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História do Direito na Baixa Idade Média

História do Direito na Baixa Idade Média

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1 – Considerações iniciais

A Idade Média é um período riquíssimo da história, e nela ocorreram importantes transformações na sociedade, nas instituições, no modo de o homem olhar para si e para o mundo e, consequentemente, o direito perpassou todos esses momentos, absorvendo as mudanças e criando a forma de regulação social. Apenas para citar os eventos mais recordados, é nela que ocorreram as invasões bárbaras, a formação do Império de Carlos Magno, a formação de uma Igreja Católica organizada e centralizada politicamente, a Inquisição, a Guerra dos Cem Anos entre França e Inglaterra, a formação das primeiras universidades, o renascimento do comércio e o surgimento da burguesia.

Especialmente, a Idade Média representou o auge e o declínio da sociedade feudal, na qual o poder político era muito fragmentado, o que possibilitou a convivência de vários direitos, especialmente representados pelos costumes.

O presente artigo aborda o direito privado no contexto do período denominado de "Baixa Idade Média", período histórico que vai do século X ao século XV, sempre na perspectiva de contemplar os aspectos sociais, econômicos, culturais e políticos do período, para então indicar o funcionamento das instituições jurídicas e do direito propriamente.


2 – Baixa Idade Média: principais eventos

A Idade Média é o período de história europeu que compreende os séculos V a XV. Para facilitar o estudo, os historiadores dividiram este período de 1000 (mil) anos em Alta Idade Média (século V a X) e Baixa Idade Média (século X a XV). O primeiro período se iniciou com o fim do império romano e com as chamadas invasões bárbaras, na verdade invasão e expansão territorial de diversos povos germânicos. Essas invasões deram origem à formação de vários reinos.

No período da Baixa Idade Media ocorreu o desaparecimento das cidades, em certa medida motivada pela parca agropecuária, que se limitava a garantir o sustento dos senhores de terras. Em verdade, não havia mercado, tal como conhecemos hoje, porque a produção agrária era de subsistência e havia circulação mínima de moeda (dinheiro). Os produtos não eram vendidos, apenas trocados por outros, caracterizada a economia baseada no escambo de mercadorias [01].

Vale registro também que no período da Alta Idade Média o trabalho passou a ser desenvolvido sob o regime de servidão, em contraposição ao regime escravocrata anterior. O servo é figura bem diferente do escravo e passou a ter algumas prerrogativas, como se casar, instituir família e deixar aos herdeiros os seus bens materiais, não obstante ser dependente e subordinado ao seu senhor de terras. Essa "liberdade" ao servo promoveu incentivos ao aumento da produção, já que, trabalhando mais, teriam melhores condições de vida.

A Alta Idade Média se encerra concomitantemente ao fim do Império Carolíngio [02], no século X, o que foi seguido de algumas invasões na Europa, pelos povos normandos, muçulmanos e magiares (húngaros). No final do século X tem início o período chamado de Baixa Idade Média. Segundo observação de PAIS (1992), nesse período a sociedade era essencialmente feudal, quando uma grande quantidade de senhores passou a exercer em suas propriedades as funções de governo características do Estado, como criação de leis, monopólio dos julgamentos, cobrança de impostos, instituição de exércitos, proteção militar.

O desenvolvimento da sociedade feudal ocorreu em virtude da ausência de um governo central (estatal) e toda a Europa estava marcada pelas grandes propriedades de terra, chamadas feudos, onde vigorava a vontade e o poder do seu proprietário, o senhor feudal. Para PAIS (1992), na sociedade feudal o indivíduo possuía certa liberdade, apesar de ser subordinado e dependente de um senhor feudal, já que poderia ser membro de uma comunidade, uma corporação, aldeia ou vila. Nesse espaço social o indivíduo conseguia obter a sua identidade e desenvolver a sua personalidade, como o uso de uma língua, a observância de costumes, o respeito a leis, enfim, a identificação enquanto membro de um corpo social.

Para BATISTA NETO (1989), o feudalismo chamado clássico é aquele compreendido entre 1050 a 1250, fazendo-se presente inicialmente nas atuais áreas territoriais do que hoje é a Itália, França e Alemanha, se difundindo posteriormente para a Inglaterra, Espanha e Terra Santa (com as Cruzadas). E assinala que a relação entre o vassalo (termo usual para o servo) e o senhor feudal compreendia não apenas a criadagem e a produção agropecuária, mas também a formação de exércitos.

