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Direito Penal do risco e conceito material de crime

Direito Penal do risco e conceito material de crime

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Resumo: O presente artigo visa a tratar de um fenômeno comum nos dias atuais: o chamamento do sistema punitivo estatal para a tutela de novos interesses coletivos, mazelas do desenvolvimento tecnológico. Nesta linha, perpassados todos os problemas dogmáticos e político-criminais que confrontam o chamado direito penal do risco com os padrões de legitimidade do Direito Penal moderno (garantista e minimalista), o texto se concentra na discussão à volta do conceito de bem jurídico-penal. O propósito é, pela via da doutrina político-criminal do conceito material de crime, lograr um conceito de bem jurídico que legitime e restrinja a intervenção do direito penal, tanto no plano do direito constituído quanto de lege ferenda, em conta o movimento expansionista por que passa o sistema penal atual de que é exemplo o Direito Penal ambiental.

Palavras-chave: Direito Penal Secundário – Crimes Ambientais - Sociedade do Risco – Política-criminal - Modelos de controle – Bem Jurídico - Descriminalização.

Sumário: 1. Considerações iniciais – 2. Sociedade do risco, meio ambiente e direito penal: Direito Penal clássico versus "direito penal do risco"; 2.1. Sociedade do medo e da insegurança; 2.2. Direito penal clássico versus "direito penal do risco" – 3. Detalhamento de algumas propostas; 3.1. Introdução; 3.2. Teses antropocêntricas - 4. Apontamentos inconclusivos; 4.1. A conciliação entre a razão pragmática e a Wertrationalität; 4.2. Bens jurídicos coletivos, meio ambiente e antropocentrismo moderado.


1.Considerações iniciais

Vivemos um momento de transformações sociais. Transformações que, a um só tempo, interferem em diferentes horizontes discursivos como a sociologia, a política, o direito.

Mais especificamente, a sociedade pós-capitalista tornou-se reflexiva [01], a partir do momento em que passa a questionar a viabilidade dos seus meios de produção e transformação de riquezas. De forma impressiva, no que ao meio ambiente concerne, poucos são os que, hodiernamente, não tem consciência dos problemas correlatos à degradação ambiental e dos riscos de esses mesmos problemas se acentuarem num futuro não muito distante. De fato, cada vez mais, em virtude de múltiplos fatores- entre os quais podemos citar a pressão da opinião pública, a efetiva ocorrência de desastres ambientais, as exigências do mercado por produtos mais "verdes" -, tem-se clamado por um ambiente mais sadio e auto-sustentável, que não venha a prejudicar as venturas gerações, mesmo que para tanto não se dispense a intervenção estatal. Em uma palavra, vivemos um momento histórico em que a crise ecológica ganha uma dimensão alargada, de crescente relevância, passando a fazer parte da discursividade jurídica.

E esta maior preocupação com o equilíbrio ecológico e a preservação ambiental deve-se, de certo modo, ao fato de que – recorrendo a uma expressão de Ulrich Beck – "o aumento do bem-estar e da ameaça se condicionam reciprocamente" [02].Quer isto significar que, conforme a sociedade se desenvolve tecnologicamente, ao passo que a modernidade (ou pós-modernidade) industrial propicia avanços antes inimagináveis, surgem – ao lado ou em conseqüência desse desenvolvimento – novos riscos que ameaçam, também de uma forma antes inimaginável, toda a civilização e o meio em que está circunscrita.

Vivemos em uma sociedade "exasperadamente tecnológica" [03] , com níveis de avanço e crescimento científico incomparavelmente crescentes. Todavia, de par com o aparecimento de "avanços tecnológicos sem paralelos em toda a história da humanidade", somos obrigados a conviver com algumas "conseqüências negativas" [04], de inaudito potencial catastrófico, aptas a causas danos de desmedidas dimensões e extraordinário poder lesivo.

Assim, o avanço industrial e científico traz consigo, ao mesmo tempo em que repercute positivamente para o bem-estar social, o aparecimento de novos riscos de "mega-dimensões", "suscetíveis de serem produzidos em tempo e em lugar largamente distanciados da ação que os originou ou para eles contribuiu e de poderem ter como conseqüência, pura e simplesmente, a extinção da vida" [05].

É nesse sentido que se tem falado, na esteira do mesmo Beck, de uma sociedade de riscos (Risikogesellschaft). Uma sociedade que, diante da efervescência dos riscos modernos, globais, imprevisíveis, torna-se reflexiva, passando a pensar sobre si mesma e os valores sob os quais se orienta. Esta nova modernidade, diante do "lado obscuro" do progresso técnico e econômico, questionando a virtualidade e a infalibilidade do "moderno", sente a imperiosa necessidade de refletir – agora de maneira menos inocente e cautelosa – sobre seu próprio modo de atuar.Uma sociedade de sujeitos passivos e em que a maioria social passa a se identificar com a figura da vítima [06]

E o que de mais espantoso nos parece estar relacionado ao topos da "sociedade do risco" é o fato de, segundo a concepção de Beck, os novos riscos emergentes a partir dessa nova realidade possuírem natureza, em tudo e por tudo, diversa dos riscos comuns do passado. Efetivamente, diz-se, os riscos atuais são indetectáveis, imprevisíveis, ocultos em complexas relações causais, ilimitados espacial e temporalmente.


2.Sociedade do risco, meio ambiente e direito penal: Direito Penal clássico versus "direito penal do risco"

2.1. Como decorrência direta do quadro descrito, a sociedade torna-se insegura e atemorizada diante destes novos riscos emergentes do desenvolvimento técnico-científico, podendo-se dizer que, paralelamente, vivemos em uma sociedade que se pode designar como "sociedade do medo" ou da "insegurança" [07].Num certo sentido, a existência objetiva de riscos repercute subjetivamente numa sensação coletiva de insegurança, que, por outro lado, é consequência da enorme complexidade que marca a contemporaneidade e, ademais, vê--se potencializada pela influência dos meios de comunicação, gerando uma insegurança subjetiva que extravasa, muitas vezes, os níveis de risco objectivo (real) [08].

Ora, na medida em que cresce, de forma incontinente, o sentimento social de insegurança, cresce também, um pouco por todo lado, o clamor social por medidas que resultem em alguma sorte de efeito preventivo. É o momento de adiantarmos que o direito penal, assim como outras áreas do sistema social [09] e do sistema jurídico em particular, é chamado a compor o rol dos instrumentos de política social idôneos a responder àquele clamor.

Em oposição aos clássicos movimentos de restrição da intervenção penal, que fizeram furor nas décadas de 60 e 70 [10], surgem cada vez mais demandas no sentido do alargamento (expansão) dodireito penal, de modo a tutelar os novos interesses comunitários, típicos da sociedade contemporânea (pós-industrial e globalizada). Referi-mo-nos aos discursos que pregam a criminalização de condutas lesivas em matéria ambiental, econômica, de consumo, etc.

Noutros termos — e já especificando ao que a nós mais proximamente interessa —, a crise ecológica que aquela idéia de "sociedade do risco" traduz, repercute também no campo jurídico-penal. O que éfácil compreender, desde logo, pelo fato de ser sempre o direito penal convocado pela comunidade como instrumento de reação eficaz (ou pretensamente eficaz) a quaisquer formas de ameaça à segurança (individual ou coletiva).

A questão ambiental passa então a fazer parte das preocupações jurídico-penais e, a partir da Lei 9605, surgem algumas incriminações legadas à tutela do ambiente.

2.2. Direito penal clássico versus "direito penal do risco"

Tenha-se presente, entretanto, que a relação entre o direito penal e os riscos oriundos da era pós-industrial — e a necessária expansão daquele que esta relação implica — é polêmica e controvertida, na medida em que "importa consideráveis problemas de eficiência e legitimação" [11]. Dizendo de outro modo, na expressão de Figueiredo Dias, "a idéia da sociedade do risco suscita ao direito penal problemas novos e incontornáveis" [12]. Isto porque, ao que parece, não está o direito penal de hoje, de vertente garantiste e auto-restritiva, suficientemente preparado para a prevenção destes novos perigos, de procedência humana, que ameaçam a sociedade e as futuras gerações. Falamos de um paradigma, deliberadamente minimalista, que admite que o direito penal intervenha somente "para assegurar a proteção necessária e eficaz dos bens jurídicos fundamentais, indispensáveis ao livre desenvolvimento ético da pessoa e à subsistência e funcionamento da sociedade democraticamente organizada" 18.

