimo Ministro Sepúlveda Pertence utilizou como fundamentação a sustentação proferida pelo Ministro Celso de Mello em um caso precedente, no qual o mesmo, utilizando a Medida Provisória nº1498-22 de 02.10.1996, fez um diferenciação entre quais sejam propriamente os Ministros de Estado e quais são aqueles cargos os quais a mesma Medida Provisória atribuiu "prerrogativas, garantias, vantagens e direitos equivalentes aos de Ministro de Estado" [17].

Vislumbra-se apropriado nesse momento, transcrever um trecho do voto do Ministro Celso de Mello, citado pelo Ministro Sepúlveda Pertence no seu voto do Inquérito 2044-QO:

"A União Federal, ao dispor sobre a organização administrativa do Poder Executivo, estabeleceu, em medida provisória editada pelo Presidente da República, que os Ministérios são unicamente aqueles relacionados no art. 13 da MP nº1498-22 de 02.10.96

...................

O preceito legal em questão é bastante enfático a esse respeito: ‘São Ministros de Estado os titulares dos Ministérios, da Casa Civil da Presidência da República e do Estado Maior das Forças Armadas.

A MP nº1498-22, no entanto, atribui aos titulares de determinados cargos públicos as ‘prerrogativas, garantias, vantagens e direitos equivalentes aos de Ministro de Estado’ (art 23).

A norma em questão, portanto, precisamente por reconhecer que os ocupantes dos cargos de natureza especial não são Ministro de Estado, estendeu-lhes regime jurídico equivalente ao que se aplica àqueles altos agentes políticos incumbidos, constitucionalmente de auxiliarem o Presidente da República na condução dos negócios de Estado e da Administração Pública.

....................

Parece certo que essa extensão meramente legal de prerrogativas próprias de Ministro de Estado, beneficiando quem não ostenta essa elevada condição formal, deve ter repercussão na esfera administrativa, financeira e protocolar, não se projetando, contudo, na dimensão estritamente constitucional.

É que a Constituição da República, ao dispor sobre o estatuto jurídico concernente ao Ministro de Estado, prescreveu regras e estabeleceu normas que só se aplicam àqueles que sejam qualificados como Ministros de Estado.

Isso significa que somente quem é Ministro de Estado (MP nº1498-22 art13 parágrafo único) – e não quem a este foi meramente equiparado para efeitos administrativos, financeiros e protocolares – submetem-se à disciplina constitucional própria desses qualificados auxiliares do Chefe do Poder Executivo da União.

Dentro desse contexto, somente o Ministro de Estado – vale dizer, os titulares dos Ministérios, o Chefe da Casa Civil da Presidência da República e o Chefe da EMFA (MP nº1498-22 art13 parágrafo único) – dispõe de prerrogativa de foro ratione muneris perante o STF." [18]

Outra não é a opinião de Oliveira (2008) que corrobora o entendimento do Min. Sepúlveda Pertence, ao visualizar manifesta inconstitucionalidade na equiparação das diversas Secretarias a Ministérios, por entender que tais Secretarias seriam meros órgãos de feições exclusivamente administrativas e também porque não se poderia deixar a cargo da Administração Pública Federal o poder de identificar as funções merecedoras de tratamento privilegiado na Constituição, uma vez que o privilégio de foro do Presidente, de seu Vice e dos Ministros de Estado obedece a um critério racional de organização administrativa em função da chefia do Executivo, não devendo tal fato ser alargado às inúmeras Secretarias existentes [19].

Podemos claramente dizer que esse último exemplo é a síntese do que se pretendeu esboçar ao longo deste trabalho. Com ele, percebemos que o conceito de "superconstituição" (uma Constituição extremamente "pura", completamente independente da legislação infraconstitucional) elaborado por Leisner, e já anteriormente debatida, não se coaduna com a real compreensão que deve ser concedida aos preceitos constitucionais, que de forma alguma podem abdicar da importância da legislação infraconstitucional e o seu maior contato com o cotidiano e suas constantes transformações. A evolução das relações político-econômico-sociais impõe a ocorrência de mudanças na interpretação dada a muitos dos preceitos presentes na Lei Fundamental, sendo ilustrativa a questão do Presidente do Banco Central já possuir status de Ministro de Estado, e, consequentemente, foro privilegiado para julgamento no Supremo Tribunal Federal, devido à importância que tal cargo desempenha em um capitalismo de mercado, como é o que vivemos atualmente.

A Constituição, como Lei Superior que é, não pode ficar condicionada, durante sua vigência, unicamente aos ideais presentes no momento de sua elaboração, sob pena de perder sua eficácia e força atuante, não refletindo, consequentemente, as modificações e o novos anseios da sociedade.

O exemplo anteriormente citado é importante também por demonstrar o papel a ser desempenhado pelo Tribunal Constitucional, que deve declarar inconstitucional a interpretação legislativa que, incorrendo em excessos, não se coaduna com os princípios fundamentais da Lei Superior, extrapolando os limites concedidos à atuação legislativa, ressalvando a opinião que propugna pela constitucionalidade da referida ampliação do status de Ministro.