A relação feudal se estabelecia verbalmente, mas há registros da realização de contratos vassálicos, que geravam direitos e deveres para ambas as partes envolvidas. O senhor feudal, chamado também de susserano não podia atentar contra a vida, honra ou bens do vassalo, além de ser responsável pela sua proteção. Em troca destes direitos e desta proteção, o vassalo trabalhava para o susserano em sua propriedade, na produção de bens ou como integrante do exército.

A economia feudal é basicamente rural, tendo se desenvolvido lentamente, com a ampliação das culturas e a utilização de instrumentos facilitadores do plantio, quando o homem começa a se utilizar de utensílios e ferramentas agrárias, como o arado e demais ferramentas.

A Baixa Idade Média também representou um importante marco da afirmação da Igreja Católica. É no início do século XI que esta começa a organizar a Teologia e o Direito Canônico. A Igreja passa a tomar para si o desenvolvimento de diversas áreas, estando presente em vários setores da sociedade:

"O mundo das idéias tornou-se quase um monopólio eclesiástico. Os clérigos ocupavam-se do pensamento científico e político, das novas técnicas agrícolas (nas propriedades da Igreja), do governo papal, cujos métodos administrativos serviram de modelo para outras cortes européias, e até quanto à tática e estratégia militares". (BATISTA NETO, Jonatas. História da Baixa Idade Média: 1066 a 1453. São Paulo: Editora Ática, 1989, p. 45).

A partir do ano 1000 as igrejas começam a ser instituídas pelos senhores feudais, que promovem e financiam a construção dos templos e a coleta de dízimos, percebendo-se a grande influência laica na ordenação da Igreja, principalmente de príncipes, duques e senhores feudais.

É dessa época o surgimento de diversas ordens eclesiásticas, como os beneditinos. A construção hierárquica da Igreja (destaque especial para os bispos) submetida a um poder central papal também foi organizada nessa época. Um dado curioso do período diz respeito a duas práticas maléficas da Igreja: o nicolaismo e a simonia. O Direito Canônico proibia o casamento de padres, norma que era muito negligenciada, principalmente pelos padres do baixo clero. Há relatos de que os padres possuíam esposas ou companheiras, o que os levava a faltar com as obrigações eclesiásticas.

O casamento ou concubinato tinha também um viés patrimonial prejudicial à Igreja, porque os padres tentavam favorecer os filhos nas questões hereditárias e sucessórias, fazendo manobras para deixar a eles a herança (bens e terras). A simonia, por sua vez, consistia na compra e venda dos cargos mais cobiçados, de forma que a própria nobreza tentava obter, pela compra, alguns cargos importantes da hierarquia da igreja (BATISTA NETO, 1989).

No ano de 1073 tem início o papado de Gregório VII. No seu pontificado ocorre grande choque entre Igreja e senhores/nobreza. Ele pretendia reforçar que o Papa era superior a todos os senhores e príncipes de terra e que poderia remover os soberanos indesejáveis. Em 1075 proclamou o Ditados do Papa [03], conjunto de máximas que indicam a concepção teocrática e absoluta da figura papal, na intenção de tornar tal figura verdadeiro governante das pessoas.

Este Papa também condenou a investidura de leigos no pessoal da Igreja, indicando procedimentos para escolhas de bispos e cardeais, seguindo-se e valorizando-se o Direito Canônico. A atitude do Papa Gregório VII provocou violentas reações dos príncipes e senhores, sendo a mais conhecida a de Henrique IV, imperador alemão da época, todos temerosos de perder o poder então conquistado.

O apogeu da Igreja Católica Medieval aconteceu no pontificado de Inocêncio III, de 1198 a 1216. É o período em que os clérigos mais se aproximaram do ideal de teocracia e de uma sociedade governada pela ordem eclesiástica. O papa se via e foi visto como governante supremo, cujo poder ofuscava o dos reis. A idéia era que o poder espiritual (do papa) era superior ao poder temporal (dos reis). Além disso, havia o argumento de que Constantino havia doado o ocidente ao Papa (Constantino teria se retirado para o Oriente, entregando o Ocidente ao Papa). Assim, os imperadores, reis e príncipes detinham apenas parcela do poder, devendo exercê-los nas questões leigas e feudais e segundo a orientação da Igreja.

Até o século XII, ao lidar com a dissidência religiosa, as autoridades eclesiásticas se limitavam às penas espirituais, como a excomunhão. Em geral, os padres eram contra os castigos físicos. A inquisição foi inicialmente confiada aos bispos e posteriormente aos delegados da Santa Sé. O procedimento inquisitório, em resumo, era o seguinte: nomeava-se um inquisidor para determinada região, que fazia uma pregação geral e publicava dois editos: um de exigindo dos fiéis a denúncia dos heréticos sob pena de excomunhão e outro de graça, dando aos heréticos um prazo para retratação.

