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Reflexos da patenteabilidade das sequências de DNA humano.

Uma avaliação multissetorial

Reflexos da patenteabilidade das sequências de DNA humano. Uma avaliação multissetorial

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Estudam-se aspectos éticos, sociais, científicos, econômicos, jurídicos e políticos acerca dos impactos causados pela proteção patentária conferida ou não às sequências de DNA humano.

Sumário:1 Introdução. 2 Genética molecular humana e sua proteção patentária. 3 (Bio)Ética. 4 Sociedade e comunidade científica. 5 Ordem política, econômica e jurídica. 6 Consideração finais. 7. Referências.

RESUMO

Este estudo científico compreende uma avaliação multissetorial, observados os aspectos éticos, sociais, científicos, econômicos, jurídicos e políticos, acerca dos impactos causados pela proteção patentária conferida ou não às sequências de DNA humano. Tem por finalidade reconhecer a influência desses setores no desenvolvimento da ciência e elaboração e manutenção da norma jurídica patentária, a fim de debater a viabilidade e oportunidade de proteção patentária às sequências de DNA humano em compasso à situação encontrada. Para o alcance desse objetivo foi desenvolvida pesquisa bibliográfica doutrinária, dispensada ênfase em artigos científicos e recortes de jornal, dada a relativa novidade do tema. Concluiu-se que, relativamente às circunstâncias e posicionamentos verificados no panorama mundial contemporâneo, a concessão de patentes sobre sequências de DNA humano não se mostra a solução mais adequada ao desenvolvimento científico sadio e à manutenção de um sistema jurídico voltado às necessidades sociais às quais o direito está diretamente ligado, e em relação a elas deve ser coerente e fiel.

Palavras-chave: DNA humano. Patente.

ABSTRACT

This scientific research comprises a multi-sectoral analysis, observed ethical, social, scientific, economic, legal and political aspects about the impacts caused by patent protection, given or not, to human DNA sequences. It is with the aim to recognize those sectors influence on science development and on the elaboration and maintenance of the juridical patentary law, with the purpose to debate the viability and opportunity of the patentary protection to the human DNA sequences accordingly to the found situation. In order to achieve these objectives, intense bibliographic research was developed with emphasis on scientific articles, because of the relative novelty of the subject, complementing the information with doctrine, laws and newspaper clippings. It was concluded that, relatively to the circumstances and points of view verified at the world contemporary scenario, the patent concessions about human DNA sequences isn’t shown as the most adequate solution to the healthy scientific development and to the maintenance of a juridical system that respects the social needs to which the law is directly linked, and it must be coherently and faithfully related to them.

Keywords: Human DNA. Patent.


1 Introdução

O campo de estudo deste artigo delimitou-se com o intuito de trabalhar a problemática da viabilidade e oportunidade da patenteabilidade das sequências de DNA humano, através de uma análise crítica multisetorial do panorama mundial hodierno no que concerne à influência de aspectos éticos, sociais, científicos, jurídicos, políticos e econômicos relacionados ao desenvolvimento da ciência e construção da norma jurídica de forma ampla.

Diante disso, o artigo apresenta como objetivo primordial analisar a conjuntura que se cria em diversos setores da convivência humana, a partir da concessão ou não de proteção patentária às sequências de DNA humano. Desse objetivo geral, portanto, desenvolveu-se o trabalho em quatro itens distintos, o primeiro dele fornecendo noções básicas de genética molecular humana e proteção patentária, e os demais, cada um deles tratando de um objetivo específico, quais sejam: a) o campo ético; b) a posição da sociedade e comunidade científica; e c) a ordem jurídica, política e econômica.

O estudo foi desenvolvido através de pesquisa bibliográfica, com abordagem doutrinária, artigos científicos e recortes de jornais, com forte utilização desses dois últimos por conta da relativa novidade do tema na seara jurídica.


2 Genética molecular humana e sua proteção patentária

O DNA é intrínseco à formação e manutenção da vida de todo ser humano. A correta conformação física externa, como a concepção de dois braços ou a definição da cor dos olhos é decorrente do DNA. O funcionamento estrutural interno, como a produção do hormônio do crescimento ou do controle da insulina, por exemplo, também emanam da atuação do DNA.

Ácido desoxirribonucléico ou simplesmente DNA, apresenta-se como um composto orgânico que contém as instruções genéticas que coordenam o desenvolvimento dos seres vivos, ou mais cientificamente, é "[...] uma molécula [...] constituída de duas cadeias de nucleotídeos que se enrolam originando a famosa dupla hélice" (FARAH, 1997, p. 17).

Em outras palavras, o DNA é um formador e guardião das informações genéticas do ser humano: ele tanto pode se referir à informação para produção de uma substância essencial à manutenção da vida quanto à determinação de uma característica genética como a cor dos cabelos ou a pré-disposição a uma doença.

Todavia, portar a informação genética significa mais do que guardar e transmitir o código ao longo das gerações, é expressar e servir de molde para produção de substâncias necessárias à vida, sem as quais o ser humano pereceria.

Nesse contexto, o estudo do DNA e de tudo que a ele se liga pertence ao campo da genética molecular, através da qual, por conseguinte, é possível desenvolver um processo conhecido como isolamento de um gene específico, isto é, a separação de determinada sequência de DNA que apresenta uma função específica identificada, seja ela para a produção de certa proteína ou a transmissão hereditária de determinada característica.

A par disso, cumpre salientar que "[genes] são trechos de DNA; mas nem todo trecho de DNA é gene. O que dá a um trecho de DNA o status de gene é o fato de a célula encontrar ali as informações de que precisa para criar proteínas – os compostos que animam o movimento interior da célula [...]" (TEIXEIRA, 2000, p. 50, grifo do autor).

Assim, tem-se que uma sequência de DNA é um gene quando seu código linear detém a capacidade de armazenar o arquivo completo da sequência de aminoácidos correta para fabricar certa substância ou determinar alguma característica especial, como o tipo de lóbulo da orelha ou alguma doença. A esse conjunto de genes mapeados e com funções identificadas, em determinado indivíduo ou espécie, por sua vez, credita-se o nome de genoma.

A utilidade do DNA, entretanto, abrange um campo muito vasto. Descobertos os genes de uma determinada doença genética e o comportamento desses genes, é possível desenvolver estudos no sentido de se obter novos medicamentos ou mesmo a cura mediante intervenção com terapia gênica. Por exemplo: desvendada a forma de atuação de determinada doença, poderiam ser inseridos genes normais na célula doente, ou mesmo substituídos os genes defeituosos por outros normais e esses novos passariam a expressar o código correto para produção da substância cuja falta ou excesso está causando a doença.

Assim sendo, mais do que acerca da proteção patrimonial sobre sequências de DNA humano em si, busca-se avaliar as possibilidades de melhoramento de vida que podem advir dos estudos científicos, bem como os abalos causados quando esse material de pesquisa concentra-se na mão de poucos, e tem sua propriedade e exclusividade protegidas juridicamente.

Desse modo, conjugando-se a inspiração primária dos pesquisadores na busca incessante pela manutenção e melhoramento da vida e as esperanças vislumbradas a partir do estudo do DNA humano, avivou-se uma forte preocupação com a proteção jurídica patrimonial às sequências de DNA humano (proteção biotecnológica, como será tratada mais genericamente), que se intensificou com o início do Projeto Genoma Humano, no princípio da década de 1990, pela iniciativa do National Institute of Health (NIH) e do Departament of Energy norte-americanos, com a instalação do National Human Genome Resarch Institute (TEIXEIRA, 2000, p. 9).

O Projeto Genoma Humano, empreendimento de alcance internacional, contava inicialmente com o apoio e financiamento governamentais, cujas pretensões científicas eram, em linhas gerais:

a) identificar e realizar o mapeamento dos genes existentes no DNA das células do corpo humano;

b) definir as sequências de bases químicas que compõem o DNA humano; e

c) gravar as informações obtidas em bancos de dados, criando ferramentas eficientes para analisá-los e torná-los acessíveis para novas pesquisas biológicas.

Assim, o objetivo primordial do governo era mapear o genoma humano e disponibilizar as informações em bancos de dados para novas pesquisas, a quem pudesse interessar, sem o intuito de dispor da propriedade de tais progressos com a finalidade de barrar sua exploração para novas pesquisas. O setor privado, por outro lado, interessou-se pelo Projeto Genoma Humano vislumbrando o lucro gerado pelas pesquisas, notadamente para as indústrias biomédicas (TEIXEIRA, 2000, p. 57-58).