7 – Conclusão

O presente trabalho pretendeu, embora de uma maneira não exauriente, analisar a controvertida Interpretação da Constituição Conforme a Lei, informando o que alguns renomados constitucionalistas ao redor do globo entendem sobre o tema, demonstrando posteriormente, contudo, uma visão particular do assunto, ao equiparar o referido cânone hermenêutico à liberdade que o legislador possui de conformar os preceitos constitucionais, isso porque a função do direito infraconstitucional em sua relação com o direito constitucional não deve se limitar a um meio ou instrumento de auxílio da interpretação constitucional, possuindo sim uma verdadeira função constitucionalmente caracterizante.

A Interpretação da Constituição conforme a lei, como visto, é extremamente importante para uma correta e adequada concretização dos preceitos constitucionais, pois se sabe que os preceitos constitucionais são modos de ordenação de uma realidade presente, mas com dimensão prospectiva, ou seja, voltada para o futuro, do qual se exigem abertura, flexibilidade, extensão e indeterminabilidade, para estarem sempre em consonância com as transformações que venham a ocorrer na sociedade. Por estar a legislação infraconstitucional mais próxima das transformações que ocorrem na sociedade e por ser o legislador infraconstitucional apto a formular e articular autonomamente interesses, não se limitando a simplesmente declarar apenas aqueles interesses pressupostos na Constituição, é que aconteceria a concretização dos preceitos constitucionais através da legislação infraconstitucional, moldando-os de acordo com os novos anseios da sociedade.

Tal atuação legislativa de conformação dos preceitos constitucionais através da legislação infraconstitucional não leva, todavia, a uma subversão da hierarquia normativa, como comumente dito pelos críticos da Interpretação conforme a Constituição, já que a atuação legislativa sempre deverá se pautar em princípios presentes expressa ou implicitamente na Lei Fundamental, que servirão como parâmetro que nunca poderão ser transgredidos pelo legislador infraconstitucional.

E o mais importante é que, ao passo em que se concede um amplo poder ao legislador infraconstitucional de concretizar os preceitos constitucionais, alterando sua função, que deixa de ser a de um mero executor do que está disposto na Lei Fundamental para a de um conformador da Constituição, há uma maior atenção do Tribunal Constitucional em relação à atuação legislativa. Assim, se o legislador infraconstitucional incorrer em excessos, violando as diretrizes fundamentais de nossa Carta Magna, deve o Supremo Tribunal Federal declarar a inconstitucionalidade dessa atividade legislativa. Contudo, a atuação do judiciário deve se ater, unicamente, a aspectos jurídicos, não influindo nas decisões políticas do legislador infraconstitucional. Assim, percebe-se que mesmo tendo seus poderes ampliados, deve o legislador obrigatoriamente respeitar a Constituição se não quiser ter o produto de sua atividade declarado inconstitucional pelo Tribunal Constitucional.

Mesmo não possuindo a orientação que aqui se propõe, o tema da Interpretação da Constituição conforme a Lei já vem sendo utilizado pelos tribunais pátrios, havendo inclusive julgados em nossa Suprema Corte, conforme precedentemente demonstrado, que tratam do tema, tendo sido relatado um exemplo em que há a declaração de inconstitucionalidade por parte do Supremo Tribunal Federal da atuação legislativa concernente à ampliação excessiva do conceito de Ministro de Estado a outros cargos da Administração.

À guisa de conclusão, importante é a constatação de que a Interpretação da Constituição conforme a Lei, além de não ocasionar uma subversão da hierarquia normativa, uma vez que os preceitos basilares da Lei Fundamental sempre hão de ser observados, deve ser compreendida como um eficaz método de concretização do texto constitucional, aproximando a Constituição dos novos rumos da sociedade.


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BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Informativo 556