Esgotado esse prazo assinalado nos editos, os heréticos identificados e capturados caíam nas mãos da inquisição. Sempre se buscava a confissão, prova irrefutável da prática contrária aos cânones católicos e morais da época, sendo corriqueira a tortura como meio de se obter a confissão.

Não se pode deixar de mencionar que a Baixa Idade Média enfrentou longos períodos de fome, que foram resultado do aumento populacional e da diminuição de áreas cultiváveis, especialmente pela limitação da técnica agropecuária. A Europa também enfrentou a peste negra, epidemia proveniente da Ásia que ceifou 1/3 da população. A peste tem origem num bacilo descoberto em 1894, e se desenvolveu em três aspectos: a bulbônica, a septicêmica e a pulmonar.

No século XIV, a partir de 1348, a peste negra se torna endêmica, vindo a desaparecer por completo somente no século XVIII. A grande epidemia ocorreu no século XIV, trazida da China pelos viajantes e comerciantes. Somado à peste, tem-se que o homem não estava preparado para enfrentar uma moléstia mortal, principalmente pelas péssimas condições higiênicas e pela limitação dos conhecimentos científicos. Corriqueiramente, a peste era explicada como um castigo de Deus. Também se acredita que as pestes decorriam de envenenamento praticado pelos judeus e mulçumanos, o que culminou nas perseguições e massacres étnicos (BATISTA NETO, 1989).

A peste trouxe várias conseqüências. Um dos primeiros efeitos foi transferir, naturalmente, para os sobreviventes muitos dos bens móveis e imóveis dos falecidos. Ocorreu também grande transferência territorial da população, que fugia da peste. E acredita-se que a peste destruiu a aura de protetores que os Senhores e a Igreja tinham até então. Ou seja, nenhum deles foi capaz de evitar as inúmeras mortes e o sofrimento da população.

É impossível neste trabalho aprofundar e esgotar todos os acontecimentos do período em estudo, conforme já dito, riquíssimo em acontecimentos, mas é importante lembrar que foi na Baixa Idade Média que se desenvolveu a Guerra dos Cem Anos, envolvendo os Reinos da França e da Inglaterra. Afirma-se que a motivação do conflito foi territorial, tendo em vista que havia extensões de terra que ora pertenciam à França e ora à Inglaterra. Também ocorria alternância de poder entre monarcas franceses e ingleses na condução dos dois reinos (BATISTA NETO, 1989).

Parece ser possível afirmar que esta Guerra trouxe fortalecimento burocrático e bélico aos países envolvidos, o que pode justificar serem eles os primeiros a disseminar a idéia embrionária dos Estados Nacionais. É nesta guerra que estaria à origem do nacionalismo francês, país mais atingido pela guerra, que ocorreu inteiramente em seu território.

Na Baixa Idade Média, teve grande repercussão a arte românica e a arte gótica. Com a afirmação da sociedade feudal, houve grande movimento de construção no Ocidente e o românico difundiu-se da França para toda a Europa. Havia grande apelo às imagens que tinham a função de evangelizar. A arte gótica nasce por volta do ano 1140. Pode-se citar também o desenvolvimento literário através de nomes como François Villon, Dante Aliguieri e Boccacio.

Até o século XI o ensino fora ministrado nas abadias ou à sombra das catedrais. Por volta do ano 1100 tem início a decadência das escolas monásticas. Afirma-se que num certo momento um grupo de professores e estudantes de Paris, cansados das intervenções episcopais, resolveram transferir-se para o outro lado do rio Sena, o que teria sido a origem do Quartier Latin e da Universidade de Paris (BATISTA NETO, 1989). Essas associações começaram a receber o nome de Universidades, sendo as mais antigas as de Bolonha, Oxford, Toulouse e Cambridge. As universidades eram divididas em quatro grandes artes: medicina, direito, artes e teologia.

As universidades floresceram numa sociedade que conhecia a obra de alguns filósofos gregos, traduzidas do árabe para o latim. A obra de Aristóteles, por exemplo, promoveu verdadeira renovação da filosofia medieval. Tomás de Aquino foi um dos principais estudiosos da obra de Aristóteles.

No campo econômico, nos séculos XI e XII, paralelamente ao crescimento demográfico decorrente do desenvolvimento agrícola, aceleram-se as atividades comerciais e renasceram as cidades, o que foi acompanhado da idéia de uma economia baseada em moedas (economia monetária), terreno propício para o nascimento de uma nova classe, a burguesia, sucessora dos primitivos mercadores, artesãos e negociantes.