Tendo em conta o interesse privado, cabe ressaltar, todavia, uma diferença inconfundível entre as abordagens realizadas por ele e pelo setor público no Projeto Genoma Humano, o que parece justificar a corrida pela proteção patrimonial que se instalou nesse cenário. O setor público desde o início buscou registrar dados de alta qualidade e precisão, com histórico de todos os detalhes das células humanas, criando bases de dados ricas em informações para os pesquisadores (TEIXEIRA, 2000, p. 57-58).

Para o setor privado tornou-se categórico que o Projeto Genoma Humano lhe trouxesse resultados rápidos, passíveis de lucro e, consequentemente, proteção patrimonial (TEIXEIRA, 2000, p. 57-58). Assim, num primeiro momento, a iniciativa privada focou seus objetivos na busca da definição de sequências com genes específicos, como aqueles causadores de doenças graves, o que lhe renderia altos lucros mais rapidamente, sobretudo por meio da atuação da indústria farmacêutica no desenvolvimento de novas drogas.

Pouco depois, no entanto, estendeu seu interesse também na busca por proteção patrimonial para sequências de DNA ainda sem função conhecida, conjecturando, sempre, possibilidade futura de lucro, quando da eventual descoberta da função contida na sequência já protegida, pois muitas vezes, a iminente necessidade da rapidez não permitia, de pronto, que houvesse delonga considerável no estudo de determinadas sequências.

Essa proteção jurídica tão almejada pelos pesquisadores, correspondeu, de plano, ao privilégio obtido através da concessão de patentes, ou seja, a garantia de propriedade sobre as sequências de DNA humano, e então:

Pesquisadores começaram a pedir patentes sobre ESTs [etiqueta de sequência expressa: segmentos sequenciados de DNA sem função determinada, que podem ser utilizados como uma sonda de genes ou marcador de DNA] [...] sem saber o que elas faziam de fato. Os candidatos à patente frequentemente chutavam a função biológica dos fragmentos de gene após consultar bases de dados. [...] A justificativa para patentear sequências de DNA de função incerta foi que essas ESTs poderiam servir como ferramenta de pesquisa (STIX, 2008).

A essa altura, porém, não só a iniciativa privada, como também setores financiados com verbas públicas, como determinadas Universidades já haviam obtido diversas patentes sobre sequências de DNA humano, e nessa conjuntura é que se instalou a problemática da oportunidade e viabilidade das patentes de sequências de DNA humano, o que impõem a análise de breves disposições doutrinárias acerca do direito de propriedade industrial, e nessa seara jurídica, primeiramente cumpre estabelecer que:

[...] patente é o título concedido pelo Estado que confere ao seu titular o direito exclusivo de exploração da invenção que foi seu objeto. O inventor que traz para a sociedade um produto ou um método novo, recebe, em contrapartida à revelação dos meios que permitirão reproduzir sua invenção, um direito exclusivo e temporário (LOUREIRO, 1999, p. 38).

Em outras palavras, "[a] patente é o direito outorgado pelo Governo de uma nação a uma pessoa, o qual confere a exclusividade de exploração do objeto de uma invenção ou modelo de utilidade, durante um determinado período de tempo, em todo território nacional" (DI BLASI, 2005, p. 53).

A patente, então, é um título que, outorgado pelo Poder Público a uma pessoa física ou jurídica, garante a exclusividade da exploração do objeto de determinada invenção por certo lapso temporal, nos limites do território do país concedente, podendo ser estendida, evidentemente, a outros países, cumpridos os requisitos dos tratados internacionais e das normas particulares de cada país.

Dessa definição clássica de patente, de origem européia, somam-se, ainda, variantes norte-americanas, para cuja doutrina uma patente é um direito de propriedade que tem por objeto o conhecimento adquirido pelo inventor ou titular da patente e visa evitar que esse conhecimento seja, de plano, explorado por outrem (LOUREIRO, 1999, p. 38-39).

Em relação ao âmbito protetivo das patentes é interessante mencionar a distinção entre a invenção e o modelo de utilidade. A invenção, embora não tenha um conceito legalmente estabelecido, relaciona-se ao que nunca antes existiu, que surgiu, pela primeira vez a partir da criação intelectual humana, não tendo ligação com outras criações já apresentadas ao público, e desde que tenham aplicação industrial. Já o modelo de utilidade:

[...] é entendido como toda forma nova conferida – envolvendo esforço intelectual criativo que não tenha sido obtido de maneira comum ou óbvia (ato inventivo, ou seja, atividade inventiva em menor grau) – a um objeto de uso prático, ou parte dele, suscetível de aplicação industrial, desde que, com isto, se proporcione um aumento de sua capacidade de utilização (DI BLASI, 2005, p. 48).

Essa informação tem caráter meramente distintivo, uma vez que o modelo de utilidade se aplica, substancialmente, à atividade inventiva sobre objetos e máquinas já existentes, visando um melhoramento em seu uso, mas que é igualmente protegido pelo amplo e irrestrito direito patentário. Nesta pesquisa, portanto, tem lugar o estudo das invenções: a análise conceitual e epistemológica, diferentes segmentos e graus de proteção e os impactos gerados na sociedade através da concessão da patente.

Inventar, nesse prisma, "[...] é criar o que ainda não existe. Assim, invenção é uma operação de pensamento referente a qualquer coisa que aparece pela primeira vez. É uma obra do espírito que busca uma novidade" (LOUREIRO, 1999, p. 43).

A invenção, então:

[...] embora possa aludir a um produto, aparelho ou processo, entre outros, não é a representação corpórea destes objetos. Trata-se de uma concepção, isto é, um conjunto de regras de procedimento, estabelecidas por uma pessoa ou um conjunto de pessoas especiais – os inventores –, as quais utilizando-se dos meios ou elementos fornecidos pela ciência possibilitam a obtenção de um bem corpóreo (por exemplo: um produto, aparelho ou processo) que venha a proporcionar um avanço técnico substancial em relação ao estado de técnica (DI BLASI, 2005, p. 34-35).

Importante estabelecer que o estado de técnica consubstancia-se em tudo aquilo já conhecido e colocado à disposição do público a respeito do assunto antes do depósito do pedido da patente, o que desvirtua o caráter da novidade e o da inventividade. Ou seja, se a criação intelectual já for de conhecimento público, já faz parte do estado de técnica e não pode ser patenteada.

Dentro desse campo de análise, tem-se também que a invenção "pode estabelecer as regras para a obtenção de um bem corpóreo que, diretamente, interfira ou altere o comportamento do homem. [...] ou pode ter por objeto a exploração da ação biológica [...] de proteínas e sequências de ácido desoxirribonucléico (DNA) [...]" (DI BLASI, 2005, p. 35).

Há, todavia, diversos entendimentos em relação à aplicação desses conceitos, e na seara da exploração biológica, há correntes que defendem que, não obstante o fato de as sequências de DNA humano estarem classificadas como produtos naturais, uma vez que são compostos isolados a partir de tecidos vivos, podem ser destinatárias de proteção patentária.

Ou seja, para alguns, "se após o isolamento da sequência de DNA houver alguma alteração em sua estrutura, esta será considerada uma nova substância química e, portanto, passível de proteção – desde que atenda aos demais requisitos da patenteabilidade" (DI BLASI, 2005, p. 35).

Todavia, se nova substância fosse, não haveria que se falar em patenteamento de DNA humano, e sim de nova substância, mas o que ocorre é que a sequência in vivo não tem comportamento único, igualando-se em apresentação, em algum momento, àquela apresentada em seu estado de isolamento.

Contrária, portanto, à viabilidade de tal proteção e ao entendimento de que, sob certo ponto de vista, as sequências de DNA humano seriam invenções:

Evelyn Fox Keller, filósofa e historiadora da ciência, mostrou nos últimos anos as fortes limitações do conceito de gene: a equação antiga, marca registrada do determinismo genético, "um gene = uma proteína = uma característica do organismo" não consegue explicar a complexidade e fluidez do genoma. Patentear fragmentos de DNA, critica a filósofa, como se fossem invenções diretamente ligadas a uma isolada "inovação", não funciona epistemologicamente nem praticamente (CASTELFRANCHI, 2004, grifo do autor).

E também porque existe uma coerente linha argumentativa no sentido de que as pesquisas biotecnológicas, inclusive na engenharia genética, originam, na realidade, descobertas e não invenções, pois nada fazem além de isolar ou recombinar o que já existe e está disponível na natureza, dentro do ser vivo (ALBAGLI, 1998, p.88).

Nesse sentido, acredita-se que não há atividade inventiva, pois que inexiste esforço intelectual do ser humano para a concepção. É algo que prescinde à atividade humana, porquanto mesmo que estanque, está lá, pronto para ser descoberto, e as descobertas não devem ser patenteadas.