Se fôssemos, mesmo que perfunctoriamente, descrever o paradigma penal próprio dos tempos atuais, diríamos, em primeiro lugar, que este paradigma se assenta na idéia de que o direito penal só pode intervir em caso de "proteção subsidiária de bens jurídicos" [13]; ou seja, só deve intervir para a "tutela subsidiária (ou de ‘ultima ratio’) de bens jurídicos dotados de dignidade penal [14](de ‘bens jurídico-penais’)" [15]. Em segundo lugar, é digno afirmar, tem-se defendido que a aplicação das penas e das medidas de segurança, cominadas abstratamente na norma incriminadora, deve visar exclusivamente fins preventivos, sejam de prevenção geral positiva ou de integração, sejam de prevenção especial positiva. Falamos de um paradigma, deliberadamente minimalista, que admite que o direito penal intervenha somente para "assegurar a proteção necessária e eficaz dos bens jurídicos fundamentais, indispensáveis ao livre desenvolvimento ético da pessoa e à subsistência funcionamento da sociedade democraticamente organizada" [16].

E não se deve pensar que esta matriz, minimalista e garantista, serve somente como padrão crítico (trans-sistemático) para o legislador quanto à seleção dos valores dignos de tutela penal. Ela repercute também no modo de dispensar essa tutela, vale dizer, quanto aos princípios e categorias a partir dos quais se orienta, quanto ao traçado dos tipos incriminadores e à escolha da técnica que deve presidir à incriminação. Quer isto significar que o legislador, ao optar pela tipificação de determinadas condutas, por considerá-las dignas da tutela penal, deve orientar-se por critérios técnico-jurídicos que sejam restritos ao indispensável para assegurar a persecução das finalidades que tem em vista.

Estamos perante um direito penal que tem por objeto a tutela de bens jurídicos estritamente individuais (entendimento monista-pessoal, antropocêntrico, do bem jurídico); que se funda na responsabilidade estritamente individual; que se mantém fiel às exigências de aferição da causalidade, da imputação objetiva, da culpabilidade, etc. Finalmente, convém frisar, a vinculação do direito penal a esse modelo impõe ao legislador que nunca lance mão de modalidades supérfluas de antecipação da tutela penal de bens jurídicos (e referimo-nos à técnica dos crimes de perigo, mormente os de perigo abstrato). Ora, assim como não é legítimo que o legislador decida pela salvaguarda de valores que não sejam indispensáveis, não é também legítimo que se antecipe nesta mesma tutela.

Em contrapartida, — precisamente porque a característica principal da sociedade de riscos, ao menos a que mais repercute no campo jurídico-penal, deriva do fato de no seu seio se produzirem "riscos com grande dificuldade de imputação" [17] — frente às novas e crescentes necessidades de intervenção penal em novos e complexos âmbitos da vida comunitária, o Direito penal vê-se numa posição singular. Conclamado à tipificação de novas condutas, à criação de novos bens jurídico-penais, ao recurso a técnicas dogmáticas que implicam numa certa "flexibilização" das regras de imputação, corre o risco de perder a coerência com seus princípios e postulados fundamentais.

De fato, não mais estamos diante de bens jurídicos individuais — facilmente determináveis e cuja conexão com o Direito penal é, inclusivamente sob o ponto de vista dogmático, facilmente aceitável —, mas sim perante bens coletivos (supra-indivivais), verdadeiros "interessi diffussi", de novo cunho e frutos do desenvolvimento técnico e econômico. Estes interesses — e este é quiçá o ponto que mais inconveniências traz, mormente no âmbito ambiental — caracterizam-se por não serem "operativos ou projetáveis sobre si as técnicas de tutela tradicionais" [18]. Assim, por um lado, sobre os mesmos não é possível uma configuração autônoma dos tipos penais, sendo indispensável o recurso a integrações normativas de tipo extrapenal, que se cristalizam, as mais das vezes, no recurso à normação penal em branco e a elementos normativos no tipo. Por outro lado, por múltiplas razões, muitas vezes não é possível radicar o núcleo do desvalor do resultado recorrendo à redação típica de crimes de dano ou mesmo crimes de perigo concreto, antes sendo indispensável, para uma efetiva salvaguarda dos interesses em causa, as estruturas típicas de perigo abstrato.

Além do mais, uma tal demanda leva à flexibilização de certas exigências, cunhadas com nítido empenho garantista, tais como as de responsabilidade estritamente individual, de causalidade, imputação objetiva, erro e consciência do ilícito, dolo e negligência, autoria [19].

Pelo que se acaba de expor torna-se manifesto porque, conforme antecipamos logo acima, se tem argumentado que o direito penal tradicional se não encontra preparado para a contenção dos novos riscos de que falávamos. Um direito penal ancorado numa função minimalista e subsidiária de tutela de bens jurídicos (individuais), diz-se, não possui o instrumental bastante para, eficazmente, responder à demanda de medidas para a persecução dos objetivos de controle dos novos riscos.

Queremos, nestes termos, sublinhar que tudo o que se acaba de descrever evidencia, claramente, que a idéia de uma "sociedade do risco" e a necessária intervenção do Direito Penal em âmbitos que lhe eram alheios, reclamam uma revisão, tanto no plano político-criminal quanto no dogmático, de seus princípios e categorias fundamentais e do modo de concebê-los.

Urge, por lado, que a política criminal moderna abandone aquela perspectiva liberal, que defendia a intervenção penal somente para a tutela de bens jurídicos clássicos (como a vida ou o patrimônio), e tome como tarefa sua a tutela de interesses vagos, difusos, verdadeiros bens jurídicos universais, "supra-individuais" (entre os quais, vale ressaltar, está o "meio ambiente"). Por outra banda, torna-se do mesmo modo indispensável que o legislador recorra a "técnicas de incriminação versáteis", tanto quanto possível, a fim de iludir os obstáculos ao discurso da responsabilização. Dogmaticamente, estas técnicas se traduzem, v. g., no recurso aos crimes de perigo abstrato, às normas penais em branco, à responsabilização penal das pessoas coletivas, etc.

Contudo, nota-se o perigo, quando se faz uso de técnicas que antecipam a tutela a estágios anteriores à lesão do bem jurídico que se quer proteger, de se assumir uma forma de raciocinar própria do direito administrativo. O Direito Penal deixa de ter como padrão crítico de sua intervenção o bem jurídico [20]e converte-se em um sistema de "gestão ordinária de problemas sociais" [21]. Ou, o que é o mesmo, em nome de uma "função promocional" ou de governo da sociedade, o direito penal ameaça se administrativizar.

Nesta perspectiva das coisas, resta saber se este paradigma penal que nos acompanha – e tem por fundamento princípios político-criminais até agora indispensáveis, como a função exclusivamente protetora de bens jurídicos, o da intervenção mínima, o de ultima ratio – destinado a ser substituído, em resposta aos "problemas novos e incontornáveis" que a sociedade de risco apresenta, por uma "nova política criminal" e, por decorrência, uma "nova dogmática jurídico-penal". E, se a resposta for afirmativa, cabe aqui um outro questionamento: qual então devem ser os contornos de um novo paradigma aptos a responder suficientemente àqueles problemas sumariamente enunciados?


3.Detalhamento de algumas propostas

Conforme temos sustentado, o direito penal moderno só é idôneo para a tutela subsidiária de bens jurídico-penais. Todavia, sendo isso tido por certo, não menos certo é que, por traz dessa afirmação essencial, existe um grande número de questões que têm despertado enorme controvérsia (ou até mesmo antagonismo). Daí toda a polemica suscitada à volta do papel a desempenhar pela política criminal na contenção dos novos riscos oriundos do desenvolvimento tecnológico em confronto com a função de exclusiva proteção de bens jurídicos: urge, segundo uns, que o direito criminal abandone aquela perspectiva liberal, que defendia a intervenção penal somente para a tutela de bens jurídicos clássicos (como a vida ou o patrimônio), e tome como tarefa sua a tutela de interesses vagos, difusos, verdadeiros bens jurídicos universais, supra-individuais (entre os quais, vale mencionar, está o "ambiente") [22]; noutro sentido, posicionam-se aqueles autores que, apegados aos valores do direito penal clássico e à concepção liberal de Estado à qual aquele se remete, defendem a necessidade de qualquer programa político-criminal continuar ainda restrito ao seu âmbito clássico de tutela quando se quer que o bem jurídico continue a cumprir com sua função de padrão crítico e legitimador da intervenção punitiva [23].