Atribui-se às cidades italianas de Veneza, Gênova e Pisa a grande contribuição para a expansão comercial, pela sua localização geográfica privilegiada (próximo ao oriente, à costa da África e banhados pelo Mediterrâneo), já que nessas cidades a classe burguesa se dedicava à negociação de produtos e a aniquilar a pirataria mulçumana. O norte da Europa também assiste ao renascimento do comércio, especialmente após as expedições vikings, cujo centro principal era Flandres, na área atual da Inglaterra [04].

Conforme dito, para subsidiar o comércio se inicia a circulação de moedas, direito real que posteriormente passa a ser utilizada por particulares. A moeda medieval mais forte e famosa foi o florim (de Florença). A Igreja assistia ao desenvolvimento do comércio com desconfiança, e se opunha à ambição da riqueza desmedida. Ela combatia também a usura (empréstimo com juros), prática desenvolvida pelos judeus [05].

No interior das cidades mais prósperas começam a surgir as Comunas. A Comuna era uma organização de um governo municipal. As pessoas escolhiam os seus governantes (cônsules, na Itália)cuja função era de natureza executiva e legislativa. Além disso, asseguravam a defesa do local através da organização de milícias urbanas. As Comunas nascem da tendência associativa do espírito medieval, o que também gerou o nascimento das guildas e das corporações de ofício, que visavam principalmente a enfrentar os abusos de natureza econômica praticados pela aristocracia leiga e eclesiástica (especialmente cobrança de pedágios e taxas dos comerciantes).

As guildas (Artes na Itália) eram uma típica forma de organização burguesa medieval. Eram associações de comerciantes e artesãos que tinha finalidade de proteger os interesses de seus membros, garantindo o monopólio da produção de determinado produto. As cidades não eram democráticas: repúblicas oligárquicas burguesas cujos cargos decisivos eram monopolizados pelas camadas mais ricas da população.

Na Baixa Idade Média os cristãos europeus passam de invadidos a invasores de outras terras, principalmente a retomada e conquista de territórios mulçumanos e eslavos. A militarização e a política patrimonial das famílias (que reservavam apenas ao primogênito a possibilidade de herdar) contribuíram para esse movimento de expansão da Europa, e a Igreja também estimulou bastante esse movimento.

Existiram movimentos de ampliação territorial, como é o caso da expansão germânica. Vale relembrar, contudo, a "Reconquista", ocorrido na península ibérica, conflito com os mulçumanos que durou até 1492. Esses conflitos deram origem a cinco reinos (Leão, Castela, Navarra, Aragão e Portugal), e a dois países modernos, Espanha e Portugal. Outro movimento de expansão foram as Cruzadas, que efetivamente não significaram grande importância em termos de expansão territorial.

As Cruzadas tinham motivação religiosa, e contavam com a aprovação do pensamento filosófico, por exemplo, de Santo Agostinho, que cunhou a figura da guerra justa, guerra legítima que se justificava se tivesse caráter defensivo e também aquela movida contra os heréticos. Essa era a guerra santa, base teórica da expansão militar dos cruzados.

Além disso, a Igreja pregava a idéia de que era necessária a retomada de Jerusalém, principalmente nas camadas pobres da sociedade, o que culminou no alistamento de muitas pessoas por este ideal. Os cristãos chegam a Jerusalém em 1099, criando o Reino Latino de Jerusalém. Em 1291 os cristãos perderam os últimos territórios que detinham na Terra Santa.

A Idade Média tem seu fim no século XV. Isso se deve em boa parte à tendência de centralização do poder e na formação de Estados Nacionais, o que ocorreu num processo lento. A Inglaterra, no reinado de Henrique II (1154 a 1189), da dinastia plantageneta, foi a primeira monarquia centralizada a se constituir. No século XIII o poder real foi limitado pela Magna Carta e pelo Parlamento, composto por membros da aristocracia e alto clero. Nos séculos XIV e XV o país se tornou um Estado, forte e unificado, obtendo inclusive várias vitórias sobre a França na guerra dos cem anos.

A monarquia francesa foi formada inicialmente pela dinastia dos capetos, no início do século XII, dominando a região ao entorno de Paris. Somente no reinado de Filipe Augusto (1180 a 1223) ocorreu ampliação do território. Também na França ocorreu a organização de um parlamento, ampliando a participação da aristocracia, do clero e da burguesia. Na primeira metade do século XIV a França já contava com o que é seu atual território.

Na península ibérica a situação era mais complicada devido à grande divisão de reinos e à presença mulçumana. Portugal foi o primeiro reino a obter unificação (em 1140), o que ocorreu posteriormente com a Espanha.

Indicado resumidamente o contexto social e econômico da Baixa Idade Média, passa-se ao contexto de desenvolvimento do Direito neste período da história.