Dispensada, neste caso em específico, discussão mais acalorada acerca do status de inventividade ou descoberta conferido às sequências de DNA humano, e a par dessas noções básicas de genética molecular elencadas, passa-se a uma análise multisetorial acerca dos aspectos, influências e consequências vislumbrados em cada um dos setores que se propôs investigar.


3 (Bio)Ética

Sempre que nos deparamos com alguma questão relacionada à vida, sobretudo quando envolve um direito de propriedade, de uso e exploração, surgem questões éticas e discussões desafiadoras, que talvez nunca possam ser vencidas como um todo, trazendo à tona, também, o debate acerca da responsabilidade científica.

Objetivo deste item, portanto, é demonstrar a necessidade de valorização de ética em todas as relações, humanas ou empresariais, pessoais ou interpessoais. Sobretudo o imperativo de se viver, conviver e trabalhar com valores e princípios éticos estruturados.

Deve-se ter em mente que é indispensável estabelecer limites éticos ao desenvolvimento tecnológico e manter sempre viva a noção de que o progresso pode vir para o bem ou para o mal, ou seja, pode carregar suspeitas ou esperanças, dependendo de como e de onde for extraído e de como for utilizado.

E decorrente dessa necessidade:

Na era do DNA manipulável, a elaboração de uma bioética representa certa contenção de um aspecto novo de dominação. Os dominados precisam dirigir um olhar atento e atuar sobre a nova realidade, de modo a humanizá-la segundo suas necessidades, fazendo-a incorporar cada vez mais os seus interesses (OLIVEIRA, 1995, p. 115).

Diante dessa exigência, na seara da vida, mais do que falar em ética, o adequado é falar de bioética, ramificação da ética que se ocupa da análise da adequação ética no campo biológico.

Bioética é um termo proposto pelo médico Van Rensselaer Potter, em 1971, representante da necessidade de se criar um modelo de intervenção ética na área da pesquisa científica, da técnica e de outras ações que liguem à vida, morte ou doença do ser vivo (BUGLIONE, 2007, p. 2).

Em decorrência da criação dessa nova ciência, foram estabelecidos quatro princípios estruturantes, a saber: a) autonomia; b) beneficência; c) não maleficência; e d) justiça.

O princípio da autonomia nasceu da necessidade de mitigar a superioridade historicamente reconhecida no médico em sua relação com o paciente, cabendo, a partir de então, ao próprio paciente decidir a respeito de sua vida quando em condições mínimas de discernimento, ou seus familiares, quando tais condições lhe faltarem, mas não ao médico, como se soberano da vida de outrem (MOSER, 2004, p. 318-320).

Consequência dessa autonomia do paciente, difundiu-se o que se conhece por direito ao consentimento informado, ou seja, o paciente decide o melhor para si com base em todas as informações que o médico e/ou outro profissional da saúde lhe dispensa a respeito do diagnóstico, tratamentos existentes, possíveis intervenções e consequências (MOSER, 2004, p. 318-320).

O que se busca, então, não apenas na medicina, como em todas as áreas da vida - sejam elas de pesquisa, teste ou acompanhamento, é que o profissional seja um auxiliar do paciente, ou no caso das sequências de DNA humano, da sociedade por completo, no intuito de repassar todas as informações possíveis e necessárias a uma decisão sadia a respeito da viabilidade e oportunidade da efetiva aplicação das propostas apresentadas.

Em interpretação semelhante tem-se que:

Esse consentimento dado pelo paciente, após receber a informação médica feita em termos compreensíveis, ou seja, de maneira adequada e eficiente, é uma condição indispensável da relação médico-paciente, por ser uma decisão que leva em consideração os objetivos, os valores, as preferências e necessidades do paciente e por ele tomada depois da avaliação dos riscos e benefícios (DINIZ, 2007, p. 611).

Ainda no viés da garantia da autonomia do paciente, o princípio da beneficência destaca que o profissional da saúde deve sempre trabalhar para aquilo que seja mais benéfico ao seu paciente, ou seja, não basta que o profissional da saúde busque um aprendizado meramente teórico para si. Os avanços devem ser consentâneos e guiados ao bem-estar e necessidades da vida e saúde humanas.

Já no que concerne ao princípio da não-maleficência, não há grande aprofundamento doutrinário acerca de seu conceito. "[...] alguns estudiosos preferem simplesmente incluí-lo no da beneficência" (MOSER, 2004, p. 321), argumentando que é "um desdobramento [deste], por conter uma obrigação de não acarretar dano intencional [...]" (DINIZ, 2007, p. 15). Seria, então, este princípio, uma espécie de contraponto ao da beneficência.

Outros mantêm sua autonomia, posição que também carece de maior aprofundamento, defendendo que em relação à beneficência "se considera a ação enquanto destinada a conseguir certos objetivos" e no que se refere a não-maleficência se chama atenção para o fato de que nem toda ação que é benéfica em teoria, deve ser levada a termo (MOSER, 2004, p. 321).

Em verdade os quatro princípios apresentam-se intimamente ligados e a não-maleficência deve sempre ser levada em conta quando se adotar um procedimento que busque o benefício do paciente. Independentemente da posição adotada, grosso modo, sempre que o profissional tenha suas ações pautadas no princípio da beneficência, via de consequência suas ações estarão livres da mácula da maleficência. Essa é a finalidade de todos os princípios: evitar prejuízos ao paciente.

De maneira adicional, o princípio da justiça não deve ter uma implementação pró-forma: ele necessita, além de estar sempre presente nas decisões, ser confrontado com a realidade cotidiana, no intuito de distinguir o que é necessário, viável e oportuno, e o que é supérfluo e inviável no contexto da sociedade onde está se desenvolvendo a nova tecnologia (MOSER, 2004, p. 322).

Para complementar a fiscalização exercida pelos princípios bioéticos, e em decorrência deles, colocam-se diversos outros princípios ético-jurídicos em relação à experimentação científica com seres humanos. Dentre eles, vale destacar: a) ponderação de riscos e benefícios; b) adequação aos princípios científicos que justificam a pesquisa e possibilidades concretas para responder a incertezas; c) inexistência de conflito de interesses entre patrocinador, executor e participante do projeto; e d) respeito a valores morais, éticos, culturais, sociais e religiosos (DINIZ, 2007, p. 382-383).

Nesse contexto, tem-se que nem tudo aquilo que é admissível nos campos da técnica e da economia, é eticamente viável ou de aplicação oportuna à saúde humana e assim é que se torna necessário estabelecer um padrão ético que seja dinamicamente compartilhado por pessoas de diferentes crenças e valores. Nesse cenário, a bioética é parte da ciência ética que se destina à discussão, mediação e ponderação de idéias e dilemas.

O desafio é que o que dissemos em regra ocorre na ordem dos conteúdos e não em relação aos valores defendidos. Por exemplo: ninguém, em sã consciência, duvida que a vida e o não-sofrimento de seres vivos são valores fundamentais. Porém, diferentes sujeitos, mas que concordam com essa máxima, divergem em relação ao momento da concepção, ao significado do que é um organismo vivo, debatem intensamente se animais têm direitos, se um feto anencéfalo está ou não vivo etc. (BUGLIONE, 2007, p. 2).

Assim é que:

As consequências tecnológicas das ciências conferiram às atividades humanas um alcance e uma amplitude que nunca antes haviam atingido, de tal modo que, junto aos vastos efeitos benéficos das tecnociências, são manifestos os riscos de uma dimensão completamente nova e de variadas classes [...] (MOSER; SOARES, 2006, p. 30).

Através da biotecnologia, portanto, o ser humano experimentou e experimenta um domínio da vida jamais antes imaginado, e nesse prisma, a ciência deve ser uma parceira da vida e não uma rival, observando os princípios constitutivos da bioética, ou seja, informando a sociedade sobre o que está fazendo, como está fazendo e quais seus possíveis resultados e consequências.

Desse avanço tecnológico e do dever de observância dos princípios norteadores da bioética, bem como do dever de fiscalização da sociedade, surgiu a necessidade de se trabalhar a questão da responsabilidade em pesquisas tecnológicas. Responsabilidade entendida como culpabilidade e imputabilidade, como um imperativo ético, que exige do pesquisador comprometimento com o avanço do hoje e as consequências futuras (MOSER; SOARES, 2006, p. 30).

O que se questiona, na problemática proposta, é se é eticamente aceitável que sejam essas informações patenteadas, pois uma sequência de DNA não é uma invenção, é uma descoberta daquilo que representa a informação mais primária que se tem da evolução genética de um ser humano, é a composição de nosso corpo, e nosso corpo não é uma mercadoria apropriável, passível de ser patenteada, sobremodo sem restrições.