Se as coisas se postulam nos termos atrás desenhados, resta-nos procurar devassar as razões de uma postura rigidamente acorde com o "pensamento europeu dos princípios tradicionais", idêntica à que tem sido propugnada no ambiente da Escola de Frankfurt, segundo a qual o direito penal deve quedar-se "nuclear", ou seja, restrito ao seu âmbito clássico de tutela de interesses individuais, remetendo para outros ramos extra-penais a tarefa de salvaguardar os novos valores coletivos. Por outra banda, e opostamente, cumprir-nos-á uma maior aproximação daquele setor da doutrina que, com base em uma racionalidade funcional a permitir uma dogmática político-criminalmente orientada, atribui ao direito penal a tarefa de lutar contra novos riscos sociais, tidos por mais danosos para vida social do que a criminalidade considerada "clássica".

3.1. No intuito de discorrer sobre os problemas essenciais que se fazem notar, quando da proteção jurídico-penal de interesses coletivos se trata, o primeiro deles que de pronto nos salta aos olhos quando se intenta uma abordagem mais pormenorizada é o de lograr saber se, neste campo, estamos diante de autênticos bens jurídicos. Ou, dizendo de outro modo, importa saber se estes bens constituem interesses autônomos e dignos de proteção por si mesmos, ou seja, pelo relevo que possuem para a vida comunitária, ou se não passam de formas de antecipação da tutela penal de bens jurídicos individuais preexistentes [24].

Justo é salientar que toda a discussão aqui suscitada deve-se ponderar, ao menos num primeiro momento, tendo por interlocutor privilegiado a própria concepção de Estado que serve de suporte ao sistema penal e ao programa político-criminal correspondente. De resto, não seria desarrazoado pensar que a negação de qualquer fundamento teórico aos interesses supra-individuais ou coletivos entra em desacordo com a vertente social do Estado de Direito contemporâneo. Foi, pois, no seio dessa última noção de Estado [25] que se desenvolveram as teses favoráveis ao alargamento da intervenção penal de modo a abarcar aqueles interesses sociais, frutos dessa nova forma de se entender o Estado em suas relações com o indivíduo [26].

Modernamente, o autor germânico que mais atenção dispensou ao tema da autonomização do direito penal secundário foi Klaus Tiedemann. Com as preocupações centradas no direito penal econômico, Tiedemann identifica esse último ramo com autênticos bens jurídicos supra-individuais, merecedores de punição autônoma, independentes e desconectados dos interesses jurídicos individuais [27]. Entende assim, que a tutela jurídico-penal de interesses supra-individuais como a ordem econômica ou determinados valores sociais constituem fins em si mesmos e, portanto, desvinculados de quaisquer referentes individuais [28]. Para além disso, partindo de um conceito dualista de pessoa, que distingue entre Selbstein e o Alssein, postula uma construção dualista do bem jurídico apta a alicerçar - tendo por base a autonomia material entre as duas dimensões relativamente autônomas do agir pessoal - a dualidade entre direito penal clássico (ou de justiça) e direito penal secundário [29]. Dessa forma, a proteção autonomamente dispensada à integridade de instituições ou sistemas econômicos em nada colidiria com a referência de todo o direito à pessoa humana [30].

Em Portugal, é esse o caminho trilhado por Figueiredo Dias. Defensor de um conceito de bem jurídico constitucionalmente ancorado, esse Autor postula que a forma em que se relacionam o ordenamento jurídico-constitucional e a "ordem legal dos bens jurídicos dignos de tutela penal" possibilita uma "distinção material – com importantíssimos reflexos dogmáticos e sistemáticos - entre o direito penal clássico ou de justiça, e o direito penal administrativo, extravagante, secundário, ou econômico social" [31]. De forma que, se os crimes constantes do direito penal de justiça correspondem aos direitos, liberdades e garantias das pessoas (previstos pela Constituição), "já os do direito penal secundário (…) se relacionam primariamente com a ordenação jurídico-constitucional relativa aos direitos sociais e à ordenação econômica. Diferença que radica, por sua vez, na existência de duas zonas relativamente autônomas na atividade tutelar do Estado: uma que visa proteger a esfera de atuação especificamente pessoal (embora não necessariamente ‘individual’) do homem: do homem ‘como este homem’; a outra que visa proteger a sua esfera de atuação social: do homem ‘como membro da comunidade" [32].

3.2. No entanto, não se deve pensar que essa postura comprometida com a consagração de novos interesses merecedores de tutela penal é aceita sem ressalvas. Com efeito, e de certo modo reflexamente ao aparecimento progressivo de incriminações que têm por fulcro novos bens de feição supra-individual, atualmente têm surgido variados estudos críticos a questionar a validade e o fundamento teórico das mais recentes elaborações doutrinais favoráveis a uma mais empenhada e ativa participação do direito penal contemporâneo nos problemas que afligem a sociedade moderna.

Nesse sentido aponta o pensamento de Michael Marx e de todos aqueles autores orientados a uma noção de bem jurídico de vocação estritamente liberal (concepção monista-individualista ou personalista). Segundo esse entendimento, só podem ser bens do direito penal "os objetos que o ser humano precisa para sua livre auto-realização", de forma que os mesmos objetos só "se convertem em bens jurídicos à medida que estão dotados de um conteúdo de valor para o desenvolvimento pessoal do homem em sociedade" [33]. Em conformidade, se de acordo com o entendimento de alguns existe uma autônoma salvaguarda dos interesses cristalizados pela vertente social do Estado de Direito, já na perspectiva aqui defendida tais interesses só merecem acolhimento na justa medida em que forem indispensáveis à livre realização do indivíduo singular. O direito penal só se justifica para a proteção do indivíduo frente ao Estado, sendo ele (indivíduo) o eixo ou núcleo axiológico ao redor do qual a ordem jurídico-penal deve entremostrar-se.

É no indivíduo que reside o apoio normativo a todo o desenvolvimento jurídico [34]. Daí que a concepção monista personalista propugne a fundamentação de todo o direito penal com base no ser humano, valendo este como um parâmetro irrenunciável - apoiado, segundo alguns, no ordenamento jurídico-constitucional - para a avaliação do merecimento de pena. Conseqüentemente, isso repercute como um "freio" às atuais reelaborações teóricas de categorias dogmáticas e princípios político-criminais e também às tendências de "socialização" dos mesmos em resposta ao desenvolvimento e transformação das estruturas sociais.

Por outro lado, escreve Marx, a auto-realização pessoal não existe nem se perspectiva em razão unicamente do indivíduo isolado, mas sim da "socialidade da pessoa". Não se desconhece, ainda mais, que a pessoa, para além de "indivíduo" singular, é sempre e conjuntamente "uma individualidade social" [35]. Daí que "esta concepção só possa resultar num conceito unitário de bem jurídico, isto é, ao mesmo tempo individual e social" [36]. De resto, a passagem do Estado de direito formal ao Estado social de Direito não compromete o reforço dos interesses pessoais no momento na configuração do tipo: os bens jurídicos supra-individuais podem ser construídos como autônomos objetos de tutela desde que estes estejam sempre referidos às condições de auto-realização da pessoa [37]. Dizendo de outro modo, os objetos só se convertem em bens jurídicos quando "dotados de um conteúdo de valor para o desenvolvimento pessoal do homem em sociedade" [38]. Assim, por exemplo, quando se trate de conferir proteção ao meio ambiente, não se dispensa a comprovação, no momento da aplicação do tipo, de um resultado que contrarie os interesses do indivíduo [39].