3 - O Direito Medieval: direito canônico, romano, os costumes e o common law

A Baixa Idade Média conheceu a manifestação de três grandes fenômenos jurídicos: o direito canônico, romano e feudal. O presente estudo se inicia com o pensado e concebido pela Igreja Católica, o Direito Canônico. Trata-se do direito da comunidade religiosa. A religião católica se impôs como religião verdadeira e universal entre os séculos VIII e XV, o que facilitou a criação de um direito exclusivo, para uma igreja exclusiva. A unidade e a uniformidade do Direito Canônico foram proclamadas pelo papa Gregório VII.

Certos domínios do direito privado foram regidos apenas pelo Direito Canônico durante vários séculos, em que todos os litígios eram resolvidos pelos tribunais eclesiásticos. Por exemplo, demandas envolvendo casamento ou divórcio eram resolvidas unicamente pelo Direito Canônico. Conforme observa WIEACKER (1980), a ausência de uma legislação estatal e a autoridade da igreja foram decisivos para a grande influência do Direito Canônico.

Durante grande período da Idade Média, o Direito Canônico foi o único direito escrito. Enquanto que o direito laico permaneceu essencialmente consuetudinário durante toda a Idade Média e as primeiras redações de costumes remontam ao século XIII, o Direito Canônico passou a ser redigido, comentado e analisado a partir do período da Alta Idade Média [06].

No século XII o Direito Canônico começa a ser sistematizado, no formato de códigos. Não se pode dizer que a Igreja estava criando o direito, mas antes de tudo, ela desenvolvia um trabalho de recolhimento, certificação e elaboração intelectual de uma tradição que remonta a uma igreja jurisdicizada. Com efeito, o Direito Canônico durante longo período apresentava regulamentação para as relações pessoais de direito de família, situações eclesiásticas, testamentos e questões imobiliárias e sobre bens móveis (WIEACKER, 1980).

O Direito Canônico é um direito religioso, como ocorre com o direito hebraico, hindu e mulçumano. Ele retira suas regras dos preceitos divinos revelados nos livros sagrados (Antigo e Novo Testamento). Mas ao contrário destes outros dois direitos, reconhece a existência de um direito laico, daí a distinção entre ius canonici e ius civile. A Igreja não se identificou com qualquer Estado, porque pretendia se ocupar apenas das almas. O Direito Canônico é ainda bem vivo, e continua a reger as relações entre membros da comunidade cristã, em que a hierarquia e organização do clero ainda são regidas pelo Direito Canônico.

Temos também o direito consuetudinário, muito presente em toda a Europa. Inicialmente foi verificado nas etnias germânicas, com uma variedade de costumes, vivendo cada povo com o seu direito tradicional. CAENEGEM (2000) elucida que o costume foi a fonte mais importante do antigo direito europeu, inicialmente fragmentado e depois unificado e concentrado via tribunais reais centrais.

O mesmo autor informa que se assistiu no período uma tendência de ser catalogar, por escrito, os costumes, o que para ele significa uma contradição com as características principais do costume, que são justamente a flexibilidade e a fluidez (CAENEGEM, 2000).

Os costumes foram de grande importância na fase de renascimento das cidades e do comércio, quando segundo a doutrina, está o nascimento do Direito Comercial, basicamente consuetudinário, pelo seu alto grau de dinamismo [07].

Dentro dos costumes, como fonte jurídica da época, se situa o Direito Feudal. Este também foi de grande verificação na Baixa Idade Média. Teve seu apogeu nos século X a XII, principalmente na Alemanha e França e em menor grau na Inglaterra, Itália e Espanha cristã. É caracterizado por um conjunto de instituições das quais as principais são a vassalagem e o feudo. A vassalagem (elemento pessoal) tem como partes o vassalo, homem livre e comprometido para com o seu senhor por um contrato solene pelo qual se submete ao seu poder e se obriga a ser-lhe fiel e dar-lhe ajuda; e o senhor, titular da propriedade imobiliária (feudo, elemento real), que deve proteção e manutenção da vida do vassalo.

No plano econômico, o pequeno senhorio formava frequentemente um domínio agrícola, basicamente de subsistência, de economia fechada. Nesta fase perdura o direito não escrito, baseado nos costumes. As relações entre vassalos e senhores (susseranos) geralmente eram de natureza consuetudinária, mas havia a formação de um contrato (às vezes escrito), em que se colocavam os deveres e obrigações dos envolvidos.