Para facilitar a equação de dúvidas como essa é que se tem o auxílio da bioética que:

[...] é uma ciência concatenadora de conhecimento de vários campos do saber, entre os quais: biologia [...], psicologia, sociologia, antropologia, direito [...], portanto mais abrangente, em suas considerações, reflexões e análises, do que qualquer uma das ciências citadas isoladamente (FONTINELE JÚNIOR, 2003, p. 6).

Destarte, a ciência, sozinha, não dispõe de métodos para sobrestar se determinada prática é ética: esse é um dever da sociedade, que deve ser realizado através de intensos debates. E a sociedade precisa estar muito bem esclarecida a respeito do que são e o que resulta das novas tecnologias, para que possa prevenir práticas que não se mostrem necessárias ao desenvolvimento humano ou social (GARCIA, 2003, p. 3).

Todavia, a ciência é algo que não existe tão só abstratamente e ainda que não possa destrinchar a problemática por si, ela é instituída por seres humanos, não é uma máquina. E "´[ser] humano’ significa trazer em si a potencialidade de, ao longo de uma história, ser capaz de construir ou destruir" (MOSER, 2004, p. 335, grifo do autor).

Diante disso a análise da existência de ética naquilo que se está desenvolvendo deixa de ser uma pergunta sobre o que se está fazendo, para ser um questionamento acerca do que está acontecendo ao redor do pesquisador. É a busca do entendimento completo das consequências de seus atos.

Não se pode deixar de reconhecer que uma postura assim é carregada de subjetivismo, mas a objetividade não parece funcionar tão bem quando se trata de algo tão importante para o ser humano. É a vida, e dentro dela, ainda, os impactos que são causados em sua manutenção quando se opta por proteger ou não, por meio de patentes, sequências de DNA humano, reservando para poucos o direito de propriedade exclusiva sobre um material biológico, de onde possível e visivelmente surgirão avanços biotecnológicos pelo uso dos quais, em virtude do privilégio da patente, o ser humano tem de pagar um alto preço.

E assim é que se percebe que ao mesmo tempo em que a biotecnologia se apresenta impregnada de esperanças, também carrega diversas ameaças. E retoma-se a análise dos princípios e da ciência iniciada por Van Rensselaer Potter, que se destina a manutenção da sobrevivência da raça humana na terra, pois os avanços tecnológicos têm mostrado que não é mais suficiente cultivar instintos de sobrevivência, é necessário desenvolver uma ciência da sobrevivência (MOSER, 2004, p. 362-636).

Isso ocorre porque nos primórdios, a raça humana era mais defensiva do que pró-ativa: buscava mera sobrevivência, apesar de sempre observadora. Com o passar do tempo e o aprimoramento intelectual do ser humano, este passou, além de observar, a considerar o que acontecia ao seu redor e a trabalhar para ora adaptar-se à realidade ora fazer com esta se adaptasse a ele. Pode-se dizer que esta saída da inércia foi o marco primitivo para o desenvolvimento das ciências e tecnologias (MOSER; SOARES, 2006, p.45).

No entanto, a ciência da sobrevivência persiste, com novos desafios e com a árdua tarefa de encontrar subsídios às pesquisas biotecnológicas que sejam justificadores da proteção que gozam perante o ordenamento jurídico soberano de determinadas nações.

Ao que se refere à patenteabilidade das sequências de DNA humano, por seu turno, cumpre arrazoar a sua viabilidade e oportunidade perante a ética, ou bioética. Nessa análise, faz-se indispensável uma consciência crítica, densa e conhecedora dos princípios bioéticos.

Conceder uma patente a uma sequência de DNA humano parece mitigar a autonomia do paciente, da sociedade, de qualquer ser humano, na medida em que se dispõe a garantir um direito de propriedade e por isso mesmo de exploração exclusiva a algo que, intrinsecamente, pertence a todo ser humano.

Nesse diapasão, a autonomia, do ponto de vista da bioética, é ferida na medida em que não é permitido à sociedade participar ativamente da discussão acerca da viabilidade e oportunidade da proteção jurídica patentária à vida, ou parte dela. É a lei, muitas vezes elaborada sem a devida cautela, sem a merecida atenção às várias consequências de suas disposições que apaga o papel da sociedade, e passa a dispor o que entende ser mais sensato, sem considerar o posicionamento social.

Privilegiar por meio de uma patente um processo de obtenção de substância no qual são utilizadas sequências de DNA humano é um reconhecimento alinhado a um processo criativo, inventivo, indiscutivelmente. Dessa forma, o pesquisador está livre para trabalhar com o material genético humano, mas não é dono dele, nem temporariamente. E o paciente, depois, analisa se aquele resultado encontrado pelo pesquisador é benéfico e ele, e, diante das considerações técnicas, decide se deve ou não se utilizar do avanço biotecnológico obtido.

Esse reconhecimento prestigia o trabalho científico de determinada pessoa ou grupo, e ainda permite que as mesmas sequências possam ser utilizadas livremente por outros pesquisadores, no intuito de buscar melhoramentos em processos para obtenção de determinadas substâncias ou realização de exames, por exemplo. Garante, ainda, que a beneficência e a não-maleficência sejam respeitadas, na medida em que se permite que sempre se esteja buscando um aperfeiçoamento das técnicas de manutenção de uma vida saudável, sendo um mesmo material pesquisado por diferentes mentes, com diferentes idéias e concepções.

E mais, está se fazendo uma justiça sublime, ao passo que parece que não há proteção jurídica cabível a algo inerente à própria existência humana, que se abstrai a qualquer intervenção. A sequência de DNA humano já existe e está ali para ser descoberta e estudada, e como algo pronto e acabado não há que se falar em invenção: ela se firma apenas como um meio de efetivar outras criações.

Para concluir essa análise principiológica, tem-se que admitir também que "aqui não dá para sair pela tangente e supor que todos os setores envolvidos nessa luta possuem os mesmos interesses, pois as questões éticas denotam controle e poder. A bioética que serve aos países ricos não é idêntica àquela que serve aos países pobres" (OLIVEIRA, 1995, p. 120).

Isso significa que a bioética está estabelecida e deve ser observada, mas cada sociedade tem de adequá-la ao seu cotidiano, suas necessidades e seu estágio de desenvolvimento para saber como melhor aplicá-la.

Permitir que a definição da realidade de aplicação da bioética e a imposição dos limites seja estabelecida apenas por um ou poucos setores tende a gerar mais falhas do que o aceitável. Isso porque é nítido que as classes dominantes desejam a imposição de valores que não satisfazem os interesses das classes dominadas e assim por diante. E por isso mesmo é que os setores oprimidos devem estar atentos e aparelhados para um combate rotineiro contra o uso indevido das ciências e tecnologias como um todo (OLIVEIRA, 1995, p. 120).

Fortalecer um movimento bioético democrático, progressista e de reflexão é fator de extrema importância na formação da consciência social e do combate à monopolização do conhecimento sem o devido arcabouço ético.

Dessa maneira, na imposição da bioética como fator chave no biodesenvolvimento, a responsabilidade social e a responsabilidade científica emergem também como um imperativo ético na análise das consequências dos feitos biotecnológicos, pois a ciência deve servir de parceira à vida, não de rival. É com a vida humana que a ciência deve preocupar-se.


4 Sociedade e comunidade científica

Consequência das fortes discussões acerca da ética na concessão de patentes sobre sequências de DNA humano há uma diversidade de opiniões. Tanto em meio à sociedade leiga quanto entre a comunidade científica há grupos com opiniões distintas, contra, a favor ou mesmo na dúvida.

Analisar a ligação da sociedade leiga e da comunidade científica, nesse diapasão, mostra-se importante na medida em que, teoricamente, a comunidade científica deve trabalhar para o bem de toda a sociedade, indistintamente, e com esta deve dividir seus conhecimentos.

O desenvolvimento atual atingido pelas ciências biológicas e áreas a fim a partir da metade do século XX, entretanto, irrompe a maior parte das normas vigentes e evidencia que a ordem social hodierna é insuficiente (OLIVEIRA, 1995, p. 117).

A vida em sociedade, então, passa a dispor de regras de convivência, que são criadas a partir de valores por ela cultivados, isso porque:

[...] o ser humano nunca foi mero expectador: de alguma forma sempre foi observador, reflexivo e capaz de empreendimentos criativos. É com este quadro de fundo que se compreende a profundidade da revolução levada adiante pela genética atual: ela desemboca numa nova compreensão de vida, que nos introduz num novo momento histórico (MOSER; SOARES, 2006, p. 45).

Assim e por isso mesmo é que se tem a necessidade extrema e eminente de se discutir o que vem sendo desenvolvido pela ciência, a finalidade e consequências de seus novos empreendimentos.