Ora, essa maneira de ver as coisas pretende dar resposta ao perigo de se instrumentalizar a pessoa e os interesses particulares em função do Estado [40] (entendido como uma entidade que se justifica por si mesma), o que é próprio do modo funcionalista de inteligir. Em contrapartida, o que se pretende é exatamente o contrário: "funcionalizar os interesses gerais e do Estado a partir do indivíduo" [41]. O pensamento funcionalista não serve, segundo crêem esses autores, como um ponto de apoio apto a oferecer limites à intervenção punitiva estadual porque corporiza uma racionalidade meramente pragmática, voltada para o output, e, portanto, desatenta a uma outra racionalidade axiológica (a Wertrationalität) que deve sempre interceder. A recorrência à noção de "danosidade social", peculiar às teses funcionalistas mais radicais, não presta à função de um padrão crítico político-criminal pronto a servir de limite material ao ius puniendi. No seio dessas correntes, dado o seu caráter essencialmente normativoe o conseqüente apagamento do mundo da vida e da pessoa, o que resulta socialmente danoso ou disfuncional pode ser contrário à eficácia limitadora e garantista de uma política criminal alicerçada nos valores do Estado de Direito. Uma perspectiva exclusivamente funcionalista arrisca-se a proteger meras imoralidades, ou a legitimar o recurso ao direito penal pelo poder estatal para cumprir funções de estratégia política [42].

E isto, num certo sentido, deve valer também para aquele setor da doutrina em que o pensar tecnológico é levado a menores conseqüências. Fácil é chegar a essa conclusão quando se tem presente, como já afirmou o próprio funcionalista Roxin, que "a acentuação das orientações preventivo-gerais conduz a uma extensão da penalidade a todos os âmbitos socialmente relevantes" [43]. É, pois, de uma oposição ao pensamento funcionalista, considerado em muitas das suas manifestações, de onde partem as mencionadas críticas, mormente as provindas da doutrina minimalista radicada em Frankfurt. Em uma abordagem dicotômica, pode-se dizer que toda a polêmica agora levantada traduz-se na temática, mais ampla – e à qual teremos ocasião de voltar logo em breve -, do "direito penal entre o funcionalismo e pensamento europeu dos princípios tradicionais" [44]. Por agora basta reiterar que ao funcionalismo - seja ele na sua vertente moderada seja na sua vertente radical [45] - referem-se, portanto, os autores de Frankfurt, como um instrumento de incorporação, aos princípios normativos do merecimento de pena, de interesses políticos e ideológicos da mais variada ordem. É dizer: como uma "idéia pela qual se funcionalizam os princípios do direito penal a partir das exigências de uma política criminal efetiva" [46] e que tem por conseqüência primordial a expansão do número de necessidades coletivas alçadas à categoria de interesses dignos de tutela penal.

Uma outra questão que tem sido posta em evidência pela doutrina antropocêntrica do bem jurídico é a de se saber até que ponto o direito penal, quando protege interesses que transcendem a esfera do indivíduo (em sentido estrito), não adota uma função propulsora ou promocional. Se, com fundamento nas observações anteriores, atribui-se ao pensamento funcionalista o demérito de subtrair da noção de bem jurídico todo o conteúdo material, num momento posterior, têm-se predicado àquela mundividência também o abandono do princípio da subsidiariedade [47]. Com efeito, para além de sua clássica função de tutela subsidiária de bens jurídicos, o direito penal passaria a incorporar uma "função promocional" da vida social, a implicar em uma clara transformação de sua função [48]. Crê-se, assim, que a ordem jurídico-constitucional deixaria então de servir como limite negativo à criminalização, passando a servir como "pressuposto de uma concepção promocional ou propulsora do direito, acrescentando à função tradicionalmente protetora e repressiva do direito penal o papel de instrumento que concorre na realização do modelo e dos escopos prefigurados na Constituição" [49]. Ademais, e como maior objeção a uma acentuação da função promocional do direito penal, estaria o enorme perigo de "transformar o direito penal de instrumento jurídico de tutela em ‘instrumento de governo’, enquanto tal não imune a uma instrumentalização política em sentido estrito" [50].


4. Apontamentos inconclusivos: a conciliação entre a razão pragmática e a Wertrationalität.

4.1. Buscando clarificar e tomar partido em tudo o que ficou considerado, temos para nós que a solução não está, com Jakobs ou Stratenwerth, no abandono da noção de bem jurídico enquanto conteúdo material (e limite) ao jus piniendi. Cremos, ainda mais, que uma tal postura merece muitas das críticas formuladas pela Escola de Frankfurt. Com efeito, é acertado pensar, com estes últimos, que uma excessiva funcionalização do sistema jurídico-penal com vistas a combater eficazmente os novos riscos da sociedade moderna implicaria em um desencontro pernicioso com os postulados fundamentais de uma política criminal que se queira no compasso dos valores do Estado de Direito. Desencontro, em primeiro lugar, com a indispensável restrição da intervenção penal a determinados "bens ou valores que, em determinada comunidade e em um também determinado momento histórico, constituem o mínimo ético que não pode ser, nem mais, nem menos, do que o núcleo duro dos valores que a comunidade assume como seus e cuja proteção permite que ela e todos os seus membros, de forma individual, encontrem pleno desenvolvimento em paz e tensão de equilíbrio instável" [51]. Em segundo lugar, desencontro com a idéia –também ela irrenunciável – de que essa mesma tutela só é legítima quando impossível de se efetuar por meios menos atentatórios à liberdade humana. Nessa linha, pensamos convictamente que um abandono ou alargamento do "objeto" em razão do qual o direito penal tem definidos os seus limites implica, por decorrência lógica, num abandono ou alargamento da sua função. Em termos mais impressivos: a recusa à limitação material do âmbito do penalmente legítimo significaria, assim, a recusa à limitação de sua função e a conseqüente abertura a considerações meramente funcionais e de estratégia política [52].

Coisa diversa é acreditar que, para que o bem jurídico esteja em compasso com sua função de critério legitimador e crítico da intervenção penal, seja indispensável manter-se fiel ao seu caráter antropocêntrico extremado. Diferentemente – e tomando por base os pilares de sustentação da noção de Estado social de Direito –, não se vê razão alguma naqueles contestam a existência de bens sociais e coletivos e, enquanto tais, dignos de punição. E isso, segundo cremos, não contradiz a afirmação de um direito penal em que a pessoa humana seja o cerne das preocupações. A consagração de verdadeiros bens jurídicos coletivos, supra-individuais, não interfere em nada naquela tese, que arranca da idéia da descriminalização, segundo a qual o direito penal só pode intervir com legitimidade para a salvaguarda das condições essenciais ao livre desenvolvimento da pessoa humana. Pelo contrário, quando se foge daquela concepção extremamente antropocêntrica, dando particular importância à "noção de bem jurídico como entidade sócio-jurídica eminentemente histórica e mutável" [53], nada se opõe a uma construção dualista do conceito que continue em compasso com a função político-criminal que lhe subjaz. Daí que essa posição se mostra perfeitamente coesa com as finalidades prosseguidas pelo Estado contemporâneo: garantir a cada pessoa singular as condições indispensáveis para conduzir sua vida com liberdade e responsabilidade, sem olvidar que o indivíduo de que se fala não se considera apenas como um ser isolado, mas que se desenvolve e frutifica no seio de uma comunidade [54].

Por outro lado, é também nossa convicção que a elevação de determinados bens ou valores sociais à categoria de autônomos bens jurídicos não é (não deve ser!) produto de uma razão meramente pragmática e indiferente à Wertrationalitat [55]. Como já tivemos ocasião de demonstrar, da contraposição entrea Wertrationalitat e aZweckrationalitat deve necessariamente resultar um programa político-criminal que - dando a devida importância à tese de que "um moderno sistema jurídico-penal deve estar estruturado teleologicamente, ou seja, construído atendendo a finalidades valorativas" [56] - não se descortine como um puro "consequencialismo" [57]. Devendo o pensamento teleológico participar das considerações político-criminais a dar sentido e conteúdo ao sistema dogmático e às categorias que o integram, isso não inviabiliza a incidência de limites a um tal pensamento. Desse modo, adotamos uma racionalidade que não persegue somente fins instrumentais de controle, mas também e precipuamente a realização de valores [58].