A Baixa Idade Média também assiste ao renascimento do Direito Romano, devido em grande parte ao desenvolvimento da ciência do direito realizado pelas universidades a partir do século XII. O ensino do Direito nas universidades é baseado no direito romano, especialmente a codificação da época de Justiniano, o Corpus Iuris Civile. CAENEGEM (2000) afirma que por volta do ano 1100 o Corpus Iuris foi redescoberto, quando os estudiosos glosaram e comentaram as antigas compilações, dando nascimento a um direito que ele chama de neo-romano.

Dessa forma se situaram os dois grandes pilares do chamado direito erudito europeu medieval, formado pelo Direito Romano (civil) e pelo Direito Canônico. O Direito Romano se ampliou graças aos estudos de três grande escolas, os glossadores, os comentadores e os humanistas, cada uma delas com sua contribuição nesses estudos.

Os glossadores trabalhavam com pequenos comentários às margens do texto do Corpus, as chamadas glosas. Pouco a pouco as glosas assumiram o formato de comentários, passando a fazer parte, dependendo da versão, do corpo textual do Corpus iuris. CAENEGEM (2000) ainda traz a notícia de que alguns glossadores escreveram tratados, em que discutiam o direito do Corpus. A escola dos comentadores foi responsável, em certa medida, pela continuação do trabalho dos glossadores, na medida em que promoveram importantes comentários sobre o Corpus, elaborando também pareceres sobre situações as quais tinham sido consultados. Eles adotavam a idéia de argumentação e debate, e extraiam a interpretação do Corpus a partir dos casos concretos (CAENEGEM, 2000).

Por fim, vale apenas o registro de que a escola dos humanistas exerceu grande influência a partir do Renascimento, contexto histórico que está fora do quadro da Baixa Idade Média.

A chamada romanização do direito foi mais acentuada na Itália, nos países ibéricos, na Alemanha e nas regiões belgo-holandesas [08]. Nasce a concepção de que o direito deve ser justo e razoável e que a regra de direito deve ser conforme a concepção que os homens fazem, pela sua razão, da justiça. É o direito como dever ser.

Surge também o modo de raciocínio jurídico que tende a resolver os casos particulares e os litígios a partir de regras gerais, fixadas pelo legislador ou reconhecidas pela doutrina, resultando na preponderância da lei como fonte do direito.

Passa-se do irracional ou racional, com a idéia de um direito justo aplicável a todos e assiste-se à preponderância da lei, sobretudo como extensão do poder dos reis e dos grandes senhores. A noção de soberania que se desenvolve nos séculos XIII e XIV reconhece-lhes o poder de impor regras de direitos aos seus súditos.

A racionalização do direito se verifica pelo desenvolvimento, por exemplo, dos métodos de prova. Em lugar de provas irracionais, como a intervenção de Deus ou outros elementos místicos (ordálias, julgamentos, juramentos), se tem a procura da verdade através de métodos com o inquérito, o testemunho, os atos reduzidos a escrito.

O reforço do poder de certos reis faz desaparecer a anarquia do sistema feudal, baseado na força e violência. Os que exercem o poder tendem a manter a ordem e a paz pelo desenvolvimento da sua polícia e justiça. Nesse quadro se formam os embriões dos Estados Modernos, nas mãos de um rei ou grande senhor que consegue impor a sua autoridade. A partir do século XIII a lei tende a suplantar o costume, então fonte quase que exclusiva do direito. Para CAENEGEM (2000), na Baixa Idade Média a legislação já era uma fonte amadurecida do direito, acompanhando a ciência jurídica e a jurisprudência, não obstante as grandes codificações terem seu início no século XVIII.

Na Baixa Idade Média temos também o nascimento do sistema jurídico do common law. A expressão common law é utilizada desde o século XIII para designar o direito comum da Inglaterra, em oposição aos costumes locais e próprios de cada região. É um direito jurisprudencial elaborados por juízes reais e mantido graças à autoridade reconhecida aos precedentes judiciários. O direito inglês moderno é mais histórico que o direito dos países da Europa Continental, principalmente porque não houve ruptura entre o passado e o presente (como ocorreu com a Revolução Francesa de 1789). Os juristas ingleses do século XX invocam ainda leis e decisões judiciárias dos séculos XIII e XIV.

O common law sofreu pouca influência do direito romano, sobretudo porque é um direito judiciário, resultado do processo das ações na justiça. Aqui, a legislação tem apenas função secundária. Essa afirmação, contudo, pode ser colocada em cheque, porque os reis ingleses legislaram tanto quanto os reis franceses (BATISTA NETO, 1989).

Atualmente a Inglaterra continua sendo um país sem constituição escrita e códigos. O constitutional law inglês baseia-se no costume e nos precedentes. Invoca-se ainda a Magna Carta de 1215 (que ampliava os direitos humanos e limitava os direitos dos reis).