Dessa necessidade decorrem questões que são de uma amplitude incalculável, e que, junto aos debates bioéticos devem estar presentes nos debates sociais e científicos, pois parece soar um tanto quanto estranho que direitos sobre partes tão primárias do ser humano vivo estejam sendo adjudicados a uma parcela minoritária da humanidade.

No contexto dessa necessidade, expressando opinião contrária à proteção patentária biotecnológica, entre os anos de 1995 e 1996, o então vice-presidente do Conselho da Academia de Ciências do Terceiro Mundo (TWAS), Muhammad Akhtar disse que a agricultura era fruto de milhares de anos de trabalho de uma coletividade de agricultores e que a tecnologia do DNA recombinante não alteraria mais do que 1% (um por cento) das características dos vegetais. Concluiu justificando que, desse modo, seria uma afronta ao senso de justiça que multinacionais pudessem deter a propriedade de sistemas vivos, por meio de patentes, através de uma parcela de trabalho tão insignificante (CASTELFRANCHI, 2004).

Esse posicionamento tem relação com o fato de vários dos avanços biotecnológicos ainda não possuírem todos os seus benefícios, efeitos e consequências determinados. Diante da dúvida, a sociedade leiga tende a se retrair, a contrariar essa espécie de proteção jurídica que é a patente de uma sequência de DNA humano. Boa parte da comunidade científica, entretanto, defende em alto e bom som a proteção, mesmo que não se tenha dados concludentes. Primeiro querem a patente, depois, com a garantia jurídica assegurada passam a um estudo mais meticuloso do objeto patenteado.

Contestando esses pontos de vista, se a comunidade cientifica não dispõe de meios para sozinha situar uma questão no campo da ética, cabe a ela, entretanto, explicar aquilo que faz, para que a sociedade faça seu julgamento acerca da viabilidade e sustentabilidade ou não de determinada proteção jurídica, do contrário essa mesma sociedade poderá, de pronto, posicionar-se contra qualquer prática científica.

Essa postura retraída toma lugar porque "[um] dos problemas é a rápida difusão dessas [nem tão novas] tecnologias de forma sensacionalista, preconceituosa e ideológica, por pessoas oportunistas não cientistas" (GARCIA, 2003).

Já no princípio do Projeto Genoma Humano a intenção governamental cingia-se ao intuito de elaborar um grande banco de dados a respeito da composição genética humana, para que esses dados servissem de subsídio a quem interessasse desenvolver a partir deles um melhoramento vital para o ser humano.

Entretanto, tempo depois do início do projeto, com a ingerência do setor privado, sobremodo pela atuação das empresas de biotecnologias, o sonho do código aberto tornou-se um tanto distante, na medida em que, para uma empresa, melhor e mais importante do que sequenciar todo o genoma humano era lucrar com esse feito.

E assim aconteceu: nos EUA, dia após dia eram depositadas centenas de pedidos de patentes para sequências de DNA humano, e nessa época também setores financiados com verba governamental, como Universidades, estavam solicitando suas patentes. E inúmeros desses pedidos foram atendidos, sob as mais diversas justificativas, e, diga-se que quase sempre sem a merecida análise.

Hoje, na população em geral, a posição acerca da patenteabilidade das sequências de DNA humano ainda é bastante variável, dependendo, fundamentalmente do nível de desenvolvimento de cada grupo. Entretanto, crê-se que a contrariedade ao patenteamento da vida ainda é visivelmente mais defendida na sociedade comum, pois ela almeja ser beneficiada com os avanços biotecnológicos, e isso sem dúvida é muito mais fácil sem a proteção das patentes.

Nessa linha de argumentação, há interessante enquete realizada pela revista Scientific American no ano de 2006, e disponibilizada em meio virtual, na qual se questionava se patentes sobre genes deveriam ser permitidas. Como resposta, havia quatro possibilidades, que se colocam abaixo, com os respectivos percentuais de aderência:

Sim. É preciso um incentivo para aqueles que investem na pesquisa básica em genômica. 2,29 %

Em geral, sim. Devem ser negadas apenas as patentes sobre genes cujo papel não tenha sido determinado. 3,05 %

Em geral, não. Uma patente deve ser concedida apenas quando um gene se prova útil para algo como uma ferramenta de diagnóstico. 9,16 %

Não. Ninguém pode se apropriar da Natureza. 85,50 %(PATENTES, 2008, grifo nosso).

Extrai-se desse resultado que as pessoas em geral parecem estar esclarecidas quanto às consequências que um direito de patente gera para seu detentor, bem como da significação e destinação dos genes em relação à vida humana.

Também no setor científico, sobretudo o privado, a situação hoje vai de encontro ao inicialmente visado, mitigando a veemente necessidade do lucro e prevendo que muito caos pode ser gerado em consequência dessa proteção.

Nesse sentido:

Alguns cientistas têm criticado o Escritório Americano de Patentes e Marcas por ser generoso demais na concessão de patentes de genes. Alguns argumentaram que a idéia de permitir o patenteamento da sequência de genes faz pouco sentido, uma vez que existe naturalmente e deveria contar como descobrimento e não como invenção. Mas o Escritório decidiu que, como as sequências de genes isolados não ocorre na natureza, deveriam ser patenteáveis (DRUTMAN, 2006).

É o caso também de Craig Venter, da Celera Genomics, principal investidora privada do Projeto Genoma Humano. Depois de ter em seu domínio inúmeras patentes sobre sequências de DNA humano, Craig passou a defender, ainda que timidamente, o código aberto. Foi ainda mais profundo: em 2003 disse que, em verdade, esse tipo de pedido de patente serviu apenas para enriquecer as assessorias jurídicas especializadas, e que a sociedade tem muito a ganhar com a liberação dos bloqueios patentários (STIX, 2006).

Defensores do código aberto, há também grupos de cientistas que apontam para as legislações européias para alicerçar suas posições, visto que nelas se permite certas patentes biológicas, mas sempre com mais restrições e mediante estudos mais elaborados acerca de seus impactos, obstaculizando o patenteamento puro da vida (DRUTMAN, 2004).

Outra parcela, entretanto, continua a defender ferozmente o sistema de patentes, sob a justificativa de que se não fosse o privilégio patentário a humanidade não teria hoje diversos melhoramentos, como medicamentos contra a AIDS, por exemplo. Isso se justifica porque, na opinião desse grupo, empresa alguma teria investido neles sem a garantia de lucro exclusivo por determinado período de tempo (CASTELFRANCHI, 2004).

Ulterior preocupação que parece amedrontar a sociedade e que deve nortear a mente dos cientistas é o ressurgimento da eugenia, diferente da existente no passado, que, sutil e inocentemente venha a ditar a manipulação genética do ser humano desejado: beleza física, força, inteligência, cor de pele, indisposição para doenças (GASPARETTO, 2008).

Nessa acepção:

Faz sentido aqui o alerta do filósofo alemão Hans Georg Gadamer, [...] quando afirmou [...] que "tudo isso me parece pavoroso", quando pressente que "estão desenvolvendo um ser humano artificialmente perfeito, que poderá ser privado de seu destino e de sua individualidade", devendo-se "impor limites éticos à investigação genética" (GASPARETTO, 2000, grifo do autor).

E na mesma linha, assente-se que:

[Cabe] a Humanidade, aos governos, às organizações civis, fazer prevalecer o interesse de todos, colocando [...] limites. Do contrário, não demorará muito para que nos jogos olímpicos, além dos exames antidoping realizados para detectar substâncias proibidas serão necessários outros, mas para detectar genes artificialmente modificados, destinados a aumentar tamanho, agilidade, velocidade e outros atributos considerados estratégicos no esporte cada vez mais competitivo. Não demorará muito para que se tenha duas olimpíadas, uma com os humanos e outra, com os super atletas produzidos pela Engenharia Genética sob medida para vencer em certas modalidades esportivas. E nesse ponto, seguramente, o ser humano já terá experimentado mais uma vez do fruto proibido da "árvore do bem e do mal". E o novo campeão poderá, no fundo, ser digno de pena (GASPARETTO, 2000, grifo do autor).

Deve-se estar sempre atento ao fato de que a sociedade tem o dever de fiscalizar a ciência, mas a ciência também possui um papel social, que se cumpre quando ela percebe seu lugar na sociedade, mas lembrando também que:

A tendência da sociedade moderna é extrapolar os próprios critérios da sua racionalidade. Isso nos faz perceber que a pretensão universalmente tem sido uma característica do discurso científico. Neste caso, será necessário evocar um novo critério para tornar este discurso mais próximo do contexto social. Este critério passa a ser o da verificabilidade simultânea, constituído por uma dupla norma de aplicação. Em primeiro lugar, toda vez que um experimento científico estiver em discussão será necessário questionar se há, cientificamente falando, grau de certeza anunciado. Quando a pesquisa ocorre com seres humanos, as certezas presentes nos enunciados devem gozar do máximo de precisão, ainda que estas certezas sejam mínimas; caso contrário, a fundamentação do discurso científico deixa de ser epistemológica e passa a ser estética e espetacular. Em segundo lugar, é necessário que as pesquisas científicas proporcionem benefícios correspondentes aos custos sociais exigidos para o seu desenvolvimento (MOSER; SOARES, 2006, p. 33-34, grifo do autor).