Notas

  1. No espanhol: "allí donde no se suscitan dudas no se interpreta"
  2. No original em alemão: "Verfassungsinterpretation ist Konkretisierung"
  3. - Brasil – STF – Representação nº 1.417-DF. Rel. Min. Moreira Alves. RTJ 126, págs. 48/72, 66
  4. No original em alemão: " Nach diesem Grundsatz ist eine Gesetzesnorm immer so auszulegen, daß sie mit den Grundsätzen der Verfassung im Einklang steht. Bei mehreren Möglichkeiten der Normauslegung soll diejenige maßgeblich sein, bei der gesetzliche Regelung mit der Verfassung konform geht. Der Grundsatz verbindet somit Normtextauslegung mit Normkontrolle.
  5. O STF parece ser adepto de uma interpretação conforme a Constituição delimitada negativamente pela letra da lei, opondo-se assim àqueles que admitem interpretações corretivas dos sentidos que dela resultam. O fundamento frequentemente usado para a não atribuição de uma função corretiva à interpretação conforme a Constituição reside apenas na preocupação em distinguir a decisão interpretativa da decisão de inconstitucionalidade da lei, contudo tal fundamento não deve prosperar, já que a interpretação conforme a Constituição limita-se a afastar o sentido ou os sentidos resultantes da adoção de um determinado processo de interpretação da lei.
  6. No original em alemão: "Verfassungskonforme Auslegung von Gesetzen ist daher in ihrer Rückwirkung auf die Verfassungsinterpretation gesetzeskonforme Auslegung der Verfassung".
  7. Hesse ainda afirma que tal fato ocorre mesmo quando o Tribunal que realiza a interpretação não o diga expressamente, citando como exemplo BVerfGE 12, 45 (53 e ss).
  8. - Inobstante o respeitável posicionamento de Luis Roberto Barroso, acredito que muito mais do que uma questão de deferência, trata-se na verdade de um problema de limite jurisdicional.
  9. Título no alemão: "Von der Verfassungsmäßigkeit der Gesetze zur Gesetzmäßigkeit der Verfassung"
  10. No original em Alemão: "Einie völlige ‘Institutionalisierung der Verfassung’ würde nicht nur die Grundrechte zerstören, sondern die gesamte Verfassung durch Begriffsunterwanderung erst den ‘Kernbereich’ der niederrangigen Gesetzgebung".
  11. Canotilho afirma que o legislador, além da noção exposta de conformador do texto constitucional, também pode ser concebido como: a) executor da Constituição: haveria uma similaridade entre a discricionariedade administrativa, como sendo executora da lei, e a discricionariedade legislativa que seria apenas uma execução pelo legislador dos preceitos detalhados no texto constitucional; e b) aplicador da Constituição, na qual o legislador por ser um órgão nato a dar aplicabilidade aos preceitos constitucionais, por isso não necessitaria de autorização (a qual precisa ser dada ao administrador) para desempenhar a sua tarefa de normatização jurídica. Contudo, nessa seara, a atividade legiferante seria caracterizada como aplicação normativamente vinculada das determinações constitucionais.
  12. Canotilho (1994) traça uma distinção entre liberdade de conformação do legislador e discricionariedade legislativa e afirma que mesmo se utilizando de um conceito alargado de discricionariedade, há uma relativa diferença entre ambos.
  13. Dentre os quais podemos citar: o princípio da proibição do excesso, princípio da proporcionalidade, princípio da determinabilidade e o princípio da igualdade. Canotilho fala em determinantes heterônomas, no sentido de que vinculam positivamente o exercício discricionário do poder legiferante e estabelecem os limites desse mesmo exercício.
  14. Artigo 29-A da Constituição Federal: "O total da despesa do Poder Legislativo Municipal, incluídos os subsídios dos Vereadores e excluídos os gastos com inativos, não poderá ultrapassar os seguintes percentuais, relativos ao somatório da receita tributária e das transferências previstas no § 5º do art. 153 e nos arts. 158 e 159, efetivamente realizado no exercício anterior:
  15. § 1º - A Câmara Municipal não gastará mais do que 70% (setenta por cento) de sua receita com folha de pagamento, incluído o gasto com o subsídio de seus Vereadores.

  16. Parágrafo único: São Ministros de Estado os titulares dos Ministérios, o Chefe da Casa Civil, o Chefe do Gabinete de Segurança Institucional, o Chefe da Secretaria de Comunicação de Governo e Gestão Estratégica, o Chefe da Secretaria-Geral da Presidência da República, o Chefe da Secretaria de Coordenação Política e Assuntos Institucionais da Presidência da República, o Advogado-Geral da União, o Ministro de Estado do Controle e da Transparência e o Presidente do Banco Central do Brasil.
  17. Art. 38. São criados os cargos de natureza especial de Secretário Especial do Conselho de Desenvolvimento Econômico e Social, de Secretário Especial de Aqüicultura e Pesca, de Secretário Especial dos Direitos Humanos e de Secretário Especial de Políticas para as Mulheres da Presidência da República.
  18. § 1o Os cargos referidos no caput terão prerrogativas, garantias, vantagens e direitos equivalentes aos de Ministro de Estado.

  19. Segundo o Ministro essa diferenciação pode ser visualizada a partir da análise dos artigos 13 e seu parágrafo único com o artigo 22 e 23 da MP 1498-22.
  20. - Todavia, já decidiu o STF (ADI nº 3289 e ADI nº 3290, ambas decisões relatadas pelo eminente Min. Gilmar Mendes) que, relativamente ao Presidente do Banco Central, possuirá esse foro específico para a apreciação de questão criminal na Suprema Corte nacional.
  21. - Merece destaque, contudo, a opinião que diverge da orientação do Ministro Sepúlveda Pertence, ao entender que tal declaração de inconstitucionalidade só poderia ocorrer se o alargamento das equiparações realmente prejudicar o eficaz desenvolvimento da máquina administrativa, uma vez que a decretação de inconstitucionalidade estaria interferindo aqui em uma decisão política do legislador infraconstitucional.

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Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

PEREIRA, Mathias Vargas. Interpretação da Constituição conforme a lei entendida como liberdade de conformação do legislador dos preceitos constitucionais. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 16, n. 2783, 13 fev. 2011. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/18486. Acesso em: 11 maio 2024.