Todavia, a esses valores que servem de limite ao modelo teleológico podemos nos aproximar de várias formas que, por sua vez, hão de influenciar de maneira decisiva o telos do sistema e, no ponto que aqui mais interessa, a compreensão da categoria dos bens jurídicos. Se a eles nos aproximamos de uma perspectiva assente no "pensamento europeu dos princípios tradicionais" [59] - que se concretiza como afirmação do pensamento jurídico-penal desenvolvido a partir do Iluminismo e sobre a afirmação da idéia de contrato social – estaríamos diante de uma postura próxima àquela da chamada Escola de Frankfurt e que se pode resumir numa concepção minimalista que busca resolver o conflito entre "principialismo" e "consequencialismo" conferindo, num certo sentido, primazia ao primeiro e restringindo a legislação penal a um "direito penal básico" vocacionado de forma prioritária à proteção do indivíduo [60]. Se, opostamente, partimos de uma perspectiva funcionalista extremada, os valores só serão acolhidos quando parte menor de uma lógica de auto-conservação do sistema social, de forma que terão o conteúdo delimitado e aceite em função dessa mesma lógica. Conforme esse entendimento, na síntese de Jakobs, "a pena não repara bens, mas confirma a identidade normativa da sociedade. Por isso, o direito penal não pode reagir frente a um fato enquanto lesão de um bem jurídico, mas somente frente a um fato enquanto transgressão à norma" [61]. Daí não se poder dizer que essa última compreensão, ao advogar uma funcionalização dos valores, consiga abandonar o consequencialismo; "pois a Wertrationalitat aparece como função da Zweckrationalitat consistente na manutenção do sistema social de que se trate" [62]. Além do mais, importa lembrar que é exatamente dessa idéia, tão forte em autores como Jakobs – assente numa política-criminal contraposta ao indivíduo e tendente à sua instrumentalização e subjetivação em função do sistema social -, que derivam muitas das críticas dirigidas ao funcionalismo radical. Críticas que, partidas tanto da perspectiva da criminologia crítica [63] ou das teses de Frankfurt, como daqueles defensores de um funcionalismo moderado [64], têm alertado para o perigo que implica, v. g., o abandono do conceito de bem jurídico como conteúdo material a conferir legitimidade à intervenção penal e sua substituição pela "vigência das normas".

O que defendemos como postura metodológica correta não estaria, pois, em sintonia com um funcionalismo levado às últimas conseqüências, e, nessa medida, concordamos com Frankfurt. Do mesmo modo, não vemos razão para, baseados no louvável empenho de defender os princípios limitadores da pena próprios do Estado de Direito, não dotar de dignidade penal determinados interesses de feição coletiva. Tudo a permitir concluir, na esteira de Schünemann, que "o individualismo de Frankfurt está fadadoa exprimir em demasia um único princípio, convertendo-o assim, em vez de em um elemento positivo, em um obstáculo; o normativismo de Jakobs, por sua parte, necessariamente conduz a uma capitulação incondicional ante a prática política imperante em cada momento na atividade do legislador ou na jurisprudência" [65]. Assim - e deixando de lado a discussão sobre se tais limites são oriundos do próprio "pensamento europeu dos princípios tradicionais" ou se, inversamente, consistem em limites ontológicos e exteriores ao método teleológico em causa -, partimos nós da eleição de um programa político-criminal em que os "contrapontos valorativos" não se concebem de forma exclusivamente funcional, mas que também, e em sentido oposto, não podem reconduzir-se ao monismo individualista de Frankfurt. De forma que o modelo por nós propugnado não pode ser taxado nem de normativista (ou funcionalista extremado), nem de minimalista.

O certo é que, em termos assumidamente simples, a conciliação entre uma racionalidade funcional e uma outra axiológica faz-se indispensável, quanto a nós, em homenagem à própria concepção de Estado de Direito (social e democrático). Em respeito aos valores e ao étimo jurídico-político que se cristalizam na concepção de Estado, não pode o sistema jurídico-penal, em nome da luta desmesurada contra o crime (e o criminoso), passar por cima de valores irrenunciáveis como a liberdade e dignidade da pessoa humana. Sendo assim, a eleição e concreção de bens jurídicos supra-individuais deve fazer-se não só por conta de considerações pragmáticas fundamentadas na eficácia para a prevenção do crime [66], devendo antes estar atenta aos valores limitadores da punição próprios do Estado de Direito. Parece ser convergente o pensamento de Figueiredo Dias ao asseverar que "na sua refração jurídico-constitucional o direito penal administrativo corporiza – como positivação jurídica da política social do Estado -, não uma racionalidade meramente pragmática, finalista e indiferente a valores, mas uma ordenação com relevância axiológica direta. Também no direito penal administrativo, pois, como no de justiça, se trata do livre desenvolvimento da personalidade do homem e, assim, de autênticos bens jurídicos. Só que, no âmbito do direito penal administrativo, a atuação da personalidade do homem apenas é possível como fenômeno social, em comunidade e em dependência recíproca dela" [67].

Uma maneira de compreender os bens dignos de punição penal tributária das idéias antropocêntricas de Frankfurt peca, segundo entendemos, por propugnar uma política criminal restritiva e garantista, mas inadequada às transformações por que passa o mundo moderno e que têm por conseqüência, no que aqui nos interessa, a aparição de novas formas criminalidade. Noutros termos, falha a concepção pessoal de bem jurídico porque "não tem em conta as dimensões das distintas potencialidades de lesão de uma determinada sociedade em função de seu estágio de desenvolvimento tecnológico" [68].

E, contudo, não se deve pensar que aceitar a legitimidade da tutela penal direta desses interesses queira significar um abandono do paradigma "moralizante" que percorre a doutrina jurídico penal desde o Iluminismo: a idéia de contrato social, como princípio de restrição, não impõe, de nenhuma forma, a sujeição da proteção penal ao indivíduo considerado de forma singular [69]. É, portanto, absolutamente coerente com o paradigma penal que nos acompanha – que, como é sabido, deita raízes no pensamento filosófico moderno surgido a partir do século XVII e o ideário liberal clássico do século XVIII e que tem por um de seus mais impressivos valores o antropocentrismo e a conseqüente defesa do indivíduo em face ao rigor punitivo do Estado - a salvaguarda pelo direito penal de novos interesses da coletividade. A essa constatação se chega – digamo-lo mais uma vez – quando se tem por notório que, de par com a esfera eminentemente pessoal do agir humano, existe uma outra, em sintonia com o mesmo "axioma onto-ontropológico" em que se funda o direito penal moderno, que releva da dimensão coletiva do homem como ser-com e ser-para os outros [70]. Aqui também, como no direito penal "clássico", estamos diante de bens que existem em função do Homem e como condição para a sua existência livre e responsável. O mesmo é dizer que, também quanto aos bens jurídicos supra-pessoais, a pessoa humana é o referente axiológico que permite uma limitação da intervenção punitiva, só que agora considerada como pessoa inserta e dependente da comunidade. Portanto, não é necessária, neste último caso, uma afetação direta do indivíduo, podendo a mesma ser indireta [71].

4.2. Questão distinta é a de saber qual é o ponto ótimo dessa afetação indireta. Já que, aqui, "surge o problema de onde fixar o limite: em que ponto da repercussão indireta sobre o indivíduo cabe entender que não se dão as condições para a proteção penal; pois, evidentemente, o termo ‘indireto’ é suficientemente ambíguo para que dificilmente se possa obter uma conclusão a partir unicamente do mesmo" [72]. De fato, podemos subscrever a tese daqueles que só aceitam a validade e força legitimadora dos bens coletivos quando dotados de um "referente pessoal", ou seja, quando a "moralidade da intervenção penal" esteja condicionada à existência de uma "dimensão pessoal", mesmo que esta seja "alargada a uma concepção intersubjetiva e ‘comunizada’ dos interesses a tutelar, expressão de um comunicativo ser-com-os-outros que é característica do nosso mundo da vida (concepção pessoal-dualista de bem jurídico)" [73]. Rumo diverso seria o tomado se atendêssemos aos que defendem uma absoluta autonomização dos interesses em questão. Assim a concepção dualista (em sentido estrito) do bem jurídico, segundo a qual os bens jurídicos supra-individuais, para além de autônomos, independem de qualquer referência aos interesses do indivíduo para a sua consagração legislativa como objetos de tutela [74].

Uma tomada de partido num destes sentidos em relação à tutela jurídico-penal do meio ambiente - enquanto bem jurídico-penal supra-individual e autonomamente protegido - significará a defesa, no primeiro caso, de uma concepção antropocêntrica dependente, em que seria indispensável, no momento de aplicar o tipo, a comprovação de uma afetação, por mínima que seja, de interesses do indivíduo; no segundo, de uma perspectiva antropocêntrica independente(ou ecocêntrica moderada) [75], em que, mesmo estando o bem jurídico concebido como condição indispensável à existência humana e à satisfação de interesses pessoais, seria essa referência à pessoa uma mera ratio legis não sujeita a comprovação no caso concreto [76].