O critério proposto para valoração dos experimentos científicos revela a dupla responsabilidade que a ciência deve preservar: a responsabilidade científica junto à responsabilidade social. Isso porque a ciência é um fato social e suas ações têm sempre que levar em conta os mais diversos fatores e problemas aos quais a sociedade está exposta.

Nesse diapasão, tem-se que, em verdade, as descobertas de hoje são desdobramentos de descobertas precedentes. É a evolução e o aprimoramento das pesquisas. E é necessário tomar cuidado com isso, pois quanto mais avança a tecnologia, maiores esperanças e também maiores medos trás à sociedade, e a sociedade não pode conviver em meio a tanta insegurança

Nessa linha, ganha atenção a corrente que defende o fato de as sequências de DNA humano, além de não serem invenções, são descobertas originadas de outras descobertas, precedentes. Essa postura fragiliza ainda mais os argumentos usados na defesa da proteção jurídica patentária desse tipo de material biológico.

Uma vez que só se chega à descoberta de uma sequência de DNA conhecendo-se a fundo o funcionamento e arranjo do sistema biológico, as sequências de DNA, hoje tão bem quistas, são decorrência de um acidente, e apenas a partir desse acaso é que ganhou significado e preocupação científicos, com a instituição, inclusive, do Projeto Genoma Humano, desenvolvido especialmente com a finalidade de decifração genética.

Frente a mais essa possibilidade de diferenciação do caráter existencial das sequências de DNA humano, torna-se ainda mais complexo e inseguro afiançar uma fundamentação jurídica concludente para a proteção patentária conferida por alguns ordenamentos jurídicos vigentes.

É em meio a isso que se convive no que tange à questão da patenteabilidade das sequências de DNA humano: uma insegurança, em todos os aspectos, sobremodo o jurídico, se levados em conta os distintos graus de proteção, ou proibição, conferidos pela legislação de cada nação. Acima das disposições legais, tem-se ainda a divergência, dentro de um mesmo Estado soberano, entre os pesquisadores e a população, e entre os componentes de cada um desses grupos também.

O que é necessário deixar claro são as consequências experimentadas tanto pela população, quanto pela comunidade científica quando se protegem sequências de DNA por meio de patentes. Esta perde porque a pesquisa sobre a sequência fica restrita ao detentor da patente por um grande lapso temporal. Aquela perde de dois modos: ou porque não tem condições de arcar com os melhoramentos desenvolvidos em função dos custos decorrentes da propriedade de uma patente, ou porque deixam de ser beneficiadas com algo que poderia ser desenvolvido por outras mentes, mais rapidamente, mas cuja pesquisa que não ocorre por conta da proteção patentária.

Contudo, a divergência de opiniões sempre existirá e não é tarefa simples, nem se busca aqui, precisar qual a posição dominante: no campo do DNA humano, especificamente, e em todas as biotecnologias, pois os seres humanos, cada um deles, é movido por diferentes razões. Uns pelo bem comum, outros pelo lucro, por exemplo.

Nessa conjuntura, é o debate ético, juntamente ao social e científico que, engajados, podem impor suas crenças e valores frente aos poderes dominantes, sobretudo o político, jurídico e econômico, de forma a ser estabelecida uma norma coerente com as necessidades sociais e interesses científicos, que seja passível de manutenção, porquanto deve ser balizadora de direitos conflitantes e instituidora de um ponto de equilíbrio.


5 Ordem política, econômica e jurídica

Uma análise um pouco mais aguçada a respeito da influência exercida pelas ordens política e econômica na ordem jurídica é apreciável na medidade em que, de acordo com a filosofia publicamente assumida por representantes das duas primeiras, estas devem trabalhar com a finalidade de melhoria do bem-estar social, das condições de vida da população como um todo, ao passo que, desse modo, deveriam pressionar os órgãos legislativos para atuarem conforme tal finalidade e não, de modo diverso, com intuito de garantir apoio e benefícios próprios, individuais em detrimento do coletivo.

A permissão para a concessão de uma patente sobre sequências de DNA humano ou sua proibição são disposições que devem constar expressamente do ordenamento jurídico de cada nação soberana. Diante disso, mostra-se oportuno analisar as influências que a política e a economia de cada país exercem sobre a construção da norma jurídica.

Assim é que, a concessão de uma patente, conforme sua própria história coloca, não é um direito puro em si mesmo, mas um privilégio. E se esse privilégio for bom para a economia das grandes empresas e contar com aprovação do governo em atuação, ele será concedido, pouco importando, na maior parte das vezes, e nas nações mais desenvolvidas com mais frequência, os impactos causados à sociedade como um todo, e até mesmo a mercê de uma análise mais aguçada do que realmente o setor tecnológico e científico espera das legislações.

Sem intenção de adentrar na esfera doutrinária da ciência política e econômica, deixa-se claro apenas que, a economia de um país está ligada a tudo quanto se refira à produção, distribuição e consumo de bens e serviços, e por isso mesmo, ela está ligada a hábitos, desejos e vontades humanos. Consequência disso, nada mais natural que seu intuito seja sempre o lucro.

Dessa posição social da economia, surge sua ligação com a política, centrada em disputas de poder e influências que distorcem idéias originais acerca do exercício da política o do desenvolvimento sadio da economia.

Isso porque a economia, originalmente não estaria ligada a atos políticos. Contudo, em troca de apoio, políticos parecem deixar de atender aos interesses gerais da sociedade para atender aos interesses pontuais do setor econômico, e o fazem através do poder público e da retórica bem desenvolvida, de modo a legitimar atitudes que carecem de fundamentos sólidos.

Desse modo, parece não haver lugar para algumas questões importantes, como o estudo da viabilidade e oportunidade patenteamento de sequências de DNA humano.

E assim, indiferentes ao apelo social, ordenamentos jurídicos de diversos países vêem permitindo a patenteabilidade da vida. E patentes sobre sequências de DNA consentem que cada característica do ser humano possa ser patenteada de forma independente, ou seja, o ser humano, em sua composição mais primária, passa ser objeto de diversas e distintas patentes sobre suas características intrínsecas.

Mas se pergunta: porque os titulares do poder, pessoas escolhidas pelo próprio povo, não atuam segundo a vontade deste? Essa questão parece revelar uma feição um tanto perversa da política: o fato de os políticos agirem de formas distintas antes e depois de legitimados no poder. E assim é que a sociedade torna-se uma vítima tolerante de suas próprias atitudes. Isso porque ela mesma instituiu a política, e reservou o poder a um pequeno grupo de pessoas.

Dessa deliberação social é que deriva a forma pela qual o poder é exercido: pelos eleitos, legitimados nesse poder, mas que consideram, em razoável parcela de suas decisões, seus interesses e vantagens em detrimento das necessidades e benefícios sociais.

Contrário, porém, a essa posição estagnada e meramente observadora, atualmente (e felizmente) vem ganhando força um novo discurso, pois:

Há um "esforço internacional" (dos países ricos e parte da sua intelectualidade) para separar a mercantilização dos saberes biológicos (biopatentes) e o debate acerca da legislação considerada ética para esses saberes (bioética). Alega-se que as biopatentes nada têm a ver com bioética [...]. Então, a ofensiva dos que comandam o saber nessa área busca criar, rapidamente, armadilhas legais: assim, enquanto a sociedade discute o que é ético, aético ou antiético, eles se apropriam do que for possível (OLIVEIRA, 1995, p. 77-78, grifo do autor).

De tal modo, há pouco tempo alguns países que vinham permitindo largamente o patenteamento da vida estão sendo pressionados a rever suas normas, a provar que as patentes são pró-sociedade e não pró-capital, e ratificar a legitimidade dos atos praticados por seus governantes. Em análise prática, tem-se que, no Brasil, já à época da elaboração da então vigente Lei da Propriedade Industrial, a norma sofreu inúmeras represálias, ao excluir a biotecnologia de seu âmbito protetivo, pois já se tinha que a tecnologia apontava para a necessidade de uso dos métodos da engenharia genética para obtenção de novos produtos químicos, por exemplo, e que o não patenteamento de tais invenções diminuiria o estímulo dos pesquisadores.