A Baixa Idade Média, portanto, contou com importantes etapas do desenvolvimento do Direito, principalmente a origem do sistema anglo-saxão do common law, presente nos dias atuais na Inglaterra e Estados Unidos. Esse período da história também assistiu ao renascimento do direito romano e a início de predomínio do direito legislado, o que se constitui na base filosófica e política de criação dos grandes Estados Nacionais e posteriormente das codificações.


4 – Considerações finais

A Baixa Idade Média foi um período histórico muito importante para o Direito. O Direito nesse período conseguiu se consolidar como instrumento de ordenação social e se fez presente nos grandes acontecimentos do período. Merece ênfase a sistematização do Direito Canônico, inicialmente pensado para o meio eclesiástico, mas que trouxe grandes influências para o chamado direito laico. Foi um direito que se sedimentou como um direito escrito, catalogado, o que paralelamente também aconteceu com o Direito Romano, segundo alguns, redescoberto na Idade Média.

O Direito Romano se expandiu para grande parte da Europa Medieval, em especial, graças ao trabalho da escola dos glossadores e comentadores. As glosas e os comentários deram a atualização e a adequação do Direito Romano para o período da Baixa Idade Média.

O direito consuetudinário, os costumes, também tiveram importante papel no período, sofrendo também algumas formas de catalogação e compilação, de forma que os costumes eram transcritos em documentos, para que não houvesse dúvida da sua existência. Mais que isso, a Baixa Idade Média também sedimentou a cultura jurídica do common law, o direito baseado em precedentes e na jurisprudência dos tribunais.

As evoluções do direito medieval são fruto, antes de tudo, das intensas modificações sociais e econômicas do período, que assistiu a guerras, ao renascimento das cidades, ao fim do sistema feudal e a crescente hegemonia da Igreja Católica. Tudo isso foi o fermento para uma crescente tendência pelo direito escrito (romano e canônico), talvez os primeiros anseios para a segurança jurídica, para a certeza do direito e para a igualdade de tratamento aos súditos.

Na Baixa Idade Média foram preparadas as bases para a formação dos Estados Nacionais, para a formação de um direito nacional, legitimado pelo poder real e, posteriormente, para os movimentos jusracionalistas dos séculos XVII a XVIII.


5 - Bibliografia

BATISTA NETO, João. História da Baixa Idade Média (1066 a 1453). São Paulo: Editora Ática, 1989.

CAENEGEM, R. C. van. Uma introdução histórica ao direito privado. 2. ed. São Paulo: Martins Fontes, 1999.

GILISSEN, John. Introdução histórica ao direito. 3. ed. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2001.

GONÇALVES NETO, Alfredo de Assis. Direito de empresa: comentários aos artigos 966 a 1.195 do Código Civil. 2. ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2008.

PAIS, Marco Antonio de Oliveira. O despertar da Europa: a Baixa Idade Média. Coordenação Marly Rodrigues, Maria Helena Simões. São Paulo: Atual, 1992.

PIRENNE, Henri. História econômica e social da Idade Média. 6. ed. São Paulo: Mestre Jou, 1982.

WIEACKER, Franz. História do direito privado moderno. 2. ed. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1980.