Note-se, chegados a esse ponto, que a questão não fica ainda resolvida somente com a acolhida, por princípio, dos bens jurídicos coletivos ou supra-individuais. Ainda mais quando se tem presente que os novos interesses de que vimos falando, por apresentarem uma natureza distinta da dos clássicos bens individuais, são dificilmente delimitáveis de forma a servir de critério à construção e aplicação dos tipos penais. Por conseqüência, resulta problemática não só a tarefa de concepção e concreção desses bens como a sua compatibilidade com os princípios de garantia, mormente com o princípio da proteção subsidiária de bens jurídico-penais.

O propósito de delimitação do bem jurídico protegido pelo direito penal ambiental, nos contornos de uma conceituação antropocêntrica moderada, tal como a por nós defendida [77], foge do objeto preciso do presente estudo. Fica, contudo, manifesta a advertência: em relação ao meio ambiente, como também a outros objetos de tutela do direito penal secundário, a intervenção penal deve ser coerente com o bem jurídico protegido. Daí que, segundo este modo de vez as coisas, deve haver um profundo labor de concreção do objeto de tutela para que este cumpra com sua missão de padrão crítico e legitimador da intervenção penal. O mesmo é dizer que a definição do bem jurídico protegido serve, quando minimamente precisa, de duas formas, ambas de inegável relevo político-criminal e dogmático: (a) de lege lata, a noção do valor protegido opera como parâmetro ao juízo de imputação de uma conduta concreta à descrição abstrata contida no tipo; (b) de lege ferenda, como é sabido, o bem jurídico é o limite que deve o legislador obedecer para a legítima tipificação de crimes vocacionados para uma proteção penal apegada a padrões restritivos. Noutros termos, o conceito de "meio ambiente" é um dos grandes suportes aos mandamentos de descriminalização porque, sendo certo o valor que legitima a intervenção punitiva do Estado, todos aqueles tipos legais de crime não construídos para a tutela deste mesmo valor – o "meio ambiente" – devem ser descriminalizados. Nesta linha, surge o bem jurídico também como grande referencial para as técnicas de redação típica. Assim, sendo certo o valor que se tem como meta proteger, mais fácil será o labor de descrição da conduta típica: só serão criados tipos legais cujo preenchimento de fato importe numa ofensa ou perigo de ofensa ao bem jurídico que confere legitimidade ao tipo, afastando-se, assim, o recurso indiscriminado a ilícitos de "mera desobediência" e de perigo abstrato (na forma de perigo presumido) [78].