Nesse sentido pronunciou-se o então presidente do INPI, José Roberto Gusmão à época da tramitação da nova lei, a respeito da falta de proteção patentária às invenções decorrentes da biotecnologia, fato que, se não for inibidor das pesquisas, "[deixa] de estimular. O sistema de patentes é um estímulo, um prêmio a quem inova, a quem pesquisa. Temos bons laboratórios no Brasil e os pesquisadores não se sentirão estimulados porque estarão marginalizados do processo de premiação [da patente]" (GUSMÃO; DIEGUEZ, 1993, p. 14).

No entanto, um discurso protetivo ao extremo, carecedor de uma análise mais pormenorizada do contexto não carrega validade suficiente para fundamentar uma proteção tão dilatada quanto o é a patentária, sobremodo no que tange a partes do ser vivo.

Desse modo é que, antes mesmo da edição dessa lei, com o advento da Constituição Federal de 1988, destacam-se no Brasil, na luta contra o uso irracional da biotecnologia, o direito à vida, à igualdade e à proibição de discriminação: direitos fundamentais do ser humano. São limites impostos pela Constituição Federal em relação à manipulação do genoma humano.

Nessa linha argumentativa, em relação ao direito à vida, coloca-se que:

[...] são vedadas manipulações no genoma humano que coloquem em perigo a existência da vida digna de um ser humano. Quer dizer que não são permitidas intervenções que fatalmente levem o individuo à morte. Seja pelo desconhecimento da técnica, de seus resultados os dos meios para sua aplicação; [...] Vale dizer, a cura de uma enfermidade genética, a preservação e a melhoria da qualidade da vida humana devem ser os únicos objetivos de uma intervenção no genoma humano (MYSZCZUK, 2005, p. 88).

Portanto, tratar o ser humano como uma coisa ou apenas como um meio de obter conhecimento científico ou lucro, é desconsiderar os direitos desse ser humano (MYSZCZUK, 2005, p. 88).

O direito à igualdade busca uma atuação conjunta da igualdade formal e material. Esse direito compele o profissional da saúde a escolher os pacientes para suas pesquisas de acordo com as necessidades e possibilidades de cada um, através de um juízo de equidade. Também prega que não deve haver tratamento discriminatório resultante dos conhecimentos acerca da diferenciação genética de cada um, devendo todos os esforços conduzirem a busca de uma sociedade solidária e inclusiva, com a consequente melhora na qualidade de vida (MYSZCZUK, 2005, p. 88-90).

Somando-se ao anterior, o direito à intimidade, por sua vez, refere-se precipuamente à regulamentação de obtenção, uso e proteção das informações obtidas acerca do DNA humano. Liga-se o princípio da intimidade, ainda, ao princípio do direito ao consentimento informado, tratado anteriormente. Assim é que deve ser delimitado o campo de atuação da pesquisa. Deve haver uma concreta compilação de informações sobre qual procedimento será realizado, de que forma o será, quais suas possíveis implicações no caso de divulgação e disseminação do procedimento.

Diante dessas observações, ao menos no que tange ao sistema constitucional brasileiro, e aos direitos fundamentais do ser humano, infere-se que os limites num primeiro momento impostos pró-sociedade não foram desrespeitados frente à pressão econômica ou política exercidas para criação de uma lei patentária amplamente protetiva. Ao menos não em relação ao material intrínseco ao ser humano.

Prova disso e também posição contrária ao patenteamento amplo da vida é que:

Se na Declaração Universal sobre Genoma a UNESCO afirma que os genes humano, enquanto tais, não podem ser fonte de lucro [...], não é para evitar a formação de monopólios, combater formas desleais de concorrência ou tornar mais fácil para todos o acesso às descobertas científicas: mas é por uma razão de princípio, que consiste na não-comerciabilidade do corpo humano e de suas partes (BERLINGUER, 2000, p. 101, grifo nosso).

Nesse prisma, a questão que mais toma frente no debate acerca da patenteabilidade das sequências de DNA humano, não é apenas a distinção entre coisas vivas e coisas inanimadas, mas a dúvida sobre produtos vivos poderem estar compreendidos no conceito de invenções feitas pelo homem (CASTELFRANCHI, 2004), ou mesmo de descobertas feitas pelo homem e se podem ser passíveis de comercialização, e até onde cabe ao poder político decidir por si questões de tão alta relevância.

E mais: instituindo uma norma é preciso que sua obediência seja fiscalizada. Quando se trata de sistemas concessores de patentes, contudo, não está evidenciada a real fiscalização acerca do cumprimento da legislação.

Nessa análise "[além] de refletir sobre as tecnologias, portanto, é necessário avaliar o contexto em que elas se desenvolvem, os poderes por elas controlados e as finalidades pelas quais vêm sendo utilizadas" (BERLINGUER, 2000, p. 104), e isso leva a sociedade à necessidade de lutar contra a ordem política que ela própria instituiu.

Os interesses econômicos e políticos precisam passar por uma exauriente reflexão até o momento de conceber e manter uma legislação amplamente permissiva, pois se corre o risco de legar uma verdadeira caixa de pandora para as gerações futuras: guardiã de desgraças incontroláveis (DINIZ, 2007, p. 434).

A permissão do patenteamento de uma sequência de DNA humano cria uma celeuma interminável quando se trata de pesquisa tecnológica e efetiva busca de melhorias para o ser humano. Isso quer dizer que, a preocupação social em relação aos privilégios concedidos por uma patente liga-se não só à concreta aferição de lucro dentro do prazo de sua vigência, mas a necessidade de se permitir que outros pesquisadores trabalhem na busca de novos melhoramentos para o ser humano, o que é inviabilizado quando existe uma proteção patentária.

Disso, pergunta-se: "O que acontece com a liberdade da pesquisa científica quando metade de todos os genes de câncer [,por exemplo,] está patenteada? Isso significa que os pesquisadores precisam passar mais tempo lutando nos tribunais do que procurando por uma cura?" (STIX, 2006).

Relativamente a problemas como esse, "[...] um estudo organizado por Mildred Cho, diretora associada do Centro para Ética Biomédica da Universidade de Stanford, descobriu que metade dos diretores de laboratórios de testes genéticos optaram por não desenvolver um teste novo devido a preocupações sobre licenças" (DRUTMAN, 2006).

Ou seja, a saúde perde, novas e melhores condições de vida deixam de ser estabelecidas, doenças matam mais pessoas, tudo por conta do monopólio de patentes que impedem a pesquisa coletiva de melhoramentos sobre um mesmo bem, que nesse caso é a sequência de DNA humano.

Fica claro, também, que:

Os médicos dependerão cada vez mais dos testes patenteados que relacionam o perfil genético dos pacientes às melhores drogas. Potencialmente, muitas das proteínas e outras moléculas utilizadas nesses estudos complexos poderiam ser prejudicadas por cláusulas de licenciamento, que impediriam sua fácil comercialização ou aumentariam os já robustos preços dos planos de saúde (STIX, 2006).

Ou seja, com uma patente sobre um gene isolado e a substância que ele produz, o proprietário dessa patente tem direitos exclusivos para negociar a substância, pelo simples fato de ela haver sido produzida fora do ser vivo, através do gene isolado. De forma análoga, um químico poderia purificar a vitamina B e requerer uma patente (STIX, 2006). Isso impediria o acesso da população a diversos suprimentos de suas necessidades essenciais.

Numa concepção histórica, Vandana Shiva física indiana, coloca que as patentes são uma ferramenta intensamente eficaz na disseminação do subdesenvolvimento. Diz que, se antes havia uma propriedade comum sobre as terras, elas foram privatizadas; da mesma forma, hoje, há uma privatização do conhecimento da biodiversidade. Há um alargamento na proteção da vida concedida pelas patentes, e estas servem não apenas para regulamentar a tecnologia, mas também a vida, a economia, todas as necessidades básicas do ser humano (INTERVIEW..., 2004).

Isso significa que, se antes os genes eram considerados patrimônio comum, inerentes a cada ser humano, hoje passam a ter um caráter de propriedade privada. E isso significa direito exclusivo de fazer, produzir, distribuir ou vender o produto patenteado. É a criação e manutenção de um monopólio.

Barrar esse monopólio é uma questão de ordem social, em relação a qual o governo deve intervir na economia, na mercantilização da vida, e para isso, conta-se com a ajuda dos julgadores, que mesmo sendo impelidos a decidir segundo interesses escusos, podem impor seus pontos de vista.

Ainda assim, mesmo tratando-se de questão social tão relevante, parece reinar uma indefinição em relação ao problema: vezes o poder dominante se mostra propenso à negociação social, vezes cinge-se aos interesses político-econômicos vigentes na sociedade monopolista.