Notas

  1. Marco Antonio Pais assinala que, na verdade, a atividade comercial realizada com moedas acontecia em menor grau, limitada às classes aristocratas na compra de produtos de luxo, como seda, veludo, jóias e armas (PAIS, 1992, p. 3).
  2. Os historiadores afirmam que no ano de 843, através do Tratado de Verdum, o império de Carlos Magno foi dividido entre seus netos, culminando num primeiro esboço de repartiãno foi dividido entre seus netos, culminando num primeiro esboço de repartição política da Europa moderna, porque esta divisão fez nascer os reinos embrionários da França e Alemanha. Sobre o assunto, ver BATISTA NETO, Jônatas. História da Baixa Idade Média (1066 a 1453). Editora Ática, 1989.
  3. Jonatas Batista Neto traz alguns trechos deste documento embrionário das famosas encíclicas: "I – A Igreja romana foi fundada por Deus; II – O pontífice romano é o único que pode, verdadeiramente, ser chamado de universal; VIII – Só o papa pode dispor dos símbolos imperiais; IX – O único homem a quem os príncipes devem beijar os pés é o papa; XII – Só ele pode depor os imperadores; XXII – A Igreja romana nunca errou, e conforme o texto das Escrituras, jamais errará; XXVII – O papa pode libertar os súditos dos juramentos de fidelidade feitos aos príncipes injustos". Chama atenção este último ditado, e se percebe a intenção que o Papa tinha de realmente desestruturar senhoras e príncipes que fossem contrários aos ideais da Igreja, o que se daria através da "libertação" dos servos. Sobre o assunto, ver BATISTA NETO, Jonatas. História da Baixa Idade Média: 1066 a 1453. São Paulo: Editora Ática, 1989.
  4. Os povos normandos não eram apenas invasores, tendo em vista que também conseguiram desenvolver com êxito o comércio. Veja a seguinte observação de Henri Pirenne: "Entretanto, não devemos apresentar os normandos como meros saqueadores. Senhores do mar, podiam ordenar suas agressões, como efetivamente fizeram. Seu objetivo não era nem podia ser a conquista. O único objetivo a que se propuseram foi estabelecer no continente, assim como nas ilhas britânicas, certos centros de povoamento. Mas as incursões levadas a termo em terra firme apresentam, no fundo, o caráter das grandes razzias, organizadas com um método indiscutível. Elas as iniciam de um campo fortificado que lhe serve de base de operações e em que armazenam as presas conquistadas ao inimigo, em regiões vizinhas, enquanto não chega a ocasião de transportá-las à Dinamarca ou à Noruega. Os vikings são, na realidade, piratas, e sabe-se que a pirataria constitui a primeira etapa do comércio. Isso é tão certo que, desde os fins do século IX, quando deixam de saquear, transformam-se em mercadores" (PIRENNE, Henri. História econômica e social da Idade Média. 6. ed. São Paulo: Mestre Jou, 1982).
  5. Os judeus se dedicaram a este tipo de prática comercial porque não podiam ser proprietários de terras, nem pertencer às guildas e corporações de comerciantes. Mas há relatos de que cristãos e ordens eclesiásticas também se dedicavam à usura. Múnus non parit múnus (dinheiro não procria dinheiro) argumentou Santo Tomás de Aquino. P. 98, BATISTA NETO.
  6. As observações de Franz Wieacker são muito interessantes: "Ao contrário do que acontece com o direito profano, a ordem jurídica da Igreja baseava-se, já na Alta Idade Média, numa tradição salvaguardada pelo uso da escrita, da redacção documental e pela escola. As bases desta tradição eram as fontes escritas e os actos de aplicação do direito da Igreja desde o seu início: a Sagrada Escritura e os padres da Igreja; as decisões dos concílios e dos sínodos; os cânones e as decretais do papa; por fim, as leis imperiais e os capitulares relativos à igreja imperial franca. WIEACKER, Franz. História do direito privado moderno. 2. ed. Fundação Calouste Gulbenkian, 1980, p. 69.
  7. Por exemplo, o Professor Alfredo de Assis Gonçalves Neto. Sua lição é a seguinte: "Com o desenvolvimento comercial entre as diversas cidades soberanas na Baixa Idade Média, exigências de certeza e segurança nas relações comerciais impulsionaram o surgimento das primeiras compilações desse novo direito. Os usos e costumes comerciais, as decisões dos cônsules e os estatutos das corporações forem sendo reunidos em repositórios, formando compilações de grande autoridade entre os povos da época. Dentre elas, destacaram-se, no comércio terrestre, as Consuetudines, de Gênova (1056), o Constitutum Usus, de Pisa (1161) e o Líber Consuetudinum, de Milão (1216)", in Direito de empresa: comentários aos artigos 966 a 1.195 do Código Civil. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2008, p. 44.
  8. Vale registro as observações de Caenegem: "O entusiasmo que caracterizou o estudo do Corpus iuris, à medida que se estendeu da Itália às várias sociedades do Ocidente, era só uma parte do renascimento cultural mais amplo, de que um dos aspectos foi a fundação de universidades. Além do direito antigo, a filosofia grega (Aristóteles) e a ciência grego-árabe (medicina, física, matemática) foram redescobertas, traduzidas e comentadas. A autoridade do ensino antigo era absoluta; o que as Sagradas Escrituras eram para a teologia, Aristóteles era para filosofia, Galeno para a anatomia e o Corpus iuris para o direito. Mas motivos e necessidades adicionais mantiveram o interesse pelo antigo direito romano: as cidades e os principados em crescimento precisavam de um arcabouço jurídico adaptado às novas estruturas administrativas; e, durante a controvérsia das investiduras, cada lado procurou os argumentos para sustentar sua causa nos textos do Corpus iuris" CAENEGEM, R. C. van. Uma introdução histórica ao direito privado. 2. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2000, p. 67.

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SANTOS, Michel Carlos Rocha. História do Direito na Baixa Idade Média. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 16, n. 2801, 3 mar. 2011. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/18610. Acesso em: 29 mar. 2024.