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Notas

  1. Cf. BECK, Ulrick, Risk Society – towads a new modernity, London/ Thousand Oaks/ New Delhi: Sage Publications: 1992, p. 9
  2. Cf. BECK. Ulrick, Maquiavelismo ecológico, p.181 in:La democracia y sus enemigos - textos escogidos, Barcelona/Buenos Aires/México, Paidós: 1995.
  3. Cf. FIGUEIREDO DIAS, Jorge, O O direito penal entre a "sociedade industrial" e a "sociedade do risco" in Estudosem Homenagem ao Doutor Rogério Soares (a publicar). p. 7.
  4. Cf. SILVA SÁNCHEZ, Jesus Maria, Expanción del Derecho Penal. Madrid, Civitas: 1999, p. 22. Dentre estas consequencias, ressalta o Autor o aparecimento do "risco de procedência humana como fenômeno social estrutural. Em outras palavras, o fato de que boa parte das ameaças de que os cidadãos estamos expostos provenham precisamente de decisões que outros concidadãos adotam no manejo dos avanços técnicos: riscos para o meio ambiente ou para os consumidores ou usuários que derivam das aplicações técnicas dos desenvolvimentos na biologia, na genética, na energia nuclear, na informática, nas comunicações, etc." (idem, ididem).
  5. Cf. FIGUEIREDO DIAS, op. cit., p. 7.
  6. Sobre o que se afirmou, veja-se SILVA SÁNCHEZ, op. cit., p. 31 e ss.
  7. Idem, p. 24.
  8. Idem, p. 28.
  9. Daí o apelo de Beck para que a questão ecológica se amplifique a uma constelação questões menores, tais como: "formas tecnológicas e produtivas, política de produção, alimentação, estilos de vida, diagnóstico e tratamento médicos, normas jurídicas (grifo nosso), reforma organizativa e da administração, política exterior, política de desenvolvimento" (cf. BECK, Ulrick, Maquiavelismo ecológico, p. 184).
  10. Sobre o que se comentou: FIGUEIREDO, Guilherme Gouvêa de, CRIMES AMBIENTAIS À LUZ DO CONCEITO DE BEM JURÍDICO-PENAL (dês)criminalização, redação típica e (in)ofensividade, IBCCRIM, 2008, p. 60 e ss.
  11. Cf. SOUZA MENDES, Paulo, Vale a pena o direito penal do ambiente, AAFDL, Lisboa: 2000. p. 84.
  12. Cf. FIGUEIREDO DIAS, O direito penal entre a "sociedade industrial"e a "sociedade do risco", p. 6.
  13. Assim, por todos, ROXIN, Claus, Derecho Penal, p. 58 e ss.
  14. Para uma maior aproximação às categorias da dignidade penal e carência de tutela penal veja-se COSTA ANDRADE, Manuel, A ‘dignidade penal" e a "carência de tutela penal" como referências a uma doutrina teleológico-racional do crime, RPCC, 1992, passim
  15. Cf. FIGUEIREDO DIAS, Questões Fundamentais, p. 62. "Logo por aqui se deve concluir que um bem jurídico político-criminalmente vinculante existe alí – e só ali – onde se encontre refletido num valor jurídico-constitucionalmente reconhecido (idem, p. 58 e ss.). Também Roxin, Claus, op. cit., p. 55 e ss. Sobre a questão da tensão entre o conceito de bem jurídico e a Constituição, ver Figueiredo, Guilherme Gouvêa de, Crimes Ambientais, p. 71 e ss.
  16. Cf. COSTA ANDRADE, Manuel, op. cit. , p. 178.
  17. Cf. BARGA DE QUIROGA, Jacobo Lopes, Derecho penal para una sociedad de riesgos, Revista del Poder Judicial, n. 49, p. 292.
  18. Cf. MORALES PRATS, Fermín, Técnas de tutela penal de los interesses difusos, CDJ, Madrid, 1994, p.76.
  19. FIGUEIREDO DIAS, O direito penal entre a "sociedade industrial"e a "sociedade do risco", p. 9.
  20. Nesse sentido, insistindo na incapacidade crítica da teoria do bem jurídico para, eficazmente, servir de critério para a legitimação da intervenção penal nestas áreas, por todos, JAKOBS, Günther, Sociedad, norma, persona en una teoria de un derecho penal funcional, Madrid, 1996.
  21. Na lição de SILVA SÁNCHEZ, op. cit. , p. 107.
  22. Nesse sentido, entre tantos, SCHÜNEMANN, Situación espiritual de la ciencia jurídico-penal alemana, p. 188 e ss.; ROXIN, La evolución de la política criminal, p. 89 e ss.
  23. Cf., por todos, HASSEMER, Derecho penal simbólico, passim. Para o meio ambiente, veja-se MÜLLER-TUCKFELD, Abolición del derecho penal del medio ambiente, passim.
  24. Nesse sentido, refere, por exemplo, Fiandaca que bens coletivos como a saúde e a incolumidade pública não são tutelados autonomamente, sendo antes uma "tutela antecipada da vida e da integridade do singular"(Cf. FIANDACA, Il bene giuridico, p. 72).
  25. Como descreve Norberto Bobbio, a evolução dos direitos humanos ao longo dos tempos pode ser dividida em três fases: "num primeiro momento afirmaram-se os direitos da liberdade, ou seja, todos aqueles direitos que tendem a limitar o poder do Estado e a reservar ao indivíduo ou a grupos particulares uma esfera de liberdade em relação ao Estado; num segundo momento foram promulgados os direitos políticos, já que ao se conceber a liberdade não só negativamente como não impedimento, mas positivamente como autonomia, houve por conseqüência a participação cada vez mais ampla no poder político (…); e finalmente, foram proclamados os direitos sociais, que se expressam o amadurecimento de novas exigências (bem-estar, igualdade real), que se poderiam chamar liberdade através ou por meio do Estado" (Cf. BOBBIO, Derechos Humanos, p. 16.)
  26. Como é sabido, já com Eb. Schmidt, ocorre uma delimitação material entre crimes e contra-ordenações que não deixa de explicitar a idoneidade da intervenção penal no âmbito sócio-econômico. Com efeito, se com Goldschmidt dá-se uma viragem na história do Direito Penal Administrativo, traduzida na distinção entre este último e o direito penal, ainda não se deixava notar neste Autor uma compreensão que relevasse como tarefa legítima do direito penal (em sentido estrito, e portanto não eticamente neutro) a tutela de interesses sociais vinculados à intervenção do Estado na vida quotidiana. Isso porque, no dizer de Amelung, a doutrina de Goldschmidt mantinha-se atrelada à idéia "de que as infrações praticadas no seio de uma sociedade separada do Estado são inquestionavelmente mais graves que as que contrariam a intervenção do Estado na mesma sociedade" (cf. Amelung, Rechtsgüterschutz und Schutz der Gesellschaft, p. 290 apud COSTA ANDRADE, Contributo para o conceito de contra-ordenação, p. 89). . É, portanto, com Eb. Schmidt que aquela dimensão social do bem jurídico aflora, no âmbito econômico, como "espaço dos interesses vitais econômicos-materiais".Para Schmidt, crimes contra a economia são "as infrações que lesam o interesse estadual na existência e manutenção da ordenação econômica estabelecida pelo Estado, atingindo esta ordenação no seu conjunto ou nos seus ramos particulares, como pressuposto necessário da capacidade do Estado para realizar as suas superiores tarefas econômicas"(Apud COSTA ANDRADE, A nova lei dos crimes contra a economia, p. 400). Dá-se, assim, com a doutrina de Eb. Schmidt, a elevação de certos interesses coletivos à categoria de bens jurídicos, o que não deixa de ser conseqüência de uma nova mundividência consoante com as transformações políticas e ideológicas ocorridas no período que sucedeu os grandes conflitos mundiais. Ficava, pois, claramente evidenciado, no domínio jurídico-penal particularmente, o abandono do modelo liberal clássico de Estado com a elevação de determinados interesses supra-pessoais à categoria dos bens dignos de punição, mormente aqueles pertencentes ao "espaço dos interesses vitais econômicos-materiais". Nas palavras de FIGUEIREDO DIAS: "passou o tempo em que a referência de uma norma a interesses (como se dizia) ‘salutistas’ do Estado podia reputar-se sinal bastante da neutralidade ética do respectivo substrato: as tarefas da Daseinsvorsorge não foram assumidas pelos Estados contemporâneos sem a correspondente ‘eticização’ de uma boa parte das providências destinadas a melhorar a condição social dos homens" (Direito penal secundário, p. 332).
  27. Cf. TIEDEMANN, El concepto, p. 67 e ss.
  28. O que se nota claramente em TIEDMANN quando afirma que ao direito penal econômico competem as "transgressões no campo dos chamados bens jurídicos coletivos ou supra-individuas da vida econômica, que por necessidade conceptual transcendem os interesses jurídicos individuais" (cf. TIEDEMANN, El concepto, p. 68).
  29. Cf. HASSEMER/MUÑOS CONDE, Introducción, p. 189. Como aprecia Santana Vega, construções dualistas como a empreendida por Tiedmann "partem da existência de duas modalidades na titularidade dos bens jurídico-penais: a do Estado e a do indivíduo à maneira de ‘duas colunas’ paralelas sem critério comum superior que permita a preeminência de uma ou outra classe de bens" (cf. SANTANA VEGA, Bienes jurídicos colectivos, p. 84).
  30. Também no entender de Mir Puig "não cabe discutir a importância desta classe de interesses" já que, no contexto de um Estado social, não se pode negar a legitimidade do direito penal para responder a certas demandas de criminalização para a salvaguarda de novos valores coletivos ou sociais(cf. MIR PUIG, Bien jurídico y bien jurídico-penal, p. 208). Todavia, acrescenta o mesmo Autor – e com toda razão - que o afirmado anteriormente "não basta para decidir o importante debate atual acerca dos critérios que hão de decidir que limites devem presidir à intervenção do direito penal neste âmbito" (Bien jurídico y bien jurídico-penal, p. 208).
  31. Cf. FIGUEIREDO DIAS, Os novos rumos da política criminal, p 17.
  32. Cf. FIGUEIREDO DIAS, Questões Fundamentais, p. 69. Dessa relativa autonomia entre ser-individual e ser - social, Figueiredo Dias faz derivar outra, fundada na necessidade de modificar as exigências tradicionais do Estado de Direito formal em matéria de limitação do poder punitivo "quando em tela estiver a salvaguarda dos interesses que relevam da dimensão social do indivíduo" Desenvolvidamente, ver FIGUEIREDO DIAS, Direito penal secundário, p. 7 e ss.
  33. Cf. SILVA SÁNCHEZ, em especial referência ao pensamento de M. Marx (Derecho penal contemporáneo, p. 271).
  34. Cf. HASSEMER , Teoria personal del bien jurídico, p. 278.
  35. Cf. KAUFMANN, Subsidiaritätsprinzip, pp. 95/6 apud SANTANA VEGA, Bienes jurídicos colectivos, p. 89.
  36. Cf. SANTANA VEGA, Bienes jurídicos colectivos, p. 91.