Nessa conjuntura, à época da finalização do Projeto Genoma Humano, conforme demonstrado por uma parcela da comunidade científica, o então presidente norte-americano Bill Clinton, e o primeiro-ministro britânico Tony Blair, apontaram que dados fundamentais brutos referentes ao genoma humano, bem como suas sequências e variações deveriam ser colocados à disposição de tantos cientistas quantos tivessem interesse na pesquisa (SULSTON, 2000, p. 16).

Referidas autoridades justificaram sua posição assentando que o genoma humano deveria ser considerado um patrimônio da humanidade, um bem comum (LEGISLADORES..., 2000), mas os peregrinos da corrente defensora das patentes deixaram claro que isso não significaria proibi-las, e as autoridades nada fizeram para fortalecer seu discurso de abertura na prática.

No Brasil, a instituição do grupo de trabalho do INPI (Decreto n. 6.041/2007), com intuito de analisar a legislação brasileira acerca da biotecnologia, à luz das normas internacionais e em comparação com sistemas internos de outras nações, com fulcro na certeza de que a biotecnologia e seus avanços têm o condão de impactar diretamente na qualidade de vida da população, gerar novas oportunidades econômicas e sociais (INPI, 2007), num resgate àquela posição de defesa à proteção biotecnológica compartilhada pelo ex-presidente do INPI, José Roberto de Gusmão, não gerou, ainda, efeitos em relação a mudanças legislativas.

A manutenção da expressão restritiva da lei brasileira deixa claro que o patenteamento em larga escala cria um ciclo vicioso. "[...] ou seja, para quem descobriu o gene e sua função no organismo, para quem desenvolveu técnicas de diagnóstico ou tratamento, para quem desenvolveu o medicamento e assim por diante" (GASPARETTO, 2000), a todos esses seriam concedidas patentes, e a todos caberiam custos por licenças de uso e exploração ou pagamento de royalties.

Somando-se a isso, tem-se que o controle político influenciado pela economia, é exercido com intuito de garantir a poucos não só o lucro direto, mas também o indireto, como na questão da transferência das biotecnologias protegidas por patentes, dificultando, sobremodo o avanço do conhecimento em países em desenvolvimento (ALBAGLI, 1998, p. 91). Isso significa que, mesmo com a remota possibilidade de se trabalhar sobre objetos patenteados, é bastante difícil para um país em desenvolvimento arcar com todos os custos gerados, e isso deságua, também, em retardamento das pesquisas.

A par dessa situação, em relação ao que se tem permitido patentear em alguns países, e que muitos setores forçam o governo brasileiro a permitir, é oportuno destacar as razões de Jonh Sulston do Centro Sanger do Campus do Genoma Humano do Wellcome Trust, Cambrigde, Inglaterra, que diz, entre outras coisas, que o mais importante é reconhecer que uma sequência de DNA humano é parte intrínseca de cada ser humano, uma herança comum que deve ser compartilhada (SULSTON, 2000, p. 16).

Essa herança, quando bem estudada, trará benefícios a toda a espécie humana, é a matéria-prima para o estudo de melhoramentos para o ser humano. Mas, frise-se, é uma matéria-prima, e encontra-se disponível no corpo humano vivo: não é uma invenção, ou mesmo uma descoberta, que mereça ser patenteável. A partilha da informação é que permite o avanço científico, e os interesses privados não podem se sobrepor a interesses sociais em relação a um patrimônio que pertence ao ser humano.

Apenas a título ilustrativo, ainda comenta Jonh Sulston, que é interessante estabelecer que não existem patentes para letras do alfabeto usado para escrever livros ou notas musicais utilizadas para compor canções. E assim, conclui que patentear sequências de DNA humano é equivalente a patentear letras ou notas musicais. Deve-se conceder proteção a medicamentos e testes produzidos a partir do estudo de determinada sequência do alfabeto humano, mas não as letras desse alfabeto.

As patentes são necessárias, sem dúvida. Elas representam um reconhecimento e uma garantia oficial àqueles que se dedicam à pesquisa e ao desenvolvimento, mas não podem servir como um presente do governo dado aos indicados pela ordem econômica como merecedores de privilégios.

Os poderes dominantes devem ter um compromisso para com a sociedade, esclarecendo seus atos, justificando suas posições e fundamentando, tanto na teoria quanto na prática, as razões para concessão de patentes biotecnológicas, não permitindo que suas decisões sejam pautadas em ambições econômicas e políticas impostas. Só assim ter-se-á uma ordem jurídica pautada em seriedade e comprometimento.

Evidente que em tão breves linhas não se pretendeu esgotar os conflitos políticos, econômicos ou jurídicos gerados pelo tema proposto, nem mesmo ter definida a aplicação da ética ou a posição da sociedade e da comunidade científica. Buscou-se apenas colacionar opiniões, razões e situações para a verificação da viabilidade e oportunidade ou não dessa proteção jurídica.


6 Considerações finais

Através do desenvolvimento deste estudo, pode-se confirmar que, mesmo áreas tão aparentemente independentes, como é o caso da ciência biotecnológica, possuem grande influência sobre a população comum, preocupando-a desde o que diz respeito a simples informação, passando pelos avanços em saúde, até a própria manutenção da vida humana e regulamentação jurídica.

Com a finalidade de encontrar resposta à problemática exposta, a pesquisa de investigação bibliográfica desenvolvida aliada ao método de estruturação indutivo, levou as seguintes conclusões:

a)Apesar de, atualmente, a ética mostrar-se presentes nas relações humanas e empresariais em geral, ainda é imenso o espectro de atividades desprovido de padrões éticos em seu desenvolvimento, como se nota, por exemplo, em relação às grandes empresas do setor biotecnológico, que visam, acima inclusive do conhecimento obtido, o lucro, independentemente das consequências de seus atos;

b)Na prática, inexsite uma preocupação legítima do setor científico em partilhar com a sociedade, em termos e condições inteligíveis aos leigos, as descobertas e avanços científicos; e

c)No que se refere à política e a economia, constata-se um ciclo vicioso de troca de favores, onde, infelizmente, ainda tem pouca força a parcela que busca aprimorar a norma jurídica, em consonância aos anseios sociais.

Considerando-se que, por derradeiro, que: a) uma patente é um privilégio; b) as descobertas científicas, sobremodo na área da saúde, devem ser um conhecimento compartilhado e, c) o corpo humano, em sentido literal, não pode ser objeto de privatização, e tendo-se delimitado, portanto, a influência de tais questões na criação e manutenção do sistema jurídico, especificamente o patentário, a conclusão deste estudo é pela inviabilidade e inoportunabilidade de um sistema jurídico patentário amplamente concessivo às sequências de DNA humano, posto que não se mostram consonantes aos anseios sociais.

Inclina-se, portanto, para a necessidade sim, de proteção às pesquisas biotecnológicas e seus resultados, sobretudo no que tange ao estudo do DNA, mas é necessário que se trabalhe na estruturação de um sistema alternativo ao patentário, que seja coerente ao objeto da proteção, suas características e também em relação às necessidades sociais.

Também fruto da pesquisa realizada, algumas questões que não eram seu objeto surgiram no decorrer de seu desenvolvimento, como a preocupação com a proteção à biodiversidade e à biossegurança, apresentando-se como um tema bastante interessante para estudos futuros, quiçá com discussões ligadas à promoção do bem-estar social e da qualidade de vida da população no que diz respeito às consequências das pesquisas científicas.

Muito embora também não fosse seu foco de trabalho, fica, ainda, como sugestão para pesquisas futuras um estudo acerca da duração ótima de uma patente, tanto no que se refere às invenções em geral, quanto especificamente às invenções decorrentes da biotecnologia, levando em conta o tempo de maturação das idéias nesse ramo e o efetivo lucro obtido através do privilégio patentário durante sua vigência.

Quanto às perspectivas de estudo do objeto próprio deste trabalho, percebe-se a eminente necessidade de se trabalhar a questão da bioética em relação aos setores dominantes do desenvolvimento político-social, tecnológico-científico e econômico, posto que, apenas quando a parcela dominadora tomar consciência é que a parcela dominantes poderá perceber os frutos da mudança de mentalidade, seja em relação à difusão dos conhecimentos e benefícios advindos das pesquisas, seja, antes, durante e depois de tais pesquisas, em relação à sistemática jurídica protetora das atividades científicas e seus resultados/produtos.

Realizado tal trabalho, quando estiver assentada uma ética validamente aplicável para tais situações, conclui-se, por fim, que se terá suporte e aptidão para se trabalhar na estruturação do dito sistema alternativo e coerente de proteção ao trabalho e resultados do setor biotecnológico.


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CARLS, Suelen. Reflexos da patenteabilidade das sequências de DNA humano. Uma avaliação multissetorial. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 16, n. 2799, 1 mar. 2011. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/18594. Acesso em: 29 mar. 2024.