  37. No dizer de Hassemer, "um conceito pessoal de bem jurídico não rechaça a possibilidade de bens jurídicos gerais ou estatais, mas funcionaliza esses bens a partir da pessoa: somente se podem aceitar com a condição de que brindem a possibilidade de servir aos interesses do homem" (cf. HASSEMER , Teoria personal del bien jurídico, p. 282).
  38. Cf. SILVA SÁNCHEZ, Derecho penal contemporáneo, p. 271. Assim também, Santana Vega, quando afirma que "serão inadmissíveis no âmbito de proteção penal aqueles bens que resultem dificilmente conectáveis com o indivíduo" (Bienes jurídicos colectivos, p. 92).
  39. Convém notar que essa concepção guarda estreita relação com o ideário político-filosófico que alimentou as teorizações próprias do iluminismo penal, nomeadamente com a idéia de que o Estado só deve intervir para salvaguardar a liberdade do cidadão e nunca para promover valores ou "funções" que lhe causem prejuízo. Tal como o pensamento penal iluminista, procura-se impor limites materiais ao direito penal, elegendo a proteção do indivíduo como fim único e legítimo. A função do Estado, compreendido nesses moldes, é de servir ao indivíduo e salvaguardar a sua esfera de liberdade; esfera essa que poderia ser ameaçada se o Estado interviesse em domínios cujo vínculo com o particular é pouco apreensível, de modo que o próprio Estado, assim, converter-se-ia num fim em si mesmo, desprendido dos referentes individuais. Com efeito, a manutenção de status negativo do cidadão frente ao Estado resulta benéfico na medida em que pressupõe a existência de âmbitos de liberdade assegurados juridicamente. Assim KINDHÄUSER, afirmando que uma "política criminal racional (…) deve orientar-se (…) à proteção das condições juridicamente garantidas da esfera de liberdade individual" (Delitos de peligro abstrato, p. 447).
  40. Este é o modo de raciocinar próprio das teorias monistas coletivistas do bens jurídico, que defendem que todos os interesses protegidos pelo direito penal são interesses do direito e, portanto, sempre trans-individuais. Uma tal compreensão teve por primeiro representante Karl Binding, um dos pais do conceito, para quem o bem jurídico é "tudo aquilo que, aos olhos do legislador, tem valor como condição para uma vida saudável dos cidadãos". Atualmente, orientam-se nesta linha os autores que sustentam um conceito material de crime com base na teoria dos sistemas sociais como Amelung ou Jakobs. Para uma abordagem mais desenvolvida, ver JAKOBS, Derecho Penal – PG, p. 43 e ss. Criticamente, por todos, ROXIN, La evolucion de la política criminal, p. 57 e ss.
  41. Cf. HASSEMER, Teoria personal del bien jurídico, p. 281.
  42. Ver, neste sentido, HERZOG, Derecho penal del riesgo, p. 55 e ss. Também, do mesmo HERZOG: Límites al control penal de los riesgos sociales, p. 321 e ss.
  43. Cf. ROXIN, La evolución de la política criminal, pp. 27/8.
  44. Cf. SCHÜNEMANN, Situación espiritual de la ciencia jurídico-penal alemana, p. 189.
  45. Distingue o funcionalismo em moderado e radical, POVEDA PERDOMO, Fundamentacion material del injusto, p. 407 e ss.
  46. Cf. HASSEMER , Teoria personal del bien jurídico, p. 276. O que, no dizer de Hassemer, dá-se "sobre a base metodológica de uma aplicação do direito orientada para as conseqüências e de uma ponderação dos princípios segundo os interesses do caso concreto". Dessa forma, "flexibilizam-se as tradições normativas e se as subtrai o poder de oposição que necessitam" (Teoria personal del bien jurídico, p. 276).
  47. Assim, no juízo de Baratta, todas estas transformações estão "conduzindo a que sejam considerados como totalmente inadequados – enquanto caracterizam os sistemas penais -, conceitos como os de bem jurídico e do caráter subsidiário do direito penal, que anteriormente bem podiam constituir os critérios para uma contenção funcional e quantitativa da reação punitiva" (cf. BARATTA, Integración-.prevención, pag. 11).
  48. Cf. BARATTA, Integración-.prevención, pag. 11. CATENACCI, La tutela penale dell´ambiente, p. 95 e ss
  49. Cf. Neppi Modona apud FIANDACA, Il bene giuridico, p. 67.
  50. Cf. FIANDACA, Il bene giuridico, p. 68. À custa de dotar o sistema jurídico-penal de um instrumental dogmático apto a responder com eficiência aos clamores de uma "sociedade do risco", já não se conceberia o direito penal como ultima ratio da proteção de bens jurídicos, senão como prima ratio e parte integrante de uma "estratégia de gestão de riscos" influenciável política e ideologicamente.
  51. Cf. FARIA COSTA, O perigo, p. 302.
  52. HERZOG, Límites al control penal de los riesgos sociales, p. 321. e ss.
  53. Cf. FIGUEIREDO DIAS, Direito penal na protecção do ambiente, p. 9.
  54. Nesse sentido, apesar de tender para a adoção de uma postura mais presa ao indivíduo, ver SILVA SÁNCHEZ, Derecho penal contemporáneo, p. 271. Fala-nos de uma harmonização entre o Estado social e o Estado de Direito, ROXIN, Política criminal y sistema de derecho penal, p. 33.
  55. No extremo oposto de toda esta controvérsia, encontram-se aqueles que preconizam a aceitação de um novo direito penal absolutamente direcionado e funcionalizado para responder às exigências preventivas de uma sociedade cada vez mais insegura e amedrontada com as conseqüências do próprio "avanço". Fala-se então da indispensabilidade de uma "nova dogmática", ou de "um direito penal do risco", como alternativa a responder com maior eficiência aos apelos próprios da sociedade pós-industrial. Para além das implicações dogmáticas a serem tratadas oportunamente – entre as quais o cultuo à apoteose dos crimes de perigo abstrato não será, certamente, a menos impressiva -, o que sobressai como elemento comum dessas concepções é a perda de valor da noção de bem jurídico como padrão crítico e legitimador (Na linha das teses funcionalistas mais radicais, ver MÜSSIG, Desmaterialización del bien juridico y de la política criminal, p. 157 e ss. ; JACOBS, Derecho Penal, p. 47 e ss.). Assim, por exemplo, o pensamento de STRATENWERTH: segundo entende este Autor, o legislador, ao restringir a proteção penal a bens jurídicos individuais, abandona a nobre tarefa de "assegurar o futuro com os meios do direito penal". Nesse sentido, sendo a pena "a sanção (…) mais dura que conhece o nosso direito", não faria sentido uma retirada do direito penal "precisamente ali onde estão em jogo interesses vitais não só dos indivíduos, mas de toda a humanidade em sua totalidade" (cf. ROXIN, Derecho Penal PG, § 2 nm. 23d.). Em conformidade, abandonando a referência aos bens jurídicos, propõe a tutela de "contextos da vida como tais", que passam a proteger jurídico-penalmente "normas de conduta referidas ao futuro" e sem "retro-referência a interesses individuais" (cf. ROXIN, Derecho Penal PG, § 2 nm. 23d.); com a ressalva de que tal não seria uma proposta de entono unicamente funcionalista, já que estaria em consonância com os princípios e garantias do Estado de Direito.
  56. Cf. ROXIN, Derecho Penal PG, § 7 nm. 51.
  57. Cf. SILVA SÁNCHEZ, Política criminal en la dogmática, p. 99.
  58. "O modelo teleológico resultante compreenderia, pois, aspectos instrumentais e outros ‘valorativos’" (cf. SILVA SÁNCHEZ. Política criminal en la dogmática, p. 100).
  59. Expressão utilizada por SCHÜNEMANN, em Situación espiritual de la ciencia jurídico-penal alemana, p. 188 e ss. Refere-se a eles como "velhos princípios ideológicos europeus", ROXIN, La evolucion de la política criminal, p. 56.
  60. Cf. ROXIN, La evolucion de la política criminal, p.90.
  61. Cf. JAKOBS, Sociedad, norma y persona, p. 11.
  62. Cf. SILVA SÁNCHEZ, Política criminal en la dogmática, p. 103.
  63. Cf. BARATTA, Integración-.prevención, pag. 10 e ss.
  64. Cf., por todos, ROXIN, La evolucion de la política criminal, p 57 e ss.; ver também SCHÜNEMANN, Situación espiritual de la ciencia jurídico-penal alemana, p. 205 e ss.
  65. Cf. SCHÜNEMANN, Situación espiritual de la ciencia jurídico-penal alemana, p. 189.
  66. Contra uma "lógica de eficácia" para o direito penal do meio ambiente, ver FARIA COSTA, O perigo, p. 313.
  67. Cf. FIGUEIREDO DIAS, Direito penal secundário, p. 10 – o grifo é nosso.
  68. Cf. SCHÜNEMANN, Situación espiritual de la ciencia jurídico-penal alemana, p. 193.
  69. N sentido, criticando tenazmente o monismo-individualista de Frankfurt, veja-se SCHÜNEMANN, Situación espiritual de la ciencia jurídico-penal alemana, p. 192 e ss. Segundo este Autor, a vinculação à idéia de contrato social não pode, também, limitar o direito penal à tutela dos indivíduos existentes em determinado momento, já que a noção de contrato social só é praticável "se se concebe como parte do contrato toda a humanidade, isto é, incluindo também as gerações futuras" (Situación espiritual de la ciencia jurídico-penal alemana,p. 193 – o itálico é nosso).
  70. Assim, FIGUEIREDO DIAS, Sociedade do risco, p. 23 e ss. Assim também, apesar de sustentar uma concepção distinta - a que chama pessoal-dualista - de bem jurídico, ver SILVA DIAS, Entre comes e bebes, p. 66 e ss.
  71. Cf. PORTILLA CONTRERAS, Bienes jurídicos colectivos, p. 745.
  72. Cf. SILVA SÁNCHEZ. Derecho penal contemporáneo, p. 272.
  73. Cf. SILVA DIAS. Entre comes e bebes, p. 67.
  74. Cf. TIEDMAN. El concepto, p. 68; também FIGUEIREDO DIAS, Direito penal secundário, p. 7 e ss.
  75. Na expressão de SCHÜNEMANN. Derecho penal del medio ambiente, p. 648
  76. Cf. SILVA SÁNCHEZ. Reforma de los delitos contra el medio ambiente, p. 158.
  77. FIGUEIREDO, Guilherme Gouvêa de, CRIMES AMBIENTAIS À LUZ DO CONCEITO DE BEM JURÍDICO-PENAL (dês)criminalização, redação típica e (in)ofensividade, p. 163 e SS.
  78. FIGUEIREDO, idem, p. 141 e ss.

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Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

FIGUEIREDO, Guilherme Gouvêa de. Direito Penal do risco e conceito material de crime. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 16, n. 2794, 24 fev. 2011. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/18566. Acesso em: 29 mar. 2024.